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107
|
|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1,759,363,200,000
|
PARCIALMENTE PROCEDENTE
|
259/23.5YHLSB-A.L1-PICRS
|
259/23.5YHLSB-A.L1-PICRS
|
ARMANDO MANUEL DA LUZ CORDEIRO
|
(
elaborado pelo Relator
)
I. A parte que pede a notificação da parte contrária ou de terceiro para juntar aos autos documentos tem o ónus de individualizar, na medida do possível, tais documentos e indicar os factos que com eles quer provar.
II. Sempre que ao abrigo do disposto nos artigos 429.º e 432.º, do Código de Processo Civil, for requerida a junção aos autos de documentos em poder da parte contrária ou de terceiro, incumbe ao juiz apreciar se os factos que a parte pretende provar com os documentos têm interesse para a decisão da causa.
III. Apenas são pertinentes os documentos destinados a provar factualidade constante dos temas da prova, quando tais temas tiverem sido enunciados.
|
[
"PATENTES",
"GENÉRICOS",
"DOCUMENTOS",
"CONFIDENCIALIDADE"
] |
Acordam na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO:
1. Teva Pharma – Produtos Farmacêuticos Lda, ré, tendo “sido notificada do despacho datado de 13 de setembro de 2024, vem dele interpor recurso, o qual é de Apelação, com subida em separado, ao abrigo do disposto nos artigos 638º, n.º 1, 644.º, n.º 2, alínea d), e 645.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.”
2. Apresentou as seguintes conclusões:
A. Nos termos do artigo 644º n.º 2 do CPC cabe recurso de apelação da decisão que decidiu sobre a admissão de meio de prova.
B. Ao abrigo do disposto nos artigos 647.º, n.º 4 e 676.º, n.º 2 do CPC, requer-se que seja atribuído efeito suspensivo ao presente recurso de apelação, por a execução despacho datado de 13 de setembro de 2024 causar prejuízos consideráveis à Recorrente.
C. No despacho recorrido o Tribunal
a quo
não teve em consideração o ónus de alegação e prova que recai sobre a Recorrida, como se estas pudessem arbitrariamente ditar a prova a produzir nos autos.
D. Uma decisão permitindo uma incursão injustificada nas informações confidenciais da Recorrente, e impondo um ônus tão pesado sobre uma das partes, impunha uma apreciação, pelo menos, da pertinência dos documentos e factos em apreço nos presentes autos. O que não ocorreu nos presentes autos.
E. Não obstante a interpelação da Recorrente, até à presente data a Recorrida optou por deliberadamente recusar identificar os documentos pretendidos e os factos que pretendia provar com os documentos cuja junção foi requerida.
F. Dispõem os artigos 432.º e 429º do CPC que cabe à parte interessada – Recorrida - identificar os documentos e os factos que se pretendem provar com a junção dos
documentos.
G. Nos presentes autos, o Tribunal
a quo
não cumpriu com o seu dever, porquanto da sua decisão não existe qualquer apreciação da idoneidade dos documentos pretendidos pela Recorrida.
H. A Recorrida é uma empresa farmacêutica, e bem sabe quais são os módulos do eCTD são relevantes e necessários para a causa de pedir em discussão. Negar esse conhecimento constitui uma conduta abusiva que o tribunal não pode ignorar.
I. Com a Lei n.º 62/2011 o legislador pretendeu corrigir um comportamento que vinha a ser identificado em Portugal há vários anos: as empresas titulares de direitos de propriedade industrial intentavam ações em Portugal contra empresas de genéricos com o único propósito de obter documentos confidenciais, cujo acesso lhes era recusado pelos restantes Tribunais Europeus.
J. O Tribunal
a quo
nem procurou saber se algum/alguns dos módulos requeridos pela Recorrida se reportavam aos produtos e processos descritos naquelas patentes.
K. O Tribunal
a quo
fez uma incorreta interpretação do artigo 188º do Decreto-Lei n.º 176/2006, artigo 352.º do CPI e 432.º e 429º do CPC, que deveriam ter sido interpretadas no sentido de que à Recorrida incumbia o ónus de identificar os documentos que pretendiam e, também, os factos que pretendiam provar com cada
documento, pelo que não tendo cumprido com tal ónus, o requerimento da Recorrida
deveria ter sido indeferido.
L. Sendo compreensível que o Tribunal possa não compreender toda a matéria técnica em apreço nos presentes autos, em caso de dúvida caberia ao Tribunal nomear um assistente técnico para o assistir na decisão.
Termina pedindo “
Termos em que deve o presente recurso de apelação ser julgado procedente, e seja revogado o despacho recorrido e substituído por outro que indefira o pedido de acesso a documentos deduzido pela Recorrida, até que sejam identificados os factos que esta pretende provar e os documentos que pretende utilizar para cada um dos factos e seja apreciado criticamente o requerimento da Recorrida”
.
3. Responderam as autoras/recorridas pedindo que se deve “
indeferir o requerimento da Recorrente para atribuição de efeito suspensivo ao recurso interposto e, a final, indeferir o recurso interposto, mantendo a Decisão Recorrida
”.
Apresentaram as seguintes conclusões:
1. Na Decisão Recorrida, o Tribunal a quo não só admitiu o meio de prova em causa, como também determinou várias e rigorosas medidas destinadas a assegurar a respetiva confidencialidade – nos exatos termos requeridos pela própria Recorrente – de tal modo que não existe qualquer risco sério daquela decisão lhe poder causar um prejuízo considerável, não se justificando a atribuição do efeito suspensivo por ela requerida.
2. Para provar que os medicamentos genéricos de AXITINIB da Recorrente infringem os direitos de propriedade industrial em causa nos autos – e, em particular, que utilizam a mesma forma cristalina de AXITINIB protegida pela EP 702 – as Recorridas requereram ao douto Tribunal a quo que notificasse a Recorrente, o Infarmed, ou ambos, para – ao abrigo do disposto nos artigos 429.º e 432.º do CPC e 339.º do CPI – apresentar nos autos documentação relativa às respetivas (i) substância ativa e (ii) forma cristalina e métodos de preparação, que se encontra disponível no designado DMF ou ASMF que, por sua vez, faz parte do eCTD que foi submetido, pela Recorrente, ao Infarmed, aquando dos pedidos de AIM – o que veio a ser deferido através da Decisão Recorrida.
3. Para o efeito, e ao contrário do que alega a Recorrente, as Recorridas fundamentaram a necessidade da documentação em causa logo nos artigos 59.º a 69.º da petição inicial, tendo ainda densificado a essencialidade dessa documentação para prova da infração dos seus direitos pelos medicamentos genéricos da Recorrente nos artigos 65.º e seguintes da réplica.
4. Nos articulados que apresentaram as Recorridas indicaram, de forma detalhada:
(a) O que pretendiam provar com os documentos solicitados: que os medicamentos genéricos de Axitinib da Recorrente incorporam as invenções objeto de direitos de propriedade industrial das Recorridas.
(b) Como o pretendiam provar: através de documentação relativa à composição desses medicamentos, nomeadamente, o designado DMF ou ASMF, que se encontra no eCTD que foi submetido ao Infarmed para instrução dos respetivos pedidos de AIM.
(c) E porque precisavam de aceder a documentação na posse da Recorrente ou de terceiros: já que, em particular, a informação relativa à forma cristalina dos medicamentos genéricos de Axitinib da Recorrente não se encontra descrita em qualquer documento ao qual as Recorridas tenham acesso.
5. Por sua vez, o Tribunal a quo não ignorou o ónus das Recorridas de identificarem
os documentos que concretamente pretendiam obter e a sua relevância tendo, antes, apreciado as várias pronúncias emitidas por ambas as partes sobre o tema e entendido que os documentos requeridos pelas Recorridas não eram “nem impertinentes nem desnecessários”, justificando-se, contudo, salvaguardar a sua confidencialidade.
6. Assim, depois de apreciar criticamente os factos em causa, a pertinência da documentação requerida pelas Recorridas e a confidencialidade da mesma invocada pela Recorrente, o Tribunal a quo proferiu a Decisão Recorrida, pela qual admitiu o meio de prova em causa e adotou medidas de confidencialidade nos exatos termos requeridos pela Ré, restringindo o acesso não só à documentação requisitada, mas à totalidade do processo.
7. Em concreto, as medidas de confidencialidade em causa são as seguintes:
(a) Limitação do acesso aos documentos do dossier de AIM aos mandatários das Autoras, ao assessor técnico das Autoras e a 3 pessoas a nomear pelas Autoras;
(b) Limitação do acesso a audiências, registos e transcrições aos mandatários das Autoras, ao assessor técnico das Autoras e a uma pessoa a nomear pela Autoras;
(c) Todas pessoas que tiverem acesso à documentação acima indicadas deverão subscrever uma declaração nos termos qual se comprometerão:
vi. a manter estrita confidencialidade dos documentos;
vii. a manter uma única cópia física ou eletrónica dos documentos e abster-se de fazerem outras cópias;
viii. a não divulgar a terceiros (incluindo funcionários da Autora ou empresas afiliadas) a informação obtida nos autos;
ix. a não depor na qualidade de testemunhas em outros processos e/ou jurisdições sobre informações obtidas nos presentes autos ou utilizar a informação obtida de forma confidencial em qualquer outros processo (seja na qualidade de testemunha ou outra, tal como por exemplo prestando assessoria em outras jurisdições);
x. a devolver a cópia física dos documentos ou demonstrar a destruição da cópia eletrónica dos documentos à Ré.
8. Em suma, ao contrário do que alega a Recorrente, não é verdade que a Decisão Recorrida assente numa incorreta interpretação dos artigos 188.º do EM, 352.º do CPI e 429.º e 432.º do CPC, nem que o Tribunal a quo tenha de alguma forma ignorado o dever das Recorridas de fundamentar a necessidade da documentação requerida e, menos ainda, que não tenha efetivamente apreciado criticamente a respetiva pertinência.
Os factos relevantes para a apreciação do recurso são os seguintes:
1. Na sua petição inicial, as autoras formulam o seguinte pedido de prova:
“Prova documental em posse da Ré e/ou de terceiros
Nos termos dos artigos 429.º e 432.º do CPC e 339.º do CPI, e para prova dos factos alegados nos artigos 59º a 69º do presente articulado, as Autoras requerem a notificação da Ré, do Infarmed, ou de ambos, para juntar aos autos toda a documentação relativa ao composto, forma cristalina e respetivos métodos de preparação dos medicamentos genéricos de Axitinib da Ré, incluindo mas não limitando o seu ECTD (Electronic Common Technical Document) e o DMF (Drug Master File) da substância ativa na sua totalidade (Applicant Part.º e Restricted Part)”
2. Na contestação/reconvenção a ré, recorrente, pronuncia-se quanto a tais pedido de prova nos artigos 107 a 128, e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
3. Foi proferido o despacho recorrido com o seguinte teor:
“
VII. Da admissão dos meios probatórios:
Da prova documental:
Por não se demonstrarem nem impertinentes nem desnecessários, admito a junção dos documentos pelas partes, nos termos do artigo 423.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Mais determino a notificação da Ré e do Infarmed, para juntar aos autos toda a documentação relativa ao composto, forma cristalina e respetivos métodos de preparação dos medicamentos genéricos de Axitinib da Ré, incluindo, mas não limitando o seu ECTD (Electronic Common Technical Document) e o DMF (Drug Master File) da substância ativa na sua totalidade (Applicant Part.º e Restricted Part), assegurando-se a confidencialidade da documentação que venha a constar dos autos, nos termos requeridos pela Ré.”.
4. Nos autos, foi identificado o objeto do litígio e foram enunciados os temas da prova:
“
V. Objecto do Litígio:
Se deve ser reconhecido que o fabrico, a oferta, a armazenagem, a introdução no comércio ou a utilização, a importação ou a posse, para algum dos fins anteriores dos medicamentos genéricos de AXITINIB, para os quais a Ré requereu duas autorizações de introdução no mercado indicando o INLYTA como medicamento de referência, viola o CCP 521;
Se deve ser reconhecido que o fabrico, a oferta, a armazenagem, a introdução no comércio ou a utilização, a importação ou a posse, para algum dos fins anteriores dos medicamentos genéricos de AXITINIB, para os quais a Ré requereu duas autorizações de introdução no mercado indicando o INLYTA como medicamento de referência, viola a EP 702;
Se deve ser a Ré condenada a não fabricar, oferecer, armazenar, colocar no mercado, utilizar e importar ou possuir para algum dos fins anteriores os medicamentos genéricos de AXITINIB, para os quais requereu duas autorizações de introdução no mercado indicando o INLYTA como medicamento de referência, tudo até à data de caducidade do CCP 521;
Se deve ser a Ré condenada a não fabricar, oferecer, armazenar, colocar no mercado, utilizar e importar ou possuir para algum dos fins anteriores os medicamentos genéricos de AXITINIB, para os quais requereu duas autorizações de introdução no mercado indicando o INLYTA como medicamento de referência, tudo até à data de caducidade da EP 702;
Se deve ser aplicada à Ré uma sanção pecuniária compulsória à taxa diária de 100 UC, nos termos dos artigos 829.º-A, n.º 1, do CC e 348.º, n.º 4, do CPI; e
Se deve ser julgado procedente por provado e, consequentemente a EP’702 deverá ser declarada nula e ser ordenado o respectivo cancelamento junto do INPI.
VI. Temas da Prova:
Face aos documentos juntos aos autos e a posição assumida nos respectivos articulados, constituem temas da prova a apurar:
Se ocorre violação ou não da patente EP’702, apurando o seu âmbito de protecção e reivindicações;
Se se verifica falta de actividade inventiva da EP‘702 face à patente US 2006094763 (US‘763) que determina o não preenchimento dos requisitos de patenteabilidade da CPE.”
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
Como é pacífico, o Tribunal tem de resolver questões e não apreciar argumentos; e as questões são as que resultam das conclusões das alegações do recorrente.
Acresce que este Tribunal de recurso, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, não conhece questões novas, isto é, questões que não tenham sido apreciadas pelo Tribunal recorrido.
Pelo exposto e atento o pedido formulado, a
única questão a decidir
é a de saber se o despacho que ordenou a notificação da ré e do Infarmed para juntarem aos autos toda a documentação relativa ao composto, forma cristalina e respetivos métodos de preparação dos medicamentos genéricos de Axitinib da Ré, incluindo, mas não limitando o seu ECTD (Electronic Common Technical Document) e o DMF (Drug Master File) da substância ativa na sua totalidade (Applicant Part.º e Restricted Part), incorre em erro de julgamento.
Segundo a recorrente, tal erro decorre de dois argumentos essenciais.
i O Tribunal
a quo
não teve em consideração o ónus de alegação e prova que recai sobre a recorrida já que lhes cabe – às recorridas – identificar os documentos e os factos que se pretendem provar com a junção dos documentos. – conclusões C e F; e
ii O Tribunal
a quo
não procedeu à apreciação da pertinência dos documentos e factos em apreço nos presentes autos – conclusões D, G e J.
Em síntese, na petição inicial, as autoras requerem a notificação da ré e do Infarmed para juntarem aos autos toda a documentação relativa ao composto, forma cristalina e métodos de preparação dos medicamentos genéricos de Axitinib da Ré, incluindo, mas não limitando, o ECTD e o DMF da substância ativa na sua totalidade.
A Ré, na contestação, com reconvenção, argumenta que as autoras não justificam a necessidade de tal prova e além disso, que a documentação requerida contém informações altamente sensíveis e confidenciais, tendo sugerido medidas específicas para garantir a confidencialidade, caso a junção fosse ordenada.
A ré, recorrente, opõe-se expressamente ao pedido formulado pelas autoras recorridas nos artigos 107 a 128 da sua contestação/reconvenção.
O despacho recorrido omite na totalidade qualquer apreciação quanto às objeções da ré.
Embora não configure um despacho nulo, por ser possível ver nele alguma, embora escassa, fundamentação, impunha-se uma apreciação que permitisse às partes, e ao tribunal de recurso, perceber as razões do decidido.
Do despacho recorrido resulta, apenas e apenas implicitamente, que tais documentos não foram considerados impertinentes nem desnecessários e que algumas das razões invocadas pela ré foram atendidas ao prever-se que deva ser assegurada “
a confidencialidade da documentação que venha a constar dos autos, nos termos requeridos pela Ré
.”
Perante os factos apurados impõe-se apreciar se tal despacho deve manter-se ou ser revogado, como pretende a recorrente.
Genericamente, os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes (art.º 423.º, n. 1, do Código de Processo Civil). Nestes casos, de junção de documentos com os articulados, impõe-se ao juiz admiti-los e rejeitar, unicamente, aqueles que forem impertinentes, ao abrigo do disposto no art.º 6.º, n. 1, do Código de Processo Civil.
Já nos casos em que a parte queira apresentar um documento, mas não lhe seja possível nos termos do disposto no art.º 423.º, n. 1, do Código de Processo Civil, por, designadamente, tal documento se encontrar na posse da parte contrária, tem de proceder nos termos previstos no art.º 429.º:
1 - Quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado; no requerimento, a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar.
Nestas situações, incumbe ao juiz apreciar se os factos que a parte pretende provar têm interesse para a decisão da causa (art.º 429.º, n. 2, do Código de Processo Civil).
O mesmo sucede nos casos em que os documentos se encontram em posse de terceiros (art.º 432.º, do Código de Processo Civil).
Há, pois, uma diferença de regime quanto aos documentos que a parte apresenta com os articulados daqueles que não apresenta, por se encontrarem em poder da parte contrária, mas pretende que sejam juntos aos autos.
No caso de apresentação de documentos pela própria parte, nos articulados, o tribunal apenas deve rejeitar aqueles que forem impertinentes.
Já no caso de documentos na posse da parte contrária, ou de terceiro, o juiz tem de efetuar uma avaliação, positiva, de pertinência
[1]
. E tal juízo de pertinência assenta por referência aos factos que a parte requerente quer provar com o documento.
Para além desta indicação dos factos que se pretendem provar com o documento, à parte requerente cabe, ainda, um ónus de identificação do documento, embora sem preocupações de exatidão.
No caso em concreto, as autoras, como resulta dos factos descritos em 1, pediram que a ré e um terceiro fossem notificados para apresentarem determinados documentos com o fundamento na sua necessidade para “
prova dos factos alegados nos artigos 59º a 69º”
da petição.
Não identificam concretamente os documentos pretendidos, mas por reporte a “
toda a documentação
relativa ao composto, forma cristalina e respetivos métodos de preparação dos medicamentos genéricos de Axitinib da Ré, incluindo, mas não limitando o seu ECTD (Electronic Common Technical Document) e o DMF (Drug Master File) da substância ativa na sua totalidade (Applicant Part.º e Restricted Part)
” – é nosso o sublinhado.
Quanto ao primeiro requisito de admissão do pedido formulado, há que apreciar se os factos descritos nos artigos 59º a 69º da petição constituem factos essenciais, acessórios ou complementares da causa de pedir invocada, sendo que, nos termos do disposto no art.º 410.º, do Código de Processo Civil, a
instrução tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova
.
Nos autos, foi identificado o objeto do litígio, e foram enunciados os seguintes temas da prova:
“Se ocorre violação ou não da patente EP’702, apurando o seu âmbito de protecção e reivindicações;
Se se verifica falta de actividade inventiva da EP‘702 face à patente US 2006094763 (US‘763) que determina o não preenchimento dos requisitos de patenteabilidade da CPE.”
Os factos 59º a 69º da petição indicados pelas requerentes têm o seguinte teor:
59º
Quanto à EP 702, na medida em que esta patente protege a forma cristalina de AXITINIB (e respetivo método de preparação) que melhor potencia as suas características para uso comercial, existe uma forte probabilidade de a Ré utilizar a mesma forma cristalina nos seus medicamentos de AXITINIB,
60º
Preparando-se, assim, para infringir também a EP 702.
61º
Com efeito, a Forma XLI apresenta uma combinação única de dois ou mais picos de difração de raio-x em pó (PXRD peaks) que não se sabe existir em qualquer outro polimorfo de AXITINIB,
62º
E que lhe atribui propriedades físicas que permitem a sua formulação e fabrico de forma fiável, tais como a filtrabilidade, a higroscopicidade, a fluidez e a estabilidade ao calor, à humidade e à luz.
63º
Pelo que tudo indica que a Ré irá também utilizar a forma cristalina XLI na comercialização dos seus medicamentos genéricos de AXITINIB.
64º
Assim, apesar da designação de genérico, por si só, poder não ser, em geral, suficiente para que se possa concluir que um medicamento usa a mesma forma cristalina que o medicamento de referência, as circunstâncias do caso concreto indiciam ser esse o caso do medicamento genérico da Ré.
65º
Não obstante, importa referir que, de facto, as Autoras não têm acesso à discrição da forma cristalina de AXITINIB utilizada nos medicamentos genéricos da Ré.
66º
Essa é uma informação que, nesta fase, apenas a Ré e o Infarmed (este último com
base na informação constante do pedido de AIM apresentado pela Ré para o seu
medicamento genérico de AXITINIB) possuem.
67º
Pelo que, nos termos dos artigos 429.º e 432.º do CPC e 339.º do CPI, deve a Ré, o Infarmed, ou ambos, ser notificados para juntar aos autos toda a documentação relativa ao composto, forma cristalina e respetivos métodos de preparação dos medicamentos genéricos de AXITINIB da Ré, incluindo mas não limitando o seu ECTD (Electronic Common Technical Document) e o DMF (Drug Master File) da substância ativa na sua totalidade (Applicant Part.º e Restricted Part),
68º
O que desde já se requer.
69º
Pois só assim poderão as Autoras demonstrar cabalmente a composição do medicamento genérico da Ré.
Da simples leitura de tais
factos
, resulta que apenas os descritos em 59 a 63 podem configurar verdadeiros factos suscetíveis de esforço probatório.
De tais factos resulta que as autoras imputam à ré a possibilidade de, com a introdução do genérico, violarem a EP 702, por a ré utilizar a mesma forma cristalina XLI (e respetivo método de preparação) nos seus medicamentos de AXITINIB.
Invocam as autoras que “
não têm acesso à discrição da forma cristalina de AXITINIB utilizada nos medicamentos genéricos da Ré
” (artigo 65.º da petição).
Na sua contestação, as rés não admitem tal violação.
Assim, atenta a matéria constante dos temas da prova, conjugados com o objeto do litígio, torna-se necessário demonstrar se a ré utiliza a mesma forma cristalina XLI (e respetivo método de preparação) nos seus medicamentos de AXITINIB.
Ou seja, atento o objeto do processo e os temas de prova podemos concluir que as autoras apresentaram justificação suficiente para o pedido de documentação que formularam. Ou seja, mostra-se justificada a pertinência do pedido.
Vimos já, contudo, que as autoras deveriam, igualmente, identificar quanto possível o documento.
As autoras, recorridas, usam uma formulação ampla e genérica (
toda a documentação
) que não permite, ressalvado o devido respeito por outra opinião, apreciar desde logo a pertinência de alguma dessa “
toda a documentação
”, ainda que limitada àquela “
relativa ao composto, forma cristalina e respetivos métodos de preparação dos medicamentos genéricos de Axitinib da Ré”,
para além daquela que indica expressamente:
- o seu ECTD (Electronic Common Technical Document);
- e o DMF (Drug Master File) da substância ativa na sua totalidade (Applicant Part.º e Restricted Part).”
Tal como já referimos
supra
, os documentos foram pedidos apenas para demonstração dos factos descritos em 59 a 63 da petição. Tais factos respeitam, unicamente, à invocação da possibilidade de utilização pela ré da “forma cristalina XLI (e respetivo método de preparação) nos seus medicamentos de AXITINIB”. Nada nesses factos respeita ao “composto” nem aos “
respetivos métodos de preparação dos medicamentos genéricos de Axitinib da Ré”
.
Assim, qualquer documento que não respeite à forma cristalina XLI (e respetivo método de preparação) está excluída da necessidade de junção aos autos, revelando-se impertinente.
Invoca, a recorrente, razões de confidencialidade e segredo de negócio.
O despacho recorrido não deixa de referir que com a junção deverá ser assegurada “
a confidencialidade da documentação que venha a constar dos autos, nos termos requeridos pela Ré
”.
Quanto a este aspeto, limitamo-nos a citar, reiterando-o, o acórdão proferido no âmbito do processo 511/22.7YHLSB-B.L1-PICRS, de 27.11.2024
[2]
, desta secção PICRS:
20. Neste contexto, o pedido de documentação em causa parece-nos perfeitamente justificado, pelo que bem andou o tribunal a quo em deferir, no despacho recorrido, a requisição documental à Infarmed, ao abrigo do disposto no artigo 436.º do Código de Processo Civil, sem olvidar as devidas cautelas na proteção de informação confidencial (e que não olvidamos tratar efetivamente de dados muito sensíveis), ao abrigo do artigo 352.º, do Código de Propriedade Industrial.
21. Nem se vislumbra como o artigo 188.º do DL. n.º 176/2006 (regime jurídico dos medicamentos de uso humano), artigo 352.º do CPI e 432.º e 429º do Código de Processo Civil, poderiam obstar a este entendimento.
Assim, determinada a junção dos documentos, a confidencialidade será assegurada, nos termos requerido pela ré, recorrente. Termos que constam, dos artigos 125.º, 126º e 128º, da contestação reconvenção.
Assim, concedendo parcial provimento ao recurso, os documentos a juntar aos autos, em poder da ré ou do Infarmed, serão limitados aos documentos relativos à forma cristalina XLI (e respetivo método de preparação) nos medicamentos genéricos de Axitinib da Ré, incluindo os Ectd e DMF quanto à referida forma cristalina XLI.
III. DECISÃO:
Pelo exposto,
I. damos parcial provimento ao recurso e, em consequência devem a ré e o Infarmed, juntar aos autos os documentos, em seu poder, relativos à forma cristalina XLI (e respetivo método de preparação) nos medicamentos genéricos de Axitinib da Ré, incluindo os Ectd e DMF quanto à referida forma cristalina XLI, assegurando-se a confidencialidade da documentação que venha a constar dos autos, nos termos requeridos pela ré nos artigos 125º, 126º e 128º, da contestação reconvenção, para o que serão notificados.
II.
Custas pelas ré recorrente e autoras recorridas em partes iguais.
Lisboa, 10/02/2025
Armando Manuel da Luz Cordeiro
Eleonora Viegas
José Paulo Abrantes Registo
_______________________________________________________
[1]
Cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa,
Código de Processo Civil Anotado
, vol. I, Almedina, 2ª ed., p.
525.
[2]
Disponível in
www.dgsi.pt
|
TRL
|
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/257c8f71725e0fad80258c37005a2ea7?OpenDocument
|
1,747,094,400,000
|
PROCEDENTE
|
393/23.1T8BRR. L1-1
|
393/23.1T8BRR. L1-1
|
ISABEL FONSECA
|
Sumário [
Da responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).
]
1. Os fundamentos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração estão taxativamente enunciados no art. 243.º do CIRE; para a verificação do condicionalismo previsto na alínea a) do número 1 do referido artigo o legislador exige três requisitos cumulativos, a saber, (i) que o insolvente tenha agido em violação das obrigações impostas pelo art. 239.º do CIRE, (ii) que o insolvente tenha atuado com dolo ou negligência grave (nexo de imputação subjetiva) e (iii) que a sua atuação cause um prejuízo para os credores (nexo de causalidade adequada).
2. Na aferição do elemento subjetivo, o legislador exclui os casos de
mera culpa
ou
negligência
, que se traduz na violação de um dever de cuidado, na omissão da diligência exigível ao agente.
3. Admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor/insolvente, com início do respetivo período de cessão (
grosso modo
, entre junho de 2023 e maio de 2026), tendo o insolvente sido convocado para apresentar ao fiduciário documentos que este solicitou porque entendeu pertinentes para o apuramento do rendimento disponível com vista à apresentação do seu relatório anual (art. 240.º, n.º2 do CIRE), não pode qualificar-se como gravemente negligente, para efeitos de fundamentar a decisão de cessação antecipada da exoneração, a conduta do devedor que, contactando com o fiduciário por intermédio da patrona respetiva e tendo ainda intervenção direta no processo por via de mensagem eletrónica enviada:
- Junta as notas de liquidação de IRS alusivas aos anos de 2022 e 2023, com indicação do valor de reembolso auferido e data da transferência omitindo, no entanto, a junção da declaração de IRS relativa ao ano de 2023 que o fiduciário também exigia;
- Junta declaração emitida pelo Centro Nacional de Pensões comprovativa do valor global da pensão auferida no ano de 2023 e dos valores recebidos em cada um dos meses de janeiro a maio, inclusive, de 2024, bem como do valor mensal da pensão neste ano de 2024 omitindo, no entanto, os valores recebidos mês a mês, no ano de 2023 e de junho (inclusive) de 2024 em diante, que o fiduciário também exigia.
4. No balanceamento entre a posição dos intervenientes processuais (credores/devedor) e os vários interesses em jogo, não se afigura equilibrado e proporcionado sancionar a conduta do insolvente com a aplicação da medida mais gravosa – a cessação antecipada do pedido de exoneração do passivo restante –, num caso em que essa conduta não se pautou pelo evidente e reiterado silêncio do devedor na apresentação dos documentos que ao longo do tempo lhe têm sido solicitados, não podendo reconduzir-se o caso dos autos a uma situação em que o fiduciário se encontra objetivamente impossibilitado de apurar o rendimento disponível no período de cessão por virtude da conduta do insolvente.
|
[
"EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE",
"CESSAÇÃO",
"DEVER DE COOPERAÇÃO",
"DEVER DE INFORMAR"
] |
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1. RELATÓRIO
(i) LC,
apelante
, nascido em 01-09-1956, apresentou-se à insolvência em 14-02-2023, tendo sido proferida sentença a declarar a insolvência do requerente em 16-02-2023, transitada em julgado.
(ii) Em 28-11-2024, veio o credor NOVO BANCO, SA apresentar requerimento com o seguinte teor:
“(…) Credor nos autos supra indicados, sendo aí insolvente LC, notificada do relatório elaborado pelo Sr. Fiduciário, do qual resulta um manifesto incumprimento por parte do Insolvente das obrigações a que se encontra adstrito, vem requerer a cessação antecipada da exoneração, nos termos do disposto no artigo 243.º do CIRE // Termos em que // Requer a junção aos autos para os fins expostos, com as legais consequências”.
Determinou-se a notificação do insolvente, dos demais credores e do sr. fiduciário para se pronunciarem sobre o pedido de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante. O insolvente foi notificado por intermédio da respetiva patrona nomeada.
O credor Scalabis – Stc, S.A manifestou-se no sentido da cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
O sr. Fiduciário pronunciou-se no sentido de se proceder à notificação do insolvente para vir juntar aos autos a documentação em falta.
O insolvente, notificado, nada disse.
Os demais credores não se pronunciaram.
(iii)
Foi então proferida, em 15-01-2025, decisão (decisão recorrida) que concluiu como segue:
“Face ao exposto, nos termos do disposto no art. 243.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, declaro a cessação antecipada do procedimento de exoneração e, em consequência, recuso a exoneração do passivo restante do devedor LC.
Notifique.
Publique e registe (art. 247.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas)”.
(iv)
Não se conformando o insolvente apelou formulando as seguintes conclusões
:
“1. Vem o presente recurso interposto do conteúdo do despacho de 15.01.2025, de recusa da exoneração do passivo restante do insolvente apresentado pelo insolvente na sua petição inicial.
2. Em 14.02.2023 o recorrente requereu a sua declaração de insolvência, pedindo ainda a exoneração do restante passivo.
3. Em 16.02.2023 foi decretada judicialmente a insolvência da recorrente.
4. O Exmo. Senhor Administrador de Insolvência no seu relatório previsto no art. 155º do CIRE, de, pronunciou-se favoravelmente ao pedido de exoneração do passivo restante, tendo.
5. Em 03.05.2024 a patrona nomeada enviou documentação para AI, com o conteúdo solicitado suficiente para fazer o relatório a que alude o 155º CIRE.
6. Continuou o AI a insistir na documentação em falta.
7. Face apenas ao que recebe como pensionista o recorrente, não tem mais documentação a entregar a não ser o que já entregou, nota de liquidação e declaração rendimentos auferidos emitida pela ISS.
8. Após as insistências do mesmo conteúdo, o recorrente enviou 13.11.2024 email para o tribunal com a documentação em anexo do apurado na ISS, igual ao que a patrona nomeada havia enviado para o AI.
9. A discordância do recorrente prende-se com o facto de no despacho recorrido ter sido considerado que o recorrente agiu com grave negligência e que tal facto prejudicou os créditos sobre a insolvência.
10. Do relatório não se consegue retirara com transparência que foi notificado o recorrente qual foi o valor apurado, que tem de devolver à massa insolvente, nem foi esclarecido se o AI ao pedir tal valor que apurou se indicou o IBAN para p recorrente cumprir.
11. No que concerne à negligência, não se verifica se, de facto, o recorrente não cumpriu alguns dos seus deveres. Mas mesmo que assim fosse evidenciado, tal facto, por si só, não implica um elevado grau de negligência nem configura uma situação insanável.
12. Até porque o recorrente, notificado para tal pelo tribunal, apresentou as suas declarações de rendimentos dos anos de 2017 e 2018, predispondo-se a entregar os seus rendimentos objeto de cessão, de acordo com as deduções de despesas devidamente comprovadas arcadas no âmbito do exercício da sua pensão auferida.
13. Por outro lado, a atuação do recorrente não prejudicou a satisfação dos créditos da insolvência.
14. Pois, repita-se, o recorrente apresentou voluntariamente as suas declarações de rendimentos, podendo a parcela dos mesmos que cabe entregar aos credores sê-lo a qualquer momento, pelo que inexiste qualquer prejuízo destes, prejuízo esse que apenas se constataria se se verificasse que o recorrente, notificado para tal, se recusasse a fazer as entregas.
15. Perante todo o exposto, errou o tribunal a quo na interpretação da alínea a) do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE, ao considerar que o ora recorrente atuou com grave negligência e que tal comportamento prejudicou a satisfação dos créditos da insolvência.
16. Deveria tal norma ter sido interpretada no sentido de se considerar que o recorrente agiu apenas com mera negligência, mas que tal comportamento não prejudicou a satisfação dos créditos sobre a insolvência, apenas atrasando o seu cumprimento.
17. Razão pela qual deverá ser revogado o despacho recorrido e remetidos os autos ao tribunal a quo, devendo aí o recorrente prestar as suas contas perante o tribunal e o fiduciário e manter-se o procedimento de exoneração.
18. Ora, com o devido respeito, não pode deixar de discordar a recorrente com a fundamentação colhida pelo Tribunal “a quo”.
19. Face ao exposto, não houve assim qualquer incumprimento ou omissão por parte da recorrente na sua apresentação à insolvência.
20. O recorrente não concorda com a decisão do Tribunal «a quo», até porque a recusa do pedido de exoneração do passivo com base na violação do art. 239.º, art. 243.º, n.º 1, al. a), e n.º 3 todos do CIRE, não tem qualquer fundamentação com a realidade.
21. Não se verificando não poderá ser o pedido de exoneração do passivo restante liminarmente recusado, como foi.
22. Sendo certo que esta decisão liminar não é definitiva e que ela em nada prejudica os credores.
23. Impõe-se, por isso, a revogação da decisão que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante relativo à recorrente, substituindo-a por outra que admita e conceda liminarmente tal exoneração.
24. Ao assim não entender o Tribunal “a quo” violou nomeadamente o disposto nos artigos 238° do CIRE.
Termos em que deverá ser dada procedência ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o despacho de recusa da exoneração do passivo restante do insolvente e de declaração de cessação antecipada do respetivo procedimento, mantendo-se o procedimento de exoneração.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre apreciar.
II. FUNDAMENTOS DE FACTO
O tribunal de 1ª instância considerou que “[d]os dados dos autos e dos documentos juntos resultam provados os seguintes factos com relevância para a decisão”, factos que esta Relação enuncia [
[1]
], dando-se ainda como assente a factualidade
infra
indicada sob os números 2A, 3A, 6A, 7A, 8A, 9ª, 12A, 12B, 12C e 16, factos estes que temos por pertinentes e que resultam da posição dos intervenientes expressa no processo e dos documentos que acompanham os requerimentos /relatórios, na medida em que não foram objeto de impugnação (arts. 662.º, n.º 1 e 607.º,
ex vi
do art. 663.º, n.º 2 do CPC):
1. AC foi declarado insolvente por sentença de 16-02-2023, transitada em julgado.
2. Por despacho de 17-05-2023, transitado em julgado, foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, tendo sido excluído da cessão de rendimentos o montante mensal correspondente a um e meio salários mínimos nacionais.
2 A. O despacho tem o seguinte segmento dispositivo:
“Pelo exposto, nos termos do art. 237.º, alínea b), e 239.º, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, admito liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante e, em consequência:
1) determino que durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado por período de cessão, o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir, atento o disposto no art. 239.º, n.º 3, do CIRE, seja cedido a fiduciário;
2) considerando que o agregado familiar do insolvente é composto pela insolvente, a companheira e filha menor desta, que o insolvente aufere pensão no valor mensal de € 770 e a companheira aufere remuneração média de € 610, fixo o valor para assegurar o sustento do insolvente em valor equivalente a um e meio salários mínimos nacionais, consignando que o cálculo deste montante teve como pressuposto a ponderação do rendimento que actualmente aufere, das regras da experiência comum e do custo médio de vida da região, bem como critério de equidade do que necessita para a sua subsistência pessoal e respectivo agregado, com o mínimo de dignidade, atendendo às despesas que evidenciou nos autos;
3) nomeio fiduciário o Sr. Dr. AA, já nomeado administrador da insolvência;
4) advirto o insolvente de que, durante o período da cessão, fica obrigado, nos termos do art. 239.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.
5) a exoneração será concedida uma vez observadas pelo insolvente as condições previstas no art. 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas durante o período da cessão.
Custas do incidente pela massa insolvente (art. 303.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Publique e registe nos termos do art. 247.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Notifique.
3. O processo de insolvência foi declarado encerrado.
3A. Por despacho proferido na mesma data (17-05-2023), com fundamento na “
manifesta
” “
inexistência de bens a liquidar, nos termos do art. 230.º, n.º 1, al. e)
” do CIRE.
4. O fiduciário solicitou ao insolvente através da patrona, a entrega das declarações e notas de liquidações de IRS, recibos de vencimentos e outros comprovativos de qualquer tipo de rendimentos eventualmente auferidos ou, em caso da não existência de rendimentos, documentos que permitam comprovar que inexistiram valores auferidos, por forma a permitir comprovar a sua situação económico-financeira, factos que deu a conhecer ao tribunal em relatório de 03-05-2024.
5. No mesmo relatório, o fiduciário informou os autos que não foi possível concluir sobre o estado da cessão de rendimentos.
6. Por despacho de 22-05-2024 foi determinada a notificação do insolvente para, no prazo de 10 dias, entregar ao fiduciário comprovativos dos rendimentos auferidos desde maio de 2023 até ao presente, bem como cópia da declaração e nota de liquidação do IRS de 2023, com a advertência de que a falta de colaboração com o sr. fiduciário ou com o tribunal poderá acarretar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante [
[2]
].
6 A. Despacho notificado à patrona do insolvente por comunicação de 23-05-2024; não foi dirigida qualquer comunicação ao próprio insolvente.
7. A 26-06-2024 o fiduciário informa que a patrona do insolvente remeteu alguns documentos.
7A. Tendo o relatório apresentado pelo fiduciário o seguinte teor:
“
I – INTRODUÇÃO //Através deste documento vem o Fiduciário, nos termos do disposto no artigo 240º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, dar a conhecer ao Tribunal e aos credores do processo de insolvência a actual situação da cedência de valores efectuada pelo insolvente, no âmbito da exoneração do passivo restante, cujo despacho inicial foi emitido em 22-05-2023. // II – SITUAÇÃO DA EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE // Em 03-05-2024, o aqui signatário apresentou aos autos o relatório anual, nos termos do disposto no artigo 240º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. // No mesmo referiu que nenhuma informação havia sido prestada nem nenhum documento comprovativo da situação económico-financeira do devedor havia sido remetido. // Após envio do relatório aos autos, a ilustre mandatária do devedor remeteu comunicação electrónica. // No que concerne ao ano de 2023, apenas comprovou o valor anual auferido pelo devedor a título de pensão. // Relativamente ao ano de 2024, comprovou os valores auferidos mensalmente entre Janeiro e Maio, inclusive. // Adicionalmente, remeteu nota de liquidação de IRS relativa ao exercício de 2021, a qual não foi considerada, uma vez que o período de cessão teve o seu início em Junho de 2023. // Assim, torna-se necessário que comprove os valores auferidos mês a mês entre Junho de 2023 e Dezembro de 2023, inclusive. // Deverá ainda remeter a declaração de IRS relativa ao exercício de 2023, bem como as notas de liquidação relativas aos exercícios de 2022 e 2023. Caso tenha tido direito a reembolso, deve igualmente comprovar a data em que recebeu o mesmo. // Em 14-06-2024, o aqui signatário solicitou os documentos em falta (Doc. 01). Contudo, até à presente data, não obteve resposta à referida comunicação. // Pela análise dos documentos remetidos não se apuram valores em dívida, conforme quadro discriminativo de valores que se junta (Doc. 02). Contudo, os documentos que se encontram na posse do signatário são insuficientes para que tal afirmação seja conclusiva relativamente ao 1º ano de cessão de rendimentos. // III – DISTRIBUIÇÃO DE VALORES // Dado que no presente caso não houve lugar à entrega de qualquer valor a título de rendimento disponível, não há lugar à distribuição de valores”
.
8. Dos documentos juntos relativamente ao ano de 2023, apenas comprovou o valor anual auferido pelo devedor a título de pensão e no que concerne ao ano de 2024, comprovou os valores auferidos mensalmente entre janeiro e maio, inclusive.
8A.
O
insolvente recebeu, a título de “pensão”, os seguintes valores: de janeiro a maio de 2024, inclusive, respetivamente, 843,07€, 849,07€, 849,07€, 855,07€ e 849,07€, no total de 4.245,35€ [
[3]
].
9. Por despacho de 12-09-2024, ordenou-se a notificação do insolvente para entregar ao fiduciário comprovativos dos rendimentos auferidos mês a mês entre junho de 2023 e dezembro de 2023, inclusive, bem como cópia da declaração de IRS relativa ao exercício de 2023, bem como as notas de liquidação relativas aos exercícios de 2022 e 2023, com a advertência de que a falta de colaboração com o sr. fiduciário ou com o tribunal poderá acarretar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante [
[4]
].
9A. Despacho notificado à patrona do insolvente por comunicação de 13-09-2024; não foi dirigida qualquer comunicação ao próprio insolvente.
10. O fiduciário, a 17-10-2024 informou os autos que não dispõe de elementos para confirmar os rendimentos disponíveis relativamente ao primeiro ano de cessão.
11. Referiu que se mantinham em falta os comprovativos dos valores auferidos mês a mês entre junho de 2023 e dezembro de 2023, inclusive e entre junho de 2024 e a presente data e que o insolvente “
[d]everá ainda remeter a declaração de IRS relativa ao exercício de 2023 e comprovar em que data auferiu o reembolso no montante de 231,00 euros
” [
[5]
].
12. Por despacho 07-11-2024 foi determinada a notificação do insolvente para vir juntar os elementos em falta [
[6]
] [
[7]
].
12A. Despacho notificado ao próprio insolvente e ainda à patrona do insolvente por comunicações de 08-11-2024.
12B. Em resposta a essa notificação, por mensagem eletrónica remetida para o processo, em 13-11-2024, veio o insolvente apresentar vários documentos, a saber:
- Demonstração de liquidação de IRS alusiva ao “
período de rendimentos
” de 2023-01-01 a 2023-12-31” (número do documento:2024 00003375379);
-
Demonstração de liquidação de IRS alusiva ao “
período de rendimentos
” de 2022-01-01 a 2022-12-31” (número do documento: 2023 00004177993);
- Declaração emitida pelo Centro Nacional de Pensões em 19-01-2024 [
[8]
].
12 C. O insolvente auferiu os seguintes valores:
- No “
período de rendimentos
” de 2023-01-01 a 2023-12-31 o “
rendimento global
” de 11.120,22€, tendo tido um reembolso de IRS de 231,00€, pago por transferência bancária realizada em 2024-07-03 pela autoridade tributária;
- No “
período de rendimentos
” de 2022-01-01 a 2022-12-31 o “
rendimento global
” de 9.982,31, tendo tido notificado pela mesma entidade “
de que não há lugar ao pagamento de reembolso
”;
-
No ano de 2023, do Centro Nacional de Pensões, o “
valor total de pensões
” de 11.120,22€, com 231,00€ de “
retenções de IRS
” (informação reportada pelo CNP em 19-01-2024);
- No ano de 2024, do Centro Nacional de Pensões, o “
valor mensal
” de pensão de 856,07€ (informação reportada pelo CNP em 19-01-2024) [
[9]
].
13. O fiduciário informou que:
“No que concerne ao ano de 2023, apenas comprovou o valor anual auferido pelo devedor a título de pensão (Doc. 01). Relativamente ao ano de 2024, comprovou os valores auferidos mensalmente entre Janeiro e Maio, inclusive”.
13A. Fazendo-o por relatório apresentado em 21-11-2024, com o seguinte teor:
“RELATÓRIO ANUAL – ARTIGO 240º
(…) I - INTRODUÇÃO // Através deste documento vem o Fiduciário, nos termos do disposto no artigo 240º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, dar a conhecer ao Tribunal e aos credores do processo de insolvência a actual situação da cedência de valores efectuada pelo insolvente, no âmbito da exoneração do passivo restante, cujo despacho inicial foi emitido em 22-05-2023. // II – SITUAÇÃO DA EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE // Em 03-05-2024, 26-06-2024 e em 17-10-2024, o aqui signatário apresentou aos autos o relatório anual, nos termos do disposto no artigo 240º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. // Desde o início da cessão de rendimentos, remeteu as notas de liquidação de IRS relativas aos exercícios de 2021, 2022 e 2023. // À semelhança de informação anterior, deverá remeter a declaração de IRS relativa ao exercício de 2023. Comprovou já em que mês auferiu o reembolso de IRS. // No que concerne ao ano de 2023, apenas comprovou o valor anual auferido pelo devedor a título de pensão (Doc. 01). // Relativamente ao ano de 2024, comprovou os valores auferidos mensalmente entre Janeiro e Maio, inclusive. // Assim, mantém-se o referido anteriormente aos autos, tornando-se necessário que comprove os valores auferidos mês a mês entre Junho de 2023 e Dezembro de 2023, inclusive e entre Junho de 2024 e a presente data. // Conforme comunicação electrónica da ilustre mandatária (Doc. 02), refere esta que o devedor não tem capacidade para lhe serem solicitadas “coisas muito minuciosas” e que tem prestado informações completas, o que é por si só contraditório. // O aqui signatário não pode concordar com tal afirmação e a legislação e a tramitação destes processos não permitem margens para dúvidas quanto a esta questão. Acresce ainda que tal informação também contraria a situação anterior, em que o insolvente comprovou rendimentos de alguns meses. // Ao requererem a exoneração do passivo restante, pressupõe-se que os devedores estão cientes dos deveres inerentes ao mesmo e da sua importância/implicação para os próprios e para os credores, pelo que se espera interesse e colaboração dos mesmos, nomeadamente ao diligenciarem no sentido de comprovarem os seus rendimentos e cederem valores, quando a isso haja lugar. // Para comprovar os valores mensais auferidos, terá de diligenciar junto do Centro Nacional de Pensões por extracto mensal dos valores pagos por esta entidade, como fazem os insolventes pensionistas nos vários processos. // Pela análise dos documentos remetidos, aparentemente, não se apuram valores em dívida, conforme quadro discriminativo de valores que se junta (Doc. 03). Contudo, os documentos que se encontram na posse do signatário são insuficientes para que tal afirmação seja conclusiva. // Relembra-se que pelo menos em 02 meses do ano o valor da pensão duplica. A tal valor poderá eventualmente acrescer o reembolso de IRS. Facilmente se conclui que nesses meses terá rendimentos a ceder. // Crê o signatário que neste momento o insolvente já deveria ter cedido valores próximos de 2.000,00 euros. No entanto, cabe aqui também referir que o insolvente não só não cedeu qualquer valor como nada refere quanto a tal assunto. // III – DISTRIBUIÇÃO DE VALORES // Dado que no presente caso não houve lugar à entrega de qualquer valor a título de rendimento disponível, não há lugar à distribuição de valores. // Junta: 03 documento(s)”
13B. Acompanhou o relatório o documento emitido pelo Centro Nacional de Pensões (“declaração” alusiva ao insolvente), em 19-01-2024,
supra
referido.
13C. E ainda uma mensagem eletrónica enviada ao fiduciário pela mandatária do insolvente, em 25-10-2024, com o seguinte teor:
“Exmº Senhor AI // Envio os documentos solicitados e reenviados pelo Insolvente // Consegue-se ver claramente no documento ISS que recebe €856,97€, // A nota de liquidação comprova o valor que recebeu. // O Senhor não tem capacidade para estarmos a pedir coisas minuciosas. Já dei o contacto no email que antecede. // O Senhor Insolvente tudo tem informado ao D. AI
”.
14. O fiduciário refere que não tem na sua posse elementos suficientes para determinar o rendimento disponível, sendo que, relembra que pelo menos em 02 meses do ano o valor da pensão duplica, pelo que poderá eventualmente acrescer o reembolso de IRS e por conseguinte, existirão valores a ceder próximos dos 2 000, 00€.
15. Até ao presente, o insolvente não entregou ao fiduciário os documentos solicitados, nem apresentou qualquer justificação para a omissão de entrega [
[10]
].
16. No apenso de reclamação de créditos (apenso B) foi proferida sentença em 17-05-2023, transitada em julgado, tendo-se homologado a lista de créditos reconhecidos apresentada pelo administrador da insolvência, lista na qual se identifica o valor total dos créditos reclamados e reconhecidos em 170.496,54€, dos quais 57.175,86€ alusivos ao capital e 113.320,68 € a “juros e outros”, englobando créditos da CGD (125.472,94€), da NOS COMUNICAÇÕES SA (965,65€), do NOVO BANCO SA (4.616,07€) e de SCALABIS- STC, SA (39.441,88€), todos identificados como tendo natureza comum. Nessa sentença determinou-se que “
os créditos reconhecidos serão pagos através do rendimento a ceder com respeito ao disposto no art. 241.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas
”.
III. FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela devedora/apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635.º e 639.º do CPC – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5.º, nº3 do mesmo diploma.
No caso, impõe-se apreciar:
- Da matéria que o tribunal de 1.ª instância deu como assente sob o número 15 dos
factos provados
;
- Da verificação dos pressupostos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante do devedor, atento o disposto no art. 243.º do CIRE,
diploma a que aludiremos sempre que não se fizer menção de origem.
2. A 1.ª instância, considerando dever incluir na factualidade que deu como assente que “[a]
té ao presente, o insolvente não entregou ao sr. fiduciário os documentos solicitados, nem apresentou qualquer justificação para a omissão de entrega
” (número 15 dos factos assentes), fê-lo indevidamente, porquanto se trata de asserção notoriamente conclusiva, a extrair de elementos que, esses sim, traduzem factos, no caso, a realidade que o processo evidencia, para o que se deve atender à posição processual espelhada nos autos pelo próprio insolvente ou pelo profissional do foro que o representa, e dos termos em que o foi e ainda à posição do fiduciário, que deu nota igualmente da interação que a patrona do insolvente estabeleceu consigo, na sequência das notificações judiciais. Ou seja, a formulação negativa só tem cabimento para indicar que, notificado para prestar determinadas informações e/ou apresentar determinados documentos, o insolvente nada disse ou juntou (nem ao processo, nem ao fiduciário); mas tendo intervenção e/ou contactando com o fiduciário, como aqui aconteceu, então o que se impõe é que se dê como assente que teve essa intervenção e termos em que a mesma se processou para, em sede de apreciação jurídica, se concluir então quais os documentos omitidos, qual a informação não prestada e se o que foi dito configura qualquer justificação para a eventual conduta omissiva.
Configurando a presente lide uma ação tendente a apreciar se o insolvente omitiu o dever de informação/colaboração que impende sobre si, é inadmissível que a Juiz dê como assente, pela negativa, o que o insolvente
não entregou
, ou
não justificou
, nesses precisos termos. Não pode o tribunal de primeira instância ignorar que é proibida a formulação, em sede de julgamento de facto, de juízos conclusivos, como é o caso e/ou com conteúdo estritamente técnico-jurídico; a matéria em causa, assim integrada na
factualidade
dada por assente, resolveria imediatamente uma das questões de direito colocada no processo, a saber, se o insolvente cumpriu ou não a determinação do tribunal com vista à entrega de determinados documentos.
Como se referiu no acórdão do STJ de 14-05-2014, “[
é] abundante a jurisprudência desta Secção do Supremo Tribunal na afirmação de que o preceituado no n.º 4 do art. 646.º do CPC, no sentido de se terem por «não escritas» as respostas do tribunal sobre questões de direito, estende o seu campo de aplicação às asserções de natureza conclusiva porquanto as mesmas se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum, devendo, por isso, as afirmações de natureza conclusiva ser excluídas do acervo factual a considerar e, quando isso não suceda, deve tal pronúncia ter-se por não escrita, cabendo ao Tribunal da Relação, no sobredito julgamento de facto, cuidar, oficiosamente, da observância do estipulado no referido n.º 4 do artigo 646.º. // Consolidado também está que o thema decidendum corresponde ao conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objecto do recurso, isto é, a componente jurídica que suporta a decisão, pelo que, sempre que um ponto da matéria de facto (quesito) integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto do recurso ou da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, o mesmo deve ser eliminado, em nome dos princípios que inspiram a norma do referido n.º 4 do art. 646.º do CPC. // Impõe-se, deste modo, uma apreciação da matéria de facto fixada sob esta perspectiva, não se podendo incluir na mesma a valoração jurídica de factos, mas apenas as circunstâncias de vida subjacentes a essas valorações que as possam vir a sustentar, na apreciação jurídica que sobre as mesmas venha a ser realizada, integrando, já estas, matéria de direito
” [
[11]
].
A apontada jurisprudência vale no domínio da nova lei processual civil, pese embora não se encontre dispositivo coincidente com o anterior art. 646.º, n.º 4 – tendo até em conta o disposto no art. 607.º, n.º 3 do novo diploma –, pelo que deve considerar-se juridicamente irrelevante a matéria que o tribunal considerar como provada, em violação do apontado comando.
Em suma, afigura-se- que não pode atender-se à matéria consignada sob o número 15, nos termos em que a Juiz entendeu formular a mesma.
3. Como se sabe, o deferimento do pedido de exoneração do passivo restante acarreta a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida (art. 245.º, n.º 1), permitindo-se ao devedor “
um novo começo (fresh start), recuperando assim da sua situação de insolvência
” [
[12]
]. Esse foi, conforme expresso no preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03, que aprovou o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, o objetivo do legislador.
Do outro lado da balança está o interesse do credor, o seu direito ao cumprimento, pretendendo-se harmonizar todos os interesses [
[13]
]. Como se referiu no acórdão do TRC de 31-01-2012 a “
exoneração
” não se pode/deve aplicar aos devedores que se endividaram de forma completamente “
leviana
”, que se infere que não pensaram “
duas vezes
” quando se deram conta que era “
fácil
” obter um financiamento, que se recusaram a perceber que jamais iriam ter meios para liquidar as dívidas que estavam a contrair “
levianamente
”; a exoneração não pode/deve servir para, contraídas avultadas dívidas – para o rendimento e património de quem contrai tais dívidas –, se pretender, pura e simplesmente, nada pagar ou quase nada pagar [
[14]
].
Do disposto nos arts. 239.º a 248.º resulta que, proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante (art. 239.º, nº1) – o que significa que inexistia motivo para o indeferimento liminar do pedido de exoneração –, e decorrido o período de cessão (art. 239.º, n.º 2), é proferida a decisão final de exoneração (art. 244.º); sem prejuízo, casos há em que nem sequer se justifica aguardar pelo
terminus
do período de cessão porquanto ocorrem motivos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração (art. 243.º).
É com este pano de fundo que se cuida aqui de saber se é correta a decisão proferida, na sequência de pedido de cessação antecipada da exoneração do passivo restante formulado pelo credor.
Os fundamentos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração estão taxativamente enunciados no art. 243.º [
[15]
] e está aqui em causa a subsunção da conduta da insolvente ao disposto no art. 243.º, n.º 1, alínea a).
Para a verificação do condicionalismo previsto no referido art. 243.º, n.º 1, alínea a) o legislador exige três requisitos cumulativos, a saber, (i) que o insolvente tenha agido em violação das obrigações impostas pelo art. 239.º, (ii) que o insolvente tenha atuado com dolo ou negligência grave (nexo de imputação subjetiva) e (iii) que a sua atuação cause um prejuízo para os credores (nexo de causalidade adequada).
Quanto ao procedimento alusivo ao incidente em causa, o legislador estabeleceu uma regulação muito precisa. Assim:
- Têm legitimidade para deduzir o incidente os credores da insolvência, o administrador da insolvência se ainda estiver em funções e o fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor (art. 243.º, n.º 1, proémio);
- A pretensão formulada pelo requerente deve ser fundamentada (art. 243.º, n.º 1, proémio), o que significa que incumbe ao interveniente processual que suscita o incidente o ónus de alegação e prova dos pressupostos enunciados (art. 342.º, n.º 1 do Cód. Civil) – cfr. ainda o disposto no n.º 2 do art. 243.º;
- É obrigatória a audição do devedor, do fiduciário e dos credores da insolvência, à exceção, obviamente, do requerente do incidente nas hipóteses em que o pedido de cessação antecipada se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, do art. 243.º (art. 243.º, n.º 3);
- O exercício do contraditório relativamente ao devedor deve ser feito, nessas hipóteses, com a advertência de que “
a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las
”. Trata-se de um efeito cominatório – cominação processual – expressamente previsto no citado preceito, pelo que o juiz só pode/deve dar efetividade ao mesmo se previamente o devedor foi alertado para esse efeito.
Volvendo ao caso em apreço, temos de concluir, em face das vicissitudes processuais
supra
relatadas e considerando o período de cessão, a decorrer,
grosso modo
, entre junho de 2023 a junho de 2026 que, ao contrário do que entendeu a primeira instância,
não se verificam todos os pressupostos legais para a cessação antecipada
.
A fundamentação exposta pela 1ª instância, depois de considerações gerais que não suscitam controvérsia, foi a seguinte:
“Ora, resulta claro, em face do relatório e requerimentos apresentados pelo sr. fiduciário, que o insolvente, bem sabendo que a tal estava obrigado, não lhe prestou, sem justificação, as informações necessárias por este solicitadas, designadamente, não lhe deu a conhecer os rendimentos auferidos mês a mês entre Junho de 2023 e Dezembro de 2023, inclusive e entre Junho de 2024 a Dezembro a 2024, sendo patente a violação do especial dever de colaboração a que estava vinculado. // Por outro lado, apesar de várias vezes interpelado pelo sr. fiduciário e de notificado pelo tribunal para apresentar comprovativos dos rendimentos auferidos mês a mês entre Junho de 2023 e Dezembro de 2023, inclusive, bem como cópia da declaração de IRS relativa ao exercício de 2023, bem como as notas de liquidação relativas aos exercícios de 2022 e 2023, com a advertência de que a falta de colaboração com o sr. fiduciário ou com o tribunal poderá acarretar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, o insolvente apresentou as notas de liquidação de 2022 e 2023. E no que concerne ao ano de 2023 limitou-se a comprovar o valor anual auferido a título de pensão. // Aliás, mesmo após ter sido requerida a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, o insolvente, nada referiu e continuou a omitir a entrega dos documentos em falta. // Acresce que não apresentou o insolvente qualquer justificação válida para o incumprimento das obrigações a que está adstrito, e que não se restringem à entrega dos rendimentos sujeitos à cessão. // O insolvente, como supra se referiu, estava obrigado a prestar informações ao tribunal e ao fiduciário sobre os seus rendimentos, no prazo em que isso lhe fosse requisitado. // Não cumpriu o insolvente estas obrigações voluntariamente, nem quando para o efeito repetidas vezes contactado pelo sr. fiduciário, nem quando notificado pelo tribunal, nem mesmo quando confrontado com o pedido de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante. // Não pode o insolvente, simplesmente, ignorar o despacho que impõe as obrigações associadas à admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante e pretender, sem apresentar qualquer justificação válida para o incumprimento dessas obrigações, ver recusado o pedido de cessação antecipada do procedimento. // O descrito comportamento do insolvente assenta, pelo menos, numa grave falta de cuidado em cumprir com as obrigações impostas, prejudicando a satisfação dos créditos sobre a insolvência, configurando motivo de cessação antecipada (v. Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 23/02/2020, processo n.º 911/15.9T8BRR, relatado por Vera Antunes, e de 24/01/2023, processo n.º 2821/15.0T8BRR, relatado por Fátima Reis Silva)”.
Apreciando.
Verifica-se que o tribunal considerou “
patente a violação do especial dever de colaboração a que estava vinculado”
porquanto o insolvente, não prestou nem deu a conhecer “
os rendimentos auferidos mês a mês entre Junho de 2023 e Dezembro de 2023, inclusive e entre Junho de 2024 a Dezembro a 2024”.
A primeira parte da afirmação tem suporte na factualidade dada por assente porquanto o insolvente comprovou apenas o valor dos rendimentos auferidos no ano de 2023
– como a 1ª instância reconheceu, pese embora afirme que “
[e] no que concerne ao ano de 2023 limitou-se a comprovar o valor anual auferido a título de pensão”
–
,
mas não os que auferiu, pontualmente, em cada um dos meses desse ano, como lhe foi pedido, sendo certo que foi notificado expressamente para esse efeito, por duas vezes, conforme despachos de 12-09-2024 e de 07-11-2024 (cfr. os números 9 e 12 dos factos assentes) e não apresentou qualquer documento que especificasse esses valores.
O mesmo não pode dizer-se relativamente à segunda parte da afirmação da 1ª instância, porquanto, ao contrário do que é indicado, quanto aos rendimentos auferidos em 2024, entre junho a dezembro, o insolvente apresentou a declaração emitida pelo CNP que indicava o valor mensal da prestação nesse ano, a saber, 856,07€ (cfr. a factualidade dada por assente sob os números 12B e 12C), salientando-se que se conhece com precisão os valores auferidos entre janeiro e maio inclusive (cfr. a factualidade dada por assente sob o número 8A). Saliente-se que, em rigor, no processo, nem sequer estavam em causa os valores auferidos em novembro e dezembro de 2024, porquanto o último despacho que convocou o insolvente a prestar informações data de 07-11-2024, tendo o relatório subsequente do fiduciário sido apresentado em 21-11-2024 (cfr. a factualidade dada por assente sob os números 12, 13 e 13A).
Quanto às declarações de IRS e notas de liquidação de IRS que o fiduciário também pretende que lhe sejam entregues pelo insolvente, novamente, este prestou os documentos alusivos às notas de liquidação relativas aos exercícios de 2022 e 2023, como resulta da fundamentação expressa pelo próprio tribunal e
supra
transcrita – cfr. ainda a factualidade dada por assente sob os números 12B e12C – conhecendo-se inclusive o valor do reembolso e data da transferência em 2023 (cfr. a factualidade dada por assente em 12-C); ou seja, o insolvente cumpriu em larga medida o que lhe havia sido indicado pelo tribunal, na sequência do que o fiduciário exigiu no relatório que apresentou – cfr. a factualidade dada por assente sob o número 7A –. faltando apenas a declaração de IRS apresentada pelo insolvente e alusiva ao exercício 2023, documento que não temos como essencial ou determinante para a elaboração do referido relatório anual, porquanto o que define a obrigação tributária é a nota de liquidação e essa já foi apresentada ou, noutra perspetiva, a declaração é apenas um ato instrumental de um procedimento que culmina no ato de liquidação.
Neste contexto, pode afirmar-se, como o tribunal de 1ª instância faz, que o “
descrito comportamento do insolvente assenta, pelo menos, numa grave falta de cuidado em cumprir com as obrigações impostas
”?
Entendemos que não.
Está em causa aferir se, no decurso do período de cessão, o devedor, com dolo ou grave negligência, violou o dever de “
informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado
” (art. 239.º, n.º 4, alínea a) e cfr. ainda o art. 83.º, n.º 1, alínea a).
O preenchimento desse tipo exige, pois, a verificação de um elemento objetivo, consubstanciado na violação desse dever e um elemento de cariz subjetivo, o dolo ou a culpa grave, ponderando o critério a que alude o art. 487.º, n.º 2 do Cód. Civil [
[16]
]. Na aferição do elemento subjetivo, o legislador exclui os casos de
mera culpa
ou
negligência
, que se traduz na violação de um dever de cuidado, na omissão da diligência exigível ao agente [
[17]
]. Se a negligência é grosseira, isto é, cometida por um homem excecionalmente descuidado, sendo associada a um comportamento temerário, então estamos perante uma hipótese de culpa grave, equiparável ao dolo [
[18]
].
No caso, como resulta do que se referiu, o insolvente não se alheou do processo nem dos deveres de informação que sobre si impendem, antes cumprindo, cremos que em larga medida, as solicitações feitas pelo fiduciário. Para além da comunicação entre a patrona nomeada e o fiduciário, de que a factualidade assente dá nota, é particularmente impressiva a circunstância de o próprio insolvente se ter dirigido ao tribunal, na sequência do despacho proferido em 07-11-2024 (despacho em que a Juiz, pela primeira vez, ordenou a notificação do próprio insolvente e não apenas da respetiva patrona), por mensagem eletrónica expedida a seu pedido com a colaboração de uma terceira entidade (que digitalizou os documentos enviados), não se vislumbrando que nem o fiduciário, nem o tribunal, tenham valorado devidamente essa conduta – cfr. a factualidade dada por assente em 12A e 12B.
A dinâmica da intervenção do insolvente, por si e por intermédio da patrona nomeada, pode sintetizar-se assim:
- Despacho de 22-05-2024, com informação do fiduciário em 26-06-2024 indicando que a “mandatária do devedor” lhe remeteu comunicação eletrónica” e juntou alguns documentos (cfr. os números 6, 6A, 7 e 7A;
- Despacho de 12-09-2024 a que o insolvente não correspondeu, como decorre da factualidade expressa sob os números 9, 9A, 10 e 11;
- Despacho de 07-11-2024, na sequência do qual o insolvente comunica eletronicamente com o tribunal em 13-11-2024, juntando documentos, como decorre da factualidade enunciada sob os números 12, 12A, 12B, 12C,13 e 13A, sendo que o fiduciário apresenta o relatório subsequente em 21-11-2024 e dá nota de nova comunicação eletrónica da patrona datada de 25-10-2024 (cfr. os números 13, 13A, 13B e 13C).
Discorda-se, pois, do juízo valorativo feito pela 1ª instância, entendendo-se que na aferição do referido pressuposto de índole subjetiva o processo não reúne os elementos que permitam concluir que o devedor agiu com dolo ou culpa grave. Antes se concorda com a posição manifestada pelo insolvente nas alegações de recurso, quando afasta a hipótese de o insolvente ter agido com grave negligência (conclusões 9 e 11), ainda que não se alcance qualquer razão para a patrona nomeada, profissional do foro que representa o insolvente e defende os seus interesses, se ter abstido de intervir no processo, exercendo o contraditório, quando notificada pelo tribunal para se pronunciar sobre o requerimento apresentado pelo credor tendo em vista a cessação antecipada do pedido de exoneração. Sem prejuízo, ainda quanto às alegações de recurso, são notoriamente despropositadas as afirmações vertidas nas conclusões 12
– sempre será de perguntar quais as “
despesas devidamente comprovadas arcadas no âmbito do exercício da sua pensão auferida
” (sic), questão que nunca sequer se colocou no processo – e 23, esta última devida seguramente a lapso, porquanto há muito se mostra ultrapassada a fase liminar de (in)deferimento do incidente, sendo que já se aludiu
supra
à respetiva tramitação.
Em suma, tendo o insolvente sido convocado para apresentar ao fiduciário documentos que este solicitou porque entendeu pertinentes para o apuramento do rendimento disponível com vista à apresentação do seu relatório anual (art. 240.º, n.º2 do CIRE), não pode qualificar-se como gravemente negligente, para efeitos de fundamentar a decisão de cessação antecipada da exoneração, a conduta do devedor que, contatando com o fiduciário por intermédio da patrona respetiva e tendo ainda intervenção direta no processo por via de mensagem eletrónica enviada:
- Junta as notas de liquidação de IRS alusivas aos anos de 2022 e 2023, com indicação do valor de reembolso auferido e data da transferência omitindo, no entanto, a junção da declaração de IRS relativa ao ano 2023,
que o fiduciário também exigia
;
- Junta declaração emitida pelo Centro Nacional de Pensões comprovativa do valor global da pensão auferida no ano de 2023 e dos valores recebidos em cada um dos meses de janeiro a maio, inclusive, de 2024, bem como do valor mensal da pensão neste ano de 2024 omitindo, no entanto, os valores recebidos mês a mês, no ano de 2023 e de junho (inclusive) de 2024 em diante,
que o fiduciário também exigia
.
Por último, não pode deixar de se assinalar que o caso em apreço não tem contornos similares às situações que estavam em análise nos dois arestos citados na decisão recorrida [
[19]
] [
[20]
], em que a violação, pelo insolvente, dos deveres respetivos, nas hipóteses aí analisadas assumiu um grau muitíssimo elevado de ilicitude e culpa, como assinalado nesses arestos, exatamente num contexto – que aqui cremos não se poder colocar – em que foi equacionada a aplicação do fundamento autónomo de cessação antecipada contemplado na 2ª parte do número 3 do art. 243.º. Saliente-se que neste último aresto de 24-01-2023 se chegou a afirmar, em sede de fundamentação, que “[
n]esse aspeto o presente caso é exemplar – o insolvente nunca forneceu todos os elementos pedidos. Não se logrou saber, ainda no decurso do período de cessão e após findo o mesmo, ou seja, em tempo útil para a decisão, quais exatamente os rendimentos do insolvente
”.
Ora, no caso aqui em análise, não se coloca qualquer questão atinente à aferição sobre se o insolvente auferiu outros rendimentos, respetiva proveniência e valores, para além da sua pensão. Assim, aquando da sua apresentação à insolvência, o devedor aludiu à a sua situação profissional alegando que “
é aposentado, auferindo sensivelmente € 717 (…) , a título de pensão
” e juntou documento emitido pelo CNP, em 25-08-2022, dando nota que o insolvente auferia uma “
Pensão de Velhice, atribuída ao abrigo do regime especial de Desemprego de longa Duração
”, com a redução de valor prevista no número 4 do art. 58.º do Dec. Lei 220/2006 de 3/11, alterado pelo Dec. lei n.º 167-E/2013, de 31-12 e que, “[
e]ste valor de redução é anulado quando o pensionista atinja a sua idade normal de acesso à pensão de velhice, o que se verificou ao completar os 66 anos e 0 meses de idade (n,º 5 do artigo 58.º)// Assim, a sua pensão atual, no valor de 635,89 euros, recuperará a redução inicialmente aplicada (82,02 euros),
o que significa que passará a ter o novo valor mensal de 717,91 euros, a partir de 2022-10-01
” (sublinhado nosso). Mais alegou não possuir quaisquer bens imóveis ou móveis sujeitos a registo (art. 19.º) e que entregou o veículo que tinha com a matrícula 82-91-DZ para abate em 29-07-2022, “
por se tratar de veículo antigo, sem valor comercial relevante
” (art. 20.º), sendo certo que, como resulta da factualidade assente, a 1ª instância determinou o encerramento do processo de insolvência exatamente no contexto de inexistência de bens do insolvente. Nem o fiduciário, nem qualquer credor, colocaram hipótese de o insolvente ter outras fontes de rendimentos para além dessa pensão, pelo que o caso em apreço se resume, rigorosamente, na posição que o fiduciário espelhou no processo, à pormenorização do valor que essa pensão atingiu em cada um dos meses de junho a dezembro de 2023, sabendo-se que, num quadro em que foi fixado ao insolvente como rendimento indisponível o valor equivalente a 1,5 SMN, ou seja, um valor de 1.140,00€ mensais em 2023 (SMN fixado em 760,00€) e um valor de 1.230,00€ mensais em 2024 (SMN fixado em 820,00€), os valores alusivos à pensão em causa foram os seguintes:
- Em 2022, o valor mensal da pensão, no fim desse ano, atingiu os 717,91€;
- Em 2023, o valor anual da pensão foi de 11.120,22€;
- Em 2024, o valor mensal da pensão indicado pelo CNP foi de 856,07€.
Noutra ordem de considerações dir-se-á que o fiduciário se tem escusado a proceder ao cômputo do rendimento disponível/indisponível do devedor no período de cessão já decorrido invocando não ter elementos de informação disponíveis para tal, afigurando-se que se trata de posição que não tem justificação. Esse cômputo deve ser feito tendo como base um referente anual, atendendo ao regime legal e ponderando alguns parâmetros que a jurisprudência vem indicando [
[21]
], sendo que no despacho de admissão liminar do pedido de exoneração o tribunal de 1ª instância fixou o valor do rendimento indisponível em 1,5 SMN, sem fornecer qualquer indicação quanto à forma de cômputo dos valores em causa.
No entanto, se o tribunal aceita a referida posição do fiduciário, pode/deve, se entender que tal se justifica, diligenciar oficiosamente com vista à recolha da informação adicional que entenda oportuna sobre o insolvente, atento o princípio do inquisitório, com a especial configuração que resulta do art. 11.º e que aqui é aplicável considerando que estamos perante um incidente tramitado no próprio processo de insolvência [
[22]
], diligenciando junto do CNP e da autoridade tributária e assim agilizando procedimentos, que no caso se afiguram particularmente simples.
Tudo para concluir que no balanceamento entre a posição dos intervenientes processuais (credores/devedor) e os vários interesses em jogo, não se afigura equilibrado e proporcionado sancionar a conduta do insolvente com a aplicação da medida mais gravosa
– a cessação antecipada do pedido de exoneração do passivo restante –, num caso em que essa conduta não se pautou pelo evidente e reiterado silêncio do devedor na apresentação dos documentos que ao longo do tempo lhe têm sido solicitados, não podendo reconduzir-se o caso dos autos a uma situação em que o fiduciário se encontra objetivamente impossibilitado de apurar o rendimento disponível no período de cessão por virtude da conduta do insolvente.
3. Tendo o incidente de cessação antecipada, na sequência do qual foi proferida a decisão recorrida, sido apresentado pelo credor NOVO BANCO, SA, decaindo este nessa pretensão, é responsável pelo pagamento das custas devidas, quer em 1ª instância, quer nesta Relação (art. 527.º, n.º 1 do CPC).
*
Pelo exposto, julgando procedente a apelação, revoga-se a decisão recorrida, indeferindo-se o pedido de cessação antecipada da exoneração do passivo restante formulado pelo credor.
Custas pelo credor NOVO BANCO, SA, nos moldes assinalados.
Notifique.
2025-05-13
Isabel Fonseca
Susana Santos Silva
Elisabete Assunção
_______________________________________________________
[1]
Procedendo-se à respetiva numeração, para facilidade de análise, uma vez que a 1ª instância não o fez.
[2]
Retificou-se a redação dada pela 1ª instância que, por lapso evidente, omitiu o segmento de texto “comprovativos dos rendimentos”.
[3]
São esses os factos que resultam do documento apresentado ao fiduciário pelo insolvente e que aquele juntou com o referido relatório. Como se sabe, salvo casos pontuais – que não o presente –, o que se deve levar à factualidade assente são factos e não os elementos de prova (no caso, documentos) que os suportam.
Salienta-se que esse foi o único documento junto pelo fiduciário com o seu relatório; efetivamente, a afirmação da 1ª instância vertida no número 8, no sentido de que “[d]os documentos juntos relativamente ao ano de 2023, apenas comprovou o valor anual auferido pelo devedor a título de pensão”, constitui mera reprodução do que indica o fiduciário no relatório,
supra
transcrito, não tendo o fiduciário junto qualquer documento comprovativo dos valores auferidos a título de pensão no ano de 2023.
[4]
Retificou-se a redação dada pela Juiz, que era a seguinte: “[o] insolvente, por despacho de 12-09-2024, foi notificado para (…)”.
[5]
Corrigiu-se a redação dada pela 1ª instância, que era a seguinte: “[r]eferiu que se mantinham em falta os comprovativos dos valores auferidos mês a mês entre junho de 2023 e dezembro de 2023, inclusive e entre junho de 2024 e a presente data e remeter a declaração de IRS relativa ao exercício de 2023 e comprovar em que data auferiu o reembolso no montante de 231,00 euros”.
[6]
Corrigiu-se o lapso evidente na indicação da data (“07-11-2025”) e não, como se impunha “07-11-2024”.
[7]
O despacho tem a seguinte redação:
“Rela. 17/10/2024: Visto. // Renovo o despacho de 12/09/2024, que deverá, desta feita, ser notificado também pessoalmente ao insolvente”.
[8]
Fazendo-o por intermédio de Dinocopia Lda. (“centro de cópias”), que enviou para o processo mensagem eletrónica com o seguinte teor:
De:DINOCÓPIA centro de cópias <dinocopia.copias@gmail.com>
Enviado: quarta-feira, 13 de novembro de 2024 10:26
Para: LISBOA - Comercio - Barreiro
Assunto: documentos de LC (refª_ 43999570 / Insolvencia pessoa singular
Anexos: DOC003.pdf
envio de documentos digitalizados em anexo a pedido de nosso cliente presente na loja
obrigado
cumps” (sublinhado nosso).
[9]
Factualidade que se retira dos documentos juntos pelo insolvente com a mensagem eletrónica indicada, documentos a que
supra
se aludiu.
[10]
Esta matéria vai ser objeto de análise em sede de fundamentação jurídica da decisão
.
[11]
Processo nº 260/07.6TTVRL.P1.S1 (Relator: Melo Lima), acessível in www.dgsi.pt,
como todos os demais aqui referidos
.
Cfr. ainda, mais recentemente, a propósito desta matéria, os acórdãos do STJ de 12-01-2021, processo 2999/08.0TBLLE.E2. S1 (Relator: Pedro Lima Gonçalves) e de 19-01-2023, processo: 15229/18.7T8PRT.P1. S1 (Relator: Fernando Baptista); e ainda Paulo Ramos de Faria,
Escrito ou não escrito, eis a questão! (A inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto)
, in Julgar Online, novembro de 2017|12.
[12]
Luís Menezes Leitão,
Direito da Insolvência
, Almedina, Coimbra, 2009, p.319.
[13]
Lê-se no nº 45 do preâmbulo que “o Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência (…) é agora também acolhido entre nós, através do regime da "exoneração do passivo restante”.
[14]
Proferido no proc. 3638/10.4 TJCBB-G.C1 (Relator: Barateiro Martins).
[15]
Artigo 243.º
Cessação antecipada do procedimento de exoneração
1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respectiva prova.
3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
4 - O juiz, oficiosamente ou a requerimento do devedor ou do fiduciário, declara também encerrado o incidente logo que se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência.
[16]
“O pressuposto da culpa grave deve ser aferido segundo o critério de apreciação enunciado no artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, devendo considerar-se verificado esse pressuposto se estiver em causa uma conduta do agente que só seria susceptível de ser realizada por pessoa especialmente negligente, actuando a maioria das pessoas de modo diverso” (Acórdão do TRC de 07-09-2021, processo: 3/21.1T8CBR-B.C1 (Relator: Arlindo Oliveira, estando aí em causa aferir do pressuposto enunciado na alínea d) do n.º 1 do art. 238.º).
No acórdão do TRC de 20-03-2018, processo: 4694/15.4T8VIS-D.C1 (Relator: Emídio Santos), concluiu-se que “II- Uma vez que o CIRE não indica o critério de apreciação da culpa para efeitos da alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º, é de aplicar, por analogia, o critério do n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil. /7 III- A não relacionação do imóvel seria de censurar com culpa grave se, tendo em conta as circunstâncias do caso, fosse de concluir que só uma pessoa especialmente descuidada e desatenta é que incorreria na omissão em que incorreram os insolventes.
[17]
Distinguindo -se entre a negligência consciente (“o autor prevê a produção do facto ilícito como possível, mas por
leviandade, precipitação, desleixo
ou
incúria
crê na sua não verificação”), e a negligência inconsciente (“em que o agente não chega sequer, por
imprevidência, descuido, imperícia
ou
inaptidão
, a conceber a possibilidade de o facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação se usasse da diligência devida”) (Antunes Varela,
Das Obrigações em Geral
, 1982, vol. I, Coimbra, Almedina, pp. 491- 492).
[18]
“Segundo outra terminologia, a negligência (culpa em sentido restrito) pode ser levíssima, leve ou grave. Será levíssima quando o agente tenha omitido os deveres de cuidado que só uma pessoa excepcionalmente diligente e prudente teria observado; será leve quando o agente deixar de observar os deveres de cuidado que uma pessoa normalmente diligente teria adoptado; será grave quando tiverem sido omitidos os deveres de cuidado a omissão que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta deixaria de respeitar” (acórdão do STJ de 13-12-2007, processo 07S3655 (Relator Sousa Peixoto).
Na doutrina, cfr. Pessoa Jorge,
Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil
, 1972 Cadernos de Ciência Técnica e Fiscal, p. 357, referindo o autor que “a culpa grave ou lata traduz-se na negligência grosseira, só cometida por um homem excepcionalmente descuidado. Considerava-se ainda aplicável à culpa grave o regime do dolo:
culpa lata dolo aequiparatur
.”
[19]
Acórdão do TRL de 23-02-2021 (e não de 2020, como por lapso foi indicado), processo nº 911/15.9T8BRR.L1-6 (Relator: Vera Antunes), assim sumariado:
“I- Para o preenchimento da previsão do art.º 243º, n.º 1, a) do CIRE é necessário, para além da violação dos deveres aí previstos por parte do insolvente, que se verifique em concreto um prejuízo para os credores da insolvência e da omissão de informações resulta que não se pode avaliar da existência desse prejuízo. // II - Mas já o mesmo não se pode dizer quanto à previsão do art.º 243º, n.º 3, parte final do CIRE, que se julga consistir na previsão pelo julgador das consequências aplicáveis a casos como o dos autos, em que há omissão de informação, sem que seja possível enquadrar a mesma nas previsões anteriores, precisamente por não ser possível apurar do concreto prejuízo para os credores. // III - A não ser assim, resultaria que a omissão de informações por parte dos insolventes redundaria num benefício para os mesmos – bastava nada dizer ou informar (sendo este um ónus que a Lei impõe a seu cargo, como contrapartida do benefício que supõe a exoneração do passivo restante) e, já agora, nenhum rendimento entregar, para que não se pudesse concluir pela verificação de todos os requisitos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, uma vez que não seria possível averiguar do concreto prejuízo para os credores”.
[20]
Acórdão do TRL de 24-01-2023, processo: 2821/15.0T8BRR.L1-1 (Relator: Fátima Reis Silva), assim sumariado:
“1 – Factos pessoais do devedor, que não só não são do conhecimento geral como, por regra, apenas são do seu conhecimento e do seu círculo familiar mais restrito, como o facto de viver e trabalhar fora de Portugal e as condições de vida nesse local, não são factos notórios nem podem ser considerados do conhecimento do tribunal em virtude do exercício das suas funções, para os efeitos previstos no art.º 412º do CPC. // 2 - O dolo e a negligência correspondem a representações internas do agente avaliadas pela exteriorização das respetivas ações, ou seja, são factos que se extraem das ações ou omissões dos agentes, não sendo suscetíveis de prova direta, como representações internas que são. // 3 – Apurado que o devedor que tinha conhecimento dos deveres que sobre si impendiam e não os cumpriu, tanto basta para que se possa qualificar a respetiva conduta, ao não proceder à entrega do rendimento disponível ou não prestar informações solicitadas como uma conduta voluntária. // 4 - A segunda parte do nº 3 do art.º 243º do CIRE constitui uma causa autónoma de cessação antecipada e de recusa de exoneração que não se subsume aos requisitos previstos no nº1 do mesmo preceito. Trata-se de uma sanção para o exonerando que se coloca em situação de não permitir sequer que se averiguem os referidos requisitos: violação das obrigações dolosa ou cometida com negligência grave e causa de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência”.
Chegando a ler-se na fundamentação deste último aresto que “[n]esse aspeto o presente caso é exemplar – o insolvente nunca forneceu todos os elementos pedidos. Não se logrou saber, ainda no decurso do período de cessão e após findo o mesmo, ou seja, em tempo útil para a decisão, quais exatamente os rendimentos do insolvente”.
[21]
Cfr., a este propósito, entre muitos outros, os acórdãos desta 1ª secção do TRL de 02-05-2023, processo 2525/21.5T8BRR.L1-1 (Relator: Isabel Fonseca), de 24-05-2023, processo 19030/22.5T8SNT-B.L1-1
(Relator: Fátima Reis Silva) e de 03-05-2024 processo 386/23.9T8VPV-C.L1-1 (Relator: Renata Linhares de Castro).
[22]
Em anotação ao acórdão do TRP de 28-09-2010, processo: 995/09.9TJPRT-F.P1 (Relator: Ramos Lopes), Adelaide Menezes Leitão contextualiza a aplicação do princípio do inquisitório previsto no art. 11.º em sede de prolação do despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração (“ainda que o ónus de alegação dos factos que configuram causas impeditivas da admissão da exoneração do devedor caiba aos credores e ao administrador de insolvência”) referindo que “[e]sta averiguação impõe-se, sobretudo, pela teleologia do instituto de que só deve ter a vantagem da exoneração quem for merecedor dela, o que aponta para uma ideia de justiça que se materializa no instituto ou, nas palavras do acórdão, para um fundamento axiológico de suporte do instituto que assenta numa conduta do devedor lícita, honesta, transparente e conforme á boa fé” (
in
Pré-considerações para exoneração do passivo restante,
Cadernos de Direito Privado, n.º 35, julho/setembro, 2011 p. 68).
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TRL
|
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/a01fb6def371be2180258c96003ad0a7?OpenDocument
|
1,762,041,600,000
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PARCIALMENTE PROCEDENTE
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4199/17.9T8VFX-C.L1-1
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4199/17.9T8VFX-C.L1-1
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RENATA LINHARES DE CASTRO
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(da relatora) – artigo 663.º, n.º 7, do CPC
I.
Às decisões judiciais são aplicáveis as regras de interpretação que vigoram para os negócios jurídicos (cfr. artigos 236.º e 295.º, ambos do CC) e, no caso, tendo presente o quadro de um processo insolvencial.
II.
Há que distinguir entre
remuneração em sentido amplo
e
remuneração em sentido restrito (ou retribuição)
, podendo, assim, falar-se
em prestações remuneratórias de índole retributiva e prestações remuneratórias de índole indemnizatória.
III.
Sendo a não apresentação atempada da devedora à insolvência a única conduta imputada a um dos afectados (a qual agravou a referida situação de insolvência), o mesmo apenas deverá ser responsabilizado pelo pagamento de indemnização correspondente aos prejuízos causados após o momento em que tal apresentação deveria ter ocorrido e que poderiam ter sido evitados caso tal atraso não sucedesse (tratando-se de créditos laborais, todos os que se venceram após tal momento).
IV.
Já o agravamento da situação de insolvência causada pelo facto de terem sido transmitidos ou dissipados os bens que integravam o património da devedora (os quais, uma vez liquidados, responderiam pelo seu passivo), na impossibilidade de se aferir qual o correspondente valor, acarretará que o montante indemnizatório da responsabilidade do afectado (que assim agiu), seja encontrado com recurso a critérios de equidade (a tal não obstando o facto de se estar no âmbito de um incidente de liquidação da sentença condenatória).
V.
Tratando-se de responsabilidade solidária por imposição legal, mas sendo distintas as contribuições de cada uma das pessoas afectadas pela qualificação (seja quanto às causas do agravamento da situação de insolvência, seja quanto aos prejuízos que concretamente resultaram das respectivas condutas), a solidariedade apenas se verifica com relação ao montante indemnizatório comum a ambas (quantia indemnizatória pela qual ambas terão que responder).
|
[
"INSOLVÊNCIA CULPOSA",
"APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA",
"DISSIPAÇÃO DE BENS",
"INDEMNIZAÇÃO"
] |
Acordam os juízes na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.
I - RELATÓRIO
Por sentença proferida em 12/04/2018, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência da sociedade Pastelaria
LSP
, Lda.
Em 21/12/2018, o Ministério Público requereu a abertura do incidente de qualificação, o qual foi declarado aberto por despacho proferido em 01/02/2019.
Em 19/09/2019 foi o processo principal encerrado por insuficiência da massa insolvente, nos termos previstos pelo artigo 232.º, n.ºs 1 e 2 do CIRE
[1]
.
Em 31/10/2019, por sentença já transitada em julgado, foi declarada extinta a instância referente ao apenso de verificação e graduação de créditos
[2]
.
Por sentença proferida 04/10/2020, o tribunal
a quo
decidiu:
“Pelo exposto, qualifico como culposa a insolvência da sociedade Pastelaria
LSP
, Lda., e, em consequência: // a) Declaro afetados pela qualificação
AA
,
BB
e a Herança de
CC
; // b) Decreto a inibição de
AA
e
BB
para administrarem patrimónios de terceiros por 3 anos; // c) Declaro
AA
e
BB
inibidos, por 3 anos, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; // d) Determino a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por
AA
,
BB
e pela Herança de
CC
, e condeno-os na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos (alínea d)); // e) Condeno
AA
,
BB
e Herança de
CC
a indemnizarem os credores da sociedade no montante dos créditos reconhecidos e não impugnados. (…)”.
Desta sentença recorreram todos os requeridos, pugnando a final: “
(…) deve a decisão de que se recorre ser revogada e substituída por outra que: // i) considere procedente a excepção de intempestividade do incidente; // ii) qualifique a insolvência como fortuita, desafectando os recorrentes; // iii) não fixe indemnização aos credores ou, assim não se entendendo, não a fixe por valor igual aos créditos reconhecidos e não impugnados, mas em valo substancialmente inferior.
”
Por acórdão proferido por esta Secção em 13/07/2021, já transitado em julgado, decidiu-se: “
Julgar a apelação parcialmente procedente, e, em consequência, decide-se: // a. Confirmar a sentença recorrida, quanto à qualificação como culposa da insolvência, com a afectação pela qualificação dos gerentes
AA
e
BB
, mantendo-se o período de inibição fixado em b) e c) do dispositivo da sentença; // b. Revogar a sentença recorrida na parte em que declarou afectado pela qualificação a Herança de
CC
e condenou esta no pagamento de uma indemnização aos credores (al. e) do dispositivo da sentença); // c. Altera a decisão contida em e) do dispositivo da sentença, condenando-se agora os afectados pela qualificação da insolvência
AA
e
BB
a indemnizarem os credores reclamantes, até às forças do seu património, em valor a quantificar em liquidação de sentença, nos termos sobreditos, revogando-se a sentença recorrida no excedente dessa quantia; (…)
”.
Em 17/02/2022,
DD
e
EE
, patrocinados pelo MP, vieram deduzir incidente de liquidação contra
AA
e
BB
(enquanto gerentes afectados pela qualificação culposa da insolvência e, nessa medida, condenados a indemnizarem os credores da sociedade “
no montante dos créditos reconhecidos e não impugnados, até às forças do seu património
”).
A primeira quantifica o seu crédito em 12.500,55€ e o segundo em 3.181,12€, aos quais acrescem os legais juros de mora.
Para tanto alegaram: terem sido reclamados e reconhecidos pelo AI (sem qualquer impugnação), créditos laborais de natureza privilegiada, sendo o da requerente
DD
no valor de 19.983,03€ e o do requerente
EE
de 13.034,68€; o processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa, não lhes tendo sido efectuado qualquer pagamento; receberam, no entanto, por parte do Fundo de Garantia Salarial, 7.482,48€ e 9.853,56€, respectivamente.
Citados os requeridos, os mesmos deduziram oposição ao incidente pela qual, para além do mais, refutaram não serem devedores das quantias peticionadas, para além de não terem sido alegados factos, nem apresentadas provas, que permitam proceder à liquidação, concluindo dever o requerimento inicial ser recusado (por se assumir inepto).
Sustentando-se no decidido pelo acórdão proferido no apenso de qualificação da insolvência defendem que o requerido
AA
“
foi condenado a pagar apenas os montantes das contribuições e quotizações devidas pela insolvente à Segurança Social, relativamente aos meses de Junho de 2017 até à declaração da insolvência, desde que contidos na reclamação deduzida nos autos, e os montantes das remunerações auferidos nesse período pelos trabalhadores
DD
e
EE
(credores reclamantes), enquanto estes se mantiveram ao serviço da insolvente
”, e a requerida
BB
“
foi condenada a pagar apenas o valor de mercado dos bens vendidos (veículos automóveis) e dos demais bens dissipados (mercadorias e restante imobilizado).
”
Em 11/04/2023 foi proferido despacho convite de aperfeiçoamento do requerimento inicial
[3]
, não constando dos autos que o mesmo tenha sido acatado.
Por despacho de 05/01/2024, a Mma. Juíza
a quo
, para além do mais, dispensou a realização da audiência prévia e julgou improcedente “
a exceção da nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, correspondente à falta de causa de pedir
”.
Simultaneamente fixou o objecto do litígio e elaborou os temas da prova
[4]
, mais se tendo pronunciado quanto aos meios probatórios e agendado a audiência final.
Foi, ainda, determinado que o AI juntasse aos autos as reclamações de créditos.
Em 12/01/2024, o AI juntou a reclamação de créditos apresentada pelo Instituto da Segurança Social, IP.
Realizou-se a audiência final, constando da respectiva acta (Ref.ª/Citius 159703501):
“Nos termos do art.º 463º do CPC, consigna-se: // Afirmou o Requerido
AA
que os veículos Mercedes e Volkswagen foram vendidos em 2010 por montantes que não se recorda. // Os veículos Ford e Citroen foram vendidos em 2017 por 400,00€ no total. // O veículo Opel foi dado em pagamento, no valor de 1.500,00€, a credor de 3.500,00€. // O equipamento da Pastelaria, vendido ao peso, valia 1.000,00€.”
Por sentença proferida em 02/02/2024, o tribunal recorrido decidiu:
“
(…) Pelo exposto, julgo parcialmente procedente o incidente, condenando os Requeridos a pagar: // À Requerente
DD
, € 10 690,5 (…); // Ao Requerente
EE
, € 3 181,12 (…); // Montantes acrescidos de juros moratórios calculados às taxas de juro civis, desde a presente decisão. // A condenação é solidária. // Quanto à Requerida, tem por limite € 14 000,00 (…).
”
*
Inconformados com esta decisão, dela interpuseram
RECURSO
de apelação ambos os requeridos, tendo formulado as seguintes
CONCLUSÕES
:
1. Vem o presente recurso interposto da sentença que decidiu condenar os recorrentes, solidariamente, a pagar à recorrida
DD
€ 10.690,50 (dez mil seiscentos e noventa euros e cinquenta cêntimos), ao recorrido
EE
€ 3.181,12 (três mil cento e oitenta e um euros e doze cêntimos), acrescidos de juros moratórios calculados às taxas de juro civis, desde a decisão e, quanto à recorrente, com o limite de €14.000,00 (catorze mil euros).
2. Com todo o respeito que nos merece a opinião contrária espelhada na sentença recorrida, e com a devida vénia, não podem os recorrentes conformar-se com a mesma.
3. A sentença recorrida ultrapassa os limites fixados na decisão liquidanda, designadamente, o Acórdão 4199/17.9T8VFX-B.L1, datado de 13.07.2021, deste Tribunal da Relação de Lisboa, relator Manuel Marques, já transitado em julgado.
4. Na decisão liquidanda, os recorrentes foram condenados a: // “(...) Assim, a responsabilidade do afectado
AA
reconduz-se ao agravamento dos danos causados pela não apresentação tempestiva da devedora à insolvência, ou seja, por a devedora não se ter apresentado à insolvência até finais de Maio de 2017. O valor da indemnização deverá corresponder aos montantes das contribuições e quotizações devidas pela ora insolvente à Segurança Social, relativamente aos meses de Junho de 2017 até à declaração da insolvência, desde que contidos na reclamação deduzida nos autos, e aos montantes das remunerações auferidos nesse período pelos trabalhadores
DD
e
EE
(credores reclamantes), enquanto estes se mantiveram ao serviço da ora insolvente, cujos quantitativos não foi possível apurar. // Essa indemnização será quantificado em liquidação de sentença (art.º 189º, n.º 4, do CIRE). // Já a indemnização da responsabilidade da afectada
BB
deverá reconduzir-se ao valor de mercado dos bens vendidos (veículos automóveis) e dos demais bens dissipados (mercadorias e restante imobilizado), cujos valores não se apuraram. // Deverá igualmente esse valor ser quantificado em liquidação de sentença. (…).”
5. Resulta que os recorrentes foram condenados de forma limitada, conforme a responsabilidade e culpa de cada um e a condenação não foi solidária.
6. Deste modo, a condenação dos recorrentes na sentença recorrida, face à decisão liquidanda, não poderá ser solidária.
7. A douta decisão liquidanda transitou em julgado e a autoridade do caso julgado vincula o Tribunal a quo e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas.
8. O Tribunal a quo não respeitou, portanto, a autoridade do caso julgado e não poderia decidir como decidiu, quanto a este quesito e quanto ao mais que se segue.
9. Padece a sentença recorrida de falta de fundamentação, não tendo sido mencionadas e analisadas criticamente as provas, especificando os fundamentos que foram decisivos, de forma coerente, para a convicção do tribunal, e, nalguns pontos, a matéria dada como provada está em contradição com a prova produzida.
10. A prova carreada para os autos permite concluir que os veículos, a mercadoria e mobiliário foram vendidos e entregues em dação em pagamento pela quantia total de 2.900,00€.
11. Uma análise crítica da prova junta aos autos não permite que se logre formar a convicção sobre a matéria de facto considerada provada no ponto 22. pelo valor de 14.000,00€ e nem se compreende como o Tribunal a quo chegou a este montante.
12. O Tribunal a quo refere que baseou a sua convicção para o ponto 22 nas declarações do trabalhador
EE
, o qual prestou declarações com início às 14:41h e fim às 14:45h, registo de áudio de 01.02.2024, aos 30’00’’ a 35’50’’.
13. Porém, o trabalhador nada esclarece, nas suas declarações, sobre o mobiliário e mercadoria existentes à data e nem refere qualquer elemento factual do qual se possa fundamentar uma perspectiva de valor, cfr. registo de áudio acima referido.
14. O único facto concreto declarado pelo trabalhador que permite aferir uma perspectiva de preços será sobre o veículo Citröen, quando este refere que o veículo “já tinha uns aninhos”, registo de áudio de 01.02.2024, aos 33’03” a 33’09’’.
15. Uns “aninhos”, entenda-se mais de 20 anos, conforme adiante se demonstrará.
16. O Tribunal a quo baseou a sua convicção também nas declarações do recorrente
AA
, que prestou depoimento com início às 14:20h e fim às 14:30h, mais precisamente no que concerne à confissão de que ocorreram “vendas e dação em pagamento no montante total de € 2.900,00.”
17. Porém, a contrário do que se verifica na matéria factual assente e da confissão do recorrente, o Tribunal a quo formou uma convicção diversa, arbitrando uma indemnização de valor largamente superior.
18. O Tribunal a quo sustenta a sua convicção de valor na ausência de provas documentais, na dúvida sobre a realidade factual e na dúvida sobre a repartição do ónus da prova, utilizando do princípio a observar em caso de dúvida e decidiu “contra a parte a quem o facto aproveita”, nos termos do art.º 414.º do CPC.
19. Acontece que, não se compreende a razão pela qual o Tribunal a quo não valorou a confissão do recorrente.
20. As declarações do recorrente foram credíveis, serenas e objectivas.
21. O recorrente confessou factos, tendo referido de forma detalhada o destino de todos os bens e por quais valores.
22. Em nenhum outro ponto dos autos são mencionados os valores de mercado dos bens em causa, nem o Tribunal a quo faz qualquer menção sobre os mesmos.
23. Não há assim, contradição quanto aos valores confessados pelo recorrente e o mais constante nos autos que fosse capaz de suscitar dúvidas.
24. Sobre as mercadorias, o recorrente
AA
refere, cfr. registo áudio de 01-02-2024, aos minutos 15’:46’ a 16’:22’’, que passado cerca de um mês de fecharem as portas, as mercadorias pereceram e foram para o lixo: “ninguém podia lá estar porque o cheiro e com ratos e baratas, portanto, tudo que estava ali e que era perecível foi para o lixo.”
25. Sobre o mobiliário, disse o recorrente
AA
, registo áudio de 01-02-2024, aos minutos 16’:51’’ a 17’:55’’, que vendeu tudo para um ferro velho, incluindo todos os materiais de ferro e inox, e tudo o mais, por 1.000,00€ (mil euros).
26. Ainda sobre o mobiliário, prestou depoimento de parte a recorrente
BB
, das 14:10h às 14:19h, e disse, cfr. registo áudio de 01-02-2024, aos 03’:52’’ a 04’:10’’, que as coisas existentes contavam “já com uns 30 anos, pelo menos, da altura da abertura da empresa”.
27. Aliás, também uma testemunha ouvida em audiência no Apenso C afirmou o mesmo, tendo referido que as “coisas” eram velhas e sem valor já no ano de 2010 – quanto mais, assinalamos nós, no ano de 2017 - registo áudio de 29-09-2020, iniciado às 14:39:29 e terminado às 14:46:54, 20200929143927_5879271_2871257, aos 0’:48’’ a 1’:14’’ e aos 03’:03’’ a 03’: 24’’.
28. Portanto, não há motivos para não haver credibilidade quando o recorrente vem dizer que vendeu o imobiliário ao quilo para um ferro velho e nem quanto ao mais declarado.
29. Quanto aos veículos automóveis, disse a testemunha acima referida que eram “velhos” - cfr. registo áudio referido de 29-09-2020, aos 3’:41’’.
30. Sobre os veículos Ford Transit e Citröen, o recorrente
AA
, registo áudio de 01-02-2024, aos 12’:19’’ a 13’:05’’, disse que foram vendidas por 400,00€, em conjunto.
31. Sobre o veículo Opel, o recorrente
AA
, registo áudio de 01-02-2024, aos 14’:44’’ a 15’:19’’, disse que entregou o veículo por dação em pagamento pela quantia de 1.500,00€ para deduzir o valor em dívida junto de um credor.
32. Pelo que, o recorrente
AA
prestou depoimento com início às 14:20h e fim às 14:30h e mencionou os destinos das mercadorias, do mobiliário e dos veículos, assim como referiu o valor pelo qual foram vendidos todos os itens e o valor pelo qual foi um dos veículos entregue por dação em pagamento.
33. A prova carreada nos autos permite concluir que:
I. as mercadorias pereceram e foram para o lixo, não se apurando qualquer valor em proveito dos recorrentes;
II. o equipamento da pastelaria era antigo, contava com cerca de trinta anos, sem valor comercial e foi vendido ao peso pelo valor de 1.000,00€;
III. os veículos não tinham valor comercial à data da venda e dação em pagamento, em 2017, dois deles por terem mais de vinte anos à data da venda e o terceiro por ter cerca de sete anos à data da dação em pagamento, tendo os veículos Ford e Citröen sido vendidos em conjunto por 400,00€ e o veículo Opel dado em pagamento pelo valor de 1.500,00€.
34. A informação acima referida sobre os valores dos bens resulta, portanto, de confissão do recorrente em sede de depoimento de parte e ficou consignada em Acta.
35. O recorrente prestou depoimento de forma coerente, cujas declarações foram credíveis, serenas e objetivas.
36. Não ocorreram declarações contraditórias entre as partes.
37. Ante todo o exposto, com o devido respeito, não poderia o Tribunal a quo socorrer-se do princípio da dúvida para o caso em concreto.
38. Não consta dos autos qualquer outro montante sobre os bens em causa e nem tal foi mencionado na douta sentença recorrida, a fim de permitir ao Tribunal a quo ponderar valores.
39. Quando muito, o Tribunal a quo poderia ter-se socorrido da equidade para fundamentar a sua convicção, mas ainda assim, deve quantificar os valores dentro dos limites do que foi possível ter por provado.
40. A contrário, o Tribunal a quo fixou a quantia de maneira arbitrária, ferindo tanto o princípio da dúvida no qual fundamentou a sua convicção, quanto o princípio da equidade.
41. Devia, pois, ter sido dado como provado o facto n.º 22 pela quantia de 2.900,00€ e não tal como está.
42. Sendo a recorrente
BB
condenada apenas até o limite deste montante.
43. Quanto à condenação do recorrente
AA
, verifica-se que este foi condenado, conforme decisão liquidanda, relativamente aos montantes das contribuições e quotizações devidas pela ora insolvente à Segurança Social e das remunerações dos trabalhadores, dentro de período de tempo de Junho de 2017 até a declaração de insolvência, considerando ainda que, quanto à primeira, tais montantes deveriam estar incluídos na reclamação de créditos e quanto aos segundos, desde que estivessem ao serviço da insolvente.
44. Neste ponto, uma vez mais, enferma a decisão recorrida de erro de julgamento de facto e direito.
45. Isto porque, primeiramente quanto à Segurança Social, resulta provado dos autos que esta reclamou créditos apenas até Maio de 2017.
46. Ou seja, quanto a esta parte, considerando o exposto, logo fica afastada qualquer quantia, considerando o lapso temporal determinado na decisão liquidanda, com início em Junho de 2017.
47. Assim, sobre os montantes das contribuições e quotizações devidas pela insolvente à Segurança Social, dentro de período de tempo de Junho de 2017 até a declaração de insolvência, incluídos na reclamação de créditos, apura-se a quantia de 0,00€.
48. Sobre os trabalhadores, resulta que a prova carreada para os autos permite concluir que estiveram ao serviço da insolvente até Junho de 2017, no que concerne à trabalhadora
DD
, e Julho de 2017, quanto ao trabalhador
EE
, conforme declarações dos trabalhadores, registo áudio de 01-02-2024, aos 25’:19’’ a 25’:29’’ e aos 28’:09’’ a 28’:32’’ e registo áudio de 01-02-2024, aos 34’:39’’ a 35’:13’’.
49. A prova carreada para os autos permite concluir que os trabalhadores auferiam à data da cessação do contrato de trabalho a quantia referente ao salário mínimo nacional, que era, em 2017, o valor de 557,00€ (quinhentos e cinquenta e sete euros), cfr. registo áudio cuja passagem foi acima citada.
50. Ora, a trabalhadora
DD
prestou declarações com início às 14:33h e fim às 14:40h, registo áudio de 01-02-2024, aos 25’:19’’ a 25’:29’’ e aos 28’:09’’ a 28’:32’’, e referiu que o único mês que se encontrava em falta pagar-lhe era o mês de Junho de 2017 e o trabalhador
EE
prestou declarações, com início às 14:41h e fim às 14:45h, registo áudio de 01-02-2024, aos 34’:39’’ a 35’:13’’ e referiu que o único mês que se encontrava em falta pagar-lhe era o mês de Julho de 2017; em ambos os casos considerando o lapso temporal fixado pela decisão liquidanda, que é desde Junho de 2017 até a data da declaração de insolvência e enquanto estivessem à serviço da insolvente.
51. Assim, se cada trabalhador tinha apenas um mês em falta, no montante de 557,00€ cada, dentro do lapso temporal fixado pela decisão liquidanda, resta concluir que a quantia apurada de remunerações em falta é de 1.114,00€ (2 x 557,00€).
52. Quando muito, caso seja do entendimento deste douto Tribunal, deve ser acrescida a quantia proporcional referente aos subsídios de férias de Natal, apurados no montante de 46,42€ cada, calculado na proporção de 1/12 do salário auferido, o que perfaz um valor máximo apurado de 649,84€ por cada trabalhador (total 1.299,68€).
53. Sem prescindir nem conceber, mas que se refere por cautela de patrocínio, na pior das hipóteses, poderia ter sido considerado pelo Tribunal a quo, o valor constante na petição inicial da insolvência, iniciada pela trabalhadora
DD
, na qual esta refere que o valor da remuneração devida a esta a partir de Junho/2017 (e enquanto se manteve ao serviço da insolvente) era de: € 647,20 a título de salário (vencimento-base, subsídio de alimentação e prémio de assiduidade) referente ao trabalho prestado no mês de Junho/2017 e € 345,17 a título de salário (vencimento-base, subsídio de alimentação e prémio de assiduidade) referente ao trabalho prestado no mês de Julho/2017 (do dia 1 ao dia 16), num total de total 992,37€.
54. Valor este último que os recorrentes não concebem, face às declarações prestadas em sede de julgamento e por incluírem montantes além da retribuição salarial (designadamente subsídio alimentação e prémio de assiduidade).
55. Acontece que, ante todo o exposto, considerando a matéria de facto provada e carreada para os autos, em nenhum dos cenários acima referidos se verifica fundamento para a quantia fixada pelo Tribunal a quo (€10.690,50 e €3.181,12, num total de 13.871,62€), a qual coincide com o remanescente das reclamações de créditos, acrescida de juros moratórios calculados às taxas de juro civis, desde a decisão.
56. O Tribunal a quo fundamentou a decisão na sua interpretação de que a decisão liquidanda quis incluir no conceito de “remunerações” a indemnização por cessação do contrato de trabalho e, por essa razão, fixou a indemnização pelo remanescente das reclamações de créditos dos trabalhadores.
57. Ora, para os recorrentes tal entendimento carece de coerência e lógica, quer com base nas definições dos próprios preceitos em causa, quer com base na decisão liquidanda.
58. Não há fundamentos para que o Tribunal a quo assim os considere, como considerou, nessa medida, considerando que a decisão liquidanda fixou expressamente os limites das indemnizações de cada um dos recorrentes e, inclusive, resulta claro que não foi essa a intenção do Tribunal da Relação, nem sequer do teor de toda a decisão liquidanda isso se retira.
59. Até porque, bem sabia o Tribunal da Relação que nas reclamações de créditos dos trabalhadores estava incluída a indemnização por cessação do contrato e afastou a questão da indemnização ser fixada sem limites e tendo por referência apenas os valores reclamados, senão vejamos: “não pode a indemnização arbitrada ser fixada sem qualquer limite e tendo apenas por referência o valor dos créditos reconhecidos e graduados não satisfeitos, como se fez na sentença recorrida”.
60. Portanto, a decisão liquidanda fixou expressamente o limite da indemnização o quesito “remunerações” a entender-se esta como os salários em atraso e não incluindo a indemnização por cessação do contrato de trabalho.
61. Sem prejuízo, sempre se dirá que, indemnização por cessação do contrato não constitui remuneração auferida e nem se enquadra neste conceito, sendo conceitos e institutos jurídicos distintos.
62. A remuneração é uma contrapartida económica do trabalho prestado e a indemnização por cessação do contrato é uma compensação para reparação de um dano subsequente a uma ilicitude no despedimento.
63. Ora, numa indemnização por despedimento ilícito já se ultrapassa a questão da remuneração porque, nessa ocasião, os trabalhadores já não se mantêm ao serviço da insolvente, que é um dos requisitos fixados na decisão liquidanda.
64. Portanto, a interpretação extensiva do Tribunal a quo é equivocada, revelando uma contradição face ao conceito de remuneração e indemnização, assim como é contrária à decisão liquidanda.
65. Incluir nas “remunerações” qualquer outro valor que extrapole esse conceito não se coaduna com o teor da decisão liquidanda.
66. Por todo o exposto, os ora recorrentes não se conformam com a decisão em apreço, entendendo que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de facto e de direito.
67. Não resulta provado o facto mencionado em 22. da matéria dada como provada pela quantia de 14.000,00€.
68. O facto 22. deve, pois, ser dado como não provado pela quantia de 14.000,00€ e dado como provado que “O valor de mercado dos bens supra referidos, mercadorias, imobilizado corpóreo e veículos, corresponde à quantia de €2.900,00”.
69. Pugnando os recorrentes pela incorrecta aplicação e violação, por parte do Tribunal a quo, do artigo 414º do CPC, e pela violação, entre outros normativos, do previsto nos artºs 615º, art.º 607º, art.º º 619º do CPC, porquanto, efetuou, com o devido respeito, uma interpretação equivocada dos mesmos e majorou a indemnização de forma incoerente, além do limite da matéria factual assente e do fixado pela decisão liquidanda, por também ter efectuado uma interpretação extensiva e equivocada desta última.
70. O tribunal violou também o art.º 566.º do CC, o qual poderia ter sido aplicado aos autos, porém, sempre considerando que o princípio da equidade prevê uma decisão dentro dos limites do que foi possível ter por provado nos autos, ou seja, com base em elementos de facto indiciadores, nos seus limites mínimo e máximo, e não de forma arbitrária.
71. Entendem os recorrentes que os artºs 615º do CPC, a contrário, art.º 607º e 619.º do CPC deveriam ser aplicados, porém, em sentido diverso do aplicado pelo tribunal e no sentido de quantificar a indemnização, de forma fundamentada, dentro do limite fixado na douta decisão liquidanda, sem interpretação extensiva desta, considerando a matéria de facto assente, não de outra forma arbitrária, porquanto está vinculado à decisão liquidanda, transitada em julgado, não devendo fugir à sua interpretação lógica e racional, quando não for possível seguir apenas uma interpretação literal.
Nestes termos e nos melhores de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve julgar-se procedente o presente recurso, a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que:
A) Considere a recorrente
BB
responsável pela obrigação de indemnização no montante máximo de 2.900,00€, sendo metade para cada trabalhador recorrido;
B) Considere o recorrente
AA
responsável pela obrigação de indemnização fixada em 0,00€, uma vez que os recorridos já foram ressarcidos pelo Fundo de Garantia Salarial relativamente às remunerações dos meses de Junho de 2017 até a data de cessação do contrato de trabalho; ou, caso assim não se entenda, no montante máximo de 1.114,00€, sendo metade para cada trabalhador recorrido; ou ainda, caso assim não se entenda, deve a referida quantia ser acrescida da quantia proporcional dos subsídios de férias de Natal, apurados no montante de 92,84€ por cada trabalhador, o que perfaz um montante total máximo de 1.299,68€, sendo metade para cada trabalhador recorrido.
Assim se fazendo a costumada justiça.”
Não consta que o MP tenha apresentado resposta.
O recurso foi admitido pelo tribunal
a quo
por despacho proferido em 16/04/2024.
Já nesta Relação foi comunicado ao processo o falecimento da recorrida
DD
, tendo o Ministério Público requerido a competente habilitação de herdeiros (por apenso aos autos de recurso).
Nessa sequência foi a instância recursória declarada suspensa.
Por decisão proferida no apenso A em 22/11/2024, já transitada em julgado, foi decidida a habilitação nos seguintes termos: “
declaram-se MA, MF e IA habilitados como sucessores da falecida
DD
, para, em sua substituição, prosseguirem os autos principais
”.
A referida suspensão foi então declarada cessada.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II – DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões no mesmo formuladas, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando estejam em causa questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado
- artigos 5.º, n.º 3, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC. Não está, porém, este tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelos recorrentes, desde que prejudicados pela solução dada ao litígio.
Assim, as questões a decidir traduzem-se em aferir:
1. Impugnação da matéria de facto;
2. Do erro de julgamento:
a) Dos montantes indemnizatórios devidos a cada um dos requerentes;
b) Do montante indemnizatório da responsabilidade de cada um dos requeridos/recorrentes.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foi considerada provada a seguinte factualidade
:
1. A Devedora PASTELARIA
LSP
, LDA., pessoa coletiva n.º .., possui sede na Rua …, …, e tem por objeto “Fabrico de Bolos”.
2. A insolvente foi gerida pelos sócios gerentes
CC
e
AA
, obrigando-se com a assinatura, em conjunto, dos dois gerentes.
3. A gerência de
CC
cessou a 05-04-2015, por óbito.
4. A gerência de
AA
cessou a 02-07-2017, por renúncia.
5. A partir de 14/julho/2017, a Insolvente passou a ser gerida por
BB
, obrigando-se com a sua assinatura.
6. A Insolvente tinha em funcionamento estabelecimento aberto ao publico de pastelaria, com fabrico próprio.
7. A insolvente encerrou a sua atividade a 31-10-2017.
8. A ação de insolvência foi instaurada por uma trabalhadora, ora Requerente, patrocinada pelo MP em 9-12-2017.
9. Ao tempo, encontravam-se em dívida retribuições reportadas ao trabalho prestado nos meses de maio de 2017 e seguintes, e subsídios de Natal dos anos de 2011, 2012 e 2013.
10. A 13-11-2017, a ora insolvente tinha por pagar ao ISS, IP contribuições e quotizações referentes aos anos de 2016 (desde Agosto) e 2017 (até Maio), no valor global de €20.070,76, juros de mora no valor de €910,10 e custas processuais no valor de €656,12, conforme documento junto com a petição inicial apresentada no processo principal.
11. A insolvência foi declarada no dia 12-04-2018.
12. O processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente, nos termos do artigo 232.º do CIRE.
13. Ao tempo do encerramento, existiam no estabelecimento da Devedora mercadorias e imobilizado corpóreo, necessário ao exercício da sua atividade de fabrico de bolos e estabelecimento de pastelaria.
14. As mercadorias e o imobilizado foram afetos ao proveito da gerente
BB
.
15. A Devedora vendeu o veículo ..-..-DR, Citroen (1.º registo em 1994), a 18-08-2017, o veículo ..-..-LV, Ford Transit (1.º registo em 1998) a 18-08-2017, e o veículo ..-JH-.., Opel (1.º registo em 2010), a 19-09-2017– certidões juntas ao principal.
16. O produto da venda (dos veículos automóveis de matrículas ..-..-DR, ..-..-LV e ..-JH-.. ) foi proveito da gerente
BB
.
17. A Devedora não emitiu documentos reportando as vendas.
18. São créditos reconhecidos pelo(a) Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência na lista a que alude o art.º 129.º do CIRE, não impugnados:
DD
// € 5 501.03 capital // € 14 482.00 “Outros”, Indemnização por cessação do contrato por justa causa Créditos emergentes de contrato de trabalho, privilegiados
ISS, IP // € 18 260.53 // Créditos privilegiados
EE
// €4 500.51 capital // € 8 534.17 “Outros”, compensação legal pela cessação do contrato por via da extinção do posto de trabalho // Créditos emergentes de contrato de trabalho, privilegiados
P …, LDA. // € 428.41 // Crédito comum
19. Por sentença proferida em 04/10/2020, transitada em julgado em 03/08/2021, foi qualificada como culposa a insolvência da sociedade Devedora, com afetação dos gerentes
AA
e
BB
, ora requeridos, sendo estes condenados: // “c. Altera a decisão contida em e) do dispositivo da sentença, condenando-se agora os afectados pela qualificação da insolvência
AA
e
BB
a indemnizarem os credores reclamantes, até às forças do seu património, em valor a quantificar em liquidação de sentença, nos termos sobreditos, revogando-se a sentença recorrida no excedente dessa quantia;”
São os termos sobreditos: // “não pode a indemnização arbitrada ser fixada sem qualquer limite e tendo apenas por referência o valor dos créditos reconhecidos e graduados não satisfeitos, como se fez na sentença recorrida, antes deve a responsabilidade indemnizatória dos afectados pela qualificação conter-se na medida do dano que os mesmos, com a sua específica conduta, causaram à massa insolvente e, reflexamente, aos credores reclamantes. // Ora, no caso, resulta do provado que os danos causados pelo comportamento dos afectados
AA
e
BB
são inferiores ao valor dos créditos reconhecidos. // Assim, a responsabilidade do afectado
AA
reconduz-se ao agravamento dos danos causados pela não apresentação tempestiva da devedora à insolvência, ou seja, por a devedora não se ter apresentado à insolvência até finais de Maio de 2017. O valor da indemnização deverá corresponder aos montantes das contribuições e quotizações devidas pela ora insolvente à Segurança Social, relativamente aos meses de Junho de 2017 até à declaração da insolvência, desde que contidos na reclamação deduzida nos autos, e aos montantes das remunerações auferidos nesse período pelos trabalhadores
DD
e
EE
(credores reclamantes), enquanto estes se mantiveram ao serviço da ora insolvente, cujos quantitativos não foi possível apurar. Essa indemnização será quantificado em liquidação de sentença (art.º 189º, n.º 4, do CIRE). // Já a indemnização da responsabilidade da afectada
BB
deverá reconduzir-se ao valor de mercado dos bens vendidos (veículos automóveis) e dos demais bens dissipados (mercadorias e restante imobilizado), cujos valores não se apuraram. // Deverá igualmente esse valor ser quantificado em liquidação de sentença.”.
20. Por conta dos créditos laborais, o Fundo de Garantia Salarial pagou aos Requerentes:
DD
// € 9.292.53
EE
// € 9.853.56
21. O ISS, IP reclamou contribuições vencidas em maio de 2016 e maio de 2017
22. O valor de mercado dos bens supra referidos, mercadorias, imobilizado corpóreo e veículos, correspondia a montante não apurado, mas não inferior a € 14.000,00.
Em sede de motivação pode ler-se na sentença
:
“Os factos 1 a 17 correspondem aos provados no incidente de qualificação.
Os factos 18 e 19 correspondem ao teor dos apensos de reclamação e qualificação, respetivamente.
O facto 20 decorre do teor das comunicações do Fundo de Garantia Salarial aos autos.
O facto 21 resulta do documento junto pelo(a) Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência ao presente apenso.
O facto 22 decorre das declarações do Requerente
EE
, funcionário da Devedora durante 22 anos. Afirmou, de forma credível, porquanto serena e objetiva, que, no dia anterior à cessação ao encerramento do estabelecimento, a empresa encontrava-se a laborar em pleno, “trabalhamos muito bem”, fabricando mais de 3 000 bolos, com “4 homens e 3 mulheres” ao serviço, “tudo funcionava”. Relativamente aos veículos, apenas o Citroen “(…) já tinha uns aninhos, mas ia fazendo algum serviço”.
Não olvidamos, o Requerido confessou vendas e dação em pagamento no montante total de € 2.900,00.
Todavia, nunca foram apresentados documentos bancários, faturas, recibos, etc., que atestassem o afirmado, na certeza de que se encontrariam na disponibilidade do Requerido.
Ora, “(…) Quem sustenta a oralidade do acto ou do negócio deverá fazer uso de uma grande dose de explicitação, que só será plausível quando concorram fatores subjetivos ou objetivos de indocumentação. Por documento entende-se aqui não apenas o documento constitutivo do contrato mas também os atos de execução subsequente do contrato que costumam ser objeto de documentação: recibos, faturas, correspondência. (…)
Diversamente, a falta de documentos normalmente ínsitos à execução do contrato gera um rigor semiótico muito significativo (…)”1.
Segundo o disposto no artigo 414.º do Código do Processo Civil, na dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova, decide-se contra a parte a quem o facto aproveita. "Este critério faz com que o encargo da prova caiba precisamente à parte que se encontra em melhor situação para a produzir, e, assim, constitui um estímulo para que a prova seja produzida pela parte que mais perfeitamente pode auxiliar a descoberta da verdade: mostra a experiência que, em regra, quem tem a seu favor certo facto se acautela com meios de prova dele." (Vaz Serra, B.M.J. 110, pág. 120).
Acresce, as transmissões, quando em contexto de dissipação de bens, realizam-se por valor inferior ao do mercado.”
Oficiosamente, aditam-se os seguintes factos
(que resultam de documentação junta ao processo, na sua globalidade, e que não foi impugnada):
23. Encontra-se em dívida ao Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital de Lisboa o montante global de 18.260,53€, sendo 17.177,94€ de contribuições não pagas e o restante de juros de mora – cfr. certidão junta a 12/01/2024 (Ref.ª/Citius 4692473), nos termos que a seguir se descriminam:
24. O Fundo de Garantia Salarial enviou à requerente
DD
a carta datada de 23/08/2018, notificando-a de lhe ter sido deferido o pagamento no montante referido no facto n.º 20, assim discriminado:
25. A devedora emitiu declaração datada de 14/12/2015, pela qual assumiu não ter pago à trabalhadora
DD
os subsídios de natal referentes aos anos de 2011, 2012 e 2013, no montante de 458,35€ cada um.
26. Por carta datada de 21/06/2017 (recepcionada pela afectada
BB
no dia seguinte)
DD
comunicou a suspensão do contrato de trabalho (com fundamento, para além do mais, no não pagamento do vencimento de Maio de 2017 e dos subsídios de natal de 2011, 2012 e 2013).
27. A devedora subscreveu a declaração de retribuições em mora, datada de 21/07/2017, com relação ao período de 01 a 30/06/2017.
28. Por carta datada de 06/11/2017, a trabalhadora
DD
comunicou à devedora a sua resolução do contrato de trabalho, com efeitos imediatos, com fundamento, para além do mais, na falta de pagamento de metade do vencimento de Maio, vencimento de Junho e metade do vencimento de Julho, sempre do ano de 2017, bem como dos subsídios de natal de 2011, 2012 e 2013.
29. A referida trabalhadora auferia um vencimento base de 557€, acrescido de 3,60€ por cada dia efectivo de trabalho a título de subsídio de alimentação e de 0,50€ por cada dia efectivo de trabalho a título de prémio de assiduidade.
*
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Da impugnação da matéria de facto:
Não obstante os recorrentes não tenham autonomizado no seu recurso a questão referente à impugnação da matéria de facto, dúvidas inexistem de a mesma ter sido deduzida, sendo que se entende terem sido cumpridas as exigências previstas pelo artigo 640.º, n.º 1, do CPC, dessa forma nada obstando à apreciação da mesma.
[5]
Importa, contudo, realçar que vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da livre apreciação da prova (artigo 607.º, n.º 5 do CPC
[6]
)
,
pelo que o tribunal sustentará a sua decisão (relativamente às provas produzidas), na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (força probatória plena dos documentos autênticos – artigo 371.º do CCivil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o citado princípio.
Mais se dirá que resulta do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC ser admissível que, através do recurso, seja alterada a decisão da matéria de facto, considerando-se provados factos que o tribunal
a quo
considerou não provados, ou procedendo inversamente (o que poderá suceder a partir da reapreciação dos meios de prova ou quando os elementos constantes do processo impuserem decisão diversa).
Feita esta nota introdutória, importa apreciar e decidir da manutenção do facto provado n.º 22, segundo o qual, “
o valor de mercado dos bens supra referidos, mercadorias, imobilizado corpóreo e veículos, correspondia a montante não apurado, mas não inferior a € 14.000,00
”.
Na sentença recorrida, tal facto foi dado por provado com fundamento nas declarações do requerente
EE
, bem como no facto de o requerido ter confessado “
vendas e dação em pagamento no montante total de € 2 900,00
”, mas não ter sido junta qualquer documentação comprovativa de assim ter sucedido – nessa medida se tendo recorrido ao disposto no artigo 414.º do CPC (nos moldes já anteriormente transcritos). Mais se afirmou que as transmissões se terão realizado por valor inferior ao do mercado.
Contrapõem os recorrentes que nenhuma prova foi produzida que permitisse à 1.ª instância ter fixado o valor dos bens em causa no montante de 14.000€.
Para tanto, alegam:
“As declarações do trabalhador
EE
não permitem ao julgador concluir qual a mercadoria existente à data do encerramento, qual o seu valor estimado, qual o mobiliário existente e respectivo valor pelo qual foi ou foram vendidos. // Não constam das declarações do trabalhador, e delas de nada se faz presumir, uma quantificação estimada, sequer aproximada, do mobiliário e mercadorias existentes à data, bem como qual o seu valor. // E mais se dirá que a douta sentença recorrida sequer faz qualquer menção a valores estimados das mercadorias existentes ou mobiliário e não explicita com base em que facto concreto das declarações do trabalhador
EE
firmou a presunção do valor. // Até porque, apenas o excerto das declarações citado pelo Tribunal a quo não permite chegar a nenhum montante. // (…) não há coerência em concluir, com base nessas declarações, que havia, por exemplo, um estoque de mercadorias, ou que tinham algum valor, ou sequer permite concluir que havia mobiliário com valor comercial.
”
Ouvidos os registos referentes à prova produzida em julgamento (aos quais se acedeu), dir-se-á que, com excepção dos valores indicados pelo próprio requerido
AA
, nenhuns outros foram mencionados, seja quanto aos veículos, seja quanto às mercadorias ou ao imobilizado corpóreo.
Do processo igualmente nada consta que permita alcançar, sequer, um valor aproximado dos bens.
Os únicos valores adiantados foram efectivamente os que foram mencionados pelo requerido
AA
(expressamente consignados na acta da audiência de julgamento), sem que, no entanto, tal depoimento tenha sido sustentado por qualquer outro meio probatório.
Em momento algum se refere o montante de 14.000€, valor este que, no âmbito do julgamento, é apenas referido pela Mma. Juíza
a quo
(a qual questionou a recorrente
BB
no sentido de saber se a soma de todos bens poderia
superar
tal valor, o que não mereceu resposta afirmativa).
Inexiste, pois, fundamento para que o mesmo tenha sido dado por assente, a tal conclusão não obstando a regra estatuída no artigo 414.º do CPC, já que o referido valor não havia sido invocado pelos requerentes
[7]
(aliás, nenhuns valores foram adiantados nos articulados apresentados por ambas as partes, o que também não veio a suceder na sequência do convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial quanto a tal matéria).
Por assim ser, não se vislumbra fundamento para que, na sentença recorrida, se tenha firmado o facto de todos os bens terem valor não inferior a 14.000€ (sendo que, para que o juiz se convença da realidade de um facto sempre terá de ter sido produzida prova em conformidade).
O facto de assim se concluir não acarreta, contudo, que se considere provado que os bens em causa tivessem um valor global de apenas 2.900€ (como pretendem os recorrentes).
Assim também não resultou provado, tanto mais que tal montante apenas resultou do depoimento do próprio recorrente
AA
, o qual não mereceu credibilidade.
Para além de ninguém o ter corroborado, não se poderá deixar de referir que, ouvido o mesmo, sequer se poderá afirmar que se tenha tratado de um depoimento seguro e assertivo. Pelo contrário, o mesmo denotou hesitações, com pausas a antecederem a indicação dos valores pelos quais os bens teriam alegadamente sido transmitidos, o que nos leva a concluir que o mesmo se limitou a referir os valores que referiu sem qualquer sustentação objectiva (foram esses, como poderiam ter sido quaisquer outros)
[8]
.
Como tal, assim como não se mostra possível concluir que o valor dos bens transmitidos/dissipados ascendia a 14.000€, também não se mostrar possível afirmar que o mesmo correspondesse a 2.900€. A dar-se por provado este último montante, estar-se-ia a dar prevalência à convicção dos recorrentes em detrimento da que é alcançada pelo tribunal (seja a 1.ª instância, seja esta Relação) em face da prova produzida.
Por assim ser, impõe-se dar como não provado o facto 22, o qual deverá ser eliminado, procedendo parcialmente a impugnação deduzida pelos recorrentes.
Cumpre, então, conhecer das questões suscitadas em termos de Direito.
Do mérito do recurso (erro de julgamento)
:
O recurso em apreço reporta-se a um incidente de liquidação que corre termos por apenso ao processo de insolvência, sendo que, no âmbito do apenso de qualificação da mesma (apenso B), para além do mais, foram os aqui recorrentes condenados a indemnizarem os credores da sociedade no montante dos
créditos reconhecidos e não impugnados
.
Porém, por acórdão desta Relação proferido nesse mesmo apenso em 13/07/2021 (já transitado em julgado), o segmento referente a tal condenação veio a ser alterado nos seguintes termos: “
condenando-se agora os afectados pela qualificação da insolvência
AA
e
BB
a indemnizarem os credores reclamantes, até às forças do seu património, em valor a quantificar em liquidação de sentença, nos termos sobreditos, revogando-se a sentença recorrida no excedente dessa quantia
”.
Segundo os referidos
termos sobreditos
, a responsabilidade indemnizatória dos afectados deverá “
conter-se na medida do dano que os mesmos, com a sua específica conduta, causaram à massa insolvente e, reflexamente, aos credores reclamantes
”, tendo-se defendido que tais danos são inferiores ao valor dos créditos reconhecidos.
E, esclareceu-se: “
a responsabilidade do afectado
AA
reconduz-se ao agravamento dos danos causados pela não apresentação tempestiva da devedora à insolvência, ou seja, por a devedora não se ter apresentado à insolvência até finais de Maio de 2017. O valor da indemnização deverá corresponder aos montantes das contribuições e quotizações devidas pela ora insolvente à Segurança Social, relativamente aos meses de Junho de 2017 até à declaração da insolvência, desde que contidos na reclamação deduzida nos autos, e aos montantes das remunerações auferidos nesse período pelos trabalhadores
DD
e
EE
(credores reclamantes), enquanto estes se mantiveram ao serviço da ora insolvente, cujos quantitativos não foi possível apurar. // (…) Já a indemnização da responsabilidade da afectada
BB
deverá reconduzir-se ao valor de mercado dos bens vendidos (veículos automóveis) e dos demais bens dissipados (mercadorias e restante imobilizado), cujos valores não se apuraram.
”
O referido acórdão fixou, assim, os critérios que teriam de presidir à fixação da indemnização devida aos aqui recorridos, tendo determinado expressamente que os valores a pagar a esse título teriam de ser quantificados em sede de liquidação de sentença (porquanto não se encontrava apurado quais os referidos montantes correspondentes à contribuições e quotizações, remunerações e valores de mercado).
Estamos, assim, no âmbito da previsão do n.º 2 do artigo 609.º do CPC – “
Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado (…)
” -, pois, apesar de a ocorrência do dano estar já assente, resta quantificar a respectiva indemnização, o que, como determinado no acórdão condenatório, deverá ser feito
“em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes da qualificação da insolvência como culposa”
(a única questão em aberto é a medida da liquidação e nunca a existência do direito respectivo
[9]
). Acresce que, como já referido, considerou-se igualmente que “
resulta do provado que os danos causados pelo comportamento dos afectados
AA
e
BB
são inferiores ao valor dos créditos reconhecidos
” (como mais adiante se desenvolverá)
[10]
.
Obviamente que o pedido de liquidação nunca poderá exceder o que tiver sido decidido na sentença condenatória, a qual irá complementar.
Isto posto, vejamos cada uma das questões suscitadas pelos recorrentes.
Da indemnização da responsabilidade do recorrente AA:
Como resulta do acórdão proferido no apenso B, a responsabilidade deste afectado
“reconduz-se ao agravamento dos danos causados pela não apresentação tempestiva da devedora à insolvência, ou seja, por a devedora não se ter apresentado à insolvência até finais de Maio de 2017. O valor da indemnização deverá corresponder aos montantes das contribuições e quotizações devidas pela ora insolvente à Segurança Social, relativamente aos meses de Junho de 2017 até à declaração da insolvência, desde que contidos na reclamação deduzida nos autos, e aos montantes das remunerações auferidos nesse período pelos trabalhadores
DD
e
EE
(credores reclamantes), enquanto estes se mantiveram ao serviço da ora insolvente”
.
Contribuições e quotizações devidas pela insolvente à Segurança Social
Apenas serão de contabilizar os montantes referentes ao período decorrente entre o mês de Junho de 2017 e a data na qual foi a insolvência declarada, ou seja, 12/04/2018, “
desde que contidos na reclamação deduzida nos autos
”.
Ora, a reclamação de créditos apresentada pela Segurança Social reporta-se apenas ao período decorrente entre Maio de 2016 e Maio de 2017, nada mais tendo sido reclamado após este período.
Trata-se, contudo, de questão que, para o caso se mostra inócua, já que o presente recurso versa tão somente sobre o montante indemnizatório a pagar aos requerentes/trabalhadores (razão pela qual, na sentença recorrida, nada se contabilizou por conta do crédito da Segurança Social).
Remunerações dos requerentes/recorridos
Nesta parte, conforme decidido, importa valorar o mesmo hiato temporal - Junho de 2017 até 12/04/2018 -, com a particularidade de o mesmo se limitar ainda ao período no qual ambos os trabalhadores “
se mantiveram ao serviço da ora insolvente
”.
Sustentam os recorrentes que, tendo a acção de insolvência sido proposta em 09/12/2017, e tendo o FGS (Fundo de Garantia Salarial) pago aos trabalhadores, por conta dos créditos laborais, a quantia global de 19.698,73€, neste valor foram já englobadas as remunerações devidas dentro do período de referência (os seis meses que antecedem a propositura da acção contam-se precisamente desde Junho de 2017). Consideram, assim, nada haver a indemnizar a esse título.
Mas, acrescentam, caso assim se não entenda, “
a quantia de remuneração apurada no período entre Junho de 2017 até a declaração de insolvência, enquanto os trabalhadores se mantiveram ao serviço da insolvente, é largamente inferior ao remanescente das reclamações de créditos e ao que foi fixado pelo douto Tribunal a quo
”.
Concretizam que a trabalhadora
DD
apenas exerceu funções até Junho de 2017, auferindo o correspondente ao SMN (à data, de 557€). Quanto muito, dizem, seria de atender ao montante de 649,84€ (SMN, acrescido dos proporcionais de subsídios de férias e de Natal). Como última hipótese, apesar de o refutarem, invocam o valor de 992,37€, aqui se valorando um salário de 647,20€ no mês de Junho/2017 (vencimento base+subsídio de alimentação+prémio de assiduidade, não obstante defenderem que estas duas parcelas não deverão ser consideradas como remuneração), acrescido de 345,17€ de salário no mês de Julho/2017 (até ao dia 16). A tais valores acresceriam eventualmente os proporcionais de subsídios de férias e de Natal (que computam em 92,84€).
Já o trabalhador
EE
, o qual trabalhou até Julho/2017 e auferia 557€, apenas este montante será devido (o único em dívida), ou, caso assim se entenda, ao mesmo acrescerão os proporcionais de subsídios de férias e de Natal (92,84€).
Alegam que o tribunal recorrido se limitou a fixar a indemnização no correspondente ao remanescente reclamado pelos trabalhadores e não pago pelo FGS, insurgindo-se contra o decidido por entenderem que os montantes reclamados a título de indemnização não poderiam ter sido valorados (referem que a indemnização não se enquadra no conceito de remuneração, para além de não se reportar a período no qual os trabalhadores estivessem ao serviço da insolvente).
Na sentença recorrida consignou-se:
“Interpretamos o segmento “remunerações auferidas” como integrando indemnização por cessação do contrato. Razão não haveria para limitar a indemnização a salários em atraso, quantias menos significativas. // Concluindo, ao Requerido caberá obrigação de indemnização no montante total dos créditos ainda não satisfeitos, € 13 871,62 (
DD
, € 10 690,5 e
EE
, € 3 181,12), acrescida de juros desde a presente decisão”
.
Também nós entendemos que os montantes devidos a título de indemnização/compensação pela cessação dos vínculos não poderiam deixar de ser valorados, como se passará a explicar.
Desde logo importa referir que,
para os efeitos que aqui relevam, não nos poderemos cingir aos conceitos puramente juslaborais, porquanto a responsabilidade dos sujeitos afectados pela qualificação da insolvência sempre terá que ser apurada no quadro de um processo insolvencial.
Por assim ser, aqueles que são afectados pela qualificação respondem pelos danos que os credores sofreram (ao não verem os respectivos créditos ressarcidos pela massa insolvente) e que não teriam sofrido se aqueles não tivessem assumido as condutas que, culposamente, levaram à criação ou agravamento da insolvência e à insuficiência do património da sociedade insolvente (sempre na medida das respectivas contribuições).
Mas, mesmo que assim não fosse, dir-se-á que o conceito de remuneração não traduz, sem mais, os montantes pagos a título de
salários
.
Como refere Maria do Rosário Palma Ramalho
[11]
,
há que distinguir entre
remuneração em sentido amplo
e
remuneração em sentido restrito, ou retribuição
.
“De acordo com esta construção, a retribuição (ou remuneração em sentido estrito) corresponde à prestação patrimonial, em dinheiro ou em espécie, regular e periódica, que é devida ao trabalhador por força do seu contrato, das normas que o regem ou dos usos, como contrapartida do seu trabalho. // A par do conceito de retribuição e tendo em conta o débito remuneratório amplo do empregador, o conceito de remuneração em sentido amplo, ou simplesmente, remuneração engloba o conjunto das vantagens patrimoniais de que o trabalhador beneficia em razão do seu contrato de trabalho e que podem ou não decorrer do trabalho prestado”
.
Pode-se, assim, falar em prestações remuneratórias de índole retributiva e prestações remuneratórias de índole indemnizatória
[12]
.
As primeiras reportam-se aos montantes pagos pelo empregador ao trabalhador, a título de contraprestação pelo trabalho que o mesmo presta. Já as segundas abarcam todos os montantes que sejam auferidos pelo trabalhador na sequência do seu contrato de trabalho (inclusive os que resultam da sua cessação)
[13]
.
Por pertinente, veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 498/2003, de 22/10/2003 (Proc. n.º 317/02, relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), disponível in www.dgsi.pt, como todos os demais que vierem a ser citados, no qual se pode ler: “
é manifesto que o crédito à indemnização desempenha uma evidente função de substituição do salário perdido.
”
Como se consignou no sumário do acórdão do STJ de 16/12/2021 (Proc. n.º 970/18.2T8PFR.P1.S1, relator Fernando Baptista),
“
I – As regras da interpretação dos negócios jurídicos são aplicáveis à interpretação das sentenças enquanto actos jurídicos. Daí que uma sentença judicial (por via do estatuído no citado art.º 295º) deve ser interpretada à luz do art.º 236º, ambos do Código Civil. (…)
”.
Neste aresto se podendo ainda ler:
“(…) a liquidação da sentença destina-se tão somente a ver concretizado o objecto da sua condenação (genérica), mas, obviamente, sempre respeitando (ou nunca ultrapassando) o caso julgado formado na mesma sentença condenatória a liquidar. Ou seja, tem, forçosamente, de obedecer ao que foi decidido no dispositivo da sentença. // Ou seja, como bem se observa no Ac. do STJ de 22.5.2014, “I - A liquidação (processada como incidente nos termos dos arts. 378.º do CPC em vigor quando a acção se iniciou e atualmente nos arts. 358.º e ss.) destina-se a «fixar o objeto ou a quantidade» da condenação proferida em termos genéricos, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 609.º do CPC, não podendo contrariar o que ficou julgado, nomeadamente, corrigindo-o”. // (…) não está aqui em causa a excepção dilatória de caso julgado, mas, sim, uma alegada autoridade do caso julgado (formado pela referida sentença no processo principal).”
E, no que concerne à interpretação da sentença, acrescenta:
“(…) releva aqui o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário. // (…) a interpretação da sentença não pode assentar exclusivamente na análise do sentido da parte decisória, tendo naturalmente que considerar os seus antecedentes lógicos, toda a fundamentação que a suporta, sem deixar de ter em conta outras circunstâncias relevantes, mesmo posteriores à respectiva elaboração.”
Como o STJ aqui defendeu, “
é certo que na acção declarativa com sentença transitada (cujos efeitos positivos se impõem, portanto, sobre o presente incidente de liquidação), em cujo dispositivo figura o segmento condenatório que ora se pretende liquidar, foram dados como provados os factos (tidos por relevantes ao mérito da causa) nela elencados (…). E foi, precisamente, a ponderação dessa factualidade e demais fundamentação vertida na elaboração da sentença que levou ao juízo decisório (…)
”.
O acórdão condenatório de 13/07/2021 alude apenas aos
montantes das remunerações auferidas enquanto se mantiveram ao serviço da insolvente
.
Importa, no entanto, não esquecer que, da matéria de facto valorada no mesmo, apenas consta o montante global dos créditos laborais que tinham sido reconhecidos a cada um dos requerentes (daí ser compreensível que o acórdão condenatório não tenha feito qualquer destrinça entre os valores que seriam devidos a título de retribuição e os que era devidos a outro título, limitando-se a mencionar
remunerações
).
Com efeito, no apenso B (qualificação da insolvência) considerou-se provado que:
“7. A insolvente encerrou a sua atividade a 31-10-2017. // 8. A ação de insolvência foi instaurada por uma trabalhadora patrocinada pelo MP em 9-12-2017. // 9. Ao tempo, encontravam-se em dívida retribuições reportadas ao trabalho prestado nos meses de maio de 2017 e seguintes, e subsídios de Natal dos anos de 2011, 2012 e 2013. (…) // 13. Na lista a que alude o art.º 129.º do CIRE, o Sr. Administrador da Insolvência reconheceu os seguintes créditos:
DD
€ 19.983,03, privilegiado, laboral ISS, IP € 18.260,53 privilegiado
EE
€ 13.034,68 privilegiado, laboral P…, Lda. € 428,41 comum // 14. O Fundo de Garantia Salarial pagou, por conta dos créditos laborais, € 19.146,09 e € 19.698,73 – requerimentos juntos ao apenso de reclamação de créditos.”
Já na sentença recorrida, os factos acabados de transcrever sob os n.ºs 7 a 9 mantiveram-se e, com relação aos créditos dos trabalhadores, considerou-se provado:
“18. São créditos reconhecidos pelo(a) Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência na lista a que alude o art.º 129.º do CIRE, não impugnados:
DD
// € 5.501.03 capital // € 14.482.00 “Outros”, Indemnização por cessação do contrato por justa causa Créditos emergentes de contrato de trabalho, privilegiados (…)
EE
// €4.500.51 capital // € 8.534.17 “Outros”, compensação legal pela cessação do contrato por via da extinção do posto de trabalho // Créditos emergentes de contrato de trabalho, privilegiados (…)
(…)
20. Por conta dos créditos laborais, o Fundo de Garantia Salarial pagou aos Requerentes:
DD
// € 9.292.53
EE
// € 9.853.56”
Veio então o tribunal recorrido a considerar que, nesta matéria, o montante a contabilizar para efeitos indemnizatórios seria de 13.871,62€, sendo 10.690,50€ devidos à trabalhadora
DD
– [(5.501,03€+14.482€)-9.292,53€] – e 3.181,12€ ao trabalhador
EE
– [(4.500,51€+8.534,17€)-9.853,56€].
Vejamos se assim deverá ser.
Como se refere no citado acórdão condenatório (de 13/07/2021), “
[s]e a devedora se tivesse então apresentado à insolvência, esta teria sido imediatamente decretada (art.º 28º do CIRE) e não teriam sido contraídas novas dívidas (à Segurança Social e para com os trabalhadores)
”.
No caso dos trabalhadores, as
novas dívidas
contraídas prendem-se, não apenas com as retribuições que se venceram após Maio de 2017 (e que não foram liquidadas), mas igualmente com o crédito que resultou da cessação dos respectivos vínculos laborais. Estão, pois, em causa, remunerações de índole retributiva e remunerações de índole indemnizatória, as quais são devidas pelo período que aqui releva.
Refira-se, inclusive, que a trabalhadora
DD
teve o seu contrato suspenso com fundamento no não pagamento de remunerações, vindo a resolve-lo com justa causa apenas em 06/11/2017. Acresce que, caso a devedora se tivesse apresentado à insolvência até ao final de Maio de 2017, sequer existiria fundamento para que a trabalhadora em causa tivesse resolvido o seu contrato com fundamento no não pagamento de retribuições (as quais apenas deixaram de ser pagas a partir desse preciso mês).
E, no que concerne ao trabalhador
EE,
não obstante ao mesmo tenha sido reconhecido um crédito correspondente, em parte, à compensação pela cessação do seu vínculo por extinção do posto de trabalho, não se poderá deixar de atender que, para efeitos de cálculo da mesma, sempre se mostra relevante o tempo que tal vínculo durou (quanto mais longo, maior será a compensação – cfr. artigo 366.º do CT).
Sendo certo que, independentemente do momento em que a apresentação à insolvência ocorra, sempre os trabalhadores teriam direito a ser compensados pela cessação (caducidade) dos vínculos laborais - compensação essa a calcular com referência à data do início do contrato e à data na qual ocorre o encerramento total ou definitivo da empresa (cfr. artigo 346.º, n.ºs 3 e 5, do CT), também é verdade que, nos autos, o recorrente nada alegou/provou que permitisse levar a cabo qualquer restrição do montante reclamado pelo trabalhador
EE
(tanto mais que se desconhece quando o mesmo terá sido admitido ao serviço da devedora).
Por assim ser, sempre inexistiram elementos factuais que permitissem restringir os montantes indemnizatórios/compensatórios já reconhecidos no processo como sendo os devidos aos trabalhadores.
Importa também referir que na oposição deduzida pelos recorrentes ao presente incidente de liquidação, os mesmos não puseram em causa os montantes que teriam que ser contabilizados para efeitos das
remunerações
(como pretendem agora fazê-lo através do presente recurso, designadamente quando defendem que apenas o vencimento base deverá ser valorado), tendo-se limitado a impugnar, sem mais, os arts. 5.º e 9.º
[14]
do requerimento inicial.
Ou seja, temos por assente que, em face da conduta do recorrente
AA
(não apresentação atempada à insolvência), novas dívidas foram efectivamente contraídas, entre elas se incluindo os créditos laborais que foram reclamados e que vieram a ser reconhecidos e provados (sem qualquer impugnação por parte dos recorrentes).
Note-se, que no âmbito do presente incidente, não está em causa
liquidar os créditos dos trabalhadores sobre a insolvente
(os quais estão há muito assentes), mas unicamente liquidar a indemnização em que os recorrentes/afectados pela qualificação foram condenados a pagar-lhes (não sendo, pois, o momento para questionar tais créditos, não havendo que valorar ou ponderar quaisquer outros critérios/factores para a fixação da indemnização, que não sejam os que foram já determinados por esta Relação, por acórdão transitado em julgado).
E também não está em causa apurar qual o
montante dos créditos dos trabalhadores que não foi satisfeito
(o que se mostra igualmente pacífico, porquanto corresponde à diferença entre os valores que foram reclamados e reconhecidos e os valores que foram pagos pelo FGS, valores esses devidamente comprovados nos autos), mas antes em que medida os recorrentes contribuíram para a criação ou agravamento da insolvência culposa e para os danos daí decorrentes (o que irá permitir determinar o concreto montante indemnizatório a pagar).
Estando definitivamente decidido que o recorrente
AA
contribuiu para o agravamento da insolvência e que, em face de assim ser, terá de responder pelas remunerações (entendendo-se estas nos moldes anteriormente defendidos) auferidas pelos trabalhadores entre Junho de 2017 e 12/04/2018, numa primeira leitura, poder-se-ia corroborar ser o montante indemnizatório da sua responsabilidade o fixado na sentença recorrida.
Importa, no entanto, fazer uma ressalva: nos créditos reclamados pela trabalhadora
DD
incluem-se os referentes aos subsídios de Natal dos anos de 2011, 2012 e 2013 (créditos que não se inserem no período delimitado pelo acórdão condenatório), num total de 1.375,05€ (458,35€ cada – cfr. petição inicial de insolvência, o que a trabalhadora veio a corroborar em sede de declarações de parte).
Ora, não se poderá considerar que esse montante tenha resultado do facto de a devedora não se ter apresentado à insolvência até ao final de Maio de 2017 (logo, que corresponda a dano que tenha sido causado pela conduta do referido recorrente)
[15]
.
Igual conclusão se impõe extrair para as parcelas retributivas reclamadas com relação ao mês de Maio de 2017 - 230€ - e às férias e subsídio de férias vencidas a 01/01/2017 – 1.114€ (cfr. petição inicial de insolvência, sendo que, em sede de declarações de parte, a trabalhadora referiu ter-lhe sido pago metade da retribuição devida pelo mês de Maio)
[16]
.
Como refere o acórdão da Relação do Porto de 21/04/2022 (Proc. n.º 3668/18.8T8STS-B.P1, relator Paulo Dias da Silva), “
a indemnização devida não pode ser fixada em montante igual ao dos créditos reconhecidos no processo de insolvência e que não obterão pagamento, mas fazendo apelo a um juízo equitativo, ponderando a culpa do afectado, que deverá responder apenas na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao acto ou actos determinantes dessa culpa.
”
E, no acórdão do STJ de 12/12/2023 (Proc. n.º 3146/20.5T8VFX-B.L1.S1, relatora Olinda Garcia) decidiu-se que: “
O art.º 189º, n.2, alínea e) do CIRE, conjugado com o n.4 deste artigo, não prevê uma responsabilização automática dos sujeitos afetados pela qualificação da insolvência culposa determinante do pagamento da totalidade dos créditos reconhecidos para serem pagos pela (insuficiente) massa insolvente. Tal norma não estabelece uma responsabilidade contratual sucedânea desses sujeitos pelas dívidas da insolvente. Trata-se, antes, de uma responsabilidade extracontratual, a apurar na medida da verificação dos respetivos pressupostos gerais, cujo montante tem como limite máximo o valor dos créditos graduados
”.
Os créditos respeitantes a tais direitos não correspondem a prejuízos que não se teriam verificado caso a devedora se tivesse apresentado à insolvência até ao final de Maio de 2017 (já que todos eles se constituíram em momento anterior). Logo, a conduta do afectado
AA
(traduzida no facto de não ter ocorrido uma apresentação atempada à insolvência) não foi causal dos mesmos.
Como tal, a indemnização da responsabilidade do recorrente
AA
ascende ao montante global de 11.152,57€, sendo 7.971,45€ devidos à trabalhadora
DD
(agora, devidos aos seus herdeiros devidamente habilitados) e 3.181,12€ ao trabalhador
EE
, acrescido dos legais juros de mora.
Refira-se, por fim, estar respeitado o decidido no acórdão que determinou a presente liquidação – no qual se afirmou que “
resulta do provado que os danos causados pelo comportamento dos afectados
AA
e
BB
são inferiores ao valor dos créditos reconhecidos
” -, já que o valor agora liquidado é muito inferior ao valor do passivo da insolvente (não só à globalidade dos créditos reconhecidos, ou seja, a 51.706,65€ -, como também com relação aos créditos dos requerentes que não foram satisfeitos, ou seja, 33.017,71€ - cfr. facto provado n.º 18) .
Da indemnização da responsabilidade da recorrente BB:
Como resulta demonstrado, por decisão transitada em julgado, a conduta da gerente, aqui recorrente, integra a previsão normativa das alíneas a) e d) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE, pois que a mesma dissipou o imobilizado da devedora/insolvente sem uma justa ou legítima correspondência prestacional, dispondo desses bens em proveito pessoal. Com tal conduta, agravou a situação de insolvência da devedora.
Valor de mercado dos bens transmitidos/dissipados
Sendo certo que o processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente, em face do decidido pelo acórdão proferido no apenso de qualificação de insolvência, importava apurar o valor de mercado dos bens vendidos (veículos automóveis) e dos demais bens dissipados (mercadorias e demais imobilizado), sendo esse o critério delimitador do quantitativo indemnizatório a pagar pela recorrente/afectada
BB
(cuja responsabilidade, ao contrário do que sucede com o recorrente
AA
, não se mostra limitada por qualquer momento temporal, designadamente com aquele em que a devedora se deveria ter apresentado à insolvência e aquele no qual o veio a fazer).
Porém, tal valor não foi alcançado (conclusão que decorre da decisão referente à impugnação da matéria de facto e consequente eliminação do facto provado n.º 22).
Ou seja, a falta de elementos factuais nessa matéria, não veio a ser colmatada no âmbito do incidente de liquidação (o que não será de estranhar, porquanto, com excepção dos veículos automóveis, sequer se mostram descriminados/identificados os demais bens – cfr. facto provado n.º 13).
Segundo o disposto no n.º 4 do artigo 360.º do CPC, “
[q]uando a prova produzida pelos litigantes for insuficiente para fixar a quantia devida, incumbe ao juiz completá-la mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial
”. Porém, o recurso à prova pericial apenas será de determinar caso se mostre viável o que, no caso, não sucede (tanto mais que nenhum dos bens foi apreendido), assim como não se vislumbra que qualquer outra diligência probatória pudesse ter sido levada a efeito (sendo que também nada foi alegado nesse sentido).
Ora, quando assim sucede, na ausência de prova que permita fixar a quantia devida, compete ao juiz fixá-la com recurso a critérios de equidade
[17]
– cfr. artigo 566.º, n.º 3, do CC, segundo o qual, “
Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados
”.
Com efeito, inexiste impedimento legal a que se recorra à equidade na fase de liquidação da sentença, tanto mais que sempre terá que ser fixado o quantitativo indemnizatório (não sendo permitido um
non liquet
, já que tal significaria uma violação do direito já reconhecido na decisão condenatória).
Citando Salvador da Costa
[18]
, “
o incumprimento do ónus de prova pelo requerente não provoca a improcedência do seu pedido de liquidação (…) sendo a prova produzida, indicada pelo requerente e pelo requerido, inconclusiva para o apuramento da quantia devida, e não se configurando a existência de outros meios de prova, incluindo a pericial, idóneos à liquidação cuja produção o juiz possa ordenar oficiosamente para o referido efeito, propendemos a considerar poder ser fixada pelo tribunal com base na equidade, nos termos do artigo 566º, nº 3, do CC
.”
Como se sumariou no acórdão desta Relação de Lisboa de 01/10/2014 (Proc. n.º 2656/04.6TVLSB-A.L2-6, relator Vítor Amaral), “
(…) 2. - Ao relegar para ulterior fase de liquidação de sentença o apuramento do valor que o credor tem a receber, o tribunal da condenação já reconheceu a existência de um direito de crédito, que apenas não foi quantificado, devendo sê-lo na posterior liquidação. 3. - Nada obsta a que a equidade funcione como último critério na fase de liquidação, se também em tal fase se mostrou impossível proceder à quantificação do dano concreto, caso em que a fixação dos danos segundo juízos de equidade constitui matéria de direito, fazendo apelo a bitola jurídica. 4. - A equidade, como justiça do caso, mostra-se apta a colmatar as incertezas do material probatório, bem como a temperar o rigor de certos resultados de pura subsunção jurídica, na procura da justa composição do litígio, fazendo apelo a dados de razoabilidade e equilíbrio, tal como de normalidade, proporção e adequação às circunstâncias concretas, sem cair no arbítrio ou na mera superação da falta de prova de factos que pudessem ser provados.”
[19]
Também o STJ, assim o defendeu nos seus acórdãos de 29/06/2017 (Proc. n.º 4081/14.1TCLRS.L1.S1, relator Olindo Geraldes) - “
(…) II. Havendo decisão judicial condenatória numa obrigação genérica, a decisão no incidente da liquidação há de corresponder, necessariamente, à fixação de uma quantia certa, tanto por efeito da prova produzida, como por efeito do critério da equidade (…)
” – e de 16/12/2021 (já anteriormente citado) – “
(…) III. O incidente de liquidação não pode culminar na negação de um direito anteriormente firmado por sentença. Sendo que, neste domínio, a única questão em aberto é a da medida da liquidação e nunca a existência do direito respectivo. IV – Se, mesmo após a iniciativa oficiosa, a prova produzida em tal incidente for insuficiente para fixar a quantia devida, deverá o juiz, como última ratio, recorrer à equidade a fim de se lograr fixar aquele quantitativo.
”
Veja-se, ainda, o acórdão da Relação de Coimbra de 18/12/2013 (Proc. n.º 1627/08.8TBAVR.C2, relator Barateiro Martins) – “
1 – Quando uma sentença condena no que se vier a apurar em incidente de liquidação fica certa a condenação duma parte a favor da outra, permanecendo apenas incerta a “quantidade” da condenação; ou seja, está à partida afastada a possibilidade processual de, no consequente incidente de liquidação, se concluir que não há qualquer “quantidade” a pagar. 2 – Caso não se apure exacta e precisamente o que se relegou para liquidação, impõe-se efectuar um julgamento “ex aequo et bono” e julgar/fixar equitativamente, dentro dos limites provados na acção (e que conduziram à condenação genérica), a “quantidade” a pagar
.”
[20]
Abrangendo a responsabilidade da afectada
BB
o montante dos créditos reconhecidos e não pagos (sendo esse o montante máximo a considerar para efeitos de indemnização), com o limite correspondente ao valor dos bens que subtraiu e que integrariam a massa insolvente, o certo é que, como já referido, mostrou-se inviável apurar o valor de mercado dos bens em causa (se tal valor tivesse sido provado, seria esse o montante a fixar a título de indemnização a pagar pela recorrente
BB
).
Impõe-se, pois, recorrer a critérios de equidade para aferir do
quantum
indemnizatório a pagar pela recorrente.
Na sentença recorrida, fixou-se o montante indemnizatório a pagar por ambos os recorrentes (solidariamente) em 13.871,62€, acrescidos de juros de mora, mas, com relação à afectada
BB
, fixou-se em 14.000€ o limite até ao qual a mesma teria que responder.
Julgamos, contudo, que também, nesta parte, o decidido terá de ser reavaliado.
Para tanto, há que ter subjacente que:
- segundo o princípio geral, o montante indemnizatório tem como limite máximo o montante dos créditos não satisfeitos, ressalvando-se o caso de ser inferior o valor dos danos que resultam da concreta actuação/contribuição dos afectados,
- no caso, o processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente, sendo que nenhum bem foi apreendido (inexiste, assim, qualquer activo da massa insolvente),
- não obstante a contribuição da recorrente
BB
se cinja àquele que seria o valor de mercado dos bens pela mesma transmitidos/dissipados (veículos automóveis e mercadoria e imobilizado corpóreo), desconhece-se qual seja tal valor,
- nesses bens incluem-se três veículos automóveis – um Citroen (com 1.º registo em 1994), um Ford Transit (com 1.º registo em 1998) e um Opel (com 1.º registo em 2010),
- os demais bens não foram identificados (embora no parecer apresentado pelo AI no apenso B se refira “
máquinas, fogões, loiças e outros utensílios
”, refere-se igualmente não ter sido possível conhecer “
dos valores realizados com a venda dos mesmos
”).
Tendo sido já decidido que a recorrente contribuiu para o agravamento da situação de insolvência com a sua conduta – que integra duas qualificativas do artigo 186.º, n.º 2 –, sempre se terá ainda de atender aos moldes em que a mesma actuou (os bens saíram do património da devedora sem qualquer registo documental que permita aferir do valor dos mesmos e daquele pelo qual terão sido transmitidos, o que se assumia como relevante/essencial para delimitar o dano/prejuízo concretamente ocorrido e, nessa medida, delimitar a sua responsabilidade).
Considerando, por um lado, que a mesma não logrou demonstrar que os danos causados com a sua conduta tenham sido de montante inferior ao montante dos créditos dos requerentes que não foram satisfeitos
[21]
, por outro lado, há que valorar, em face da prova produzida no processo, quais os bens que deixaram de poder responder por tais créditos.
Isto posto, considerando que estão em causa três veículo automóveis (não podendo concluir-se que os mesmos, não obstante o número de anos que tinham, não tivessem valor comercial, tanto mais que se desconhece o exacto estado em que se encontravam à data em que foram transmitidos, mas não se podendo deixar de ter em atenção que não tiveram como destino a sucata) e, pelo menos, maquinaria/electrodomésticos que permitiam o normal funcionamento da pastelaria (que, não obstante se desconhecer o seu valor, segundo resultou do depoimento de parte do recorrente
AA
, nunca o mesmo seria inferior a 1.000€), afigura-se-nos ser de fixar o valor dos mesmos em 11.500€ (valor também ele aquém do correspondente aos créditos reconhecidos e que ficaram por satisfazer).
Assim, não obstante a responsabilidade da recorrente
BB
tenha que abranger a totalidade dos créditos reconhecidos aos trabalhadores e que não foram satisfeitos, estará a mesma limitada ao montante do dano que causou (11.500€).
O montante agora fixado, para além de não se poder considerar desfasado do que poderia corresponder aos valores dos bens em causa (ou seja, do que se poderia obter com a liquidação desses bens no âmbito da insolvência e, nessa sequência, ressarcir os credores/trabalhadores), igualmente não se considera ser excessivo, desproporcional ou desrazoável.
Como se escreveu no acórdão do STJ de 22/06/2021 (Proc. n.º 439/15.7T8OLH-J.E1.S1, relator Barateiro Martins), “
a observância do princípio da proporcionalidade não exige que a indemnização a impor tenha que ser avaliada como justa, razoável e proporcionada, mas sim e apenas, num contexto mais lasso, que a indemnização a impor não seja avaliada como excessiva, desproporcionada e desrazoável
”.
Da solidariedade da responsabilidade dos recorrentes
Como expressamente previsto no artigo 189.º, n.º 2 do CIRE, a responsabilidade entre todos os afectados é solidária.
Trata-se de uma imposição legal, sendo que o facto de o n.º 4 do mesmo preceito consagrar a possibilidade de o montante indemnizatório vir a ser determinado em sede de liquidação de sentença (por forma a indagar/calcular o montante dos prejuízos sofridos em consequência da concreta actuação de cada um dos afectados), em nada afasta o regime da solidariedade (e nem o acórdão desta Relação proferido no apenso B assim o refere – razão pela qual carece de fundamento a alegação de ter a sentença recorrida violado a autoridade do caso julgado que de tal aresto resulta).
O facto de ter que se aferir da contribuição de cada um dos afectados para a produção dos danos/prejuízos ocorridos, por forma a que seja fixada a medida da obrigação indemnizatória de cada um (contribuição de cada um deles para a criação ou agravamento da insolvência, valorando-se os respectivos graus de culpabilidade e gravidade dos actos ilícitos imputados a cada uma das condutas e inerente produção dos danos pelas mesmas causadas) não afasta o referido regime
[22]
.
Simplesmente, provando-se que a conduta de cada um dos afectados não foi causal de todo o dano sofrido (no caso, correspondente ao montante dos créditos não satisfeitos), mas tão somente de um dano menor (valor inferior ao do passivo não satisfeito), cada um dos afectados deverá indemnizar os credores na correspondente medida.
Estando já assente qual a contribuição que cada um dos recorrentes teve para o agravamento da situação de insolvência e qual o dano causado por cada uma das respectivas condutas, dano esse que, pese embora seja muito similar, não é exactamente o mesmo – sendo o dano imputável ao afectado
AA
no valor de 11.152,57€ e sendo o imputável à afectada
BB
de 11.500€ -, a questão que se coloca é saber como conciliar tais conclusões com o facto de estarmos perante uma responsabilidade solidária.
Ainda em momento anterior ao da entrada em vigor da Lei n.º 9/2022 de 11/01, a qual veio alterar a redacção da al. e) do n.º 2 do artigo 189.º, a doutrina maioritariamente defendia que a medida da contribuição dos afectados apenas tinha relevância no âmbito das relações internas (e já não perante os credores).
Posição assumida por Luís Correia Araújo
[23]
- “
nas relações externas (perante os credores) a qualquer um dos responsáveis pode ser exigido o pagamento integral da indemnização. Esta norma é coerente com o disposto no art.º 73º do CSC, aplicável aos diferentes tipos de responsabilidade perante credores por remissão dos art.º 78º, nº 5, e 79º, nº 2, do CSC. A solidariedade na responsabilidade dos administradores aplica-se apenas entre os que, numa análise individual, sejam responsáveis (…) Quanto às relações internas, o artigo 189º do CIRE é omisso, pelo que nos parece dever seguir-se o regime da solidariedade na responsabilidade societária previsto no art.º 73º do CSC, que segue aliás o regime dos arts. 516º e 497º do Código Civil. Desta forma, nos termos do nº 2 do art.º 73º do CSC, caso algum afetado consiga demonstrar que a sua culpa ou participação na produção dos danos é inferior à dos restantes, poderá obter uma repartição dos encargos nas relações internas diferente da mera divisão em partes iguais. (…) Em caso de pluralidade de afetados, o juiz deve, na sentença de qualificação, fixar o grau de culpa de cada um, nos termos do art.º 189º, nº 2, al. a). Esta fixação individualizada do grau de culpa pode servir para a repartição da responsabilidade nas relações internas.
”; Maria do Rosário Epifânio
[24]
- “
Esta responsabilidade é solidária: assim, se houver várias pessoas afetadas pela qualificação da insolvência, vale a regra “um por todos e todos por um”. Quanto ao critério de repartição interna da responsabilidade, o art.º 189.º, n.º 2, a) impõe ao juiz a fixação do grau de culpa das pessoas afetadas, o que poderá ter relevância para efeitos do art.º 497.º, n.º 2, do CCivil, e, assim, de uma mais justa repartição interna de responsabilidade
.”; e Henrique Sousa Antunes
[25]
- “
a solidariedade é determinada pelo regime da insolvência e, desde logo, pela lei civil (artigo 497º CC). Em consequência, a individualização só pode relevar no exercício do direito de regresso, isto é, no contexto das relações internas entre os responsáveis”
, defendendo tratar-se de “
responsabilidade solidária e ilimitada
”.
[26]
Porém, este último não deixou de invocar a norma do artigo 512.º do CC, para assinalar que “
a exigência constitucional de igualdade e o valor da certeza jurídica reclamariam uma intervenção legislativa que permitisse, em todos os regimes de responsabilidade que consagram a solidariedade dos lesantes, a ponderação equitativa do julgador nas relações externas, se a desproporcionalidade entre o dano causado e a indemnização exigida assim o reclamasse.
”
[27]
E, importa referir, todas estas posições têm por pressuposto que o montante dos créditos não satisfeitos será a medida da obrigação de indemnizar.
Com a alteração introduzida pela Lei n.º 9/2022 à al. e) do n.º 2 do artigo 189.º, o legislador passou a consagrar que as pessoas afectadas pela qualificação serão condenadas a indemnizarem os credores do insolvente “
até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos
” (o legislador optou, assim, por fixar um limite máximo da indemnização, a saber, o montante dos créditos não satisfeitos).
Em face dessa alteração, Soveral Martins, que anteriormente também defendia que o grau de culpa dos afectados apenas relevaria entre os próprios
[28]
, veio rever a sua posição, para tanto escrevendo
[29]
:
“Tendo em conta que a responsabilidade entre os afetados é solidária, pode discutir-se se a fixação do grau de culpa que o art.º 189.º. 2, a), manda efetuar terá relevo apenas no plano interno ou se também o terá perante os credores do devedor na fixação do valor das indemnizações devidas por cada um dos afetados pela qualificação. // Antes das alterações introduzidas pela L 9/2022, considerámos que a fixação do grau de culpa apenas interessaria no plano das relações entre os obrigados solidários. Perante a nova redação do art.º 189.º, 2, e), parece difícil sustentar essa leitura. Com efeito, a referência que surge agora a uma condenação «até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos» revela a intenção de permitir uma ponderação da culpa e do património do afetado que tem consequências também no momento da condenação. Trata-se de responsabilidade por dívida de terceiro que resulta da lei em consequência do que justificou que o sujeito em causa fosse considerado afetado pela qualificação da insolvência como culposa.”
.
Também Catarina Serra
[30]
assim o defende. Após referir que “
O factor que pode e deve ser ponderado e tem efeitos sensíveis na modelação do valor da indemnização, imprimindo-lhe proporcionalidade, é um único: a contribuição causal de cada sujeito para a ocorrência dos danos/a medida da participação efectiva de cada um
”, referindo-se expressamente quanto à previsão legal de estarmos em face de uma responsabilidade solidária, acrescenta: “
Trata-se da possibilidade de se exigir a qualquer um dos sujeitos o pagamento da indemnização até ao valor que lhe foi fixado – o que quer dizer que os termos distintos em que cada um está obrigado relevam logo nas relações externas, como permite o art.º 512.º, n.º 2, do CC
”.
Mais recentemente, Maria de Lurdes Pereira
[31]
pronunciou-se expressamente quanto a esta questão nos seguintes termos:
“a solidariedade na obrigação de indemnização só vale em relação à parcela dos danos que, sendo individualmente imputada a cada um dos responsáveis, seja comum. Antes de se aplicar a regra da solidariedade, é necessário estabelecer em que medida cada um dos responsáveis é obrigado a indemnizar, valendo aí a regra de que só terá de responder por danos que causou.
Só há solidariedade na parte da indemnização que seja «comum»
a todos os vínculos previamente determinados. // A solidariedade não tem o efeito de transmutar uma situação de pluralidade de responsáveis numa situação de responsabilidade por danos causados pela ação ou omissão de outrem. (…) A solidariedade vale depois de se circunscrever os danos pelos quais cada um há de responder”
(sublinhado nosso).
Segundo os autores acabados de citar, a medida da responsabilidade indemnizatória de cada um dos afectados assume igualmente relevância no âmbito das relações externas (perante os credores).
Tal entendimento vem, pois, ao encontro do que já Antunes Varela
[32]
escrevia (aludindo ao artigo 512.º do CC)
[33]
: “
Os vários devedores solidários podem estar obrigados em termos diversos (…) Mas a obrigação não deixa de ser solidária, acrescenta ainda a lei, por ser diferente o conteúdo da prestação de cada um deles. Com isto quer o texto significar (dando como assente que a diversidade de conteúdo da prestação se não refere apenas às relações internas) que a obrigação não deixa de ser solidária pelo facto de um dos obrigados responder apenas pelo capital, enquanto o outro responde pelo capital e pelos juros, ou até de ser diferente a soma por que um e outro são responsáveis (dever um 100 e outro 80 apenas). // No entanto, em qualquer destes casos,
só há verdadeira solidariedade em relação à parte comum da responsabilidade
(quanto ao capital, no primeiro exemplo; quanto à soma menor, no segundo). Só essa parte comum corresponde à prestação integral por que responde cada um dos devedores, nos termos do nº 1 do art.º 512º.// Neste sentido,
pode realmente considerar-se requisito essencial da solidariedade a identidade da prestação, visto só haver obrigação solidária relativamente à prestação (ou parte da prestação) por que responde qualquer dos devedores ou que qualquer dos credores tem a faculdade de exigir, por si só
.
” (sublinhados nossos).
[34]
E é a posição que, no caso, se impõe adoptar, porquanto mostra-se delimitada a medida em que cada um dos recorrentes/afectados contribuiu para o agravamento da situação de insolvência e os prejuízos causados pelas respectivas condutas.
Isto posto, importa considerar que:
- Ascendendo o prejuízo dos requerentes/credores (créditos não satisfeitos) ao montante total de 13.871,62€ (sendo de 10.690,50€ no caso da trabalhadora
DD
e de 3.181,12€ no caso do trabalhador
EE
);
- A obrigação de indemnizar é solidária entre os afectados pela qualificação;
- No caso, é distinta a medida das contribuições de cada um (para o agravamento da insolvência e para os prejuízos que daí resultaram para os mesmos credores); e
- Tal solidariedade apenas ocorre com relação ao montante comum da responsabilidade, ou seja, pelo montante de 11.152,57€,
será este último montante o limite máximo até ao qual o recorrente
AA
terá que responder, enquanto que a responsabilidade da recorrente
BB
terá como limite máximo o valor de 11.500€.
*
IV - DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes da Secção do Comércio deste Tribunal da Relação em julgar:
1. Parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto;
2. Parcialmente procedente a apelação, alterando-se a sentença recorrida no sentido de serem os afectados condenados a indemnizarem os requerentes/trabalhadores até ao montante dos créditos que lhes foram reconhecidos e que não foram satisfeitos, sendo tal condenação solidária até ao montante de 11.152,57€, acrescidos de juros de mora, dos quais:
a) 7.971,45€ são devidos aos herdeiros habilitados nos autos em substituição da requerente
BB
; e
b) 3.181,12€ são devidos ao requerente
AA
;
3. A responsabilidade do afectado
AA
por tal pagamento tem como limite os referidos 11.152,57€, acrescidos de juros de mora.
4. A responsabilidade da afectada
BB
por tal pagamento tem como limite o montante de 11.500€.
Custas pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2025
Renata Linhares de Castro
Nuno Teixeira
Amélia Sofia Rebelo
_______________________________________________________
[1]
Mais se tendo consignado: “(…)
III.2 Advirta o Sr. Administrador da Insolvência do disposto no artigo 232.º/4; // III.3 Cessam todos os efeitos decorrentes da declaração de insolvência, designadamente recuperando a Devedora o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão do negócio, sem prejuízo dos efeitos da qualificação de insolvência e do disposto no artigo 234.º – artigo 233.º/1/a). // Cessam as atribuições do Sr. Administrador da Insolvência, exceto as relativas à apresentação de contas – artigo 233.º/1/b). // Todos os credores da insolvência podem exercer os seus direitos contra a Devedora, no caso, sem qualquer restrição – artigo 233.º/1/c). // Os credores da massa insolvente podem reclamar da Devedora os seus direitos não satisfeitos – artigo 233.º/1/d). // III.4 Transitado o presente despacho, abra conclusão nos apensos de verificação e graduação de créditos que se mostrem autuados, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 233.º/2/b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa. // III.5 A liquidação da Devedora prosseguirá, nos termos do regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação de entidades comerciais – artigo 234.º/4. // III.6 Encerrado o processo de insolvência por insuficiência da massa, nos casos em que tenha sido aberto incidente de qualificação da insolvência e esse mesmo ainda não estiver findo, este prossegue os seus termos como incidente limitado – cfr. artigo 232.º/5 e 191.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa. (…)”.
[2]
Pode ler-se nessa sentença:
“Declarada a insolvência da sociedade comercial Pastelaria
LSP
, Lda., foi decretado o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente, nos termos da al. d) do n.º 1 do artigo 230.º e artigo 232.º, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas1 (CIRE). // Enuncia o artigo 233.º, de epígrafe “Efeitos do encerramento”, na al. b) do n.º 2: “O encerramento do processo de insolvência antes do rateio final determina: (…) b) A extinção da instância dos processos de verificação de créditos (…), exceto se tiver já sido proferida a sentença de verificação e graduação de créditos prevista no artigo 140.º (…);”. // Pelo exposto, declaro extinta a instância do presente apenso de verificação e graduação de
créditos.(…)”.
[3]
No mesmo se podendo ler:
“Nos termos e para os efeitos previstos no artigo 590.º/2, al. b), e 4 a 7 do Código de Processo Civil, convido os Requerentes ao aperfeiçoamento do requerimento inicial, especificando, nos termos do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa: // Quanto à responsabilidade do Requerido
AA
: // - Os “(…) montantes das contribuições e quotizações devidas pela ora insolvente à Segurança Social, relativamente aos meses de junho de 2017 até à declaração da insolvência (…)”; // - Os “(…) montantes das remunerações auferidos nesse período pelos trabalhadores
DD
e
EE
(…).”; // Quanto à responsabilidade da Requerida
BB
: // - O “(…) valor de mercado dos bens vendidos (veículos automóveis) e dos demais bens dissipados (mercadorias e restante imobilizado).”. // Notifique.”
[4]
Foi fixado como objecto do litígio:
“Do direito dos AA. ao pagamento dos montantes de € 12 500,55 e € 3 181,12, correspondentes aos créditos verificados ainda não satisfeitos, a título de indemnização pela culpa na insolvência”;
e elencados os seguintes temas da prova:
“1. Remunerações devidas aos AA. desde junho de 2017 até à declaração da insolvência, 12-04-2018 // 2. Remunerações pagas // 3. Contribuições e quotizações devidas pela Devedora à Segurança Social, desde junho de 2017 até à declaração da insolvência, 12-04-2018 // 4. Valor de mercado dos bens vendidos: // 4.1. Veículos automóveis ..-..-DR, Citroen, ..-..-LV, Ford Transit, ..-JH-.., ..-..-DH, VW Transporter, e ..-..-GA Mercedes Vito // 4.2. Mercadorias // 4.3. Imobilizado (máquinas, fogões, loiças e outros utensílios)”
.
[5]
Decorre desta norma que o recorrente que impugne a matéria de facto deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da requerida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
[6]
Segundo este preceito, “
O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
”
[7]
Como escreve MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Blog do IPPC,
CPC online, Art.º 410.º a 466.º (vs. 2024.12)
.
“(a) A parte à qual incumbe a prova tem o ónus de provar a verdade (ou a verosimilhança) do facto probando. A contraparte que queira impugnar a prova produzida tem o ónus de produzir contraprova ou prova do contrário. (b) Na contraprova, a parte coloca em dúvida a prova produzida sobre o facto probando (art.º 346.º CC). A contraprova destina-se a tornar insegura a convicção do tribunal sobre a verdade do facto (…) (art.º 346.º CC). (c) Na prova do contrário, a parte produz a prova do facto contrário do facto probando (…) (art.º 347.º CC). A prova do contrário convence o tribunal da não verdade do facto probando e é indispensável para ilidir uma presunção legal (art.º 350.º, n.º 2, CC). (d) Se a parte onerada não produzir prova convincente do facto probando, aplica-se o critério estabelecido no →art.º 414.º e ficciona-se que é verdadeiro (ou verosímil) o facto contrário.”
Mais acrescentando:
“a dúvida sobre a verdade de um facto “resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”, ou seja, resolve-se contra a parte que teria beneficiado com a prova do facto. Mais em concreto: perante a dúvida sobre a verdade de um facto, o tribunal ficciona como provado o facto contrário do facto que não foi provado. O facto contrário do facto probando é a negação (interna) deste facto: (…) // (a) A regra que consta do art.º 414.º (…) respeita ao chamado ónus da prova objectivo, ou seja, às consequências objectivas da insuficiência da prova da prova de um facto. Como o risco da insuficiência da prova recai sobre a parte que tem o ónus de provar o facto, o ónus da prova objectivo complementa o ónus da prova subjectivo: primeiro, define-se qual das partes tem o ónus de provar um facto; depois, determina-se que é a parte onerada com a prova do facto que suporta as consequências da dúvida sobre a verdade desse facto. (b) O ónus da prova subjectivo e o ónus da prova objectivo correspondem a duas perspectivas de análise de uma mesma realidade: é indiferente vê-la pelo lado subjectivo (“quem deve provar?”) ou pelo lado objectivo (“o que deve ser provado?”). É por isso que, em vez de começar por distribuir o ónus da prova do facto e, depois, definir as consequências da dúvida sobre a verdade do facto, basta determinar qual a parte contra a qual corre o risco da dúvida sobre a verdade do facto: determinada essa parte, fica-se a saber que é ela a parte onerada com a prova do facto.
”.
[8]
O recorrente
AA
referiu que dois dos veículos automóveis teriam sido vendidos, no conjunto, por apenas 400€ e que o terceiro teria sido dado para pagamento parcial a um credor. Quando questionado pela julgadora para que esclarecesse qual o montante correspondente a esse “pagamento parcial”, o mesmo hesitou (aliás, teve que se insistir para que adiantasse um valor), acabando depois por referir que seriam 1.500€. Mas também referiu que estaria em causa um crédito de 3.500€ (sem que, contudo, o alegado remanescente em dívida tenha sido reclamado no processo). Tais afirmações, também a esta Relação, não mereceram credibilidade.
[9]
Nesse sentido, ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/ PIRES DE SOUSA,
Código de Processo Civil Anotado
, vol. I, Almedina, 2.ª edição, 2020, pág. 436.
[10]
Refere-se no acórdão condenatório:
“
presume-se que o dano corresponde ao montante dos créditos não satisfeitos (valor máximo da indemnização)
(…).Todavia, essa presunção (presunção júris tantum) pode ser ilidida. // Assim, os propostos afectados pela qualificação da insolvência podem demonstrar que os danos causados pelo seu comportamento doloso ou com culpa grave foram inferiores”.
Defendendo-se: “
a responsabilidade indemnizatória dos afectados pela qualificação conter-se na medida do dano que os mesmos, com a sua específica conduta, causaram à massa insolvente e, reflexamente, aos credores reclamantes.”
(sublinhado nosso).
[11]
Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações laborais individuais
, Almedina, 6.ª edição, 2016, pág. 504.
[12]
Veja-se, por exemplo, que, o artigo 2.º do Código de IRS, após considerar rendimentos do trabalho dependente “
todas as remunerações pagas ou postas à disposição do seu titular
” (n.º 1), acrescenta considerar-se igualmente rendimentos de trabalho dependente, “
quaisquer indemnizações resultantes da constituição, extinção ou modificação de relação jurídica que origine rendimentos do trabalho dependente (…)
” (n.º 3, al. e)). Por assim ser, as indemnizações pagas na sequência de resolução do contrato de trabalho com justa causa (caso da trabalhadora
DD
) ou a compensação paga pela cessação do contrato de trabalho por extinção do posto de trabalho (caso do trabalhador
EE
) assim se terão de considerar.
[13]
Como refere CATARINA VASCONCELOS,
Dos créditos laborais no processo de insolvência: classificação e exercício destes créditos no processo de insolvência
, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito da Universidade Católica, 2018, pág. 14, “
poderemos estar perante créditos decorrentes da execução, violação e cessação do contrato de trabalho; ou, numa outra perspetiva, créditos remuneratórios (referentes a salários, subsídios de férias e de Natal, subsídio de alimentação, entre outros, isto é, decorrentes da própria execução do contrato de trabalho), compensatórios ou indemnizatórios, essencialmente decorrentes da cessação do contrato de trabalho ou da sua violação, tais como créditos resultantes da compensação devida ao trabalhador por cessação do contrato de trabalho por despedimento coletivo ou extinção do posto de trabalho
” (disponível
online
).
[14]
Art.º 5.º:
“Por sentença proferida em 04/10/2020, transitada em julgado em 03/08/2021, foi qualificada como culposa a insolvência da sociedade PASTELARIA
LSP
LDA., com afectação pela qualificação dos gerentes
AA
e
BB
, ora requeridos, sendo estes condenados, em consequência, a indemnizarem os credores da aludida sociedade no montante dos créditos reconhecidos e não impugnados, até às forças do seu património”
; Art.º 9.º:
“Termos em que se conclui que é ainda devido aos requerentes
DD
e
EE
respectivamente, as quantias de € 12.500.55 e de € 3.181.12.”
[15]
Por pertinente, vide CATARINA SERRA, Revista Julgar n.º 48, Setembro/2022, Almedina, págs. 28 a 31, onde a mesma defende: “
o regime da responsabilidade por insolvência culposa perde grande parte da sua dimensão punitiva ou sancionatória (em que havia “um espaço de responsabilidade sem causalidade”) e (re)aproxima-se do regime geral da responsabilidade civil, com um desvio, atendendo à fixação de um (do tal) máximo. Traduz-se isto, em suma, na máxima de que devem ser indemnizados (só) os danos (cfr. art.º 483º do CC) mas não necessariamente todos os danos. (…). O factor que pode e deve ser considerado e tem efeitos sensíveis na modelação do valor da indemnização, imprimindo-lhe proporcionalidade, é um único: a contribuição causal de cada sujeito para a ocorrência dos danos/a medida da participação efectiva de cada um. (…) A qualificação da insolvência como culposa pressupõe sempre a causalidade (provada ou presumida) entre a conduta e a criação ou o agravamento da insolvência (a “causalidade fundamentadora” da responsabilidade civil), mas esta não basta para responsabilizar os sujeitos afectados; deve ainda verificar-se a causalidade entre a conduta e os danos (a “causalidade preenchedora” da responsabilidade civil). (…) é preciso apurar a diferença entre a situação que existe e a situação que existiria se a conduta ilícita não tivesse tido lugar – apurar, mais precisamente, o dano diferencial. (…). Cumpre ao juiz discriminar, sobretudo, entre as condutas criadoras e as condutas agravadoras da situação de insolvência. Na prática, o dano causado pelas primeiras é susceptível de se aproximar do montante dos créditos não satisfeitos. Relativamente ao dano causado pelas segundas, esta proximidade nunca se verifica.”
[16]
No artigo 32.º da referida petição, pode ler-se: “
O/A A trabalhou ininterruptamente e esteve na inteira disponibilidade da Ré até ao dia 6-11-2017, data da resolução do contrato com justa causa, mas esta não lhe pagou integralmente as seguintes remunerações: // - € 230,00 a título de diferença do salário (vencimento-base, subsídio de alimenção e prémio de assiduidade) referente ao trabalho prestado no mês de Maio/2017; // - € 647,20 a título de salário (vencimento-base, subsídio de alimenção e prémio de assiduidade) referente ao trabalho prestado no mês de Junho/2017; // - € 345,17 a título de salário (vencimento-base, subsídio de alimenção e prémio de assiduidade) referente ao trabalho prestado no mês de Julho/2017 (do dia 1 ao dia 16); // - € 1.114,00 a título de retribuição de férias e de subsídio de férias vencidas a 1-01-2017, reportadas ao trabalho prestado no ano de 2016; // - € 458,35 a título de subsídio de Natal referente ao trabalho prestado no ano de 2011; // - € 458,35 a título de subsídio de Natal referente ao trabalho prestado no ano de 2012; // - € 458,35 a título de subsídio de Natal referente ao trabalho prestado no ano de 2013; e - € 1.419,20 a título de proporcionais de retribuição de férias, de subsídio de férias e de Natal pelo tempo de duração do contrato de trabalho no ano da cessação; // o que somado Totaliza € 5.130,62.
”.
[17]
Nesse sentido, ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/PIRES DE SOUSA, obra citada, pág. 437.
[18]
Os Incidentes da Instância
, Almedina, 11.ª edição, 2020, pág. 245.
[19]
Mais se podendo ler neste aresto: “
não se tratará de recorrer à equidade para contornar questões de falta de prova de factos que pudessem ser provados, mas antes, dentro dos limites que foi possível ter por provados, encontrar a justa indemnização para um dano que é incontornável, mas cuja extensão/intensidade exacta (…), não foi possível delimitar com todo o rigor, o que pode, no limite, ser suprido com parâmetros de razoabilidade, adequação e justa proporção, fazendo apelo à justiça do caso, tendo em conta os dados da experiência comum e um padrão de normal diligência
”.
[20]
Mais se esclarece neste aresto que, no julgamento “ex aequo et bono”, há que tomar em “
todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida
” – cfr., nesse sentido, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA,
Código Civil Anotado
, Coimbra Editora, vol. I, 4.ª edição, 1987, pág. 501.
[21]
Como alerta CATARINA SERRA, Julgar (obra já citada), pág. 31, “
Cabe
, por seu turno,
aos sujeitos afectado adoptar uma conduta o mais activa possível, alegando e provando, se puderem, que a sua conduta não causou danos ou não causou todos os danos invocados pelos credores
. Entre as circunstâncias concitáveis para o efeito da eliminação da sua responsabilidade está a de a conduta ilícita ser indiferente para a produção do dano e entre as circunstâncias relevantes para o efeito da atenuação da sua responsabilidade está a de a conduta ilícita não ser uma causa exclusiva da produção do dano mas sim uma causa concorrente (com as condutas de outros sujeitos ou eventos fortuitos).”
(sublinhado nosso). Com efeito, serão as pessoas afectadas que terão de demonstrar (alegar e provar) que a sua conduta não foi causal do dano (ou de todo ele), por forma a se eximirem ao pagamento da indemnização ou, pelo menos, restringirem o montante da mesma.
[22]
Cfr. PATRÍCIA ALEXANDRA DAS DORES ALVES,
A qualificação da insolvência. Incidente e efeitos
, Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, 2018, pág. 59, disponível online - a responsabilidade insolvencial apresenta como características: “
a subsidiariedade (porque nascerá apenas se a massa insolvente for insuficiente para fazer face ao passivo e na medida dos créditos não satisfeitos) e a solidariedade (entre as várias pessoas afetadas pela qualificação e na medida do respetivo grau de culpa)
”.
[23]
A Responsabilidade Civil dos Administradores na Insolvência da Sociedade Comercial. A qualificação da insolvência entre as vias para a responsabilização dos administradores
, Almedina, 2022, pág. 385.
[24]
Manual de Direito da Insolvência
, Almedina, 7.ª edição, 2020, pág. 165.
Cfr., também, da mesma autora,
As alterações ao incidente de qualificação de insolvência e à suspensão do dever de apresentação à insolvência,
in Conferência
O Plano de Recuperação e de Resiliência para a Justiça Económica e a transposição da Diretiva 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho,
2022, EbookCONF-PRR-VF2.PDEF, pág. 86 (disponível in
https://justica.gov.pt
):
“Entendo que o critério de cálculo da indemnização e a natureza solidária da obrigação, na hipótese de serem vários os obrigados, apontam no sentido de que qualquer pessoa afetada responde solidariamente pelo montante dos créditos que ficaram por satisfazer – o primado da satisfação dos interesses dos credores e o caráter punitivo desta responsabilidade insolvencial assim o justificam, até porque a imputação do facto responsabilizante pressupõe uma atuação especialmente censurável (dolo ou culpa grave). E, a final, tal como no regime geral da responsabilidade civil solidária (art.º 497.º), as assimetrias advenientes desta solução serão corrigidas no plano interno, através da repartição das quotas de cada responsável em função do respetivo grau de culpa e contributo para a situação de insolvência ou o seu agravamento.
”
[25]
Natureza e funções da responsabilidade civil por insolvência culposa, V Congresso de Direito da Insolvência
, Almedina, 2019, págs. 153 e 159/160.
A fls. 163, o autor escreve, ainda
: “Em nosso juízo, o artigo 189º, nº 4, do CIRE é inaplicável na relação entre as pessoas afetadas e os credores, se, como pensamos, os critérios para a quantificação da indemnização forem utilizáveis. Dado que o alcance daquela é, necessariamente, fixado pelo valor dos créditos a satisfazer, a atribuição de um sentido à norma requer situar o seu âmbito de aplicação onde a variação é exigida pelas circunstâncias: no plano das relações internas, havendo uma pluralidade de responsáveis. // Não se invoque a letra da lei (“indemnizações devidas” ou “montante dos prejuízos sofridos”) contra este entendimento. Em virtude da competência do regime da solidariedade, o exercício do direito de regresso implica a fixação da medida de indemnização que a cada responsável compete, sendo essa individualização efetuada em razão da contribuição concreta para os prejuízos sofridos (reconhece-se, no entanto, que, para o efeito pretendido, melhor seria se a norma aludisse a prejuízos causados).”
[26]
Ao nível jurisprudencial, foi também essa a posição defendida nos acórdãos da Relação de Guimarães de 24/09/2020
(Proc. n.º 8502/17.3T8VNF-A.G1, relatora Conceição Sampaio) - “
[a] fixação do grau de culpa estabelecida na al. a) do nº 2 do artigo 189.º do CIRE, assume relevância para os casos em que existam várias pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa em que é preciso definir, nas relações internas - já não em face dos credores-, o grau de culpa de cada uma dessas pessoas.
” – e de 18/12/2017 (Proc. n.º 92/16.0T8MTR-B-G1, relator João Diogo Rodrigues) – “
ainda que para efeitos internos, não pode deixar de ser considerar que a responsabilidade de cada um dos gerentes deve ser proporcional à sua culpa na frustração dos legítimos direitos dos credores
”.
[27]
Obra citada, págs. 164/165.
[28]
Insolvência Culposa e “Responsabilidade Civil” dos Afetados, Revista de Direito da Responsabilidade
, ano 2 (2020), págs. 331/332, no qual se pode ler:
“Tendo em conta que a responsabilidade entre os afetados é solidária, parece que a fixação do grau de culpa que o art.º 189.º, 2, a), manda efetuar terá relevo no plano interno: não na fixação do valor das indemnizações devidas por cada um dos afetados pela qualificação. // Não se fixa o grau de culpa se só há um culpado. Havendo dois ou mais afetados, o juiz fixará o grau de culpa. No entanto, essa culpa não diz respeito à existência de créditos não satisfeitos. Diz respeito, isso sim, à criação ou agravação da insolvência culposa. (…) As pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa devem ser condenadas na sentença de qualificação a pagar uma indemnização aos credores do devedor insolvente que deve ser «no montante dos créditos não satisfeitos, até à força dos respetivos patrimónios» (art.º 189.º 2, e)). // Todos os afetados pela qualificação são solidariamente responsáveis pelo pagamento do montante referido e a sua responsabilidade pode afetar todo o seu património. Mas a responsabilidade é limitada ao montante dos créditos não satisfeitos: não diz respeito a todos os créditos.”
[29]
Um Curso de Direito da Insolvência
, Vol. I, Almedina, 4.ª edição, 2022, pág. 594/595.
Este autor, na nota 123 da pág. 594, aludindo a casos em que exista mais do que um afectado pela qualificação, refere ainda a posição de outros autores: “
Nuno Pinto Oliveira, (…) escrevia (…) que «o administrador deverá ser condenado a indemnizar os credores na proporção em que o seu comportamento contribuiu para a insolvência, e só na proporção em que o seu comportamento contribuiu para a insolvência». Catarina Serra (…) também entendia que se deveria atender à «proporção em que o comportamento das pessoas afetadas contribuiu para a insolvência». (…) J. M. Coutinho de Abreu (…) defendia que o juiz teria de fixar o valor da indemnização devida por cada afetado tendo em conta […] eventualmente, o grau de culpa de cada um deles».
[30]
Revista Julgar, já citada, pág. 29.
[31]
Dano Coletivo e modo coletivo do exercício do direito à indemnização na insolvência culposa, VI Congresso de Direito da Insolvência,
Almedina, 2024, págs. 291/292.
[32]
Das obrigações em Geral
, Vol. I, Almedina, 6.ª edição, 1989, págs. 726/727.
[33]
Prescreve o artigo 512.º do CC:
“1. A obrigação é solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles. 2. A obrigação não deixa de ser solidária pelo facto de os devedores estarem obrigados em termos diversos ou com diversas garantias, ou de ser diferente o conteúdo das prestações de cada um deles; igual diversidade se pode verificar quanto à obrigação do devedor relativamente a cada um dos credores solidários.”
[34]
Também ANA AFONSO, em comentário ao artigo 512.º do CC,
Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral
, Universidade Católica Editora, 2021, pág. 432, alerta que não se poderá prescindir “
da identidade substancial da prestação nas relações externas
”.
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/4113676ab7368e4180258c38003292d1?OpenDocument
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1,764,979,200,000
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PROVIDO
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1308/22.0GAMTA.L1-9
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1308/22.0GAMTA.L1-9
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ANA PAULA GUEDES
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(da exclusiva responsabilidade da Relatora):
I. O crime de introdução em lugar vedado ao público consuma-se no momento em que a pessoa entra ou permanece no local sem o consentimento ou autorização de quem de direito.
II. Contudo, tal crime, embora não seja tipicamente um crime de execução permanente, pode evoluir nesse sentido sempre que a permanência se prolonga no tempo, ou seja enquanto perdura a conduta ilícita.
III. Assim, para efeitos de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08 é necessário apurar o momento cronológico em que cessou a permanência no local, pois, se a mesma ultrapassou a barreira temporal das 00:00 horas do dia 19 de junho de 2023, a conduta não está abrangida pela Lei n.º 38-A/2023.
IV. Tal, como causa de extinção do procedimento criminal, deve ser apurado em audiência de julgamento e apreciado em sede de sentença.
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[
"INTRODUÇÃO EM LUGAR VEDADO AO PÚBLICO",
"CRIME DE EXECUÇÃO PERMANENTE",
"CESSAÇÃO",
"AMNISTIA"
] |
Acordam, em conferência, os Juizes da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
A)-Relatório:
No âmbito do processo 1308/22.0GAMTA.L1, do Juízo Local Criminal do Barreiro - Juiz 1, por despacho datado de 23.12.2024, foi proferida a seguinte decisão:
“
Em face do exposto, julga-se extinto, por amnistia, o procedimento criminal contra a arguida AA”.
*
Inconformado com a decisão veio o assistente interpor o presente recurso.
Apresenta as seguintes conclusões:
“A. Vem a Recorrente apresentar recurso do douto Despacho com a Ref.: ..., proferido a 7 de janeiro de 2025, pela Meritíssima Senhora Juíza de Direito do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Criminal do Barreiro – Juiz 1, porquanto, veio o douto Despacho recorrido determinar a amnistia da pena aplicável à AA.
B. Entende o douto Despacho estarem preenchidos todos os requisitos necessários e impostos pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, em concreto: ii) o facto ilícito tenha sido praticado até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023.
C. A questão que a Recorrente vem apresentar ao Venerando Tribunal é tão somente saber se estando perante o crime de introdução em lugar vedado ao público previsto, este de natureza duradoura,
i) Qual o momento da sua consumação;
ii) Se, atendendo a esse momento, é a Arguida elegível ou não para beneficiar da amnistia prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, nomeadamente, mediante o preenchimento do requisito temporal da prática do facto constante do n.º 1 do artigo 2.º do referido diploma legal, e nestes pressupostos;
iii) Discutir se foi devidamente aplicada a Amnistia à AA pelo Tribunal a quo.
D. No âmbito do Proc. n.º 1308/22.0GAMTA, o douto Tribunal competente, apreciou previamente a questão de saber se a AA poderá beneficiar da aplicação da amnistia ao seu caso concreto, como estabelecido na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
E. Neste sentido veio Meritíssima Senhor Juíza de Direito extinguir o procedimento penal quanto à suprarreferida porquanto julgou estarem preenchidos os pressupostos legais para aplicação da amnistia, i) estarmos perante uma pena aplicável ao crime em abstrato não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa, ii) o ilícito tenha sido praticado por pessoa que tenha entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto e, iii) que o facto tenha sido praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023.
F. A AA, está em causa a prática, em coautoria material na forma consumada e em concurso efetivo, de dois crimes de introdução em lugar vedado ao público, p.p. artigo 191.º do Código Penal.
G. Da fase de inquérito, por força da prova carreada aos autos, demonstrou-se suficientemente indiciada que, pelo menos desde 02.01.2023 a AA ocupou, num primeiro momento, a fração 3.ª esquerdo – propriedade do aqui Recorrente – do prédio sito na ..., tendo, aquando o despejo coercivo do imóvel, ocupado, num segundo momento, a fração 2.º esquerdo do mesmo prédio.
H. Por atuação do Recorrente que recorreu aos tribunais para o efeito, ambas as frações foram desocupadas pelos Arguidos em momento muito posterior ao da sua ocupação, nomeadamente, a fração 3.º esquerdo foi desocupada a 17 de agosto de 2023 e a fração 2.º esquerdo, que ocuparam de seguida, apenas foi desocupada em 17 de junho de 2024.
I. Diz expressamente o artigo 191.º do Código Penal “Quem, sem consentimento ou autorização de quem de direito, entrar ou permanecer (…)”, por sua vez, é entendimento Doutrinário que o crime em discussão é duradouro ou permanente e de mera atividade quanto a forma de consumação do ataque ao objeto jurídico.
J. Ou seja, o crime não se consuma no momento da entrada no local vedado, mas sim ao dia em que cessar a consumação.
K. A consumação do crime de introdução em lugar vedado ao público, ao contrário do entendimento do Douto Tribunal a quo, não é, portanto, o momento da entrada na primeira fração, 02/01/2023, mas, sim, todo o período em que, sabendo que não tinha consentimento nem autorização da Recorrente para permanecer, num primeiro momento na fração 3.º esquerdo e num segundo momento na fração 2.º esquerdo, ainda assim permaneceu!!!
L. Pelo que a prática do crime de forma consciente só cessou e de forma definitiva em 17 de junho de 2024, quase um ano após a data limite dos factos temporalmente elegíveis para a aplicação da amnistia.
M. Assim, por se julgar provado o lapso de interpretação e aplicação da Lei n.º 38- A/2023, de 2 de agosto, por se tratar de crime duradouro e de mera atividade, a consumação do crime cometido pela AA, não se deu antes das 00:00 do dia 19 de junho de 2023, mas, sim, perdurou no tempo até o dia 17 de junho de 2024 – data em que o despejo do imóvel foi concretizado, pelo que não poderá aquela beneficiar da extinção do procedimento criminal, por via da amnistia, uma vez que não estão preenchidos o requisitos legalmente impostos.
N. Deve, assim, a decisão de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto ao caso concreto, ser revogada e substituída por outra que determine a prossecução do processo para julgamento com vista a decidir sobre a responsabilidade criminal da AA pelos factos indiciados”.
*
O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo
*
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua procedência.
Conclui nos seguintes termos:
1. Entendeu o Tribunal a quo que estavam reunidos os pressupostos previstos na Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, relativamente à arguida, AA, julgando extinto o procedimento criminal relativamente à mesma.
2. A Lei 38-A/2023, de 02 de Agosto, prevê os seguintes pressupostos de aplicação:
- Infracções cuja pena não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de multa;
- Praticadas até às 00:00 horas do dia 19 de Junho de 2023;
- Por pessoas com idade compreendida entre os 16 e os 30 anos;
- Não se tratando de nenhuma das excepções previstas no art.º 7º do mencionado diploma.
3. Os factos imputados à arguida são passíveis de integrar a prática de dois crimes de introdução em lugar vedado ao público, previstos e punidos pelo artigo 191º do Código Penal.
4. O que está em causa e importa analisar é o momento em que tais crimes se consumaram.
5. AA entrou na primeira fracção em data anterior a 02/01/202 e nela permaneceu até 17/08/2023. Depois, em data que não foi possível apurar, mudou-se dessa primeira fracção para outra, sita no 2º andar do mesmo prédio, onde permaneceu ininterruptamente até ao dia 17/06/2024.
6. Tendo a arguida permanecido nos imóveis para além do dia 19/06/2023, será que se pode considerar que os crimes se consumaram antes dessa data, para efeitos de aplicação da Lei 38-A/2023, de 02 de Agosto?
7. A prática do facto ilícito prolongou-se no tempo, assumindo os crimes natureza permanente.
8. Nos crimes permanentes, a lesão do bem objecto de tutela é única, mas o facto perdura, protraindo-se no tempo a conduta ofensiva, apenas cessando a consumação (o crime é exaurido) no momento em que cessa o comportamento antijurídico (acção ou omissão) por vontade do agente ou por qualquer outra causa.
9. Assim, concluímos que nos crimes permanentes, não só a consumação, como a própria execução, permanecem enquanto se mantiver o estado de compressão do bem, objecto jurídico do crime.
10. Nos crimes permanentes o momento da consumação reporta-se … “ao instante em que o estado de anti-juridicidade termine, pois tipicamente, apenas nesse momento temporal, a acção inicial cessa os seus efeitos…”.
11. Aplicando-se ao caso em apreço, temos que o momento a considerar para efeito de consumação dos crimes imputados à arguida não se reporta à data em que esta entrou nos imóveis, mas, necessariamente, à data em que deles saiu, pois que, só nessa altura, fez cessar o estado anti-jurídico a que deu causa.
12. E, assim, concluímos que os factos não se consumaram antes do dia 19/06/2023.
13. E concluímos, também, por consequência, que não se mostram verificados os pressupostos previstos na Lei 38-A/2023, de 02 de Agosto, concretamente, o pressuposto temporal, na pessoa da arguida, pelo que deve prosseguir o procedimento criminal quanto à mesma.
14. Atento tudo o que se deixou exposto e concordando com o recurso interposto, é nosso entendimento que o Tribunal a quo deve revogar a sua decisão de 23/12/2024, na parte em que julgou extinto o procedimento criminal contra a arguida AA, substituindo-a por outra que determine a prossecução dos autos para julgamento, a fim de se apurar a sua responsabilidade pelos factos pelos quais vai acusada”.
*
Remetidos os autos a este Tribunal a Exm.ª Senhora Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer nos seguintes termos:
“ Do texto da acusação não resulta identificado o momento cronológico em que a permanência nesta fracção cessou, na medida em que a permanência nesta fracção cessa com a mudança para o 2º andar esquerdo, e o momento desta mudança também não se encontra cronologicamente identificado;
Do texto da acusação não resulta identificado temporalmente o momento em que a arguida entra e permanece na fração do 2º andar esquerdo, a única referência da acção situa-se após a data de 2.01.2023, mas o tempo cronológico está indeterminado.
Em cada uma das situações não consta da acusação o momento cronológico em que cessou a permanência em cada uma das fracções, relativamente à permanência na fração 2º andar esquerdo desconhece-se mesmo se a acção cessou.
No texto da acusação imputa-se à arguida a prática de dois crimes de p. e p. no artigo 191º do Código Penal (considerando a imputação proposta na acusação e que o despacho de recebimento da acusação não pôs em crise). O ilícito em causa trata-se de um crime de dano, de mera actividade, e duradoiro ou permanente quanto à forma de consumação.
Nos crimes duradoiros ou permanentes a consumação do crime ocorre com a cessação da acção, uma vez que estamos perante uma realidade em que o agente dá inicio à situação antijurídica e mantém-na mediante a sua vontade, cessando esta no momento em que este decide acabar com a acção desvaliosa.
Ou seja, é essencial para a determinação do momento da consumação do crime apurar o momento em que a acção cessou.
A determinação deste momento é absolutamente essencial para a aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08 Perdão de Penas e Amnistia de Infrações - Jmj, uma vez que se trata de uma forma de extinção do procedimento criminal, conforme previsão do artigo 127 º do código Penal e artigo 2º da lei n.º 38-A/2023, de 02.08.
Conforme dispõe o artigo 124º do CPP, são objecto de prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis.
Ou seja, em nosso entendimento, no momento do saneamento do processo e considerando o texto da acusação (único até ao momento orientador do objecto do processo) o Mm. º juiz não estava na posse dos elementos factuais que lhe permitissem definir o momento da consumação de qualquer dos ilícitos em causa. (isto, sem prejuízo de, na fase de julgamento, considerando nomeadamente os factos que hajam sido trazidos para a discussão, nomeadamente, com a contestação, se conhecer daquela verificação, mediante a prova que viesse a se realizada).
Esta carência, uma vez que é pressuposto temporal da aplicação da lei da amnistia mencionada , que os factos ilícitos hajam sido praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, ( ou seja que o crime se tenha consumado até este momento temporal) não permite concluir, como fez o despacho recorrido, que se encontra verificado este pressuposto formal da aplicação da lei da Lei n.º 38-A/2023.
Assim , considerando a questão sujeita a recurso, entendemos dever o despacho ser revogado”.
*
Foi cumprido o artigo 417, nº2 do CPP.
Colhidos os vistos legais foi o processo submetido à conferência.
*
B)-Fundamentação:
Impõe-se desde logo determinar quais são as questões a decidir em sede de recurso.
“É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”], sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95- O objeto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente -cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010:).
Assim, o conhecimento do recurso está limitado às suas conclusões, sem prejuízo das questões/vício de conhecimento oficioso.
Na situação concreta a única
questão a decidir
é a da aplicação ou não da lei 38-A/2023, de 02/08, à situação concreta (sendo esta a única questão suscitada no recurso em análise).
*
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
“
De acordo com o disposto nos artigos 2.º, n.º 1 e 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, são amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa e que tenham sido praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.
Porém, a amnistia é excluída quanto aos crimes e agentes previstos no artigo 7.º, n.ºs 1 e 2 da citada Lei, sem prejuízo de tal exclusão não prejudicar a aplicação da amnistia relativamente a outros crimes cometidos (n.º 3 da mesma norma).
In casu, a arguida AA, nascida em ........1997, encontra-se acusada da prática, no dia ........2023, em coautoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de dois crimes de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo artigo 191.º do Código Penal, cuja pena aplicável não é superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa, encontrando-se, assim, verificados os pressupostos temporal e etário para a aplicação da amnistia.
Não se verificam quaisquer das situações excludentes da amnistia previstas no artigo 7.º, n.ºs 1 e 2 da sobredita Lei.
Nos termos dos artigos 127.º, n.º 1 e 128.º, n.º 2 do Código Penal, a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança.
Em face do exposto, julga-se extinto, por amnistia, o procedimento criminal contra a arguida AA”.
*
É o seguinte o teor da acusação proferida nos autos:
“ O Ministério Público deduz acusação, em processo comum e com intervenção do TRIBUNAL SINGULAR, contra:
BB, solteiro, filho de CC e de DD, natural de Lisboa, nascido em .../.../1969, titular do cartão de cidadão n.º 08969317 5zx3, residente na ...,
AA, solteira, filha de BB e de EE, natural da ..., nascida em .../.../1997, titular do cartão de cidadão n.º 15508375 9zx1, residente na ..., ... ..., e
FF, solteiro, filho de GG e de HH, natural do ..., nascido em .../.../1990, titular do cartão de cidadão n.º 13721520 7zx0, residente na ..., ... ....
Porquanto:
- Em data não concretamente apurada, mas anterior a 02/01/2023, o arguido BB deslocou-se ao rés do chão direito,
do prédio sito no n.º 78, da ..., propriedade do ...,
- O qual se encontrava fechado e devoluto, à espera de ser atribuído em concurso.
- Uma vez lá chegado, de forma não concretamente apurada, conseguiu entrar no referido imóvel, o qual ocupou e onde passou a viver, pelo menos desde 02/01/2023.
- Do mesmo modo, em data não concretamente apurada, mas anterior a 02/01/2023, os arguidos AA e FF, em comunhão de esforços e intentos e no cumprimento de plano previamente gizado entre ambos, deslocaram-se ao 3º andar esquerdo, do prédio sito no n.º 78, da ..., propriedade do ...,
- O qual se encontrava fechado e devoluto, à espera de ser atribuído em concurso.
- Uma vez lá chegados, de forma não concretamente apurada, conseguiram
entrar no referido imóvel, o qual ocuparam e onde passaram a viver, pelo menos desde 02/01/2023,
- Sendo que, passado algum tempo, em data que não se conseguiu apurar, mudaram-se para o 2º andar esquerdo do mesmo prédio, o qual ocuparam e onde passaram a viver, também ele pertencente ao ...,
- E que também se encontrava fechado e devoluto, à espera de ser atribuído em concurso.
- Os arguidos agiram de forma livre, voluntaria e consciente,
- Com o propósito concretizado de entrar e ocupar as referidas fracções, nas quais passaram a viver, sabendo que as mesmas não lhes pertenciam e que estavam devidamente fechadas e com o acesso vedado, sabendo , ainda, que não tinham autorização para lá entrar.
- Os arguidos agiram conforme descrito, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
Pelo exposto e com a conduta descrita:
- O arguido BB cometeu dolosamente (artigo 14.º, n.º 1 do CP), em autoria material (artigo 26.º do CP), na forma consumada um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo artigo 191º do Código Penal.
- Os arguidos AA e FF cometeram dolosamente (artigo 14.º, n.º 1 do CP), em co-autoria material (artigo 26.º do CP), na forma consumada, em concurso efectivo dois crimes
de introdução em lugar vedado ao público, previstos e punidos pelo artigo 191º do Código Penal”.
*
No caso em análise foi a arguida AA acusada, em co-autoria, pela prática de dois crimes de introdução em lugar vedado ao público, previstos e punidos, pelo artigo 191º do Código Penal.
Aquando da ocupação das frações mencionadas na acusação, a arguida tinha idade inferior a 30 anos.
De acordo com o artigo 2º, nº1 da lei 38-A/2023, de 02/08, entrada em vigor em setembro de 2023:“ estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”.
Acrescentando o artigo 4º do mesmo diploma que são: “ amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.
Dispõe o artigo 191 do CP que:
“Quem, sem consentimento ou autorização de quem de direito, entrar ou permanecer em pátios, jardins ou espaços vedados anexos a habitação, em barcos ou outros meios de transporte, em lugar vedado e destinado a serviço ou a empresa públicos, a serviço de transporte ou ao exercício de profissões ou atividades, ou em qualquer outro lugar vedado e não livremente acessível ao público, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias”.
No crime de introdução em lugar vedado ao público o bem jurídico protegido é a inviolabilidade de um conjunto de espaços, protegendo-se ainda a privacidade desses espaços.
Contudo, através do mesmo visa-se, ainda, titular a intimidade pessoal a que todo cidadão tem direito.
O tipo objetivo de ilícito consiste na entrada ou permanência, sem consentimento ou autorização de quem de direito, em espaços diversificados.
A ação típica deste ilícito compreende duas modalidades: a entrada sem consentimento e a permanência depois da intimidação para se retirar, ou seja, a entrada e a permanência contra a vontade expressa ou presumida de quem de direito.
O crime de introdução em lugar vedado ao público consuma-se no momento em que a pessoa entra ou permanece no local sem o consentimento ou autorização de quem de direito.
Contudo, tal crime, embora não seja tipicamente um crime de execução permanente, pode evoluir nesse sentido sempre que a permanência se prolonga no tempo, ou seja enquanto perdura a conduta ilícita.
Nestas situações é a própria consumação do crime que se prolonga no tempo e só termina com a saída do agente do local, e isto por contraposição aos crimes de ação, ou crimes instantâneos, em que a consumação coincide com a prática do ato criminoso e esgota-se neste.
Nos crimes permanentes verifica-se uma unificação jurídica de todas as condutas, como se elas se tivessem verificado no momento da última conduta.
Volvendo ao caso concreto, diz-se na acusação que a arguida ocupou uma fração do prédio, sito no n.º 78, da ..., pelo menos em ........2023, onde passou a viver, e que passado algum tempo, em data que não se conseguiu apurar, mudou-se para o 2º andar esquerdo, onde, também, passou a viver.
Sem dúvida que aquando da 1ª ocupação, em ........2023, as infrações penais cuja pena aplicável não era superior a 1 ano de prisão estavam abrangidas pela lei 38-A/2023, de 02/08 desde que o agente tivesse idade compreendida entre os 16-30 anos.
Acontece que a conduta da arguida não se esgotou no episódio ocorrido em ........2023, perdurando no tempo até à data em que cessou a ocupação das frações.
Assim, se tal ocupação ultrapassou a barreira temporal das 00:00 horas do dia 19 de junho de 2023, não pode a arguida beneficiar da lei 38-A/2023.
É certo que a acusação é omissa no que tange ao período temporal da ocupação, limitando-se a referir que a arguida passou a viver nas frações, sem especificar o momento cronológico em que cessou a permanência em cada uma das frações.
Contudo, a partir do momento em que se diz que a arguida passou a viver naqueles locais, não pode o Tribunal recorrido presumir que tal ocupação cessou antes das 00:00 horas do dia 19 de junho de 2023 e, em face de tal, concluir que os crimes em causa estão abrangidos pela lei 38-A/2023,
Acresce que está alegado no pedido de indemnização civil, deduzido pela assistente que: “Os Arguidos AA e FF ocuparam as frações 3º esquerdo e, posteriormente, mas em ato contínuo, 2º esquerdo desde pelo menos ... ate ao dia ... de ... de 2024, tendo por isso beneficiado indevidamente e sem que para o efeito procedesse ao pagamento da devida renda por 19 meses”.
Logo, só pode o Tribunal concluir pela aplicação, ou não, da lei 38-A/2023, e pela verificação do pressuposto formal, depois de apurar o momento temporal em que cessou a permanência nas frações.
A aplicação da amnistia é uma forma de extinção do procedimento criminal, nos termos do artigo 127, nº1 do CP.
Preceitua o artigo 124, nº1 do CPP que: “ 1 - Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis”.
Acrescentando o artigo 368º do mesmo diploma, relativamente à sentença, que:
“1 - O tribunal começa por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão.
2 - Em seguida, se a apreciação do mérito não tiver ficado prejudicada, o presidente enumera discriminada e especificamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa e, bem assim, os que resultarem da discussão da causa, relevantes para as questões de saber:
a) Se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime;
b) Se o arguido praticou o crime ou nele participou;
c) Se o arguido actuou com culpa;
d) Se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa;
e) Se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança;
f) Se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil.
3 - Em seguida, o presidente enumera discriminadamente e submete a deliberação e votação todas as questões de direito suscitadas pelos factos referidos no número anterior”.
Assim, terá o momento temporal em que cessou a ocupação, como uma eventual causa de extinção do procedimento criminal da arguida, de ser apurado em audiência de julgamento e apreciado em sede de sentença.
C) Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes que compõem a 9º secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso e, consequentemente:
- Revogar o despacho recorrido que julgou extinto o procedimento criminal contra a arguida AA, que deve ser substituído por outra que determine a prossecução dos autos para julgamento, onde deve ser apurado o momento cronológico em que cessou a permanência da arguida, em cada uma das frações
Sem custas
Notifique.
Lisboa, 12 de junho de 2025.
Ana Paula Guedes
Ivo Nelson Caires B. Rosa
Ana Marisa Arnêdo
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/2eca56fa585cc29380258cb5003a2207?OpenDocument
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1,749,081,600,000
| null |
410/15.9TXEVR-J.E1
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410/15.9TXEVR-J.E1
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RENATA WHYTTON DA TERRA
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I - Constitui infração grosseira dos deveres que impendem sobre o condenado em pena de prisão a executar em “
regime de permanência na habitação
” o facto de o condenado colocar em causa o trabalho da técnica de reinserção social que se deslocou à sua habitação, sem que para isso tivesse qualquer justificação, “discutindo” com a referida técnica, mostrando-se “alterado” e tendo tomado uma atitude agressiva para com ela, posicionando a sua cara a cerca de 10 cm da cara da técnica, por forma a intimidá-la e pô-la na rua, e não aderindo às orientações da mesma (após, e em contacto telefónico com um técnico da DGRSP, ainda disse que daria à técnica um par de estalos e que não admitia que lhe dissessem o que tinha que fazer).
II - Justifica-se, por isso e nesse caso, a revogação desse regime de execução da pena de prisão.
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[
"REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO",
"REVOGAÇÃO"
] |
Acordam os juízes da 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
RELATÓRIO
Por decisão proferida no Juízo de Execução das Penas de Évora – J1, foi revogado o regime de permanência na habitação, fixado a
A
por virtude do grave não cumprimento dos deveres impostos e, em consequência, no âmbito do preceituado no art.º 44º, nº 3 do Código Penal (redação introduzida pela Lei nº 94/2017, de 28 de agosto), foi determinado a execução da pena de prisão efetiva, imposta no âmbito do processo comum nº 104/21.6GACUB (Juiz 1, da secção de Competência Genérica da Instância Local de Cuba) e ainda não cumprida, em estabelecimento prisional.
Não se conformando com a decisão proferida, dela veio o condenado interpor recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que se transcrevem:
“A) Com o presente Recurso visa, o recorrente, questionar a apreciação da prova feita do que resultará ser posta em crise a douta decisão na parte respeitante ao Recorrido, visando ver reapreciados a decisão emanada pelo tribunal A Quo.
B) Deveria o Tribunal A Quo ter indicado discriminadamente em que factos e prova testemunhal ou documental se apoiou para dar como provados os pontos prescritos.
C) A Meritíssima Juiz refere que os factos foram dados como provados, “mediante a análise, articulação e conjugação de toda a documentação conhecida nos autos, designadamente as informações dos serviços de reinserção social, o depoimento da Srª. Técnica M e as duas diligências de audição do condenado”.
D) Enunciando ainda que “Não tem o tribunal motivos para não crer no relato elaborado pelos serviços, na medida em que os mesmos se encontram obrigados a descrever, com verdade, todo o acompanhamento e intervenção que são realizados junto dos condenados”.
E) Não pode o Tribunal a quo referir que tem como verdadeiro o relatório elaborado pelos serviços de vigilância eletrónica, uma vez que se encontram obrigados a descrever com verdade todo o acompanhamento e intervenções realizadas junto dos condenados.
F) Tanto é que foi referido pelo condenado, aquando da sua audição, dia 3 de fevereiro de 2025, que os seus trabalhadores assistiram à situação relatada pela técnica sobre o que se sucedeu no dia 22 de dezembro de 2022, relatado pela técnica no 2º relatório de incidentes, datado de 26 de dezembro de 2024.
G) Existindo outro meio de prova para além do 2º relatório de incidentes, datado de 26 de dezembro de 2024, o Tribunal a quo deveria ter inquirido tais testemunhas para apurar a verdade material do descrito no relatório supra referido.
H) Uma vez que está em causa a revogação do regime de permanência na habitação aplicado, e a continuação do cumprimento da pena de prisão aplicada no Proc. nº 104/21.6GACUB da Secção de Competência Genérica – Juiz 1 – da Instância Local de Cuba, de forma contínua e em meio prisional.
I) No tocante ao primeiro relatório de incidente o aqui condenado informou telefonicamente, no dia 14/09/2024, já no fim do dia, os Serviços de Reinserção Social de que no dia 17/09/2024 se iria deslocar a uma consulta no Centro de Saúde.
J) O condenado não tem qualquer conhecimento de Internet, sendo a sua enteada que trata de todos os assuntos relacionados com a Internet, o aqui condenado não tinha outra forma de fazer chegar aos serviços de Reinserção Social qualquer informação sobre o agendamento da consulta.
K) O condenado está já autorizado a ausentar-se da sua residência para comparecer em consultas médicas/tratamentos, mediante prévia comunicação e articulação com os Serviços de Reinserção Social.
L) O condenado efetuou a prévia comunicação aos serviços de Reinserção Social, justificando que não conseguia remeter qualquer documento uma vez que não tem qualquer conhecimento de tudo que tenha a ver com Internet.
M) O parecer em causa não faz qualquer referência expressa ao Auto de Inquirição de testemunha, realizado no dia 13 de dezembro de 2024.
N) A Dra. M, Técnica Superior de Reinserção Social, a exercer funções na Equipa de Vigilância Eletrónica de Évora, fez “mea culpa”, que não tinha conhecimento que o condenado em causa já tinha autorização para se deslocar a consultas e tratamentos.
O) Daí não ser considerado uma autorização judicial para se ausentar excecionalmente durante o período de vigilância eletrónica, com comunicação com pelo menos três dias de antecedência, nos termos do art. 6º, al. e) da Lei nº 33/2010, de 02 de setembro.
P) O Coordenador da Equipa de Vigilância Eletrónica de Évora, Dr. V, encontrava-se de férias e não conseguiam autorização direta para o condenado se ausentar para ir á consulta em causa, como já aconteceu anteriormente.
Q) Os serviços estavam a trabalhar em serviços mínimos e de ser fim de semana não tinham efetivo suficiente para poder confirmar junto do Centro de Saúde a existência ou não da consulta comunicada pelo condenado.
R) Não é por o condenado ter desligado o telefone á técnica que o atendia que impedia estes serviços de poderem confirmar a existência ou não da consulta do condenado junto do Centro de Saúde.
S) O condenado, posteriormente, apresentou o comprovativo do seu agendamento e da própria consulta.
T) O condenado comunicou atempadamente o agendamento de uma consulta, não incumprindo qualquer dos seus deveres descritos no art. 6º da Lei nº 33/2010, de 02 de setembro.
U) A testemunha inquirida assumiu “mea culpa” devido ao facto de estarem a trabalhar em serviços mínimos, devido ao facto de ser fim de semana, devido ao facto de o coordenador se encontrar de férias e como tal seria necessário solicitar autorização a Lisboa.
V) O 1º relatório de incidentes e a inquirição de testemunha, apenas relata alegadas situações com outras suas colegas de serviço e nunca diretamente situações que a mesma tratou ou presenciou.
W) O depoimento em causa deve ser considerado um depoimento indireto sem qualquer conhecimento de causa e como tal o relatório supra referido deverá ser considerado um elemento de prova NULO assim como o seu depoimento.
X) Os pontos 3 a 6 dos factos provados devem ser alterados no sentido de que o condenado tinha autorização para se deslocar a consultas médicas.
Y) O condenado não incumpriu com qualquer dos deveres descrito no art. 6º e art. 14º da Lei nº 33/2010, de 02 de setembro.
Z) O condenado não infringiu de forma grosseira ou repetidamente as regras de conduta, o disposto no plano de reinserção social ou os deveres decorrentes do regime de permanência na habitação.
AA) O segundo parecer, datado de 16.01.2025, surge no seguimento da deslocação de uma Técnica á residência do condenado.
BB) A situação em causa teve origem no facto de o condenado ter sido chamado de mentiroso 4 vezes, indiretamente pela Técnica que se deslocou á sua habitação.
CC) Tal situação presenciada pelos seus trabalhadores, que o Tribunal a quo não julgou necessário a sua inquirição.
DD) O condenado encontrava-se a demarcar o perímetro e a Técnica não estava a concordar com tal demarcação, interpelando-o diversas vezes que não seria possível a marcação do perímetro em causa.
EE) O perímetro em causa sempre foi o mesmo e nunca existiu qualquer problema com a demarcação do mesmo.
FF) O condenado sentindo-se insultado pela Técnica que se deslocou á sua residência.
GG) Apenas após o cumprimento da Técnica das suas funções é o aqui condenado exigiu que a mesma saísse da sua casa, e nunca antes.
HH) Nunca o condenado chegou perto da Técnica por forma a intimidar a mesma.
II) Sendo interpelado diversas vezes pela Técnica, e chamado de mentiroso 4 vezes, indiretamente.
JJ) Tal situação apenas se deveu em primeiro lugar ao comportamento da Técnica que interpelou diversas vezes o condenado sobre o perímetro, chamando o condenado 4 vezes de mentiroso, indiretamente.
KK) Não existiu qualquer culpa do condenado.
LL) Existindo antes falta de ética e, eventualmente, competência/conhecimento da Técnica que se deslocou á residência do condenado para a marcação do perímetro.
MM) Com o regime de permanência na habitação pretende-se salvaguardar o condenado a uma pena curta de prisão e do ingresso no meio prisional.
NN) Assim como evitar-se, o mais possível, os efeitos criminógenos da privação total da liberdade, evitando ou, pelo menos, atenuando os efeitos perniciosos de uma curta detenção de cumprimento continuado.
OO) A revogação da suspensão da execução da pena por incumprimento de qualquer dever ou condição pelo condenado, só pode ocorrer se esse incumprimento se ficar a dever a culpa grosseira do mesmo.
Nestes Termos e nos demais de Direito Deve ser Revogada a Sentença Emanada a 20.02.2025, revogando-se a mesma, e proferindo-se nova Sentença na qual o condenado continuará no regime de permanência na habitação aplicado.”
***
O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, e com efeito não suspensivo (ou meramente devolutivo).
O MºPº em 1ª instância apresentou resposta, concluindo dever o recurso ser não provido, mantendo-se a decisão recorrida e o recorrente cumprir a pena que lhe falta em estabelecimento prisional, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que se transcrevem:
“1 – A foi condenado no processo n º 104/21.6GACUB da Instância Local de Cuba – Secção de Competência Genérica – da Comarca de Beja, na pena de um ano e sete meses de prisão, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada e de um crime de ameaça agravada.
2 – Foi determinado o cumprimento da pena em regime de permanência na habitação com fiscalização de meios técnicos de controlo à distância, mediante o cumprimento de obrigações/regras de conduta.
3 – No decurso da execução da pena nesse regime, o condenado incumpriu de forma grave, reiterada, grosseira e culposa o regime de execução da pena que com benevolência lhe foi aplicado, evidenciando a sua incapacidade de continuar a cumprir a pena privativa da liberdade no regime em causa.
4 – Consequentemente, bem andou o Tribunal “a quo” ao ordenar a revogação do regime de cumprimento da pena em permanência na habitação nos termos previstos no artigo 44 º n º 2 al. a) do CP e a execução da pena remanescente em meio prisional, sendo que na decisão recorrida foi feita uma correta e adequada ponderação dos factos e aplicação do direito, mostrando-se esta devidamente fundamentada.
Nesta conformidade e sem necessidade de maiores considerações, deverão V.as Ex.as negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, sendo feita justiça.”
***
A Srª. Procuradora-Geral-Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de ser o recurso julgado não provido, confirmando-se o despacho impugnado.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal tendo o recorrente respondido dando-se aqui por integralmente reproduzida a sua resposta.
Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
*
FUNDAMENTAÇÃO
Conforme vêm considerando a doutrina e a jurisprudência de forma uniforme, à luz do disposto no art.º 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, em que resume as razões do pedido, sem prejuízo, naturalmente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
O que importa apreciar e decidir é saber se existe ou não fundamento para revogar o regime de permanência na habitação fixado ao recorrente.
*
Na decisão recorrida foram considerados os seguintes factos com relevo para a decisão a proferir, tidos como provados e respetiva motivação:
1- Por sentença proferida no Proc.104/21.6GACUB da Secção de Competência Genérica (Juiz 1) da Instância Local de Cuba, A foi condenado pena de 1 ano e 7 meses de prisão em regime de permanência na habitação.
2- O cumprimento desta pena iniciou-se em 02-02-2024.
3- No dia 17/9/2024 o condenado informou que se iria ausentar de casa, não para trabalhar, mas para ir a uma consulta médica no Centro de Saúde, alegando ter já antes feito o pedido de autorização excecional para o efeito;
4- Ainda que o técnico da vigilância eletrónica o tenha informado da inexistência de registo desse pedido e que, por isso, não se poderia ausentar para aquela finalidade, o condenado insistiu na realização desse prévio pedido, adotando postura incorreta e agressiva para com o técnico, inclusive dirigindo-lhe palavras ofensivas.
5- O condenado ausentou-se e foi à consulta médica em causa;
6- Veio depois a verificar-se que, de facto, em 13/9/2024 o condenado havia feito o pedido prévio de ausência para ir à consulta médica, na sequência do que lhe fora solicitado documento comprovativo desse agendamento, documento que apenas enviou no dia 18/9/2024.
7- No dia 22-12-2024, e no âmbito de intervenção técnica de manutenção dos equipamentos de vigilância eletrónica, a Técnica Profissional de Reinserção Social (TPRS) de serviço, deslocou-se à habitação de A para proceder à troca de equipamentos.
8- No decurso dessa intervenção técnica na habitação do condenado, e ao efetuarem-se os testes necessários, verificou-se que, numa zona mais remota situada nas traseiras da habitação em avaliação e na qual o condenado pretendia circular, que o mesmo não era detetado pela unidade de monitorização local (UML).
9- A foi informado pela TPRS que estava a proceder a essa avaliação, que não poderia deslocar-se àquele local: uma zona localizada fora da sua habitação, situada em espaço público, nomeadamente num beco localizado nas traseiras da habitação do condenado, informação a qual A não aceitou, demonstrando-se muito alterado no seu estado de humor.
10- Nessa sequência, A voltou a insistir para com a técnica ali presente, que o colega que ali esteve anteriormente, o tinha alcançado naquele local, observando-se no condenado um agravar do seu comportamento, tendo vindo o mesmo a acusar a técnica de que a mesma estaria a gozar com ele, e exigindo-lhe, em tom de ultimato, que um outro colega se deslocasse ao local para efetuar os referidos testes.
11- Assim, a TPRS informou o condenado, que se pretendesse de facto, que um outro seu colega efetuasse essa avaliação, que teria de entrar em contato com o Coordenador desta Equipa de vigilância eletrónica a solicitá-lo.
12- A repetiu, em alta voz, que a TPRS estava a gozar com ele, e que não admitia isso, já completamente alterado, e com uma atitude agressiva, dirigindo-se para a mesma, posicionando-se cara a cara, (a cerca de 10 centímetros de distância da mesma), evidenciando estar a tentar intimidá-la psicologicamente e /ou fisicamente.
13- A TPRS solicitou ao condenado para o mesmo se acalmar, senão teria de chamar as autoridades, chegando nesse momento, a sentir em causa a manutenção da sua própria integridade física.
14- A acabou por ordenar à TPRS para sair de sua casa, referindo: -
“ponha-se no meio da rua, na minha casa só entra quem eu quero”,
não aderindo objetivamente às orientações e sugestões proferidas pela profissional, condicionando a normal execução da vigilância eletrónica, e colocando igualmente em causa os pressupostos subjacentes à situação jurídico-penal à qual se encontra vinculado.
15- Paralelamente, após a saída da técnica do local de vigilância eletrónica, A tentou entrar em contato os serviços da DGRSP, tendo o seu contato sido automaticamente encaminhado para o Centro Nacional de Acompanhamento de Operações (CNAO), e sido atendido pelo técnico que se encontrava de serviço.
16- A, nesse contato, exigia então falar com o Coordenador desta equipa de vigilância eletrónica de Évora, mantendo o seu discurso ainda com o mesmo nível de alteração, tido imediatamente antes para com a técnica que esteve presente no local, motivo pelo qual foi novamente advertido, agora por este técnico que o atendeu, e elucidado das eventuais consequências que tal comportamento poderia vir a ter, no contexto da sua situação jurídico- penal.
17- Pese embora a atitude apresentada, e sido advertido, o mesmo ainda referiu que
“não se importava, pois tinha testemunhas a seu favor”
, ainda referiu com o mesmo tom ameaçador,
“que lhe dará um par de estalos, e que não se admite que lhe digam o que fazer”.
Com relevância para o que aqui se analisa, inexistem factos não provados.
Os factos
supra
elencados foram dados como provados mediante a análise, articulação e conjugação de toda a documentação conhecida nos autos, designadamente as informações dos serviços de reinserção social, o depoimento da Srª. Técnica M e as duas diligências de audição do condenado. Concretamente, o recluso acaba por confirmar grande parte dos factos, apenas negando que, relativamente ao segundo episódio relatado, se tenha aproximado da Sr.ª técnica, com vista a intimidá-la. Ora, entendeu o tribunal conceder credibilidade ao que se encontra clara e logicamente descrito no relatório que dá conta de toda a situação. Não tem o tribunal motivos para não crer no relato elaborado pelos serviços, na medida em que os mesmos se encontram obrigados a descrever, com verdade, todo o acompanhamento e intervenção que são realizados junto dos condenados. Por outro lado, é claro para este tribunal que o condenado apresenta uma atitude amplamente reacionária, atitude esta confirmada pelo próprio aquando da sua audição, quando confirmou que possa ter dito que dava dois estalos na Srª. Técnica, por esta o ter contrariado por 4 vezes. Ora, a nosso ver, tal não se coaduna, de todo, como uma personalidade calma e caracterizada pelo acatamento de regras e de opiniões diferentes da sua, que foi, na verdade, o que ocorreu no caso.
Para justificar a decisão tomada, fundamentou-a o tribunal
a quo
da seguinte forma:
“Dispõe o art.º 44 n.º 2-a) do Código Penal que o tribunal revoga o regime de permanência na habitação se o condenado infringir de forma grosseira ou repetidamente as regras de conduta, o disposto no plano de reinserção social ou os deveres decorrentes do regime de permanência na habitação. De acordo com o disposto no art.º 14-b) e c) da Lei n.º 33/2010 de 2/9, (diploma que regula a utilização de meios técnicos de controlo à distância), sem prejuízo do disposto no Código Penal, no Código de Processo Penal e no Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, a decisão que fixa a vigilância eletrónica é revogada quando o condenado danificar o equipamento de monitorização, com intenção de impedir ou dificultar a vigilância, ou, por qualquer forma, iludir os serviços de vigilância ou se eximir a esta; ou quando o condenado violar gravemente os deveres a que está sujeito.
De atender também ainda ao disposto no art.º 43 n.º 1 do Código Penal, segundo o qual o cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação apenas deve ser aplicada aos casos em que seja possível concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão, e o condenado nisso consentir.
*
No caso dos autos verificamos que, por duas vezes, o condenado incumpriu os deveres que lhe estão adstritos. Não pode o tribunal permitir que um condenado profira ameaças e intimide os Sr.ºs Técnicos que se encontram apenas a realizar o seu trabalho.
Para além disso, apesar do condenado referir que não devia ter reagido da forma como reagiu, a verdade é que continuou a desculpabilizar o seu comportamento agressivo devido ao facto de a Srª. Técnica o ter chamado mentiroso, indiretamente, por 4 vezes. Tal acaba por demonstrar uma total falta de controlo e de paciência, o que leva este Tribunal a concluir que se uma simples discordância relativamente à demarcação de perímetro gerou comportamentos agressivos e, na nossa opinião, injustificados, o que aconteceria em outras circunstâncias, como por exemplo, entrevistas onde os Técnicos questionam, diretamente, as condutas dos condenados.
Ademais, para além da evidente gravidade subjacente ao que descreveu no parágrafo anterior, também o facto de o condenado dia 17-9-2024 se ter ausentado da sua habitação sem ter cumprido integralmente as orientações que lhe foram dadas, acrescendo o facto de ter dirigido palavras ofensivas da dignidade pessoal e profissional de uma técnica de reinserção social, revela enorme ligeireza na forma como encarou o cumprimento da pena, desprezando importantes obrigações a que estava vinculado, não tendo sido capaz de se organizar de forma mais responsável. Também os seus traços de personalidade não nos parece o mais adequado e compatível com o tipo de pena a cumprir.
Parece-nos, pois, que o condenado não detém capacidade para continuar a cumprir a pena de prisão nos termos impostos, tendo comprometido, sem retrocesso, o voto de confiança que lhe havia sido depositado nesse sentido, não tendo sabido aproveitar a oportunidade que este tipo de pena encerrava.
O que, a nosso ver, inviabiliza de imediato a continuação do regime aplicado.”
*
Considerou o tribunal a quo, para revogar o regime de permanência na habitação, ter o recorrente incorrido em incumprimento considerado grosseiro dos deveres decorrentes do concreto regime de execução da pena de prisão.
A atual Lei ( tendo-se em conta as alterações introduzidas na legislação penal pela Lei 94/2017, de 28 agosto) traduz o entendimento generalizado de que as penas curtas de prisão intramuros devem ser evitadas por não contribuírem necessariamente para a ressocialização efetiva do condenado.
Ao recorrente foi aplicada uma pena de prisão efetiva, a qual nos termos do art.º 43º CPenal é executada em regime de permanência na habitação (RPH), com fiscalização por meios técnicos à distância, o que significa que o condenado tem de permanecer na habitação onde estão instalados tais meios de vigilância eletrónica, pelo tempo de duração da pena, sem prejuízo de ausências autorizadas. Através da instalação dos meios técnicos de vigilância eletrónica iniciou-se a execução da pena, o que aconteceu a 2.2.2024 – art.º 8º da L 33/2010, de 02 de setembro.
Atento o disposto no art.º 44º, nº 2 do CPenal são quatro os motivos que podem levar à revogação da suspensão da execução da pena de prisão, a saber:
·
a infração grosseira das regras de conduta, do disposto no plano de reinserção social ou dos deveres impostos pela execução do regime de permanência na habitação (doravante RPH), atuação esta que não tem de ser dolosa, sendo bastante a infração que resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade;
·
a infração repetida das regras de conduta, do disposto no plano de reinserção social ou dos deveres impostos pela execução do RPH, que ocorre naquelas situações em que há uma atitude de descuido e leviandade prolongada no tempo;
·
o cometimento de novos crimes durante a execução do RPH, desde que tenha havido condenação transitada em julgado em pena de prisão efetiva ;
·
a sujeição a medida de coação de prisão preventiva.
A aplicação de uma pena de prisão efetiva deve ser encarada como
ultima ratio
, por forma a que a revogação do RPH surja apenas como única forma de se alcançar as finalidades da punição.
“O tribunal deve ponderar se as finalidades preventivas que sustentaram a decisão de suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma ou estão irremediavelmente prejudicadas em virtude da conduta posterior do condenado” ; a escolha da concreta medida que o tribunal adote em relação a um qualquer facto revelador do incumprimento dos deveres do RPH (e também a sua revogação) deve ser “função exclusiva das probabilidades, porventura ainda subsistentes, de manter o delinquente afastado da criminalidade no futuro e, deste modo, do significado que o incumprimento assuma para o juízo de prognose que foi feito no momento da aplicação da suspensão da execução da prisão” (onde se lê suspensão da execução da prisão leia-se execução da pena de prisão efetiva em RPH)”- Paulo Pinto de Albuquerque,
Comentário do Código Penal
, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 202, em relação à revogação da suspensão da pena de prisão, mas aqui aplicável.
Dispõe o art.º 14.º da Lei 33/2010, de 2.9 que “a decisão que fixa a vigilância eletrónica é revogada quando: (…) b) O (…) condenado danificar o equipamento de monotorização, com intenção de impedir ou dificultar a vigilância, ou, por qualquer forma, iludir os serviços de vigilância ou se eximir a esta”. E, c) “O (…) condenado violar gravemente os deveres a que está sujeito”, do mesmo modo que dispõe o art.º 44º, nº 2 do CP (redação introduzida pela L 94/2017, de 28 de agosto) que “O tribunal revoga o regime de permanência na habitação se o condenado: a) Infringir grosseira ou repetidamente (…) os deveres decorrentes do regime de execução da pena de prisão (…)”. Ou seja, não basta que o condenado falte ao cumprimento dos deveres que lhe foram impostos para que o RPH seja, imediatamente, revogado e se determine a execução da pena de prisão ainda não cumprida em estabelecimento prisional. Esse incumprimento deve demonstrar que não foram alcançadas as finalidades que motivaram a execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação.
Reportando à decisão revidenda verificamos que a mesma é muito contida nas razões que convoca para a revogação do RPH, mas ainda assim dali se retira os principais motivos e o fundamento para a revogação que consistiu a violação grosseira das regras de conduta impostas ao condenado e que segundo o tribunal
a quo
comprometeram a possibilidade de este continuar a cumprir a pena de prisão de 1 ano e 7 meses que lhe foi aplicada no processo n.º 104/21.6GACUB , em regime de permanência na habitação.
Vejamos, então, se houve violação grosseira de deveres por parte do recorrente A e se essa violação impede a realização de um juízo de prognose favorável à manutenção do RPH, impondo assim a sua revogação.
Relativamente aos primeiros factos constantes dos pontos 3 a 6 da matéria de facto assente, verifica-se que se trata de aferir se a saída que o condenado realizou no dia 17.9.2024 foi autorizada ou está justificada. Dos autos consta que a 13.9.2024 o recorrente fez aos serviços de reinserção social pedido de ausência para ir a consulta médica e que lhe foi solicitado comprovativo desse agendamento, o que o condenado só enviou a 18.9.2024, tendo-se efetivamente deslocado à referida consulta no dia 17.9.2024, tendo nesse dia, previamente, contactado telefonicamente os serviços de reinserção social.
Da matéria constante destes factos e que resulta do relatório e da ata das declarações do recorrente de 2.12.2024 e do depoimento da testemunha, técnica de reinserção social, na ata de 13.12.2024, resulta clara a impulsividade do recorrente, a sua dificuldade de acatamento de instruções ou ordens, mas, em nosso entender, não resulta inequívoco um incumprimento culposo. Efetivamente, os autos espelham que houve uma falha de comunicação entre o condenado e a reinserção social e que aquele, estando autorizado na sentença a realizar saídas para consultas e exames médicos mediante prévio contacto com os serviços de reinserção social e respetiva autorização, não aguardou a autorização e deslocou-se à consulta. É certo que deveria ter aguardado pelo sim dos serviços técnicos, mas também é verdade que havia pedido a autorização com 4 dias de antecedência em relação à data da consulta e que no dia da sua realização ainda contactou os serviços, informando que se iria ausentar para a consulta. No dia 18.9,2024 enviou o comprovativo de realização da consulta. Conclui-se, assim, que efetivamente o recorrente contactou previamente a equipa de VE e o facto de não ter apresentado atempadamente o comprovativo do agendamento da consulta não justifica que a reinserção social desconhecesse a existência do pedido prévio (tal como consta do ponto 4 da matéria de facto), pelo que se impõe concluir que a referida ausência consubstancia uma necessidade excecional justificadora de ausência, tendo o condenado apresentado justificação para o efeito, pelo que se conclui pela inexistência de incumprimento culposo.
Relativamente ao episódio constante dos factos 7 a 17 diferentes considerações se impõem tecer. Com efeito, como já vimos, o tribunal revoga o regime de permanência na habitação se o condenado infringir grosseira ou repetidamente os deveres decorrentes do regime de execução da pena de prisão (por esse meio).
Ou seja, a infração desses deveres não desencadeia automática e necessariamente a revogação do RPH, estando pressuposta uma infração grosseira ou repetida dos deveres.
O legislador não define quando é que estamos perante uma infração grosseira dos deveres, pelo que caberá ao tribunal a sua fixação.
Aqui seguimos o que se escreve no Acórdão da Relação do Porto de 8.1.2020 ( processo n.º 832/16.8TXPRT.P1 ( in www. dgsi.pt), a propósito do art.º 56º do Código Penal, “pois os fundamentos de revogação da suspensão da execução da pena são semelhantes, e (…) só o incumprimento inconciliável com a teleologia do RPH deve conduzir à sua revogação.
Sendo assim, a “infração grosseira dos deveres” há de constituir uma indesculpável atuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada nem desculpada, sendo por isso incompreensível, mas que não exige nem pressupõe necessariamente um comportamento doloso, bastando a infração que seja o resultado de um comportamento censurável de descuido ou leviandade.”
Veja-se também Acórdão TRC de 30.1.2019 (processo n.º 127/17.0GAMGR-A.C1) - “O condenado infringe grosseiramente os deveres ou as regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social quando, culposamente, os não observa. Mas a culpa aqui requerida – contrariamente à pressuposta no art.º 55º do C. Penal – exige um grau qualificado. Não é requerido, no entanto, um incumprimento doloso, bastando para a revogação que da conduta provada resulte um modo de agir do condenado especialmente reprovável e portanto, uma conduta onde a falta de cuidado, a imprevidência assume uma intensidade particularmente elevada. Trata-se, no fundo, de um conceito próximo da culpa grave, portanto, aquela que só é suscetível de ser atuada por uma pessoa particularmente descuidada ou negligente. Por outro lado, o condenado infringe repetidamente os deveres ou as regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social quando, através de condutas sucessivas, por descuido, incúria ou imprevidência, não os observa, deste modo revelando uma atitude de indiferença e distanciamento pelas limitações decorrentes da sentença e/ou do plano de reinserção social. Em qualquer dos fundamentos, estamos perante situações limite, onde o condenado, através da intensidade do grau de culpa posto na sua conduta, inutilizou o capital de confiança na reinserção em liberdade que a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão significou.”
No mesmo sentido Acórdão TRL de 16.1.2019 (processo n.º 2080/12.7PBFUN.L1-3) “«As causas de revogação da suspensão da execução da pena de prisão não devem ser entendidas com um critério formalista, mas antes como demonstrativas das falhas do condenado no decurso do período da suspensão. Impõe-se, por isso, uma especial exigência na indagação e apreciação de todos os factos e circunstâncias suscetíveis de relevar na aferição da possibilidade de manutenção ou não do juízo de prognose favorável relativo ao comportamento que o condenado irá de futuro adotar», assim o sumariou o acórdão de 23/09/2009, do Tribunal da Relação do Porto, em www.dgsi.pt. A jurisprudência portuguesa dos tribunais superiores tem tido o entendimento que as causas de revogação da suspensão da execução da pena não deverão ser de aplicação automática e que as finalidades que levaram à suspensão da mesma, ainda se poderão manter, mesmo que durante essa suspensão o arguido não tenha cumprido os deveres que lhe foram impostos ou tenha cometido novo crime durante o período de suspensão, devendo o tribunal ponderar caso a caso, e formular um novo juízo de prognose. A prognose favorável do condenado deve verificar-se em todos os casos, na esperança de que sentirá a condenação como uma advertência e não cometerá no futuro nenhum delito. Com razão, não se exige desde logo a perspetiva de uma vida futura ordenada e conforme o direito, já que para o fim preventivo da suspensão é suficiente que não volte a delinquir. (…) Não se encontra definido na lei, de forma concretizada, o que deve entender-se por infringir grosseiramente os deveres, deixando aquela ao critério do aplicador a fixação dos seus contornos – cfr. art.º 56.º, n.º 1, al. a), do Código Penal. Mas, é evidente que em tal consideração não poderão olvidar-se os ensinamentos sobre o que constitui negligência grosseira: a culpa temerária; o esquecimento dos deveres gerais de observância; a demissão pelo agente dos mais elementares deveres que não escapam ao comum dos cidadãos, uma inobservância absolutamente incomum. A violação grosseira de que se fala, há de ser uma indesculpável atuação, em que o comum dos cidadãos não incorre não merecendo ser tolerada, indesculpada”.
No caso
sub judice
, tendo presentes os factos assentes não temos dúvidas que o recorrente/condenado violou as regras de conduta e os deveres que lhe impõe o art.º 6º da Lei nº 33/2010, de 02 de setembro, nas suas alíneas b) e d), bem como o plano de reinserção social de 23.2.2024, homologado a 5.3.2024, que identifica como fatores de risco por parte do condenado
a sua minimização da conduta criminal e o reduzido respeito pelos bens jurídicos na tipologia do crime em que foi condenado, sendo essa uma área de intervenção prioritária
.
Com a conduta descrita nos factos 7 a 17 o recorrente mais uma vez demonstrou a sua impulsividade, a sua facilidade de passagem ao ato sem qualquer tipo de reflexão, mesmo numa situação em que se encontra em cumprimento de uma pena de prisão, mesmo que em regime de permanência na habitação. Os referidos factos datam de 22.12.2024, tendo o condenado iniciado o cumprimento da pena a 2.2.2024, ou seja, há mais de 10 meses. O que nos permite claramente concluir que o cumprimento da pena até aquele momento não surtiu o efeito desejado, mantendo o arguido índices muito elevados de impulsividade e desrespeito pelo outro.
A sua atuação foi muito grave pois pôs em causa o trabalho da técnica de reinserção social que se deslocou à sua habitação sem que para isso tivesse qualquer justificação, discutiu de maneira muito pouca adequada com a referida técnica, mostrou-se alterado e tomou uma atitude agressiva, posicionando a sua cara a cerca de 10 cm da cara da técnica, por forma a intimidá-la e pô-la na rua, não aderindo às orientações da técnica. Após, e em contacto telefónico com um técnico da DGRSP, ainda disse que daria à técnica um par de estalos e que não admitia que lhe dissessem o que tinha que fazer.
Tenha-se em conta que o recorrente foi condenado na pena de um ano e sete meses de prisão, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada e de um crime de ameaça agravada, tendo utilizado uma faca para ameaçar um empregado de uma passagem de nível, após uma grande perseguição e tendo-lhe desferido vários socos e pontapés. Tenha-se também em conta que o condenado foi ouvido acerca dos factos ocorridos a 22.12.2024 e confirmou-os em parte e falou deles como se tivesse razão e se tratasse de um facto normal, não demonstrando qualquer arrependimento.
O recorrente tem antecedentes criminais, tendo já antes sido condenado pela prática de crimes de condução sem habilitação legal, ofensa à integridade física simples, evasão, coação agravada e dano simples.
Conclui-se que existe violação de forma grosseira por parte do condenado dos deveres a que estava obrigado no cumprimento da pena, pois é claro que estamos perante uma atuação indesculpável, nos termos acima expostos, não se podendo tolerar o comportamento do condenado que não acata as orientações, intimida uma técnica que se desloca à sua casa, põe-na na rua e ainda prolonga a sua atitude inadmissível telefonando para a equipa de reinserção social e dizendo que lhe dará um par de estalos.
Concluindo, a atuação do condenado revela bem a sua total indiferença para com as obrigações decorrentes do cumprimento da pena de prisão em RPH, cuja observância se tinham, como têm, como nucleares à sua reintegração social pela via de aplicação da pena de prisão efetiva em causa e pela via de execução determinada. Com a sua conduta o condenado violou grosseiramente os deveres que lhe foram impostos na sentença, assim revelando que as finalidades que estiveram na base da execução da aplicada pena de prisão efetiva em RPH não estão a ser alcançadas. O comportamento por si adotado é revelador do mais acentuado desrespeito para com os seus deveres (obrigações), sendo certo que estes lhe foram judicialmente impostos, explicados e dos mesmos tem consciência. Esse comportamento não teve qualquer justificação que o torne minimamente aceitável ou compreensível.
Face a todo este quadro, à manifesta impulsividade e desprezo pelo cumprimento das regras de conduta e deveres, ao passado criminal do condenado, está manifestamente invalidado um juízo de prognose favorável à execução da pena de prisão em meio não penitenciário.
Tratando-se de incumprimento considerado grosseiro e culposo, cumpre, então, aferir das respetivas consequências, sendo que em função dos factos que se deixam relatados e das considerações expendidas, inexistindo, face ao encarar irresponsável que o condenado evidencia, qualquer garantia de que a ressocialização exigida (pelo menos desejável) se alcance pela via de manutenção de RPH, não resta ao Tribunal outra solução que não seja a da revogação do regime de permanência na habitação, com subsequente determinação de execução da pena de prisão ainda não cumprida em estabelecimento prisional.
O alegado pelo recorrente/condenado em recurso não justifica de modo satisfatório o desrespeito muito grave dos deveres, nada alegando o recorrente que justifique em termos razoáveis o seu comportamento, que aliás em parte reconhece e encara como aceitável e normal.
Por último, dispõe o artigo 185.º, n.º 5 da Lei 115/2009, de 12.,10, sob a epígrafe “Incidente de incumprimento”:
“5 - Após a audição, o juiz ordena as diligências complementares que repute necessárias, designadamente junto dos serviços de reinserção social e dos demais serviços ou entidades que intervenham na execução da liberdade condicional”.
Da motivação e conclusões de recurso resulta que o recorrente pretende pôr em causa parte da matéria dada como provada. No entanto, esquece-se que a admitiu em parte quando foi ouvido em declarações e que perante duas versões parcialmente diferentes (a do arguido e a da DGRSP) recorreu o tribunal
a quo
ao princípio da livre apreciação do julgador e deu por assente a versão por si considerada como mais credível, no caso a da DGRSP. Inexistindo dúvida no espírito do julgador sobre essa matéria, nenhuma outra diligência se impunha (nomeadamente audição de outras testemunhas), não tendo a decisão recorrida violado qualquer preceito legal, designadamente o artigo 185.º, n.º 5 do CEPMPL.
Pelo exposto, concluímos pela improcedência do recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
***
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da segunda subsecção criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC’s (art.º 513º, nº 1 do Código de Processo Penal, art.º 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa a este).
Notifique.
Évora, 06 de maio de 2025
Renata Whytton da Terra
Renato Barroso
Maria Perquilhas
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/e2258845134e3cdc80258c8900397f30?OpenDocument
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1,736,726,400,000
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REVOGAÇÃO
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128564/23.7YIPRT.P1
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128564/23.7YIPRT.P1
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ANA PAULA AMORIM
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I - Sendo omisso o requerimento de injunção quanto à causa de pedir, quando transmutado em ação, padece do vício de ineptidão que determina a nulidade do processado (art.º 186º/1/2 a) CPC). Porém, neste juízo de apreciação, não se pode ignorar as particularidades do procedimento, a sua simplicidade, mas também a possibilidade de ser convertido em ação e quando assim é, a possibilidade de ser objeto de aperfeiçoamento, sendo certo que tal possibilidade não dispensa a narração, ainda que simplificada, dos factos essenciais.
II - O requerimento de injunção, transmutado em ação, não se mostra inepto e contém os factos essenciais ao objeto em litígio, expressos de forma sucinta, como se prevê no art.º 10º /2 d) do DL 269/98 de 01 de setembro, quando nele se indica o contrato celebrado, data da celebração, obra executada, ainda que por remissão para as faturas, preço, causa do incumprimento - pagamento parcial do preço -, interpelação e contém o pedido de capital e juros.
III - A junção de documento a que se alude nas faturas – autos de medição – e a indicação dos concretos trabalhos executados, na medida em que constituem factos que complementam a causa de pedir da ação, justificam o convite ao aperfeiçoamento do requerimento de injunção/petição, nos termos do art.º 17º/3 do DL 269/98 de 01/09 e art.º 590º/4 CPC..
|
[
"REQUERIMENTO DE INJUNÇÃO",
"INEPTIDÃO",
"CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO"
] |
Injunção-Causa Pedir-Aperfeiçoamento-128564/23.7YIPRT.P1
*
*
SUMÁRIO
[1]
(art.º 663º/7 CPC):
…………………………………
…………………………………
…………………………………
---
Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)
I. Relatório
A..., Unipessoal Lda.,
com sede em ..., Edifício ... – ..., ... ... deu entrada a requerimento de injunção no Balcão Nacional de Injunções contra
B..., SA,
com sede na rua .... – ..., ... ....
No formulário apresentado consignou:
“Obrigação emergente de transação comercial?
Sim
(DL n.º 62/2013, de 10 de maio)
Contrato com consumidor?
Não”.
A requerente pede a condenação da requerida no pagamento da quantia de € 5183,40, sendo € € 4 167,61 a título de capital, acrescida de € 663,79, a título de juros de mora, € 250,00, como outras quantias e taxa de justiça paga: € 102,00.
Alegou para o efeito, que em 29 de dezembro de 2021 celebrou com a requerida um contrato de empreitada.
Mais alegou que exerce e desenvolve a sua atividade na área execução, manutenção e assistência técnica de instalações e equipamentos de eletricidade, telecomunicações, segurança eletrónica, canalização, climatização, energias renováveis e redes de incêndio em obras públicas ou privadas; construção civil em obras públicas ou privadas, e outras construções; atividades de engenharia, incluindo elaboração de estudos, projetos e fiscalização, prestação de serviços relacionados, conexos ou acessórios com todas as atividades referidas; comércio a retalho de eletrodomésticos, e comércio a retalho de imobiliário e artigos de iluminação.
No âmbito dessa atividade forneceu diversos serviços e trabalhos à sociedade B..., S.A., a pedido desta, que se encontram devidamente discriminados nas seguintes faturas: FAC 2021/145, FAC 2022/86 e FAC 2022/87, especificados na sua qualidade, quantidade e preço.
Os respetivos serviços constam das faturas FAC 2021/145, no valor de €10.953,14 (dez mil novecentos e cinquenta e três euros e catorze cêntimos), FAC 2022/86 no valor de €1.080,80 (mil e oitenta euros e oitenta cêntimos) e FAC 2022/87 no valor de €1.586,81 (mil quinhentos e oitenta e seis euros e oitenta e um cêntimo).
Dos mencionados quantitativos encontra-se em dívida o valor de €4.167,61 (quatro mil cento e sessenta e sete euros e sessenta e um cêntimo).
Fornecidos os serviços, a mesma não apresentou qualquer reclamação ou reparo, não tendo também reclamado ou devolvido as faturas que, depois de terem sido emitidas, lhe foram entregues.
A Requerente solicitou por várias vezes à Requerida o pagamento dos quantitativos mencionados naquelas faturas, encontrando-se em dívida o valor de €4.167,61 (quatro mil cento e sessenta e sete euros e sessenta e um cêntimo). Apesar de interpelada para o efeito, ainda não procedeu ao pagamento da quantia em dívida. A dívida já está vencida.
Encontra-se em dívida o valor de €4.167,61 (quatro mil cento e sessenta e sete
euros e sessenta e um cêntimo), mais juros no valor de €663,79 (seiscentos e sessenta e três euros e setenta e nove cêntimos).
Mais alegou que tem ainda direito a receber da Requerida o montante global de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), a título de indemnização pelos custos de cobrança da dívida em causa na presente injunção, nomeadamente, despesas administrativas (€ 40,00) e recurso aos serviços de advogado (€ 210,00) — nos termos do artigo 7º do referido Decreto-Lei nº 62/2013, de 10 de maio, pelo que, deve a requerida pagar à requerente a quantia de €4.167,61 (quatro mil cento e sessenta e sete euros e sessenta e um cêntimo), acrescida dos respetivos juros à taxa legal, que na data da instauração do requerimento de injunção atingem o valor de €663,79 (seiscentos e sessenta e três euros e setenta e nove cêntimos) e ainda os juros que se vierem a vencer, à taxa legal, sobre o valor de €4.167,61 (quatro mil cento e sessenta e sete euros e sessenta e um cêntimo), até efetivo e integral pagamento e respetiva taxa de justiça no valor de €102,00 (cento e dois euros) e valor por despesas com cobrança de dívida de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros).
-
A requerida notificada, veio deduzir “oposição com reconvenção”, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Impugnou todos os factos indicados no Requerimento de Injunção, por se tratar de factos falsos, versões distorcidas da realidade, seja por mero desconhecimento, seja por se reportarem a conclusões de direito extraídas de factos que não permitem tais conclusões.
Rejeita os créditos invocados pela Requerente e alegadamente respeitantes às faturas identificadas no Requerimento de Injunção, proveniente de uma (ou várias?) prestação de serviços e refuta a existência de qualquer dívida para com a Requerente.
Suscita a ineptidão do requerimento de injunção, alegando para o efeito que na injunção, o requerimento injuntivo, constante de impresso aprovado por portaria do Ministro da Justiça – Cf. art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1/9 e Portaria n.º 902/98, de 15/10 –, corresponde ao articulado inicial de uma ação, ou seja, à petição inicial, sendo, portanto, o articulado onde o demandante deduz uma certa pretensão de tutela jurisdicional, com a menção do direito tutelar e os respetivos fundamentos. É a peça processual em que o demandante expõe os seus fundamentos e o objeto da sua pretensão. Os fundamentos, os quais constituem a causa de pedir, nada mais são do que o conjunto de factos concretos com virtualidade para produzirem determinados efeitos jurídicos, a definição do efeito pretendido.
A causa de pedir, definida no n.º 4 do art.º 581.º do Código de Processo Civil, como o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, representa a alegação dos factos integradores do direito a que o demandante se arroga, sendo uma manifestação do princípio do dispositivo, já que o tribunal está limitado aos factos alegados pelas partes – art.º 5.º do Código de Processo Civil (CPC) – de modo que a falta de alegação de determinados factos constitutivos do direito do autor pode comprometer o reconhecimento do direito de que seja titular.
Por seu turno, o requerimento de injunção corresponde a uma técnica processual destinada a tornar mais céleres os trâmites processuais e a desjudicializar certos tipos de litígios, simplificando-os, sendo que esta simplificação legislativamente consagrada não desobriga o seu autor de expor os fundamentos de facto e de direito a que se arroga e de formular um pedido.
Nos termos do art.º 186.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, a petição inicial é inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir ou quando se cumulem causas de pedir ou pedido substancialmente incompatíveis.
Não obstante tratar-se de um procedimento, com as sobejamente conhecidas características da simplicidade e celeridade, e concretizado em modelo de preenchimento vinculado, impõe-se a alegação sucinta das razões de facto e de direito em que o Autor fundamenta o direito a que se arroga, pelo que não se pode esperar, nem exigir, uma alegação profícua e repleta de razões, mas unicamente uma alegação concisa e direta de onde se possa retirar o fundamento da sua pretensão.
Nos termos do consignado no artigo 10.º, n.º 2, alínea d), do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, sobre a Requerente impende o dever de no seu Requerimento de Injunção
“expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão”
, devendo ainda, segundo a alínea e) do mesmo preceito,
“formular o pedido com discriminação do capital, juros vencidos e outras quantias devidas”.
Mais alega que a referida obrigação não foi cumprida pela Requerente, resultando da mesma uma ineptidão do Requerimento Injuntivo. O Requerimento Injuntivo deverá expor de modo adequado e cristalino os factos que servem de fundamento à pretensão deduzida, sendo certo que o facto de o procedimento injuntivo, em si mesmo, não estar sujeito a normas processuais tão rígidas e prosseguir objetivos de simplificação e eficácia, não tem por correspetivo um total desleixo na elaboração do respetivo articulado inicial, sob pena de ineptidão do Requerimento Inicial.
A requerente não densifica convenientemente, gerando até uma manifesta confusão. Perante um requerimento injuntivo tão omisso, dúvidas não podem subsistir de que o conteúdo das declarações negociais do contrato (existência que se nega, mas por mero dever de patrocínio se equaciona) não foi explicado ou desenvolvido pela Requerente.
A Requerente não cuidou de especificar em que termos teve lugar a prestação de serviços, nem o conteúdo das declarações negociais das partes nesse sentido, muito menos tendo especificado quais os factos negativos e positivos consubstanciadores do alegado incumprimento da Requerida. Tal omissão alia-se, ainda, à forma evasiva como os factos não são descritos, não estando enunciada qualquer factualidade suscetível de suportar o pedido formulado.
A Requerente limitou-se a indicar o número das faturas e o respetivo montante, que, alegadamente, estará na base dos factos que fundamentam a Injunção, sem que, todavia, seja possível à Requerida apreender que faturas são essas, a quem diz respeito, a que período se reporta, e se, de facto, o pagamento do peticionado valor é ou não devido.
Mais refere que é manifestamente evidente que não poderá a Requerida desmistificar o sentido e o alcance do que é referido no Requerimento Injuntivo a que aqui nos reportamos, mas que contrato está efetivamente subjacente à prestação de tais serviços? Existe? Quem foram os seus outorgantes? Foi celebrado entre a Requerida e a Requerente? Quais são as obrigações jurídicas que resultam do mesmo para a esfera das partes outorgantes que justifiquem qualquer obrigação de pagamento da aqui Requerida? Em que momento foram prestados tais serviços? Foram esses serviços efetivamente prestados? Em que obra foram esses supostos serviços prestados? Tratou-se da prestação de serviços manuais, intelectuais ou ambos? Em que quantidade? De que qualidade? Que peso de medida? Foram os serviços tempestivamente prestados à Requerida? Em que data tal ocorreu? E em que data deveriam ter ocorrido? Foram emitidas as devidas faturas? Quando? A quem respeita cada uma dessas faturas? E a que período se reportam? Quais as condições contratuais em vigor? Qual a data de vencimento das faturas? E as condições de pagamento?
Alegou, ainda, que são inúmeras as questões que se colocam e para as quais a Requerente não oferece resposta, questões essas, essenciais para que esteja elencada a factualidade necessária para se descortinar a causa de pedir do (inexistente) pedido da Requerente.
Do único facto alegado pela Requerente – a alegada prestação de serviços
–,
não vislumbra a Requerida identificar a que obrigações aquela se refere, não estando minimamente demonstrados quais os efetivos e verdadeiros factos que fundamentam as quantias peticionadas.
A causa de pedir de um Requerimento de Injunção afere-se e determina-se em função da descrição dos factos concretos alegados pela Requerente no Requerimento e constitutivos do seu direito, objetivo e propósito que a Requerente não logrou alcançar.
Considera ocorrer ininteligibilidade
do conteúdo descrito no requerimento injuntivo encontrando-se a Requerida incapaz de decifrar a causa de pedir subjacente, não estando em condições de apresentar a sua defesa (seja ao que for que é pedido!).
Não dispondo a Requerida dos elementos necessários para ajuizar da bondade da pretensão formulada pela Requerente, impugna o valor peticionado, de 5. 183,40 Euros, independentemente do título a que é requerido o seu pagamento, bem como os respetivos juros e outras quaisquer quantias.
Por mera cautela, impugna que a Requerente tenha prestado quaisquer serviços à Requerida que sustentem a emissão das alegadas faturas e da alegada obrigação de pagamento. De facto, sem conhecimento do contrato celebrado entre as partes e dos efetivos serviços que foram prestados, estão coartadas todas e quaisquer hipóteses de a Requerida apresentar a sua defesa, na medida em que não compreende, com fidedignidade e certeza, a razão dos valores de que a Requerente se arroga credora, além de tal consubstanciar indícios suficientemente demonstrativos da ineptidão do Requerimento de Injunção, a verdade é que, dessa mesma ineptidão, resulta que a Requerida não é devedora das mencionadas quantias, não sendo por si reconhecida tal dívida, pelo que se considera a quantia requerida integralmente impugnada quer quanto ao valor do seu capital, quer quanto aos respetivos juros, e outras quantias.
Termina, por considerar que não sendo a causa de pedir bastante para determinar a procedência do requerimento de injunção, o mesmo está votado ao insucesso, devendo, nos termos e para os efeitos da al. a), do n.º 2, do art.º 186.º do C.P.C., o requerimento de injunção ser declarado inepto, e, em consequência da verificação dessa exceção dilatória, que obsta ao conhecimento do mérito da causa, ser a Requerida absolvida da instância, atendendo ao preceituado nos artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) e 278.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil.
Suscitou, ainda, a exceção de ilegitimidade passiva da requerida, alegando para o efeito que a Requerente no seu requerimento dá a entender pela existência de um contrato de prestação de serviços com a Requerida, exigindo o pagamento do preço desse mesmo contrato.
Alegou que a Requerida jamais celebrou qualquer contrato com a Requerente, não tendo o mesmo adjudicado qualquer obra à Requerente, razão pela qual não poderá ter a Requerida qualquer obrigação de pagamento à Requerente daí adveniente.
Uma coisa é saber se as partes são os sujeitos da pretensão formulada, admitindo que a pretensão exista; outra coisa, essencialmente distinta, é apurar se a pretensão na verdade existe, por se verificarem os requisitos de facto e de direito que condicionam o seu nascimento, o seu objeto e a sua perduração.
Considera que se trata de uma exceção dilatória inominada de falta de legitimidade da Requerida, nos termos e ao abrigo do n.º 2 do artigo 576.º do C.P.C., a qual é de conhecimento oficioso, e deverá comportar a extinção total da instância.
Por impugnação, alegou que a Requerente refere que o montante de capital em dívida resulta da emissão de faturas, limitando-se a concretizar o montante previsto em cada uma e os juros de mora alegadamente vencidos. Ainda que a Requerente refira laconicamente que a emissão das faturas se deve aos serviços prestados à Requerida, a verdade é que não especifica quais os serviços em causa, em que datas foram prestados, os termos de pagamento acordados.
Mais alegou que desconhecendo a que serviços concretos correspondem os valores faturados sempre terá de impugnar a sua exigibilidade, o que faz, expressamente. Não sendo exigível o capital, não é, naturalmente, exigível qualquer parcela de juros, nem, tão-pouco, a quantia peticionada a título de taxa de justiça paga pela apresentação do requerimento de injunção, por inexistir fundamento para o mesmo.
Mais alegou que a não se entender assim e por mero dever de patrocínio, ainda que a Requerida não deslinde a que título e com que fundamentos a Requerente peticiona tais quantias, numa esforçada tentativa de se defender, apenas poderá dar conhecimento dos termos em que tem vindo a decorrer a sua relação comercial com a Requerente ao nível de faturação e pagamento de valores.
Nesse sentido alegou que tudo o que é devido se encontra pago, sem saber ao certo de que forma isso se enquadra nas alegações da Requerente. Por muito que se esforce a Requerida não almeja de onde possam advir as referidas faturas que a Requerente faz alusão, pelo que aguardará, serenamente, que a Requerida venha explicar e explicitar o que não cuidou de fazer no seu Requerimento Injuntivo. Impugnou o valor total peticionado de 5.183,40 Euros e alegou não ser devido.
Mais alegou que a requerente ao não indicar quais os efetivos trabalhos que foram prestados e que deram origem às faturas mencionadas e ao saldo devedor agora alegado pela Requerente, estão coartadas todas e quaisquer hipóteses de a Requerida apresentar uma defesa equitativa
e conforme na medida em que não compreende com fidedignidade e certeza a razão dos valores de que a Requerente se arroga credora.
Alegou, ainda, que a Requerente jamais poderia ter emitido as referidas faturas, tendo-o feito ao arrepio dos trabalhos e serviços prestados. E atento aos termos já descritos, e não obstante a escassez de factos vertidos pela Requerente no seu Requerimento de Injunção, presume a Requerida que a obrigação de pagamento do preço descrito nas faturas ilicitamente emitida pela Requerente não pode ser exigível à Requerida, não estando dessa forma esta obrigada ao seu pagamento, razão pela qual deve ser imediatamente absolvida de todos os pedidos.
Em relação aos juros alegou que não tem a Requerente o direito ao recebimento de juros moratórios, uma vez que as faturas não são exigíveis, pelo que não são devidos os juros peticionados. Mas à cautela, alegou, que
os juros de mora estão erradamente contabilizados pela Requerente, razão pela qual se impugna expressa e formalmente a sua exigibilidade e o seu valor.
Em relação às demais quantias peticionadas alegou que o valor de 250,00 Euros – à semelhança de todos os outros - não é devido, porquanto
“despesas com a cobrança da dívida”
apenas seriam ressarcíreis em sede de custas de parte e sujeitos às regras vigentes na matéria, designadamente nos artigos 25.º e seguintes do Regulamento das Custas Processuais, sem prejuízo de tal prática ser considerada naturalmente proibida nos termos do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 62/2013. Deverá ser julgado improcedente o pedido de pagamento do valor de 250,00 Euros a título de
“despesas com a cobrança da divida”
, nada sendo devido à Requerida quanto a esta “rubrica”.
Por fim, peticiona a condenação da autora como litigante de má-fé.
Alegou para o efeito que a Requerente alega factos incompletos e carecidos de completude, pleiteando consciente das meias verdades que alega. Alega factos inverídicos e oculta os reais acontecimentos.
A Requerente faz um uso manifestamente reprovável dos meios processuais, com o intuito de obter para si benefícios ilegítimos, ao mesmo tempo que tenta inculcar no espírito do Meritíssimo Julgador uma conjugação de factos tendentes a justificar (infundadamente) a sua conduta lesiva dos direitos e garantias da Requerida.
Considera que a Requerente atua com dolo instrumental, litigando de má-fé, não só alegando factos que sabia não serem verdadeiros, mas, também, omitindo dos autos esclarecimentos e alegações que fazem induzir em erro grave o Tribunal, sendo essa a sua efetiva intenção.
Pede a condenação da requerente como litigante de má-fé em multa e indemnização a favor da Requerida, por grosseira litigância de má-fé, nos termos do n.º 2 do artigo 27.º do Regulamento das Custas Processuais, que computa a título de multa, em 1.020,00 Euros (10 UC’s) e a título de indemnização, no montante nunca inferior a 1.230,00 Euros, sendo 1.000,00 Euros correspondentes aos honorários do subscritor e 230,00 Euros de IVA sobre aquele valor, calculado à taxa legal de 23%.
Termina por pedir que se julgue procedente, por provada:
- a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial nos termos da al. a), do n.º 2 do artigo 186.º do Código de Processo Civil, e em consequência ser a Requerida absolvida da instância;
- a exceção dilatória de ilegitimidade passiva da Requerida, e em consequência, ser a Requerida absolvido da instância;
- declarada, por provada, a inexistência da obrigação de pagamento do preço peticionada pela Requerente, atenta a inexigibilidade das faturas emitidas, e, em consequência, ser a Requerida absolvida de todos os pedidos.
- SE ASSIM NÃO SE ENTENDER,
- que se julgue improcedente, por não provada, a ação e em consequência seja a Requerida absolvida integralmente de todos os pedidos;
- a autora seja condenada como litigante de má-fé em multa e indemnização, no montante global de € 2.250,00.
-
O procedimento de injunção foi remetido à distribuição e passou a seguir a tramitação da “Ação Especial para Cumprimento Obrigações Pecuniárias DL269/98 (superior Alçada 1ªInstª)”.
-
As partes juntaram o DUC, respetivo.
-
A Autora veio requerer a junção de procuração.
-
Proferiu-se o seguinte despacho:
“
Notifique a Autora para, no prazo de 10 dias, responder, querendo, às exceções invocadas pela Ré”
.
-
A Autora veio responder à matéria das exceções, alegando para o efeito que
mantém todos os factos constantes do requerimento de injunção por serem verdadeiros, pelo que se têm por impugnados todos os alegados pela Ré no seu articulado que estejam em contradição com os descritos no articulado da Autora.
Quantos às exceções, a respeito da ineptidão da causa de pedir alegou que resulta com mediana clareza que a Ré compreendeu integralmente a pretensão da A., bem como os fundamentos subjacentes ao pedido.
Referiu ser do conhecimento da ré a receção das faturas nº 145, 86 e 87 aqui em causa no processo, não as devolveu, aceitando-as, onde inclusive pagou, tal como alegado, parte do valor dessas faturas, conforme resulta dos documentos que juntou.
Mais alegou que a ré assinou os respetivos autos de medição, de suporte às faturas, declarando que o demonstrará através da junção dos documentos na respetiva audiência de julgamento.
Considera que do requerimento de injunção resulta os factos constitutivos da relação jurídica. A Ré apreendeu totalmente os motivos que determinaram o recurso ao procedimento de injunção: a relação estabelecida entre A. e Ré, a prestação do serviço a que se reporta, o pagamento parcial de faturas, o não pagamento atempado das faturas entretanto emitidas, entre outros elementos.
Conclui que deve ser julgada improcedente, por não provada, a exceção da ineptidão da petição inicial.
Subsidiariamente, e para o caso de assim não se entender, considera por respeito à factualidade alegada no requerimento inicial, sempre deveria haver lugar a um convite ao aperfeiçoamento, admitindo-se, nesse caso, designadamente, a junção de prova documental.
Sobre a exceção de ilegitimidade passiva da requerida alegou que a ré pagou, tal como alegado, parte dos serviços referentes às faturas em causa, no que diz respeito à obra em causa sita na Rua ..., Porto, bem como, a A., inclusive, procedeu à certificação elétrica daquela obra, que a mesma não pode desconhecer.
A A. no âmbito da sua atividade prestou vários serviços e trabalhos à Ré, conforme faturas que emitiu e esta recebeu e inclusive já pagou parte do valor das mesmas, pelo que, não, restam, dúvidas, quanto à posição das partes, conforme alegado no Requerimento Injuntivo, sendo partes legítimas.
Por fim, sobre o incidente de litigância de má-fé alegou que a A. pleiteia convicta de uma determinada perspetiva factual e mesmo que não consiga fazer a prova cabal da sua pretensão, não pode concluir-se, sem mais, que tal alegação não tinha fundamento e que tinha consciência da falta de verdade do que alegou, neste sentido, não se encontram reunidos os pressupostos legais para a condenação como litigantes de má-fé, nomeadamente, atuação consciente com dolo e negligência grave, dedução de pretensão ou oposição manifestamente infundada contrária à verdade material /ou obstrutiva da justiça.
A Autora juntou com este articulado, as faturas (e duplicados) referenciados no requerimento de injunção e um extrato de clientes respeitante ao cliente “41 B..., SA.”
do período de 01.01.2021 a 04.10.2023.
-
Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“Pelo que, nos termos do disposto no artigo 186º, nº1 e nº2, al. a), do CPC, julgo inepta a petição inicial e, como tal, nulo todo o processado e, consequentemente, absolvo a Ré da instância.
Valor da causa: €5.081,40.
Custas pela Autora”.
-
A requerente-Autora veio interpor recurso da sentença.
-
Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
1. O presente recurso advém da douta sentença proferida nos autos, no dia 22/07/2024 (com a referência 95987377), com a qual a Recorrente não pode concordar, pois entende que não poderia o douto tribunal ter proferido decisão que julgou procedente a verificação da ineptidão do requerimento de injunção, por falta de causa de pedir e em consequência absolver a requerida da instância.
2. Pretende-se a reapreciação da mesma, requerendo-se a respetiva revogação da sentença ora recorrida e a sua substituição por decisão que julgue improcedente a exceção dilatória de ineptidão do Requerimento Inicial de Injunção.
3. Por outro lado, entende também a recorrente que o facto do tribunal a quo ao ter optado por não usar os poderes de gestão formal que lhe assistem por força do artigo 6º do Código de Processo Civil, não procedendo ao convite de aperfeiçoamento do articulado, consubstancia uma real omissão do dever de apurar a verdade material, a qual teve forçosamente influência na decisão da presente causa.
4. De facto, a sentença de que se recorre, para além de estar em contradição com inúmeros acórdãos anteriores sobre a mesma matéria, não fez uma boa aplicação do direito, pelo que deverá ser revogada.
5. O processo de injunção trata-se de um processo de natureza célere, cuja tramitação se encontra simplificada e que o legislador previu com vista ao descongestionamento dos Tribunais, em que o requerente apenas está obrigado a expor sucintamente os factos que fundamentam a sua pretensão, não se aplicando a este procedimento a mesma exigência dos demais processos quanto à exposição dos factos de forma pormenorizada, conforme consta do artigo 552.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil.
6. Não podendo, desta forma, a Recorrente indicar, de forma pormenorizada, todos os factos que fundamentam a causa de pedir e a origem do seu crédito, na medida em que o articulado inicial – não sendo este denominado petição - obedece a um formulário.
7. O recurso ao procedimento de injunção tem implicações incontornáveis no que se refere ao oferecimento de meios de prova, nomeadamente, no caso sub judice, desde logo, a impossibilidade da junção das faturas que titulam os valores em dívida e respetivos autos de medição.
8. Neste sentido, veja-se, por exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado 28/09/2022, no âmbito do processo 9423/21.0YPRT-A.C1 e Acórdão da Relação de Coimbra, de 22/05/2018, no âmbito do processo n.º 127458/16.7YIPRT.C1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Posto isto,
9. Não pode a recorrente concordar com o tribunal a quo quando refere que a mesma “Limita-se, assim, a remeter para as faturas, não explicando minimamente em que consistem os serviços que alega ter prestado. Por outro lado, embora, no local próprio, refira a existência de um contrato de “empreitada”, fazendo constar que a data do mesmo é 29-12-2021, nada mais é referido pela requerente, sendo que no local da “exposição dos factos que fundamentam a pretensão” se limita a referir três faturas, indicando o seu número e valor, nada mais alegando.
10. Mais não se concordando, quando o tribunal a quo menciona que: “A requerente
não identifica minimamente o contrato, não diz em que consiste concretamente, não alega quais os termos do mesmo, nem identifica qual ou quais os serviços e bens cujo fornecimento contratou com a ré, nem identifica quais os bens e/ou serviços concretamente prestados à mesma, quais as datas em que terão sido prestados, nem qual o valor de cada um dos serviços prestados”.
Pelos seguintes motivos:
11. A recorrente colocou no formulário, o tipo de contrato (empreitada) e a data do contrato.
12. O que permite desde logo à recorrida, localizar e identificar o contrato em causa - contrato esse que deu suporte às faturas apresentadas.
13. A recorrente refere ainda no formulário o seu objeto, mencionando quais as atividades que desenvolve, e que foi nesse âmbito que emitiu as faturas, com a indicação do seu ano, número, o valor de cada fatura e indica, expressamente, qual o valor que se encontra em dívida.
14. O que permite, numa contabilidade organizada, como a recorrida tem obrigatoriamente que ter, a consulta das faturas.
15. Até porque a recorrida aceitou as referidas faturas, não tendo delas reclamado ou procedido à sua devolução.
16. E, inclusive conforme é referido no formulário a recorrida, pagou parcialmente uma das faturas.
17. O que espasmasse é negado pela recorrida, num puro ato de litigância de má fé -
que se requereu na resposta às exceções, onde são juntas as faturas - quando esta refere na sua oposição que “Por muito que se esforce a Requerida não almeja de onde possam advir as referidas faturas que a Requerente faz alusão, pelo que aguardará, serenamente, que a Requerida venha explicar e explicitar o que não cuidou de fazer no seu Requerimento Injuntivo”.
18. E que, conforme é de conhecimento público, caso a mesma pretendesse, podia ainda confirmar as faturas no ficheiro SAFT, que as empresas, como a recorrida obrigatoriamente tem acesso.
19. E por último, com todo o devido respeito, não de pode aceitar o argumento do tribunal à quo, quanto à alegada ausência de indicação de bens ou serviços, naquele formulário, pois no que se reporta a contratos de empreitada, não é possível no formulário, indicar os bens ou serviços fornecidos, em função da sua extensão, pois essa informação consta dos respetivos autos de medição.
20. Assim, dúvidas não poderão existir que a recorrida com a simples consulta das faturas emitidas e descritas no requerimento de injunção, consegue identificar a relação contratual, até porque sabe que foi no âmbito do contrato de empreitada, com inicio em 29-12-2021, cujas faturas recebeu, aceitou-as e ainda procedeu ao pagamento de parte do valor da fatura 2021/145, conforme foi referido, quer no requerimento de injunção, quer na resposta às exceções realizada pela recorrente, no passado dia 12 de fevereiro de 2024 – referência n.º 9408418.
21. O legislador colocou à disposição apenas um requerimento simplificado, a Recorrente estava confinada a descrever os factos da forma mais restritiva que tem para o fazer, o que, efetivamente, fez, tendo, inclusive feito reporte às faturas que servem de alicerce ao seu crédito, referindo ainda que a recorrida havia procedido ao pagamento de parte do valor das faturas, não exigindo a totalidade da soma do valor das mesmas.
22. São as próprias faturas que fundamentam a relação comercial entre as partes, ou seja, materializam a relação jurídica entre as mesmas.
23. A recorrida com a simples consulta das faturas emitidas e descritas no requerimento de injunção, consegue identificar a relação contratual.
24. A recorrente considera que não restam dúvidas que do corpo alegatório resulta, com inequívoca clareza e precisão, os factos constitutivos da relação jurídica sub judice, cumprindo, com o seu ónus de alegação vertido no artigo 10.º, n.º 2, alínea d) do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, ao ter descrito a relação comercial estabelecida e feito referência a todas as faturas que descrevem aquela, não podendo ser o articulado considerado inepto.
25. Veja-se, por exemplo o Acórdão da Relação do Porto, de 18/11/2019: Proc. n.º 69295/18.0YIPRT.P1 e Acórdão da Relação do Porto, datado em 10-11-2022, sob o âmbito do processo n.º 118395/21.4YIPRT, ambos disponíveis em
www.dgsi.pt
.
26. No entendimento da recorrente, não sobejam dúvidas de que a Recorrida apreende totalmente os motivos que determinaram o recurso ao procedimento de injunção: a relação estabelecida entre a recorrente e a recorrida, a prestação do serviço a que se reporta, o pagamento parcial de faturas, o não pagamento atempado das faturas entretanto emitidas, entre outros elementos.
27. Pelos motivos elencados no requerimento de injunção apresentado é possível identificar um núcleo mínimo de factos integradores da causa de pedir, pelo que, não se entende como o tribunal a quo refere que os factos elencados no requerimento de injunção não permitem à recorrida conhecer quais os elementos essenciais da relação comercial estabelecida, o que, alegadamente, a impede de exercer adequadamente a sua defesa.
28. A recorrente invocou assim, ainda que de forma sucinta, os factos que fundamentam a sua pretensão e - em resposta às exceções deduzidas pela Ré - juntou as faturas que legitimam o seu crédito.
29. Pelo que existe uma concretização, no requerimento de injunção, dos factos que subjazem ao pedido, encontrando-se a causa de pedir suficientemente concretizada.
30. Considera, ainda, a recorrente, que caso tal não verificasse, ou seja, que a exposição sucinta dos factos fosse considerada insuficiente, tal não implicaria a absolvição da Recorrida da instância.
31. Ou seja, por não estarmos perante uma omissão total do pedido ou da causa de pedir, não poderia o tribunal a quo absolver a recorrida da instância, quanto muito, poderia convidar a ora recorrente a aperfeiçoar a petição inicial.
32. Conforme, aliás, resulta, entre outros, do Ac. da Relação de Lisboa, de 19/02/2019, disponível em
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.
33. Assegurando o tribunal a quo, desta forma, o contraditório entre as partes e garantido assim o direito de defesa dos mesmos.
34. Não se olvidando que o Código de Processo Civil erigiu como postulado essencial o dever de gestão processual que recai sobre o juiz (art.º 6º do CPC), princípio esse que não pode deixar de abranger os processos especiais.
35. Pelo que é um dos princípios inerentes ao nosso sistema jurídico que justificam o recurso ao convite ao aperfeiçoamento, evitando-se, dessa forma, que o recorrente instaure novo requerimento de injunção com vista à cobrança do crédito a que se arroga.
36. O recorrente ao responder às exceções invocadas pela recorrida na douta oposição completou a informação e procedeu à junção de documentos que legitimam o seu crédito.
37. Veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa, datado em 24-09-2020, no âmbito do processo n.º 113447/18.0YIPRT.L1-2, disponível em
www.dgsi.pt
.
38. Com efeito ao não ter optado pelo convite ao aperfeiçoamento do articulado, o tribunal a quo omitiu o dever de apurar a verdade material, omissão que teve forçosamente influência na decisão da presente causa, devendo para todos os efeitos legais, mormente os previstos no artigo 195.º do CPC, ser declarada nula a douta sentença.
Termina por pedir o provimento do recurso e a revogação da sentença recorrida.
-
Não foi apresentada resposta ao recurso.
-
O recurso foi admitido como recurso de apelação.
-
Colhidos os vistos legais, ficando vencido o Exmº Juiz Desembargador- relator, foi o processo concluso ao 1º Juiz Desembargador-Adjunto e adiada a prolação do acórdão para a sessão seguinte.
-
Cumpre apreciar e decidir.
-
II. Fundamentação
1.
Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art.º 639º do CPC.
As questões a decidir:
- da ineptidão do requerimento de injunção, por falta de causa de pedir;
- da nulidade processual, por omissão do despacho de aperfeiçoamento.
-
2.
Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os termos do relatório.
-
3
. O direito
- Da ineptidão do requerimento de injunção -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 5 a 29, insurge-se a apelante contra o segmento da decisão que julgou procedente a nulidade do requerimento de injunção, por ineptidão, com fundamento em falta de causa de pedir e absolveu a ré da instância.
Considera que atenta a especial natureza do procedimento de injunção expôs de forma sintética os factos que configuram a sua pretensão e na resposta à matéria das exceções, com a junção das faturas, mostra-se indicado os serviços executados, considerando a causa de pedir suficientemente concretizada.
A sentença recorrida julgou extinta a instância, com fundamento em nulidade por ineptidão da petição, por falta de causa de pedir, nos termos do art.º 186º/1/ 2 a) CPC.
Sustenta a decisão, nos seguintes fundamentos que se passam a transcrever:
“Nos termos do preceituado no artigo 186º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil é
nulo todo o processo
quando for
inepta a petição inicial
e, por outro lado, diz-se inepta a petição, nomeadamente, “
quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir
” – nº2, al. a).
Por outro lado, a nulidade de todo o processo constitui uma exceção dilatória de que o tribunal deve conhecer oficiosamente (artigos 577º, al. b) e 578º, do CPC).
No caso dos autos a requerente apenas fez constar do requerimento de Injunção, na parte destinada à “exposição dos factos que fundamentam a pretensão” o seguinte:
“1- A requerente A... Unipessoal, Lda., exerce e desenvolve a sua atividade na área execução, manutenção e assistência técnica de instalações e equipamentos de eletricidade, telecomunicações, segurança eletrónica, canalização, climatização, energias renováveis e redes de incêndio em obras públicas ou privadas; construção civil em obras públicas ou privadas, e outras construções; atividades de engenharia, incluindo elaboração de estudos, projetos e fiscalização, prestação de serviços relacionados, conexos ou acessórios com todas as atividades referidas; comércio a retalho de eletrodomésticos, e comércio a retalho de imobiliário e artigos de iluminação.
2- No âmbito dessa atividade forneceu diversos serviços e trabalhos à sociedade B..., S.A., a pedido desta, que se encontram devidamente discriminados nas seguintes faturas: FAC 2021/145, FAC 2022/86 e FAC 2022/87, especificados na sua qualidade, quantidade e preço;
3- Os respetivos serviços constam das faturas FAC 2021/145, no valor de €10.953,14 (dez mil novecentos e cinquenta e três euros e catorze cêntimos), FAC 2022/86 no valor de €1.080,80 (mil e oitenta euros e oitenta cêntimos) e FAC 2022/87 no valor de €1.586,81 (mil quinhentos e oitenta e seis euros e oitenta e um cêntimo).
4- Dos mencionados quantitativos encontra-se em dívida o valor de €4.167,61 (quatro mil cento e sessenta e sete euros e sessenta e um cêntimo).
5- Fornecidos os serviços, a mesma não apresentou qualquer reclamação ou reparo, não tendo também reclamadas ou devolvidas as faturas que, depois de terem sido emitidas, lhe foram entregues
.”
Limita-se, assim, a remeter para as faturas, não explicando minimamente em que consistem os serviços que alega ter prestado.
Por outro lado, embora, no local próprio, refira a existência de um contrato de “empreitada”, fazendo constar que a data do mesmo é 29-12-2021, nada mais é referido pela requerente, sendo que no local da “exposição dos factos que fundamentam a pretensão” se limita a referir três faturas, indicando o seu número e valor, nada mais alegando.
A
requerente não identifica minimamente o contrato, não diz em que consiste concretamente, não alega quais os termos do mesmo, nem identifica qual ou quais os serviços e bens cujo fornecimento contratou com a ré, nem identifica quais os bens e/ou serviços concretamente prestados à mesma, quais as datas em que terão sido prestados, nem qual o valor de cada um dos serviços prestados.
Nada disso a autora alega, como lhe competia, não explicitando, assim, minimamente qual a causa de pedir que fundamenta o pedido.
Muito embora o requerimento de injunção não tenha que ter a alegação exaustiva dos factos integradores do direito, ou direitos, de que o autor se arroga titular e que fundamentam o pedido, tal como se exija para uma petição inicial, apenas se exigindo que cumpra os requisitos impostos pelo normativo supra citado, o certo é que para que seja possível que a autora prove os factos integradores do direito que alega, necessário é que alegue tais factos, sob pena de não lhe ser possível demonstrar os mesmos, nem ser possível que a ré exerça convenientemente o seu direito de defesa.
Assim, a petição, mesmo no caso do requerimento injuntivo, deve concretizar minimamente o facto jurídico concreto de que emerge o direito que o autor se propõe declarar, o que no caso não sucede.
Com efeito, a autora não alega os factos concretos de que emerge o direito que se arroga, nomeadamente
os factos supra elencados
, apenas fazendo alusão à existência de faturas, relativamente às quais, note-se, apenas identifica o número e valor, não explicando minimamente o que originou a emissão da mesma, nem explicita quais os serviços a que tal fatura se refere, o que terá de conduzir necessariamente à conclusão de que a petição/requerimento injuntivo carece de causa de pedir.
Neste sentido, que sufragamos, veja-se, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.12.2023, in
www.dgsi.pt
:
“
(…) V – Deve considerar-se inepto, por falta de causa de pedir, o requerimento inicial no qual se descriminam tão só as faturas emitidas pela A., respetivo valor e juros, desacompanhado de qualquer outro facto do qual se retire o efetivo acordo celebrado com a R. e os bens ou serviços que foram fornecidos, alegando apenas o R., em sede de oposição que teve transações comerciais com a A. para fornecimento de rações a animais, cessadas há oito anos. (…)
”.
A circunstância de o artº.10º, nº.2, al. d), do DL 269/98 de 1.9 aludir a uma exposição sucinta de factos para caracterizar o conteúdo do requerimento injuntivo, não desonera o requerente da alegação factual consubstanciadora da causa de pedir em que o demandante funde a sua pretensão, nem legitima a sua substituição por vacuidades.
Apenas inculca a ideia de admissibilidade de uma simplificação descritiva dos factos integradores da causa de pedir.
[…]
Assim sendo, porque não se mostram minimamente expostos e discriminados os factos que fundamentam a causa de pedir, não cumpre o requerimento de Injunção apresentado os respetivos requisitos legais”.
A questão que se coloca prende-se com o facto de saber se o requerimento de injunção, carece de causa de pedir, ao ponto de ser considerado inepto, impedindo que prossiga como ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato.
No domínio do atual regime do Processo Civil a toda a ação corresponde um pedido e uma causa de pedir (art.º 3º e 5º CPC).
O pedido conforma o objeto do processo e a causa de pedir consiste no enunciado dos factos constitutivos da situação jurídica que o autor pretende fazer valer que integram a previsão da norma cujo efeito jurídico pretende ver reconhecido
[2]
(art.º 552/1/d) e e) e 581º/4 CPC).
Como refere LEBRE DE FREITAS: “[a] causa de pedir exerce uma função individualizadora do pedido para o efeito da conformação do objeto do processo”
[3]
.
Nos termos do art.º 186º/1 CPC é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
A petição é inepta, nos termos do art.º 186º/2 a) CPC, quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir.
A falta de causa de pedir e de formulação do pedido traduz-se na falta de objeto do processo. Constitui um vício de conteúdo da petição.
Contudo, apenas a total omissão de factos essenciais integradores da causa de pedir configuram o aludido vício.
O art.º 5º do CPC distingue entre factos essenciais, complementares e instrumentais.
Como refere o Prof. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA
[4]
os factos necessários à procedência da ação, que qualifica de “factos principais”, abrangem os factos essenciais e os factos complementares, sendo que os primeiros permitem individualizar a situação jurídica alegada na ação ou na exceção e os segundos são indispensáveis à procedência dessa ação ou exceção, mas não integram o núcleo essencial da situação jurídica alegada pela parte.
Os factos essenciais são os necessários à identificação da situação jurídica invocada pela parte e que, como tal, relevam na viabilidade da ação ou da exceção. Deste modo, se os factos alegados pela parte não forem suficientes para se perceber qual a situação que se pretende fazer valer em juízo, existe um vício que afeta a viabilidade da ação ou da exceção.
Já os factos complementares não são necessários à identificação da situação jurídica alegada pela parte, mas são indispensáveis à procedência da ação ou da exceção.
Em consonância, a falta de alegação dos factos essenciais acarreta a ineptidão da petição inicial por inexistência de causa de pedir (cf. art.º 186º, n.º 2, a) do CPC); a ausência de um facto complementar não implica qualquer inviabilidade ou ineptidão, mas importa a improcedência da ação
[5]
.
Como referia o Professor ALBERTO DOS REIS “[p]odem dar-se dois casos distintos: a) a petição ser inteiramente omissa quanto ao ato ou facto de que o pedido procede; b) expor o ato ou facto, fonte do pedido, em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis, que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir. Num e noutro caso a petição é inepta, porque não pode saber-se qual a causa de pedir”
[6]
.
LEBRE DE FREITAS, em comentário ao art.º 186º/2 a) CPC, refere: “ […] a falta de formulação do pedido ou de indicação da causa de pedir, traduzindo-se na falta de objeto do processo, constitui nulidade de todo ele, o mesmo acontecendo quando, embora aparentemente existente, o pedido é formulado ou a causa de pedir é indicada de modo tão obscuro que não se entende qual seja ou a causa de pedir é referida em termos tão genéricos que não constituem a alegação de factos concretos”
[7]
.
Dos ensinamentos de ALBERTO DOS REIS
[8]
, extrai-se ainda, que “importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente[...]. Quando a petição, sendo suficiente quanto [...] à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a ação naufraga”.
A petição que apresente uma causa de pedir deficiente é suscetível de sanação, nos termos do art.º 590º/4 a 6 CPC.
O procedimento de injunção, instituído pelo DL 404/93 de 10 de dezembro, que posteriormente passou a seguir o regime previsto no DL 269/98 de 01 de setembro (diploma que foi objeto de sucessivas alterações, sendo a última a considerar a Lei 117/2019 de 13 de setembro), foi criado para dar satisfação a um crescente volume de litígios relacionado com o incumprimento de obrigações pecuniárias.
O DL nº 32/2003, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de junho de 2000, e que estabeleceu medidas contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais, alargou o âmbito de aplicação do regime de injunção previsto no DL nº 269/98, estabelecendo no art.º 7º que:
“1 – O atraso de pagamento em transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito de recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida; e
2 – Para os valores superiores à alçada do tribunal de 1ª instância, a dedução de oposição no processo de injunção determina a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum”.
O procedimento de injunção visa de forma célere e simplificada a obtenção de um título executivo (art.º 7º do diploma citado).
Prosseguindo esse objetivo, entre outros aspetos, a forma e conteúdo do requerimento está sujeito a modelo previamente aprovado por portaria do Ministério da Justiça, devendo ser apresentado por via eletrónica quando subscrito por advogado (art.º 10º e 19º do citado diploma).
Nos termos do art.º 10º/2 d) no requerimento de injunção o requerente deve “expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão”. Na alínea e) do mesmo preceito determina-se que deve “formular o pedido, com discriminação do valor do capital, juros vencidos e outras quantias devidas”.
O requerente deverá concretizar os factos que integram a causa de pedir, o negócio que está na origem do litígio, procedendo à sua narração em termos sucintos, sintéticos e breves
[9]
.
Como refere SALVADOR DA COSTA: “[…]o que verdadeiramente releva como causa de pedir é a descrição da origem do direito de crédito invocado pelo requerente ou os períodos a que se reporta”
[10]
.
Sendo omisso o requerimento de injunção quanto ao pedido e causa de pedir, quando transmutado em ação, padece do vício de ineptidão que determina a nulidade do processado. Porém, neste juízo de apreciação, não se pode ignorar as particularidades do procedimento, a sua simplicidade, mas também a possibilidade de ser convertido em ação e quando assim é, a possibilidade de ser objeto de aperfeiçoamento, sendo certo que tal possibilidade não dispensa a narração, ainda que simplificada, dos factos essenciais.
SALVADOR DA COSTA depois de analisar as questões que se podem suscitar com a transmutação do requerimento de injunção em ação declarativa (especial ou comum), acaba por concluir que “após a distribuição, recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais (art.º 17º/3 do Anexo)”
[11]
.
Nos termos do art.º 17º/3 “
Recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais
”.
Como refere SALVADOR DA COSTA, em anotação a este preceito: “[n]ão sendo caso de falta do núcleo fáctico, mas da sua insuficiência ou falta de clareza na concretização dos bens alienados ou dos serviços prestados, em vez de se proferir decisão de absolvição do réu da instância, deve operar o convite àquele para o respetivo aperfeiçoamento.
Nada impede que nesse despacho de aperfeiçoamento o juiz também inclua o convite à articulação dos factos constitutivos da causa de pedir. Em qualquer caso, nos termos do nº 6 do artigo 508º do CPC, não há recurso desse despacho”
[12]
.
Ponderando tais aspetos, na jurisprudência, tem-se considerado que o requerimento de injunção transmutado em ação não padece de falta de causa de pedir (Ac. Rel. Porto 09 de junho de 2005, Proc. 0533160, acessível em www.dgsi.pt): “[u]ma vez que dele consta tratar-se de “Contrato de compra e venda”, no valor de capital de ....., contrato nº ......., data do contrato ....., período a que se refere ....., e .. faturas, das quais são apenas indicados os nºs e datas, e a lei contenta-se com indicação sucinta que tem, em regra, de ser feita em formulário próprio.
[…]não obstante não faltar a causa de pedir, ela não é, no caso em apreço, bastante, porquanto não é indicado o tipo de mercadoria vendida nem o montante de cada uma das faturas e respetivas datas de vencimento, o que pode pôr em causa a aplicação do DL 32/2003.
Assim sendo, encontra-se aberto o caminho para o completar do requerimento injuntivo”.
Seguindo idêntico entendimento no Ac. Rel. Porto 11 de outubro de 2005 considerou-se: “[…]utilizou o mencionado modelo (previsto na PRT nº 234/2003, de 17/3) e nele assinalou, no quadro destinado à indicação de causa de pedir sob o nº 9 e como fundamento da sua pretensão, tratar-se de um “contrato de fornecimento de bens ou serviços”, explicitando de seguida, na quadrícula “Descrição e origem do crédito: Fatura 210 029 de 08-11-2001 No valor 4 939,83€.
De tal indicação e descrição, crê-se que, salvo melhor opinião, se não poderá concluir, como se veio de fazer na decisão sob recurso, pela inexistência de indicação de causa de pedir; na realidade, dela resulta que a requerente prestou serviços que conforme resulta do aludido documento junto aos autos se traduziram no aditamento projeto de arquitetura e novo licenciamento, no âmbito de um contrato de prestação de serviços, no tempo e com os valores indicados na faturas mencionada e que não foi ainda liquidada, deixando-se, assim, afirmado um núcleo mínimo de factos integradores de “causa de pedir”, pelo menos, de modo a impedir que se possa afirmar que ocorre total falta de indicação desta”
[13]
.
No mesmo sentido, entendeu-se que do requerimento consta a causa de pedir quando “no impresso se refere “Causa de Pedir”, a requerente escreveu «Fornecimento de bens ou serviços».
No formulário junto (fls. 2) nas rubricas “origem do crédito”, Contrato nº ...60 “data do contrato” a requerente exarou 15-04-01 “período a que se refere” consignou 15/04/2001 a 15/04/2004 e “descrição sumária” escreveu Incumprimento de contrato de crédito para aquisição de ARTIGOS PARA O LAR celebrado com o Banco 1... desde 15/04/2001.
Quer dizer, na descrição do seu crédito, A requerente diz que a dívida que reivindica diz respeito a um contrato que enumera que celebrou em data que indica e com o período de vigência que refere de 3 anos e para aquisição de artigos para o lar.
Claro que a Requerente poderia ser mais clara no delinear do fundamento da sua pretensão, esclarecendo quais os bens em concreto e quais os valores bem como igualmente no mínimo ter junto o original do aludido contrato onde por certo constará a assinatura do requerido e seus demais elementos identificativos.
Salvo o devido respeito pela opinião contrária emitida não poderemos afirmar, que a origem do crédito e sua definição se encontram totalmente subtraídos da petição inicial”
[14]
.
No mesmo sentido, se considerou que:”[…] se no requerimento injuntivo é alegado o contrato específico de que emerge a obrigação a pagar, com menção do tipo de atividade exercido pelo autor e pelo réu, o fornecimento de determinadas mercadorias no exercício dessa atividade, durante certo tempo, juntando-se as correspondentes faturas, que assim completam a petição, com base nas quais se invoca a existência de um crédito de certo montante, correspondente ao preço ou saldo existente, cujo pagamento se pede, não se podem invocar dúvidas quanto à relação negocial concreta que está em causa na ação e que sustenta a pretensão deduzida, ainda que tais factos careçam de uma maior especificação”
[15]
.
De igual forma, se considerou que no requerimento de injunção que foi apresentado pela autora se indica, pelo menos, um núcleo mínimo de factos integradores da causa de pedir, quando se alegou: “o tipo de contrato celebrado (Contrato de Crédito de Reestruturação de Dívida); o número desse contrato (…); data da sua celebração (26/06/2013); valor da dívida abrangida (€ 6882,26); contrato que foi regularizado (…); periodicidade do reembolso (120 prestações), valor das mensalidades acordadas (€ 90,97) e, que deixaram de proceder aos pagamentos.
Tal núcleo mínimo de factos integradores da causa de pedir efetuada no quadro da simplificação e celeridade processual pretendida pelo legislador na regulamentação do procedimento injuntivo, impede que se possa defender que ocorre falta de indicação da causa de pedir, pelo que o requerimento não padece de vício gerador de ineptidão”
[16]
.
No Ac. Rel. Coimbra 10 de setembro de 2024, Proc. 69757/23.7YIPRT.C1(disponível em
www.dgsi.pt
), não se considerou inepto o requerimento de injunção, onde se alegou:
“Ora, a mesma indicou e identificou as partes envolvidas, especificando o objeto estatutário de uma e outra; indicou o tipo de relação em causa e a data da mesma, identificando como fonte do direito de crédito invocado, um contrato de fornecimento de bens ou serviços celebrado no período de 30/10/2021 e 24/01/2022, entre ela própria, no exercício da sua atividade comercial, e a Requerida; discriminou os valores devidos a título de capital e juros, com identificação da fatura que titula a divida, o seu número de identificação, valor, data de emissão e de vencimento e juros vencidos, alegando, para esse efeito, que os serviços prestados se encontram melhor discriminados na fatura nº 14/39, emitida em 24/01/2022, vencida nessa mesma data, nela constando o seu correspondente preço/valor de € 55.350,00, incluindo IVA; referiu, neste contexto, que os serviços nela em causa foram prestados à requerida nas ruas de ... e que esta os recebeu sem apresentar qualquer reclamação; e que a requerida incumpriu com a sua obrigação de pagamento da quantia constante da citada fatura.
Abrangendo o seu objeto estatutário, consoante ali indicado, o aluguer de equipamentos de iluminação para festas e romarias e a importação e exportação de produtos pirotécnicos e de iluminação, fácil seria concluir que os serviços prestados à Requerida, nas ruas de ..., teriam a ver com iluminação.
Estes são, salvo melhor opinião, os factos estruturantes ou fundamentadores da pretensão injuntiva deduzida, suficientemente concretizada e individualizada. Deles resulta o contrato celebrado – de prestação de serviços – a data da sua celebração, o seu conteúdo - iluminação nas ruas de ... – as correspondentes obrigações - a da R. de pagar o valor de € 55.350,00 pelos serviços prestados e faturados, sem reclamação, a da A. de prestar serviços de iluminação nas ruas de ... - os montantes em dívida e a data em que se verificou o incumprimento.
Já as concretas prestações acordadas, o(s) exato(s) loca(is) de cumprimento, datas e demais condições, se configuram, perante o tipo legal em causa identificado pelos acima referidos factos, como factos concretizadores ou complementares relativamente ao invocado incumprimento”.
De igual forma, se considerou, no Ac. Rel. Coimbra, 24 de setembro de 2024, Proc.69453/23.5YIPRT.C1 (acessível em
www.dsgi.pt
):
“A alegação no requerimento de injunção de que o requerente forneceu à requerida os bens constantes das faturas que identifica pelo número, data de emissão, vencimento e respetivo valor, peticionado nos autos, é suficiente para que se mostre invocada a respetiva causa de pedir, sendo a insuficiência na concretização dos bens fornecidos suscetível de ser suprida mediante convite ao aperfeiçoamento, nos termos do artigo 17º, nº 3 do DL nº 269/98, e artigo 590º, nº 4, do CPC”.
No Ac. Rel. Coimbra 25 de outubro de 2024, Proc. 82948/21.6YIPRT.C1, (acessível em www.dgsi.pt) considerou-se: “[s]ó existe falta de causa de pedir que implica a ineptidão quando o autor não indica o facto genético ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito, ie., seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar qual a causa de pedir e o pedido que aspira fazer valer”.
Em conclusão somos levados a considerar que alegados os factos essenciais, que demonstram a concreta relação jurídica, não se pode considerar que o requerimento de injunção carece de causa de pedir, porque tal situação apenas ocorre quando não se alega qualquer facto que consubstancie o direito ou pretensão formulada.
A falta de concretização dos elementos do contrato, como seja, os concretos serviços prestados ou trabalhos realizados, porque deficientemente indicados nas faturas apenas determinam o aperfeiçoamento da peça processual.
Tendo presente o exposto e apreciando o caso concreto, verifica-se que o requerimento de injunção, que se transmutou em ação, não é omisso em relação à causa de pedir, ainda que se considere deficiente.
No campo “Exposição dos factos que fundamentam a pretensão” escreveu-se:
“Em 29 de dezembro de 2021 celebrou com a requerida um contrato de empreitada.
Exerce e desenvolve a sua atividade na área execução, manutenção e assistência técnica de instalações e equipamentos de eletricidade, telecomunicações, segurança eletrónica, canalização, climatização, energias renováveis e redes de incêndio em obras públicas ou privadas; construção civil em obras públicas ou privadas, e outras construções; atividades de engenharia, incluindo elaboração de estudos, projetos e fiscalização, prestação de serviços relacionados, conexos ou acessórios com todas as atividades referidas; comércio a retalho de eletrodomésticos, e comércio a retalho de imobiliário e artigos de iluminação.
No âmbito dessa atividade forneceu diversos serviços e trabalhos à sociedade B..., S.A., a pedido desta, que se encontram devidamente discriminados nas seguintes faturas: FAC 2021/145, FAC 2022/86 e FAC 2022/87, especificados na sua qualidade, quantidade e preço.
Os respetivos serviços constam das faturas FAC 2021/145, no valor de €10.953,14 (dez mil novecentos e cinquenta e três euros e catorze cêntimos), FAC 2022/86 no valor de €1.080,80 (mil e oitenta euros e oitenta cêntimos) e FAC 2022/87 no valor de €1.586,81 (mil quinhentos e oitenta e seis euros e oitenta e um cêntimo).
Dos mencionados quantitativos encontra-se em dívida o valor de €4.167,61 (quatro mil cento e sessenta e sete euros e sessenta e um cêntimo).
Fornecidos os serviços, a mesma não apresentou qualquer reclamação ou reparo, não tendo também reclamadas ou devolvidas as faturas que, depois de terem sido emitidas, lhe foram entregues.
A Requerente solicitou por várias vezes à Requerida o pagamento dos quantitativos mencionados naquelas faturas, encontrando-se em dívida o valor de €4.167,61 (quatro mil cento e sessenta e sete euros e sessenta e um cêntimo). Apesar de interpelada para o efeito, ainda não procedeu ao pagamento da quantia em dívida. A dívida já está vencida.
Encontra-se em dívida o valor de €4.167,61 (quatro mil cento e sessenta e sete euros e sessenta e um cêntimo), mais juros no valor de €663,79 (seiscentos e sessenta e três euros e setenta e nove cêntimos).
Mais alegou que tem ainda direito a receber da Requerida o montante global de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros), a título de indemnização pelos custos de cobrança da dívida em causa na presente injunção, nomeadamente, despesas administrativas (€ 40,00) e recurso aos serviços de advogado (€ 210,00) — nos termos do artigo 7º do referido Decreto-Lei nº 62/2013, de 10 de maio. Assim, deve a requerida pagar à requerente a quantia de €4.167,61 (quatro mil cento e sessenta e sete euros e sessenta e um cêntimo), acrescida dos respetivos juros à taxa legal, que na data da instauração do requerimento de injunção atingem o valor de €663,79 (seiscentos e sessenta e três euros e setenta e nove cêntimos) e ainda os juros que se vierem a vencer, à taxa legal, sobre o valor de €4.167,61 (quatro mil cento e sessenta e sete euros e sessenta e um cêntimo), até efetivo e integral pagamento e respetiva taxa de justiça no valor de €102,00 (cento e dois euros) e valor por despesas com cobrança de dívida de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros)”.
No formulário que corresponde ao requerimento de injunção indica-se o contrato - empreitada - o âmbito da atividade exercida e que determinou a sua celebração, data da celebração, trabalhos prestados, por remissão para as faturas (“especificados na sua qualidade, quantidade e preço”), que estão devidamente referenciadas, com a indicação do valor pelo qual foram emitidas, montante em dívida, causa do incumprimento – falta de pagamento parcial do preço – interpelação, com envio das faturas e sua receção e data do vencimento da obrigação.
Alegaram-se um núcleo essencial de factos que permitem configurar a relação contratual e que constituem a causa de pedir, no caso concreto, a realização de uma obra mediante o pagamento de um preço, o qual não se mostra integralmente pago, apesar de concluída a obra.
Sendo certo que no requerimento de injunção, como se refere na decisão recorrida, não se descreveram os trabalhos executados, tal circunstância, como resulta do já exposto, não justifica sem mais que se considere inepto o requerimento de injunção, ainda que transmutado em ação.
A descrição que se faça nos documentos dos trabalhos executados, complementa a alegação e dessa forma a causa de pedir.
Não se ignora que na jurisprudência se suscita alguma controvérsia a respeito da relevância dos documentos como forma de suprir a insuficiência de alegação.
Existem duas correntes jurisprudenciais sobre esta matéria, uma mais exigente, segundo a qual não se ajusta ao estatuído no art.º 552º/ 1, d) do CPC a simples remissão para os factos que constem de documentos que o autor junte e que considere como reproduzidos
[17]
.
Na outra corrente, menos exigente que a primeira e que temos seguido, entende-se que a causa de pedir é o contrato específico de que emerge a obrigação. Enquanto complemento da matéria de facto alegada, o documento não tem apenas a natureza de meio de prova, passando a ter a natureza de verdadeira alegação, porquanto os documentos juntos com os articulados devem considerar-se parte integrante deles, suprindo lacunas de que enfermem quanto a uma completa exposição dos factos
[18]
.
O documento junto com a petição deve considerar-se parte integrante dela, suprindo as lacunas de que possa enfermar. A mesma virtualidade deve ser atribuída ao que for junto ulteriormente, mas a tempo de surtir o efeito que a concomitante junção produz.
Considera-se, ser legal a remissão, feita na petição inicial, para documentos a ela juntos, desde que a causa de pedir fique bem concretizada, o que no caso se verifica.
Acresce que, como observa a apelante, as faturas, enquanto meios de prova, apenas podem ser apresentados em sede de julgamento, como determina o art.º 3º/4 do citado diploma e por isso, estava a autora-requerente impedida de as juntar com o requerimento de injunção.
Contudo, no caso concreto, constata-se que na resposta à matéria das exceções a apelante juntou as faturas e ainda um documento - extrato clientes -, dos quais decorre a data, local e natureza dos trabalhos, bem como, o respetivo preço e montante em divida. Nas faturas alude-se a autos de medição, alguns dos quais, aprovados pela própria ré e a trabalhos adicionais. Não se juntaram os autos de medição, apesar da autora afirmar que os vai juntar em sede de julgamento, ou se for convidada para esse efeito.
A ré, apelada, apesar de notificada dos documentos não se pronunciou, sendo certo que o despacho recorrido foi proferido ainda antes de se esgotar o termo do prazo para o exercício do contraditório.
Contudo, contrariamente ao afirmado pela apelante, subsiste a falta de concretização dos trabalhos executados e que não foram pagos, porque nas faturas não se indicam e não se mostram juntos os autos de medição.
Porém, tal omissão não corresponde a falta de causa de pedir, mas apenas a deficiência da sua alegação.
Findos os articulados, justificava-se convidar a autora a completar a petição, mais concretamente a juntar os autos de medição referenciados nas faturas, que individualizam e concretizam os trabalhos executados, nos termos do art.º 17º/3 do DL 269/98 de 01/09.
Como se observa no Ac. Rel. Lisboa 13 de julho de 2021, Proc. 23205/20.3YIPRT.L1-7 (acessível em
www.dgsi.pt
): “[…]estando antes configurada uma situação em que a apreciação da causa e a eventual procedência da ação carece de uma melhor e mais pormenorizada concretização dos bens fornecidos, data e valores em dívida, seja por referências às faturas, seja em explicitação das notas de débito também carreadas para os autos, estava aquele obrigado a convidar, expressamente, a parte a aperfeiçoar a sua pela processual nesse sentido, o que não foi feito.
Atualmente, não se discute já o carácter vinculado deste tipo de despacho. Com efeito, a intervenção do juiz nesta fase processual é especialmente relevante quanto à sindicância que exerce sobre o conteúdo material dos articulados, designadamente, sobre a exposição ou concretização da matéria de facto.
Trata-se de um verdadeiro dever legal do juiz – despacho de aperfeiçoamento vinculado – no sentido de identificar os aspetos que importa corrigir.
Considerando que a recorrente, no âmbito do procedimento de injunção, conjugado com a relação discriminada das faturas, efetuou uma exposição da factualidade subjacente ao pedido formulado em que alegou, ao menos, os factos essenciais da causa de pedir suscetíveis de identificar e individualizar o objeto do litígio e não se verificando uma situação de ineptidão da petição inicial, não podia a senhora juíza
a quo
ter deixado de a convidar a aperfeiçoar tal peça processual, ou seja, transmutado o procedimento injuntivo em ação declarativa comum, não poderia ter deixado de dar cumprimento ao disposto no art.º 590.º, n.ºs 2, al. b) e 4, do CPC”
.
Conclui-se que o requerimento de injunção, transmutado em ação, contém os factos essenciais ao objeto em litígio, expressos de forma sucinta, como se prevê no art.º 10º /2 d) do DL 269/98 de 01 de setembro e que apesar de não estarem devidamente concretizados os serviços ou obras executadas, por se tratar de factos complementares, tal circunstância apenas justificava o aperfeiçoamento do requerimento de injunção/petição.
O requerimento de injunção não se mostra inepto, por falta de causa de pedir.
Procedem as conclusões de recurso, sob os pontos 5 a 29.
-
- Da omissão do despacho de aperfeiçoamento do requerimento de injunção -
Nos pontos 30 a 38 das conclusões de recurso insurge-se a apelante contra o segmento da sentença que considerou que não se justificava dirigir à autora um convite ao aperfeiçoamento da petição. Considera a apelante que tal omissão constitui uma nulidade nos termos do art.º 195º CPC.
Na sentença tomando posição sobre a questão, a qual foi colocada pela requerente/autora na resposta à matéria das exceções, referiu-se, como se passa a transcrever:
“
Numa outra linha regista-se que a ineptidão da PI é um vício insanável do processo e que a PI inepta não se confunde com PI deficiente.
Não tendo, por isso, sentido ou cabimento processual conjeturar a hipótese de o tribunal, a coberto da previsão do artº.590º, nº.2, al. b) CPC, poder convidar a A. a sanar o referido vício, apresentando uma peça inicial corrigida, nem por isso aceitar a concretização que a demandante trouxe ao processo em sede de resposta às exceções.
Na verdade, reconduzindo-se a ineptidão à falta de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir, esse mesmo convite é vedado por lei nos moldes que resultam dos artºs.265º e 590º, nº.4 e 6, do CPC”.
Nos termos do art.º 590º/4 CPC “incumbe ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido”.
Cumpre referir que apenas uma petição que contém causa de pedir, ainda que deficiente e pedido, pode ser objeto de aperfeiçoamento. A petição inepta, por falta de causa de pedir é nula e determina a absolvição da instância.
A omissão do despacho de aperfeiçoamento perante articulado irregular constitui uma nulidade processual, nos termos do art.º 195º CPC.
As nulidades processuais “[…] são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidade mais ou menos extensa de aspetos processuais”
[19]
.
Atento o disposto nos art.º 195º e seg. CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
Porém, como referia o Professor ALBERTO DOS REIS há nulidades principais e nulidades secundárias, que presentemente a lei qualifica como “irregularidades”, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos
[20]
.
As nulidades principais estão previstas, taxativamente, nos art.º 186º a 194º e 196º a 198º do CPC e por sua vez as irregularidades estão incluídas na previsão geral do art.º 195º CPC e cujo regime de arguição está sujeito ao disposto no art.º 199º CPC.
O despacho de aperfeiçoamento proferido perante articulado irregular é um despacho vinculado
[21]
. O juiz tem o dever de proferir ao abrigo dos princípios da cooperação e do dever de gestão processual (art.º 6/2 CPC).
A omissão do despacho de aperfeiçoamento não constitui uma nulidade principal, pois não consta do elenco das nulidades previstas nos art.º 186º a 194º e 196º a 198º do CPC.
Representa, pois, a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve, que cai na previsão do art.º 195º CPC e por isso, configura uma irregularidade que só determina a nulidade do processado subsequente àquela omissão se influir no exame e decisão da causa, estando o seu conhecimento dependente da arguição, nos termos previsto no art.º 199º CPC.
A lei não fornece uma definição do que se deve entender por “irregularidade que possa influir no exame e decisão da causa”.
No sentido de interpretar o conceito ALBERTO DOS REIS tecia as seguintes considerações:“[o]s actos de processo têem uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, actos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram actos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela“
[22]
.
Daqui decorre que uma irregularidade pode influir no exame e decisão da causa, se comprometer o conhecimento da causa, a instrução, discussão e julgamento.
Tal omissão tem de ser arguida logo que conhecida, e no prazo previsto no art.º 149º/1 CPC, ou seja, a partir da data em que foi notificado o despacho.
O recurso de apelação não constitui o meio processual próprio para conhecer das infrações às regras do processo quando a parte interessada não arguiu a nulidade perante o tribunal onde aquela alegadamente ocorreu, conforme resulta do regime previsto nos art.º 196 a 199º CPC.
Contudo, seguindo os ensinamentos de MANUEL DE ANDRADE
[23]
, ALBERTO DOS REIS
[24]
e ANTUNES VARELA
[25]
, porque existe a decisão recorrida que sancionou a omissão, na medida em que se pronunciou expressamente sobre o pedido de aperfeiçoamento do articulado, o conhecimento da nulidade pode-se fazer através deste meio de recurso. É que a nulidade está coberta por uma decisão judicial que a sancionou ou confirmou, pelo que o meio próprio de a arguir, será precisamente o recurso.
Considera-se, assim, que a irregularidade foi suscitada em tempo, pelo meio próprio.
No caso concreto, perante a petição deficiente justificava-se, no sentido de regularizar a instância, convidar a autora a alegar os factos concretizadores dos serviços prestados e a juntar os autos de mediação referenciados nas faturas, ao abrigo do art.º 17º/3 DL 269/98 de 01 de setembro e art.º 590º/4, art.º 6º/2 CPC.
A omissão do despacho de convite ao aperfeiçoamento constitui uma irregularidade que interfere no exame e decisão da causa, na medida em que se impediu a autora de juntar documentos e alegar factos suscetíveis de completar a petição, comprometendo a instrução e discussão da causa, gerando a absolvição da instância.
Como se observa no Ac. Rel. Lisboa 24 de setembro de 2020, Proc. 113447/18.0YIPRT.L1-2 (acessível em
www.dgsi.pt
): “a omissão de cumprimento desse dever [convite ao aperfeiçoamento] traduz-se numa nulidade processual, porque o tribunal deixa de praticar um ato devido que não podia omitir
(art.º 195º, nº 1)
, e que acaba por ter reflexo na forma como a ação vem a ser decidida”.
A nulidade praticada determina a revogação da sentença (art.º 195º/2 CPC).
Procedem as conclusões de recurso, sob os pontos 30 a 38.
-
Nos termos do art. 527º/1 CPC as custas são suportadas pela apelante, porque do recurso tirou proveito.
-
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e nessa conformidade revogar a sentença e julgar improcedente a nulidade do requerimento de injunção, com fundamento em ineptidão, por falta de causa de pedir e determinar a prolação de despacho-convite ao aperfeiçoamento do requerimento de injunção, no sentido de convidar a autora a juntar os autos de medição e a concretizar os trabalhos executados.
-
Custas a cargo da apelante.
*
Porto, 13 de janeiro de 2025
(processei, revi e inseri no processo eletrónico – art.º 131º, 132º/2 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Juiz Desembargador-Relator – por vencimento
Teresa Pinto da Silva
1º Adjunto Juiz Desembargador
Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos Freitas Araújo
2º Adjunto Juiz Desembargador
[
Voto Vencido (art.º 663º/1CPC):
Confirmaria a decisão recorrida pelos seguintes motivos:
1)
A propósito da causa de pedir, o art. 552.º/1, al. d), do CPC, impõe ao autor, na petição inicial, a exposição dos factos essenciais que a constituam.
Já relativamente ao procedimento de injunção, estabelece o art. 10.º/1, al. d), do Regime aprovado pelo DL n.º 269/98, de 01 de Setembro, que deve o requerente, no requerimento inicial, para além do mais, expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão.
Feita a comparação entre os dois referidos preceitos legais, constata-se de forma evidente que a exigência de consubstanciação concreta da causa de pedir é aplicável em ambos os casos, à semelhança, aliás, do que sucede no âmbito dos processos especiais regidos pelo Código de Processo Civil (cfr. art. 549.º).
Com a única diferença de que, em sede de requerimento inicial no âmbito do procedimento de injunção, e considerando a respectiva simplicidade, a lei basta-se, nos termos expressos do referido art. 10.º/1, al. d), com a exposição sucinta dos fundamentos fácticos da pretensão.
Não existe, pois, uma diferença essencial nas exigências relativas à causa de pedir entre a generalidade dos processos e o procedimento de injunção; a única distinção prevista na lei é simplesmente de nível ou grau, quanto à maior ou menor pormenorização na exposição dos factos.
O que, na verdade, bem se compreende, uma vez que, sendo embora um procedimento que inicialmente não é judicial, a injunção transforma-se em processo dessa natureza quando haja oposição do requerido ou nas demais circunstâncias que, previstas no art. 16.º/1 do Regime aprovado pelo DL n.º 269/98, determinam a remessa dos autos à distribuição.
Daqui resultando manifesto, como salienta a doutrina, que “o requerente da injunção não está dispensado de invocar, no requerimento, os factos jurídicos concretos que integram a respectiva causa de pedir, certo que a lei só flexibiliza a sua narração em termos sucintos, sintéticos e breves (cfr. Salvador da Costa,
A Injunção e as Conexas Acção e Execução, p. 179).
2)
No caso dos autos, a requerente mencionou
contrato de empreitada
, referiu
data do contrato 29-12-2021
, descreveu o objecto social a que se dedica e alegou que no âmbito dessa atividade
forneceu diversos serviços e trabalhos à requerida
, a pedido desta,
devidamente discriminados nas seguintes faturas: FAC 2021/145, FAC 2022/86 e FAC 2022/87,
especificados na sua qualidade, quantidade e preço
; e que
os respetivos serviços constam das faturas FAC 2021/145, no valor de €10.953,14, FAC 2022/86, no valor de €1.080,80, e FAC 2022/87 no valor de €1.586,81, quantitativos dos quais encontra-se em dívida o valor de €4.167,61
.
Atento este circunstancialismo e à luz das citadas normas, considero que o requerimento padece de falta causa de pedir, por ter omitido os factos essenciais que poderiam justificar a pretensão deduzida.
Desde logo, a referência ao tipo contratual (
empreitada
) não passa de mera qualificação jurídica e nada tem que ver com a factualidade que deve integrar a causa de pedir (cfr., no mesmo sentido, Salvador da Costa, Ob. cit., p. 180). Tal referência, para além disso, é ainda equívoca por referência à expressão
serviços prestados
. Acresce a total ausência de indicação de quais os serviços ou trabalhos prestados, nem a quaisquer circunstâncias relativas ao tempo, lugar e modo do incumprimento.
Neste quadro, partilho do entendimento que a jurisprudência mais recente tem adoptado no sentido de que, no requerimento de injunção, e sob pena de falta de causa de pedir, estando em “causa a celebração de um contrato de fornecimento de bens ou serviços, cabe ao requerente o ónus de indicar o concreto acordo celebrado com a R., os bens ou serviços fornecidos, as quantidades, preço acordado e a entrega do bem ou a prestação do serviço” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/12/2023, tirado no processo 886/23.0YIPRT.C1, da autoria de Cristina Neves e disponível na citada base de dados em linha).
Tal como subscrevo a orientação jurisprudencial no sentido de ocorrer falta de causa de pedir, em situação que verse contrato de mútuo, se “pela requerente nada foi alegado, no requerimento de injunção, nomeadamente qual a quantia que entregou aos requeridos e a obrigação por estes assumida de restituição dessa quantia” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19/2/2024, referente ao processo 1215/22.6T8AGD-A.P1, relatado por Anabela Morais e acessível no referido sítio).
Em suma, creio ser de concluir que ocorre “nulidade do requerimento injuntivo quando este não indique, embora sucintamente, a factualidade concreta que constitui a causa de pedir, limitando-se a indicar genericamente “fornecimento de bens ou serviços” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 9/2/2023, relatado por José Lúcio no processo 102/08.5TBMTL-B.E1 e disponível na página electrónica do Diário de República).
3)
Objecta a recorrente, porém, quanto à ausência de indicação de bens ou serviços, que no formulário destinado ao requerimento de injunção e em sede de contratos de empreitada, não é possível indicar os bens ou serviços fornecidos, em função da sua extensão, e que essa
informação consta dos respetivos autos de medição
.
Todavia, para além de, segundo creio, o formulário em causa já dispor, na actualidade, da dimensão bastante para acomodar a descrição sucinta dos serviços ou dos trabalhos prestados, verifica-se, em acréscimo, que a jurisprudência, a este respeito, tem sentenciado que “a mera remessa para os valores constantes dos autos de medição indicados, com a alegação de que foi incumprido o contrato de empreitada, não tendo sido alegados os factos que integram os elementos constitutivos do contrato de empreitada celebrado, implica o vício da ineptidão do requerimento injuntivo, vício que é do conhecimento oficioso do tribunal” (cfr. Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 21/6/2022, relatado por Alexandra Pelayo no processo nº3052/21.6T8MAI-A.P1 e acessível no sítio
www.dgsi.pt
).
E ainda que a jurisprudência citada incida sobre a ineptidão do requerimento injuntivo como nulidade passível de conhecimento oficioso no processo executivo que o suposto credor intente com base na injunção à qual, por falta de oposição, foi aposta fórmula executória, creio que a mesma orientação tem de ser seguida se a falha for verificada em sede de procedimento de injunção.
Desde logo, porque como é manifesto, o conceito da falta de causa de pedir é uno, aplicando-se indistintamente a uma e outra situação.
Para além disso, e decisivamente, porque não faria sentido, segundo creio e salvo o devido respeito por outra opinião, tratar mais desfavoravelmente o requerido que teve o cuidado de se opor à injunção no procedimento, aí suscitando a questão da ausência da causa de pedir, em face do suposto devedor que nada diz durante a injunção e apenas argui a questão no decurso da execução.
Mais: não reconhecer a ineptidão durante a injunção para conhecê-la na execução constituiria, se bem pensamos, um estranho incentivo ao suposto devedor para se manter inerte no procedimento, por um lado e, por outro, implicaria uma inapropriada transferência do debate sobre essa nulidade, sistematicamente, para os termos do processo executivo.
4)
Por fim, salvo melhor entendimento, não subscrevo o entendimento de que a referência ao objecto social da requerente possa suprir a total falta descrição dos serviços ou trabalhos executados, por força da amplitude que desse objecto social pode resultar, como ocorre no caso dos autos, e ainda mais porque nada impede uma sociedade de ser credora por força de actividades realizadas fora desse objecto.
5)
Posto isto, enfrentaria a questão de saber se o tribunal de primeira instância deveria ter proferido despacho com o sentido de convidar a requerente a aperfeiçoar o requerimento injuntivo.
Para concluir negativamente, desde logo no plano formal, uma vez que o convite ao aperfeiçoamento, nos termos do art. 590.º do CPC, está previsto apenas para o suprimento de meras insuficiências e imprecisões na matéria de facto, pressupondo, pois, a existência, embora imperfeita, da causa de pedir.
Ao invés, a gravidade do vício da ineptidão da petição inicial por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir é de tal modo significativa que para ela, como resulta do art. 186.º do CPC, a lei estabeleceu a nulidade do processo sem a previsão da possibilidade de aperfeiçoamento.
Nestes termos, a jurisprudência tem assinalado que “não é de convidar à correcção da petição inicial (nos termos do art. 590º, nºs 2, al. b), 3 e 4 do nCPC) quando a petição seja inepta nos termos do art. 186º do mesmo diploma, uma vez que só um articulado que não padeça dos vícios mencionados neste último preceito pode ser objecto desse convite à correcção e isto porque se a parte declinar tal convite tal comportamento de inércia não obsta a que a acção prossiga os seus termos, contrariamente à consequência para a ineptidão que é a de determinar a nulidade de todo o processo” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18/10/2016, referente ao processo 203848/14.2YIPRT.C1, da autoria de Manuel Capelo e disponível na citada base de dados).
A este respeito, deve salientar-se que, caso a parte não corresponda ao convite ao aperfeiçoamento previsto no art. 590.º do CPC, o processo terá de prosseguir para que os factos sejam esclarecidos ou aperfeiçoados em audiência prévia (art. 591.º/1, al. c), do CPC) ou em julgamento (art. 5.º/2 do CPC).
Já no caso de falta da causa de pedir, e ao arrepio do que resulta do regime para o convite no art. 590.º do CPC, a falta de resposta subsequente teria forçosamente de conduzir à ineptidão do requerimento inicial, por se manter ausente a descrição dos factos essenciais capazes de suportar o pedido. Estaria em causa, pois, um convite ao aperfeiçoamento sob a cominação, que a lei em algum caso prevê, de ser julgada procedente a excepção da falta da causa de pedir.
6)
Por outro lado, negaria a possibilidade de convite ao aperfeiçoamento e de eventual sanação do vício da ineptidão por esta requerer, necessariamente, a oportuna intervenção conformadora das partes, como bem se compreende face aos princípios do contraditório e do dispositivo que estão subjacentes a tal nulidade.
Sem essa intervenção, a compreensão do objecto do processo não é possível para o demandado, não sendo igualmente admissível que o tribunal, à revelia das partes, proceda a uma tarefa de adivinhação dos fundamentos factuais da pretensão deduzida em juízo.
Por isso, a primeira forma de sanação do vício, prevista no art. 186.º/3 do CPC, depende precisamente da participação do demandado no esclarecimento da causa de pedir e em resultado da interpretação devida da petição inicial que a contestação possa evidenciar.
O que, no caso dos autos, decididamente não se vislumbra ter existido, certo que, mesmo em sede de impugnação, a requerida limitou-se a afirmar, no essencial, que desconhecia a que serviços concretos correspondem os valores facturados pela requerente.
Em segundo lugar, apesar de faltar ou ser ininteligível a causa de pedir, a nulidade poderia abstractamente ser sanada, agora por acção do demandante e de acordo com o Assento nº12/94 do Supremo Tribunal de Justiça, “através da ampliação fáctica em réplica, se o processo admitir esse articulado e respeitado que seja o princípio do contraditório”.
No procedimento de injunção, porém, atenta a apontada simplicidade que o caracteriza, não está prevista na lei a admissibilidade do articulado de réplica, como resulta evidente da leitura do Regime aprovado pelo DL n.º 269/98, de 01 de Setembro.
Todavia, mesmo aplicando tal solução por analogia à injunção, com o fito louvável de garantir o aproveitamento dos actos processuais, a verdade é que a requerente dispôs já de um segundo articulado que poderia ter aproveitado para, pelo menos, tentar concretizar a causa de pedir, quando foi observado o contraditório sobre a excepção, e não o logrou fazer.
Nesse articulado, na verdade, a requerente, para além das considerações jurídicas que entendeu pertinente convocar, apenas procedeu, com eventual relevância para a conformação da causa de pedir, à junção das facturas a que havia feito referência no requerimento inicial.
No entanto, a apresentação de documentos e a remissão para o seu teor não se confunde e não substitui validamente a observância da exigência de alegação dos factos essenciais em que se estriba o pedido.
Como tem sublinhado a jurisprudência, “os documentos são meios de prova e não de alegação de factos”, atento o disposto nos art.ºs 362.º do CC e 5.º, n.º 1, 423.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, alínea d) do CPC.
De modo que “a alegação dos factos essenciais que integram a causa de pedir só poderá fazer-se por remissão para documentos para complementar o alegado na petição inicial, não como forma de alegação principal dos mesmos considerando a sua extensão ou complexidade” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/12/2023, tirado no processo 10908/22.7T8LSB.L1-4, da autoria de Alves Duarte e pesquisável no identificado sítio).
Acresce que, analisados os referidos documentos, é possível verificar que, mesmo essas cópias das facturas referem apenas, no essencial,
Fornecimento e aplicação de materiais de acordo com V/ Auto de Medição
, com indicação do número de cada um desses autos e sem qualquer outra indicação.
Daqui resulta, pois, a total ausência, inclusivamente após a apresentação daquele articulado, de qualquer menção concreta aos serviços, às obras ou aos trabalhos que porventura poderiam justificar o pedido, intuindo-se mesmo que o teor desse articulado é dificilmente compatível com o efectivo conhecimento da factualidade que persiste em falta.
Ou seja, em primeiro lugar, essa mera remissão para autos de medição vem afinal demonstrar que não corresponde à verdade a afirmação da requerente, no requerimento injuntivo, no sentido de que os serviços e trabalhos estão
devidamente
especificados na sua qualidade, quantidade e preço
nas facturas.
Mantendo-se o completo mistério, pois, sobre quais terão sido esses serviços e trabalhos.
E, por outro lado, como acima se disse, essa remissão não é capaz de suprir a falta verificada, de acordo com a jurisprudência que firmou a orientação que “a mera remessa para os valores constantes dos
autos de medição
indicados, com a alegação de que foi incumprido o contrato de empreitada, não tendo sido alegados os factos que integram os elementos constitutivos do contrato de empreitada celebrado, implica o vício da ineptidão do requerimento injuntivo, vício que é do conhecimento oficioso do tribunal” (cfr. Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 21/6/2022, citado).
7)
Por todo o exposto e salvo o elevado respeito pelo entendimento que fez vencimento, creio que ele redundará na concessão de uma terceira, injustificada e imerecida oportunidade para a requerente alegar a causa de pedir.
Bem como que, caso ela não corresponda ao convite, o que em condições normais seria lícito e não comprometeria o normal prosseguimento dos autos, o tribunal de primeira instância terá de enfrentar o julgamento sem saber qual a concreta fonte do suposto crédito e quais os motivos para o dissídio das partes.
E que no caso contrário, i. é, caso a requerente corresponda ao convite, apenas então, no terceiro articulado que apresentar, começará verdadeiramente a descrição e debate dos factos que, na normalidade do processo, tem génese com o oferecimento da petição inicial.
Em suma, creio que foi acertada a decisão recorrida quando sentenciou que, findos os articulados normais da acção, a requerente persistiu sem alegar
os factos concretos de que emerge o direito que se arroga, nomeadamente os factos supra elencados, apenas fazendo alusão à existência de facturas, relativamente às quais, note-se, apenas identifica o número e valor, não explicando minimamente o que originou a emissão da mesma, nem explicita quais os serviços a que tal factura se refere,
o que, no seu dizer, que partilhamos, teria
de conduzir necessariamente à conclusão de que a petição/requerimento injuntivo carece de causa de pedir
.
Estas são, em síntese, as razões da nossa divergência face ao decidido.
]
________________________________
[1]
Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2]
Cf. JOSÉ LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE,
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO
, Vol. II, 3ª EDIÇÃO, Almedina, Coimbra, julho de 2017, pág. 490-491.
[3]
JOSÉ LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO
, Vol. II, ob. cit., pág. 491.
[4]
MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA
ESTUDOS SOBRE O NOVO PROCESSO CIVIL
, 2ª edição, Lex, Lisboa, 1997, pág. 71.
[5]
MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA,
ESTUDOS SOBRE O NOVO PROCESSO CIVIL
, ob. cit., pág.72.
[6]
JOSÉ ALBERTO DOS REIS,
Comentário ao Código de Processo Civil
, vol. II, Coimbra Editora, Lim., Coimbra, 1945, pág. 371.
[7]
JOSÉ LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE
Código de Processo Civil Anotado
, vol. I, 3ª edição, setembro 2014, Coimbra Editora, pág. 353.
[8]
JOSÉ ALBERTO DOS REIS,
Comentário
ao Código de Processo Civil
, ob. cit., pág. 372.
[9]
Cf. EDGAR VALLES,
Cobrança Judicial de Divida, Injunções e Respetivas Execuções
, 7ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 96-97.
[10]
SALVADOR DA COSTA,
A Injunção e as Conexas Acção e Execução
, 6ª edição, Almedina, Coimbra, junho 2008, pág. 210.
[11]
SALVADOR DA COSTA
A Injunção e as Conexas Acção e Execução,
ob. cit., pág. 211.
[12]
SALVADOR DA COSTA
A Injunção e as Conexas Acção e Execução
, ob. cit., pág. 285.
[13]
Ac. Rel. Porto 11 de outubro de 2005, Proc. 0425494, acessível em www.dgsi.pt
[14]
Ac. Rel. Porto 06 de maio de 2008, Proc. 0820883, acessível em www.dgsi.pt
[15]
Ac. Rel. Lisboa 13 de julho de 2021, Proc. 23205/20.3YIPRT.L1-7, acessível em www.dgsi.pt
[16]
Ac. Rel. Lisboa 24 de setembro de 2020, Proc. 113447/18.0YIPRT.L1-2, acessível em www.dgsi.pt
[17]
Ac. Rel. Lisboa de 21 de abril de 1981, C.J., 1981, 2.º, 194; o Ac. Rel. Porto 30 de março de 2006, Proc. 0631115, acessível
www.dgsi.pt
.
[18]
Ac. Rel. Coimbra 10 de setembro de 2024, Proc. 69757/23.7YIPRT.C1, acessível em www.dgsi.pt.
[19]
MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE
Noções Elementares de Processo Civil
, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pág. 156.
[20]
JOSÉ ALBERTO DOS REIS
Comentário ao Código de Processo Civil
, vol. II, ob. cit., pág. 357.
[21]
JOSÉ LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO
, Vol. II, ob. cit., pág. 632; ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA,
Código de Processo Civil Anotado
, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 681.
[22]
JOSÉ ALBERTO DOS REIS,
Comentário ao Código de Processo Civil
, vol. II, ob. cit., pág. 486.
[23]
MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE
Noções Elementares de Processo Civil
, ob. cit., pág. 183.
[24]
JOSÉ ALBERTO DOS REIS
Código de Processo Civil Anotado
, vol. V, Coimbra Editora, pág.424.
[25]
ANTUNES VARELA
et al
Manual de Processo Civil
, 2ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1985, ob. cit., pág. 393.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/f43c55d82723633180258c1a0040c3bb?OpenDocument
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1,745,884,800,000
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CONFIRMADA
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902/21.0T8VIS-B.C1
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902/21.0T8VIS-B.C1
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VÍTOR AMARAL
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1. - Em processo de inventário judicial
mortis causa
, de acordo com o atual figurino processual, é na fase do saneamento que ficam resolvidas todas as questões que possam influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar, o que inclui a matéria de relacionação de bens, sob pena de preclusão (art.º 1110.º, n.º 1, do CPCiv.).
2. - Por isso, não pode o cabeça de casal, na fase da conferência de interessados e para o efeito de licitações, alterar unilateralmente a relação de bens, sob a invocação de que dois prédios relacionados por si sob duas verbas diferentes, constituem uma unidade jurídica, de molde a serem englobados num único lote para licitações.
3. - Recusado tal englobamento e interposto recurso de subsequente decisão de indeferimento da alteração da relação de bens (esta no sentido de passar a considerar-se um único prédio misto, englobando os dois prédios mencionados), recurso esse posteriormente julgado improcedente, não poderia o cabeça de casal, na pendência do recurso, obter a alteração predial pretendida mediante a junção de relação de bens retificada/corrigida, com fundamento em nova realidade registral por si desencadeada (alteração do registo para prédio misto).
4. - Tal superveniente alteração não resultou de imposição legal, tanto mais que não se tratava de prédio omisso, a que se devesse aplicar o “procedimento especial de registo de prédio rústico e misto omisso”, a que alude a Lei n.º 65/2019, de 23-08, mas de ato unilateral voluntário do cabeça de casal, sempre no intuito da operacionalização da dita licitação em conferência de interessados.
5. - Tal não impede que a nova situação registral seja ponderada, para os efeitos convenientes, no momento próprio, em conferência de interessados ainda a levar a cabo.
(Sumário elaborado pelo Relator)
|
[
"PROCESSO DE INVENTÁRIO",
"SANEAMENTO",
"PRECLUSÃO",
"JUNÇÃO DE DOIS PRÉDIOS RELACIONADOS PARA LICITAÇÃO",
"ALTERAÇÃO NO REGISTO PREDIAL PARA PRÉDIO MISTO"
] |
*
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
I –
Relatório
Em autos de inventário
mortis causa
, em que são inventariados
AA
e mulher,
BB
,
e cabeça de casal
CC
,
figurando também como interessados, entre outros,
DD, EE, FF e GG
,
todos com os sinais dos autos,
veio aquele Cabeça de casal, por requerimento datado de 26/04/2024, impetrar que fosse proferido despacho quanto ao por si requerido em 05/05/2023, repristinando o teor desse requerimento e pugnando, afinal, pela correção da relação de bens, descrevendo-se o imóvel a partilhar sob as verbas n.ºs 1 e 2 como sendo um único prédio.
Em resposta, vieram os interessados DD, EE e FF repristinar o teor do seu requerimento de 18/05/2023, concluindo pela rejeição da pretensão do Cabeça de casal, com invocação do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no âmbito dos presentes autos, considerando que o aí decidido implica a rejeição do requerido por tal Cabeça de casal.
A interessada GG veio alegar que a alteração pretendida pelo Cabeça de casal não foi apreciada no âmbito do recurso interposto nos presentes autos, por o requerimento em causa ter dado entrada posteriormente ao despacho recorrido, mais asseverando que a alteração referida pelo Cabeça de casal só ocorreu em virtude do procedimento obrigatório de cadastro simplificado, junto do BUPI, procedimento esse que constitui uma imposição legal. Assim, concluiu que os bens que integram a relação de bens devem ser descritos na sua atualização física e jurídica.
Os demais interessados nada vieram dizer.
Por decisão datada de 27/05/2024, foi indeferido o assim requerido pelo Cabeça de casal.
Este, inconformado, veio interpor o presente recurso, pedindo que lhe fosse fixado efeito suspensivo, com adução de motivação e conclusões, tudo para finalizar pela revogação da decisão recorrida e acolhimento da pretensão vertida em 05/05/2024.
É do seguinte teor o seu
acervo conclusivo
:
«1. Nos presentes autos de inventário, instaurados por óbito de AA e mulher BB, foi apresentada Relação de Bens onde se descreveram os seguintes imóveis:
Verba Um: Prédio Urbano destinado a habitação, composto por casa de rés-do-chão e 1º andar, sito no lugar ..., Estrada ..., na União de Freguesias ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia sob o artigo ...85º, com o valor patrimonial de €105.681,80 (cento e cinco mil, seiscentos e oitenta e um euros e oitenta cêntimos);
Verba Dois: Prédio Rústico composto por terra de cultura com árvores de fruto e videiras, sito no lugar ..., Estrada ..., na União de Freguesias ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia sob o artigo ...59º, com o valor patrimonial de € 220,91 (duzentos e vinte euros e noventa e um cêntimos).
2. Posteriormente, veio o cabeça de casal apresentar Relação de Bens corrigida, com o aditamento do direito de crédito reconhecido em sede de Conferência de Interessados e com correcção da descrição das verbas 1 e 2, relacionando estes numa verba única.
3. Juntou certidão de Registo Predial da descrição nº ...09, da freguesia ... (...), donde consta:
DESCRIÇÃO EM LIVRO:
N.º ...30, Livro N.º ...6
RÚSTICO
DENOMINAÇÃO: Quinta ...
SITUADO EM: ... (...)
MATRIZ nº: 821 NATUREZA: Rústica
COMPOSIÇÃO E CONFRONTAÇÕES:
Terra de semeadura com árvores de fruto , oliveiras e videiras
Norte - caminho público
Sul, Nascente - HH
Ponte - Estrada ...
Desanexado do nº ...60, fls. 86v, B-7
4. E juntou "CONTRATO DE ARRENDAMENTO URBANO PARA HABITAÇÃO" que tem por objecto o prédio urbano, destinado a habitação, composto por casa de rés-do-chão e 1º andar, sito na Estrada ..., ..., Quinta ..., da União de Freguesias ..., concelho ..., inscrito na matriz predial da referida União de Freguesias sob o artigo ...85, com licença de habitação emitida pela Câmara Municipal ...; e o prédio rústico, composto por terra de cultura com árvores de fruto e videiras, sito na Quinta ... - ... da União de Freguesias de ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica da referida União de Freguesias sob o artigo ...59.
5. Essa pretensão do cabeça de casal foi indeferida, por douto despacho de 22/02/2023, vindo esta decisão a ser confirmada por douto acórdão transitado em julgado.
6. Após a interposição de tal recurso, veio o cabeça de casal, mediante requerimento de 05/05/2023, reafirmar que muito embora tivessem sido relacionados separadamente, os imóveis relacionados sob as verbas 1 e 2 constituem um único prédio,
7. Informando que, por força do cumprimento das regras de registo obrigatório no sistema de cadastro simplificado, previstas na Lei n.º 65/2019, de 23.08, ocorreu a actualização e a alteração superveniente do respectivo registo predial.
8. Juntou certidão de Registo Predial da descrição nº ...09, da freguesia ... (...), donde se verifica, agora, constar:
DESCRIÇÃO EM LIVRO:
N.º ...30, Livro N.º ...6
MISTO
DENOMINAÇÃO: Quinta ...
SITUADO EM: ... (...)
Estrada ..., ...
ÁREA TOTAL: 5005,15 M2
ÁREA COBERTA: 150 M2
ÁREA DESCOBERTA: 4855,15 M2
MATRIZ nº: 2885 NATUREZA: Urbana
FREGUESIA: ...
MATRIZ nº: 1059 NATUREZA: Rústica
FREGUESIA: ...
COMPOSIÇÃO E CONFRONTAÇÕES:
PRÉDIO URBANO: Casa de habitação de rés- do chão e 1.º andar - S. C. - 150 m2 e S. D. - 450m2
PRÉDIO RÚSTICO: Terra de semeadura com árvores de fruto, oliveiras e videiras - 4.405 m2
Norte - caminho público
Sul, Nascente - HH
Ponte - Estrada ...
Desanexado do nº ...60, fls. 86v, B-7
9. Esta alteração não foi apreciada no recurso judicial supramencionado, por constituir facto superveniente (objetivo e subjetivo) ocorrido em data posterior ao despacho ali sindicado.
10. Pelo que, sendo designada data para Conferência de Interessados sem que tivesse recaído qualquer decisão sob o requerimento sub júdice, em 23/04/2024 veio o cabeça de casal requerer que, com vista o saneamento dos autos, fosse aquela sua pretensão de 05/05/2023 apreciada, considerando-se a superveniência e ordenando-se a correção da Relação de Bens nos termos ali requeridos.
11. Juntou certidão de registo predial com a descrição inicial do prédio e certidão de registo predial com a descrição actual, por confronto das quais fica demonstrada a alteração superveniente.
12. Foi então proferido o douto despacho recorrido que, concluindo que o mencionado requerimento, pese embora apresentado após a interposição de recurso, mais não é do que uma repetição do requerimento formulado em sede de conferência de interessados e concluindo que tal questão já se encontra definitivamente apreciada e decidida, indeferiu o requerido em 05/05/2023 e condenou o requerente em custas pelo incidente fixadas em 2 UC. Porém,
13. Em primeiro lugar, o Mº Juiz
a quo
incorre em manifesto equívoco, na medida em que não só não foi admitido o recurso da decisão proferida em sede de Conferência de Interessados, como também o que ali foi requerido foi a formação de um lote composto pelas verbas 1 e 2 da Relação de Bens, ao passo que o requerimento de 05/05/2023 visa a correcção da descrição de tais verbas.
14. Em segundo lugar, admitindo-se que o Mº Juiz
à quo
se pretendia referir ao requerimento de 31/01/2023, a verdade é que o mencionado douto acórdão não versa sobre a questão vertida no requerimento de 05/05/2023 - ainda que aquele outro requerimento, de 31/01/2023, e este novo requerimento de 05/05/2023 tenham subjacente a unidade das verbas 1 e 2 - na medida em que os respectivos fundamentos divergem, pelo menos em parte.
15. É certo que, pese embora a determinação, em sentido amplo, dos bens a partilhar deva ser avaliada na fase de articulados e na fase de saneamento, é possível nova discussão com base em factos ou documentos supervenientes.
16. E é precisamente esta superveniência que está na base deste (novo) pedido de correcção da Relação de Bens de 05/05/2023.
17. Enquanto que no requerimento de 31/01/2023 (cujo despacho de indeferimento foi objecto de recurso tendo sido proferido o douto acórdão de fls. 104-116 a que se alude) não se suscitou qualquer questão de superveniência (e foi, precisamente, essa razão que conduziu à improcedência do recurso interposto pelo cabeça de casal), o requerimento ora em apreço tem por base a superveniência decorrente de documento e alteração da descrição predial dos imóveis objecto de partilha, ocorrida por força do procedimento obrigatório no sistema de cadastro predial simplificado.
18. Isto é: o requerimento de 05/05/2023 tem por base factos e documentos supervenientes traduzidos na adequação do registo predial em respeito e obediência ao procedimento obrigatório no sistema de cadastro simplificado;
19. Ainda que um e outro requerimento (de 31/01/2023 e de 05/05/2023) sejam susceptíveis de produzir o mesmo resultado, isto é, sejam ambos susceptíveis de levar à unidade das duas verbas relacionadas sob os nºs 1 e 2, os seus fundamentos são distintos, pois o segundo decorre de facto ou documento superveniente e o primeiro não.
20. Pelo que, a decisão e o acórdão proferidos quanto àquele requerimento de 31/01/2023, não constituem obstáculo oponível a esta pretensão do cabeça de casal de adequar a Relação de Bens à realidade da actual descrição física, jurídica e registral dos respectivos prédios.
21. Se antes na descrição do prédio descrito, na freguesia ... (...), sob o nº ...09 constava: Prédio rústico, composto por terra de semeadura com árvores de fruto, oliveiras e videiras;
22. Actualmente consta da referida descrição: Prédio Misto com a área total de 5.005,15m2, composta a parte urbana de casa de habitação de rés-do-chão e 1º andar e a parte rústica composta de terra de semeadura com árvores de fruto, oliveiras e videiras;
23. Encontrando-se assim, supervenientemente, concretizado e demonstrado que os imóveis relacionados sob as verbas 1 e 2 constituem um único prédio, misto, devendo assim passar a ser descritos e a constar da Relação de Bens.
24. Esta alteração, como se disse, ocorreu em Abril de 2023, aquando do procedimento obrigatório no sistema de cadastro simplificado, junto do BUPI, e é o resultado da identificação das propriedades na plataforma BUPI;
25. Sendo, por isso, superveniente à fase da apresentação da Relação de Bens.
26. Certo é que esta alteração é relevante e condiciona a partilha, na medida em que os prédios tal como descritos na Relação de Bens não existem, existindo, outrossim, um prédio misto.
27. Não existindo ainda qualquer partilha, sequer Conferência de Interessados, não se verificam quaisquer obstáculos à invocação de factos ou documentos supervenientes constantes do artigo 588º, nº1 e 2 do C.P.C., pelo que, ao não decidir desta forma o Mº Juiz o quo fez uma errada interpretação desta norma.
28. Deste modo, saneando-se os autos, deve esta alteração superveniente ser atendida e, consequentemente, deve revogar-se o douto despacho recorrido, substituindo-o por outro que admita a correcção da Relação de Bens nos termos requeridos, descrevendo-se o imóvel a partilhar conforme descrito no requerimento de 05/05/2023 e no respectivo registo predial.
Nos termos expostos e nos melhores de direito que Vªs Exªs suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido e substituindo-se por outro em conformidade com o requerido em 05/05/2023, assim se fazendo a inteira e costumada
JUSTIÇA!» (destaques retirados).
Não foi oferecida contra-alegação de recurso.
Tal recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo – embora dando-se sem efeito a conferência de interessados até ser proferida decisão pelo Tribunal superior –, termos em que foi ordenada a remessa a este Tribunal da Relação (doravante, TRC), onde foi mantido o regime fixado (
[1]
).
Nada obstando, na legal tramitação recursiva, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.
II –
Âmbito recursivo
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que
definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso
(
[2]
), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, está em causa na presente apelação saber se deve ocorrer alteração/correção da relação de bens, nos termos requeridos, por razões de superveniência (novo registo predial), contemplando-se um único imóvel – prédio misto – a partilhar, em vez dois prédios, relacionados originariamente sob as verbas n.ºs 1 e 2.
III –
Fundamentação
A) Matéria de facto
O substrato factual e a dinâmica processual a considerar para decisão do recurso são, para além do que consta do antecedente relatório, cujo teor se dá aqui por reproduzido, os descritos na decisão recorrida, onde – embora sem demarcação de uma específica parte fáctica – se exarou o seguinte:
«
Nos presentes autos, na conferência de interessados realizada a 30 de janeiro de 2023, o cabeça de casal veio requerer que as verbas n.ºs 1 e 2 deviam ser constituídas como um único lote, por constituírem uma só unidade jurídica.
Sobre tal requerimento, recaiu o despacho proferido nessa conferência de interessados, do qual consta, além do mais, que «
a regra é, conforme emerge do art. 1113º n.º 2 do Código de Processo Civil, a licitação separada de cada verba, regra essa que, contudo, pode ser afastada conquanto se verifiquem os requisitos previstos na parte final do mesmo normativo, o que na situação ajuizada não se verifica, face à ausência de acordo de todos os interessados para a formação desse lote, por um lado, e também por entendermos que a sua criação não possibilitará uma repartição igualitária do acervo hereditário, não se olvidando ainda que dos documentos constantes dos autos e referentes às verbas 1 e 2, bem como da avaliação às mesmas efetuada, não resulta demonstrada a invocada unidade jurídica e ou física dos prédios. Pelo exposto indefere-se a requerida constituição de um lote composto pelas identificadas verbas.
»
Tal despacho foi objeto de recurso por parte do cabeça de casal, o qual pugnou, além do mais, pela sua revogação (cf. fls. 4-8 dos autos apensos).
Nessa sequência, foi proferido o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, que constitui as fls. 104-116 dos autos apensos, o qual julgou totalmente improcedente o recurso apresentado pelo cabeça de casal, tendo-se aí concluído que «
após o proferimento de despacho que, em inventário judicial, determina o aditamento de nova verba e manda operar pelos serviços do tribunal a alteração da relação de bens, o cabeça-de-casal não pode, na sequência de tal despacho, apresentar nova relação de bens que incorpora o bem adita e o relaciona de forma diferenciada face ao despacho proferido
» e ainda que «
o cabeça-de-casal não pode, a coberto da invocação de uma alegada correção de erro não evidente nem demonstrado, alterar unilateralmente o relacionamento dos bens, contra o que constava da relação de bens original
», mas também que «
a apreciação do requerimento de junção de nova relação de bens com aditamento de bem de forma indevida e com a alegada correção de forma de relacionamento de certas verbas constitui um incidente anómalo tributável
».
Tal aresto já transitou em julgado.
Posteriormente à interposição de recurso veio o cabeça de casal requerer, no seu requerimento de 5 de maio de 2023, que as verbas n.ºs 1 e 2 deviam ser constituídas como um único lote, por constituírem uma só unidade jurídica.
»
.
B) Impugnação de direito
O Apelante, no seu “requerimento” apresentado em 05/05/2023, admitiu que diligenciou – ele próprio, “enquanto herdeiro e cabeça de casal” – «a união registral dos imóveis, a qual se encontra registada conforme consta a actual certidão de registo predial (…) onde a edificação passou a constar no prédio misto, (…) composto o prédio urbano de casa de habitação (…) e o prédio rústico, de terra de semeadura (…)».
Na fundamentação jurídica da decisão recorrida expendeu-se, sinteticamente, assim:
«Ora, é por demais evidente que tal requerimento, pese embora apresentado após a interposição de recurso, mais não é do que uma repetição do
requerimento formulado em sede de conferência de interessados
, o qual foi indeferido pelo despacho do qual o cabeça de casal recorreu e sobre o qual foi proferido o acima mencionado aresto, transitado em julgado.
Donde, outra não pode ser a conclusão de que tal questão já se encontra definitivamente apreciada e decidida no âmbito dos presentes autos, tendo-se decidido pelo indeferimento da pretensão do cabeça de casal.» (sublinhado aditado).
Analisado agora aquele “requerimento” de 05/05/2023, constata-se que o Cabeça de casal, para além de “juntar Relação de Bens com o crédito, com valor actualizado e estabilizado”, nada de concreto requereu ao Tribunal, a não ser a “junção aos autos”, sendo que, assim, juntou “Relação de Bens” e “certidão de registo predial”.
Nessa relação de bens, veio identificar, então, um “prédio misto”.
Ou seja, não foi formulada qualquer concreta pretensão – com fundamentação e pedido – de alteração da relação de bens quanto a imóveis, a que o Tribunal devesse análise e decisão.
Com efeito, sabido que havia já sido indeferido anterior requerimento do Cabeça de casal – onde este aludia às verbas n.ºs 1 e 2 como sendo “uma só unidade jurídica” – e que da respetiva decisão judicial havia sido interposto recurso para a Relação, não lhe bastava apresentar, com reporte aos mesmos imóveis (os daquelas verbas n.ºs 1 e 2 da originária relacionação), outra relação de bens [“RELAÇÃO DE BENS (corrigida)”], sem nada de concreto requerer a respeito, muito menos fundamentar para tanto, limitando-se a juntar tal outra relação de bens.
Assim sendo, no “requerimento” de 05/05/2023 nada se requer explicitamente quanto a tais imóveis e, ainda que se entendesse tratar-se de requerimento implícito (visto o teor da nova “relação corrigida”), a verdade é que nenhuma fundamentação foi apresentada eficazmente para tanto, e teria de sê-lo, tanto mais que já havia sido interposto recurso sobre a situação dos mesmos imóveis, recurso esse então ainda pendente de decisão superior.
Tal inexistência de fundamentação eficaz logo decorre da invocação, pelo próprio Cabeça de casal, no sentido de ter sido ele mesmo, como herdeiro e cabeça de casal, a diligenciar,
a posteriori
, pela união registral dos imóveis.
O que significa que, depois de apresentada a originária relação de bens – onde os imóveis eram relacionados separadamente sob as verbas n.ºs 1 e 2 – e após ter sido indeferida a consideração desses imóveis,
em
conferência de interessados
(
[3]
) (
[4]
) (
[5]
), como constituindo uma unidade predial, o que viria a ocasionar a interposto recurso (com referência a pretendida alteração da relação de bens no sentido da unificação das duas verbas num só prédio misto), o Cabeça de casal, unilateralmente, decidiu alterar a situação registral desses prédios, obtendo o respetivo (novo) registo como um só “prédio misto”.
E, na sequência, veio apresentar, então, a nova relação de bens (corrigida) quanto a um direito de crédito, altura em que aproveitou para alterar a relacionação de âmbito imobiliário, surgindo então o dito prédio misto, em vez das originárias verbas n.ºs 1 e 2.
Não pode, pois, deixar de concluir-se que tal alteração, quanto à vertente imobiliária, para além de colidir com a originária relação de bens, contende também com a dita matéria recursiva, onde se discutia a situação dos prédios.
Ou seja, o Cabeça de casal e ora Recorrente não esperou pela decisão do recurso – que até veio a ser desfavorável à sua pretensão e transitou em julgado – e avançou unilateralmente para a consecução do seu objetivo pela via registral, alterando o registo para “prédio misto”, com vista a, em estratégia de facto consumado, reiterar, na prática, a sua pretensão, sob o pretexto de haver matéria superveniente que justifica o seu deferimento e que não foi considerada na instância recursiva anterior.
Ora, se é certo que se trata de alteração registral de produção/realização superveniente, não é menos seguro, como visto, que tal resultou de uma conduta unilateral do Cabeça de casal, o qual, no decurso do processo, em vez de esperar pela decisão do recurso interposto, avançou para a voluntarística alteração registral da situação dos imóveis, em divergência com o que ele próprio relacionara nos autos e de molde a conseguir, pela via registral, o que não conseguira na instância judicial (nem veio a alcançar na sua apelação), a dita “unidade” como prédio misto.
Não colhe, neste âmbito, salvo o devido respeito, a invocação do disposto na Lei n.º 65/2019, de 23-08, em termos de se ter tratado de alteração obrigatória da situação dos prédios já relacionados separadamente, de molde a que a alteração (para prédio misto) houvesse decorrido de imposição legal.
Com efeito, o art.º 8.º daquele diploma legal, referente ao “Procedimento especial de registo de prédio rústico e misto omisso”, dispõe, no seu n.º 1, que
o procedimento especial de registo de prédio rústico e misto omisso é aplicável aos prédios não descritos no registo ou descritos sem inscrição de aquisição ou reconhecimento de direito de propriedade ou de mera posse em vigor, com as especificidades previstas na presente lei
.
Ora, não resulta que a realidade imobiliária relacionada constituísse prédio omisso, posto o Recorrente reconhecer, ao invés, tratar-se do “n.º ...75/...09”, objeto de “actualização e alteração superveniente” (cfr. requerimento de 26/04/2024 e certidão então junta).
Este aproveitamento, por esta forma, da via registral tem de considerar-se, à luz dos autos, como uma intervenção anómala do Cabeça de casal, já que consumada à margem do processo e até do recurso então pendente, conseguindo fora do processo o que não lhe havia sido reconhecido neste, tratando-se de ato voluntarístico e unilateral, numa lógica de facto consumado.
Donde que a invocação de superveniência não possa colher num tal contexto, já que o facto superveniente foi unilateralmente provocado pelo Cabeça de casal (quanto à alteração/unificação num único prédio), por forma a conseguir na via registral o que não lhe foi concedido no processo e, desse modo, fazer vingar a sua posição processual, que a Relação não acolheu e cujo acórdão transitou em julgado.
Não se olvida, assim, que foi na conferência de interessados que o cabeça de casal veio requerer que as verbas n.ºs 1 e 2 fossem consideradas como um único lote, por constituírem uma só unidade jurídica, para efeitos de licitações, o que lhe foi indeferido.
Ou seja, a sua motivação reportava-se às licitações – matéria da conferência de interessados (
[6]
) – e não à relação de bens, enquanto tal, matéria esta que devia ficar resolvida, como ficou, na anterior fase do saneamento.
Termos em que o deferimento/acolhimento de tal superveniente posição processual atentaria, substancialmente, contra a autoridade do caso julgado formal decorrente do anterior acórdão do TRC – sem esquecer, reitera-se, que a matéria da relação de bens e do saneamento do processo ficou resolvida na fase própria, aquela a que alude o art.º 1110.º do CPCiv., logo, anteriormente à conferência de interessados –, posto a questão essencial, e a inerente motivação do Cabeça de casal, ser sempre a mesma, a da invocada unidade jurídica, para efeitos de licitações, sendo que a originária relação de bens se encontrava em conformidade com a realidade registral coeva.
Dir-se-á que o acórdão não se pronunciou sobre a nova matéria de registo, por superveniente, mas ao que terá de objetar-se que tal ocorreu quando o Cabeça de casal não esperou – como devia – pela decisão do recurso.
Se o tivesse feito, deparar-se-ia com o indeferimento da sua pretensão.
Ao invés, procurou, em antecipação, resolver aquele específico problema no registo, de forma ínvia, de molde a garantir o sucesso prático da sua pretensão processual fora do processo, ao arrepio, assim, do que fosse – e veio a ser – decidido pelo Tribunal de recurso.
Tudo sem um requerimento expresso, com fundamentação adequada a respeito, mas na dita lógica de facto consumado, juntando nova relação, com unilateral correção para acolhimento de um “prédio misto”, em vez do que constava da relação originária e já na fase da conferência de interessados.
Assim sendo, pelos motivos apontados, não pode acolher-se, salvo o devido respeito, a pretensão recursiva da presente apelação: a alteração da relação de bens, no plano imobiliário.
Sem prejuízo de a nova situação registral haver de poder ser ponderada, para os efeitos convenientes, no momento oportuno, em sede de conferência de interessados a levar ainda a cabo (
[7]
).
A apelação deve, pois, improceder.
Finalmente, em matéria de custas do recurso, vale a regra do decaimento, a que alude o art.º 527.º, n.º 1, do NCPCiv.: as custas da apelação serão suportadas pelo Recorrente, por ficar vencido no recurso.
***
IV – Sumário
(
[8]
): (…)
***
V – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, mantendo-se, por isso, a decisão recorrida.
Custas da apelação pelo Recorrente, atento o seu decaimento (cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).
Coimbra, 29/04/2024
Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).
Assinaturas eletrónicas.
Vítor Amaral (relator)
Carlos Moreira
Fernando Monteiro
(
[1]
) Subjacente está o entendimento de que, fixado efeito meramente devolutivo, mas dando-se sem efeito a conferencia de interessados, até decisão deste recurso, não ocorre, por isso, prejuízo processual para o Recorrente, nada obstando à manutenção do regime recursivo.
(
[2]
) Excetuadas, naturalmente, questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
(
[3]
) Quanto, especificamente, à disciplina do processo de inventário, na parte agora relevante, dispõe o art.º 1110.º do NCPCiv. que, realizadas as diligências instrutórias necessárias, o juiz “profere despacho de saneamento do processo”, resolvendo “todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar” [n.º 1, al.ª a)]. Findo também o prazo para os interessados proporem a forma da partilha [n.º 1, al.ª b)], profere despacho sobre o modo como deve ser organizada a partilha, definindo as quotas ideais de cada um dos interessados, e
designa o dia para a realização da conferência de interessados
(n.º 2), visando o acordo sobre a composição dos quinhões entre todos os interessados (n.º 7). Ou seja, prevê-se a prolação da forma à partilha antes da realização da conferência de interessados, cabendo ao juiz proferir despacho sobre o modo como tal partilha deve ser organizada. Na conferência de interessados (art.º 1111.º do NCPCiv.), o juiz deve, em tentativa de conciliação, incentivar os interessados a procurar uma solução amigável para a partilha, ainda que parcial, dos bens, sensibilizando-os para as vantagens de uma autocomposição dos seus interesses (n.º 1), âmbito em que podem os interessados acordar, por unanimidade, que a composição dos quinhões se realize por algum dos modos seguintes: (i) designação das verbas que vão compor, no todo ou em parte, o quinhão de cada um dos interessados e os valores por que são adjudicados; (ii) acordo na venda total ou parcial dos bens objeto da partilha e na distribuição do produto da alienação pelos interessados [n.º 2, al.ªs a) e c)].
(
[4]
) As questões que se prendem com a relação de bens respeitam a uma fase bem determinada do processo, a do saneamento, não podendo transitar para a fase seguinte, por isso se entendendo que: «1. - Em processo de inventário, as decisões sobre o saneamento do processo, com lugar na fase anterior à da conferência de interessados, têm por objeto todas as questões, colocadas até essa fase, que possam ter influência na partilha, designadamente exceções, questões prévias ou incidentais ou nulidade de ocorrência anterior. // 2. - Fora do saneamento do processo estão, pois, todas as questões que venham a colocar-se já na fase (posterior) da conferência de interessados, como as que se reportem a avaliações de bens e licitações ou à forma de satisfação do passivo, cumprimento de legados e incidente de inoficiosidade.» [cfr., entre outros arestos, a decisão singular do TRC de 21/10/2024, Proc. 4812/21.3T8CBR-A.C1 (Rel. Vítor Amaral), em www.dgsi.pt].
(
[5]
) Como vêm enfatizando a doutrina e a jurisprudência, passou a vigorar, no atual processo de inventário, um verdadeiro sistema de preclusões, até agora inexistente, com fases processuais bem demarcadas e com sujeição à regra da prática dos atos no tempo e fase adequados, sob pena, em regra, de preclusão ou cominatório – cfr,
inter alia
, o Ac. TRC de 10/09/2024, Proc. 105/20.1T8CDR-A.C1 (Rel. José Avelino Gonçalves), em www.dgsi.pt, e doutrina e jurisprudência ali citadas.
(
[6]
) Cfr., sobre o saneamento do processo e o objeto da conferência de interessados, Abrantes Geraldes e outros, Cód. Proc. Civ. Anot., vol. II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, ps. 620 e segs. e 624 e segs..
(
[7]
) O facto da superveniente alteração registral para “prédio misto” (em vez de dois prédios, correspondentes a duas verbas da relação de bens e a ser objeto de eventuais licitações em conferência de interessados) não pode deixar de ser considerado para o efeito de futura formação de lotes e licitações, em conferência de interessados, e inerentes operações de partilha.
(
[8]
) Da responsabilidade do relator, nos termos do disposto no art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv..
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TRC
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https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/a90ef38cc681300980258c90002e0eab?OpenDocument
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1,745,884,800,000
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IMPROCEDENTE
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16743/24.0T8LSB.L1-7
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16743/24.0T8LSB.L1-7
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RUTE SABINO LOPES
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Sumário
:
(da responsabilidade da relatora - art. 663º/7 CPC):
1- Numa ação de responsabilidade civil contra o Estado, interposta por dois autores com fundamento, em ambos os casos, na prisão ilegal do primeiro autor, é aplicável, também ao segundo autor, o prazo de caducidade do artigo 226.º, do Código de Processo Penal de um ano.
2 – Apesar do artigo 226.º não se aplicar diretamente ao segundo autor, por não ser este quem sofreu detenção ou prisão ilegal, a aplicação do prazo de caducidade impõe-se por força do artigo art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro e à luz do
princípio da coerência axiológica do sistema jurídico.
|
[
"ACÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRA O ESTADO",
"PRISÃO ILEGAL",
"DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO",
"CADUCIDADE",
"PRINCÍPIO DA COERÊNCIA AXIOLÓGICA DO SISTEMA JURÍDICO"
] |
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
MA e Global Workers, Lda. intentaram ação de processo comum contra o Estado Português, peticionando a sua condenação no pagamento ao 1.º A. da quantia de € 151.500,00, e à 2ª A. da quantia de €3.000.000,00.
Para tanto alegaram, em síntese, que o 1.º A. foi detido em 31.05.2016, tendo-lhe sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva, por ser entendido que existiam fortes indícios da prática pelo 1.º A, em concurso real, dos crimes de tráfico de pessoas, p.p. pelo art.º 160.º, n.º 1, als. b) e d), do Código Penal, e adesão a associação criminosa, p.p. pelo art.º 299.º, n.º 2, do Código Penal.
Após abertura de instrução, veio a ser proferida decisão que não pronunciou o 1.º A. pelo crime de associação criminosa, mantendo a pronúncia relativamente ao crime de tráfico de pessoas, tendo também a 2.ª A. sido pronunciada. Em tal decisão instrutória foi revogada de imediato a medida de coação de prisão preventiva, impondo-se em lugar dela a obrigação de permanência na habitação, alteração que veio a ser executada em 1.12.2016.
O 1.º A. manteve-se em cumprimento de tal medida de coação até 25.03.2019, de acordo com o alegado, tendo sido absolvido por acórdão transitado em julgado em 30.06.2021.”
O réu Estado Português, representado pelo Ministério Público, apresentou contestação, invocando a exceção perentória da caducidade do direito de ação do 1º A. (MA), com a consequente absolvição do R. do pedido formulado por este autor; e, sem conceder, defendeu a improcedência da ação, por não provada, nos termos da impugnação deduzida, com a absolvição do réu dos pedidos contra si formulados por ambos os autores.
Notificados para se pronunciarem, os AA. nada disseram, sendo que na petição inicial já haviam sustentado que o prazo de prescrição aplicável é de 3 anos, nos termos do artigo 498.º do Código Civil, aplicável por via do artigo 5.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas.
Foi proferida
decisão
com o seguinte
dispositivo
:
“Em face do exposto, absolve-se o R. da totalidade do pedido formulado pelos AA., por verificação da exceção perentória de caducidade do direito que fundamenta a presente ação.
Custas pelos AA., nos termos do artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.”
Inconformados com a sentença, vieram os autores dela interpor o presente
recurso de apelação
, formulando as seguintes
conclusões
[transcrição]:
1. O presente recurso incide sobre a decisão que julgou verificada a exceção perentória de caducidade, relativamente à totalidade dos pedidos formulados, nos termos do art.º 226.º, do CPP e absolveu o Estado Português.
2. O Tribunal a quo considerou que todo o pedido de indemnização se encontrava sujeito ao prazo de caducidade de um ano, previsto no art.º 226.º, n.º 1, do CPP, aplicável a pedidos por privação injustificada da liberdade.
3. Contudo, os Recorrentes não fundamentam o seu pedido, exclusivamente, na privação da liberdade, mas também no erro judiciário que determinou as duas condenações, em sede de primeira instância.
4. O art.º 13.º do RRCEE prevê que o Estado responde pelos danos decorrentes de decisões judiciais manifestamente inconstitucionais, ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto.
5. O art.º 5.º do RRCEE, determina que, nas matérias não reguladas expressamente na lei especial, aplicam-se as regras gerais da responsabilidade civil, remetendo para o Código Civil, nomeadamente o artigo 498.º do Código Civil, que fixa um prazo de prescrição de três anos para a responsabilidade civil extracontratual.
6. Apenas se encontra sujeita a lei especial e, concretamente, à disciplina dos artigos 225.º e 226.º, do CP, a parte do pedido formulado pelo 1.º Recorrente, que funda exclusivamente na privação injustificada da liberdade (artigos 52 a 61, da PI).
7. Nos artigos 31 a 34, 36 e 47 a 51, da PI, relativamente ao 1.º Recorrente, foram alegados danos diversos dos resultantes da privação da liberdade.
8. Estes danos foram causados, não pela privação da liberdade, mas sim, pelas decisões judiciárias de condenação eivadas de erro, pelo que, quanto a estes danos o RRCEE, é o único aplicável.
9. Assim, os danos patrimoniais sofridos pela 2.ª Recorrente e os danos morais e reputacionais do 1.º Recorrente, que decorrem do erro judiciário das respetivas condenações em 1.ª Instância, não estão sujeitos ao prazo de caducidade de um ano, mas sim ao prazo geral de três anos.
10. Aliás, apenas as pessoas singulares são suscetíveis de privação de liberdade, mormente, de sofrerem detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação.
11. Os artigos 225.º e 226.º, do CPP, apenas podem ser aplicados às pessoas singulares e nunca a pessoas coletivas, como é o caso da 2.ª Recorrente.
12. Sendo as normas dos artigos 225.º e 226.º, do CPP, de aplicação exclusiva às pessoas singulares, o RRCEE, é o único aplicável, in casu, à 2.ª Recorrente.
13. Assim, o Tribunal
a quo
, ao decidir como decidiu, violou, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 225.º e 226.º, do CPP, quando os interpretou no sentido de serem aplicáveis a pessoas coletivas e aplicando-os à 2.ª Recorrente, quando devia ter interpretado estes preceitos legais, no sentido da sua aplicabilidade exclusiva às pessoas singulares, porquanto tutelam bem jurídico eminentemente pessoal, ou seja, a liberdade.
14. O Tribunal
a quo
violou, também por erro de interpretação, o disposto nos artigos 225.º e 226.º, do CPP, relativamente ao 1.º Recorrente, quando os interpretou no sentido de serem aplicáveis aos danos que sofreu não emergentes da privação da liberdade, quando devia ter interpretado estes preceitos legais, no sentido da sua aplicabilidade exclusiva aos danos resultantes da detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação.
15. O Tribunal a quo violou, ainda, por erro de interpretação, o disposto no art.º 1.º, n.º 1, do RRCEE, porque o interpretou no sentido de não ser aplicável aos danos alegados pelo 1.º Recorrente, provocados pela ofensa à sua honra, o crédito e bom-nome, quando estes danos são tutelados, precisamente, pelo regime aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, não existindo qualquer outro regime especial que os tutele, pois, o regime especial dos artigos 225.º e 226.º, do CPP, apenas é aplicável aos danos resultantes, stricto sensu, da detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação.
16. Em suma, a decisão do Tribunal a quo, que julgou procedente, a exceção perentória de caducidade do exercício dos direitos dos Recorrentes, por aplicação do art. 226.º do CPP, apenas é aplicável aos pedidos de indemnização por privação injustificada da liberdade e não à totalidade dos pedidos formulados, porquanto têm diversos fundamentos.
17. A douta sentença recorrida deve ser revogada, na parte em que declara caducado todo o direito de ação e, consequentemente, ser determinado que o Tribunal de Primeira Instância, ordene o prosseguimento dos autos, para apreciação dos pedidos relativos aos danos patrimoniais e não patrimoniais tempestivamente peticionados e causados pelo erro judiciário das condenações revogadas em sede de recurso e que redundaram nas respetivas absolvições.
Conclui a recorrente que deve o recurso ser julgado procedente e consequentemente deve ser revogada a sentença, na parte em que declara caducado todo o direito de ação e, consequentemente, ser determinado que o Tribunal de Primeira Instância, ordene o prosseguimento dos autos.”
*
O R., representado pelo Ministério Público, contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II. QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados nos artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importa, no caso, apreciar e decidir da seguinte questão:
- Caducidade/prescrição do direito de ação.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO
A factualidade relevante para a decisão é a que consta do relatório
supra
.
*
IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A decisão posta em crise julgou verificada a exceção perentória de caducidade do direito de indemnização invocado na presente ação e consequentemente absolveu o réu (R.) do/s pedido/s.
Os autores/recorrentes pugnam pela revogação da decisão “na parte em que declara caducado todo o direito de ação”, pretendendo que seja determinado que o tribunal de 1ª instância ordene o prosseguimento dos autos para apreciação dos pedidos relativos aos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pelo erro judiciário das decisões penais de condenação dos arguidos/ora apelantes, que por via da procedência do respetivo recurso, conduziram à sua absolvição no processo crime.
Sustentam, em síntese, que:
- O Tribunal
a quo
considerou que todo o pedido de indemnização se encontrava sujeito ao prazo de caducidade de um ano, previsto no art. 226º/1 do CPP, aplicável a pedidos por privação injustificada da liberdade.
- Contudo, os Recorrentes não fundamentam o seu pedido, exclusivamente, na privação da liberdade, mas também no erro judiciário que determinou as duas condenações em sede de primeira instância.
- Os danos patrimoniais sofridos pela 2ª recorrente e os danos morais e reputacionais do 1.º Recorrente, que decorrem do erro judiciário das respetivas
condenações em 1.ª instância, não estão sujeitos ao prazo de caducidade de um ano (previsto no art. 226º do CPP), mas sim ao prazo (de prescrição) geral de três anos (previsto no art. 498º do Código Civil, aplicável
ex vi
art. 5º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro).
- Apenas as pessoas singulares são suscetíveis de privação de liberdade, mormente, de sofrerem detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação, pelo que os artigos 225.º e 226.º do CPP apenas podem ser aplicados às pessoas singulares e nunca a pessoas coletivas, como é o caso da 2.ª Recorrente.
Concluem que a decisão do Tribunal
a quo
, que julgou procedente a exceção perentória de caducidade do exercício dos direitos dos Recorrentes, por aplicação do art. 226º do CPP, apenas é aplicável aos pedidos de indemnização por privação injustificada da liberdade e não à totalidade dos pedidos formulados, porquanto têm diversos fundamentos.
Contra posiciona-se o R. Estado Português/ora apelado, representado pelo Ministério Público, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, aduzindo, em suma, que decorre do alegado pelos AA. que os pretensos danos resultaram da aplicação das medidas de coação de prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica e a sua revalidação em decisões posteriormente proferidas, não se divisando, para os mesmos, outra causa que não essa. Além disso, alega que o pedido deduzido quanto à 2ª A. alicerça-se, também e ainda, na privação da liberdade do 1º A., conforme se infere, entre outros, dos arts. 72º, 73º e 75º da petição inicial.
Concluindo, o Ministério Público que o pedido final formulado por cada um dos Autores não se fundamenta em causas autónomas e diferenciadas, mas sim, nas decisões de privação da liberdade do 1º Autor, às quais é imputado erro.
Vejamos antes de mais, a questão de saber se o fundamento do pedido se atém exclusivamente à privação da liberdade, ou também ao erro judiciário que determinou as duas condenações em sede de primeira instância.
Os AA. fundam o pedido de indemnização formulado no invocado erro judiciário decorrente das decisões judiciais que, segundo alegam, validaram a detenção do ora 1º A. (arguido no processo crime identificado na petição inicial), lhe aplicaram medidas de coação privativas da liberdade (prisão preventiva e posteriormente, obrigação de permanência na habitação) e a mantiveram durante 2 anos, 9 meses e 25 dias (entre 31.05.2016 e 25.03.2019), assim como a sentença penal condenatória, que terá sido alterada em sede de recurso, “tornando as decisões anteriores totalmente injustificadas e eivadas de erro grosseiro, pois, só um erro qualificado pode determinar tão grave situação.” (v. art 27º da petição inicial).
Consideram os AA. que “o erro judiciário pelo qual o R. é responsável, atentou contra a honra, o crédito e o bom-nome dos AA., causando neste danos de natureza não patrimonial que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito e são passíveis do pagamento de uma indemnização nos termos dos artigos 13.º e 2.º, do RRCEE, este decalcado do art.º 496.º, n.º 1, do CC.” (art. 26 da petição inicial). Concluindo que: “os danos provocados pelo erro judiciário de que foi vítima, além de terem afetado negativamente o seu bom nome, de terem atingido a sua honra e dignidade, geraram no 1.º A sentimentos de vergonha, humilhação, angústia e tristeza, que perduram até hoje. Esses danos consubstanciaram-se, ainda, em sentimentos de ansiedade e medo, bem como, perturbações de sono, com insónias recorrentes, perda de apetite e alguma apatia” (arts 47 e 48 da petição inicial).
No que tange à 2ª A. Global Workers, Lda., é alegado se trata de sociedade que se dedicava à prestação de serviços destinados à contratação de mão-de-obra estrangeira, mediante a obtenção dos necessários vistos de trabalho, junto das embaixadas portuguesas, e que a partir da data da detenção do 1.º A., não foi deferido mais nenhum dos vistos porquanto a situação processual do 1.º A. (sócio da 2ª R) e demais intervenientes foi transmitida às entidades oficiais competentes (art. 72º da petição inicial), o que levou a que a 2.ª A. tivesse deixado de receber a retribuição correspondente ao exercício da sua atividade e as empresas ficaram sem os trabalhadores de que careciam para as suas campanhas agrícolas, perdendo a 2ª R. a possibilidade de emitir 367 vistos (art. 73 da petição inicial), o que redundou num prejuízo de €751 275 (art. 76º da petição inicial).
Analisando o circunstancialismo supra descrito, o tribunal
a quo
pronunciou-se assim:
“O valor indemnizatório peticionado pelo 1.º A. decorre integralmente da sua detenção, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação, quer seja pela vergonha, humilhação, angústia e tristeza que lhe causaram, quer seja pela própria privação da liberdade a que foi sujeito.
Nos termos do artigo 226º, nº 1 do Código de Processo Penal, o pedido de indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada «não pode, em caso algum, ser proposto depois de decorrido
um ano
sobre o momento em que o detido ou preso foi libertado ou definitivamente decidido o processo penal respetivo.»
De acordo com o alegado pelos AA., o transito em julgado da decisão absolutória teve lugar em 30.06.2021, pelo que a ação indemnizatória devia ter sido proposta pelo 1.º A., enquanto pessoa que sofreu a detenção, até 30.06.2022.
A mesma conclusão se alcança relativamente ao pedido formulado pela 2.ª A. uma vez que, também este, tem por causa de pedir a detenção do 1.º A. e a sua situação processual que, de acordo com o alegado, impossibilitou o exercício da sua atividade comercial por não ter sido deferido nenhum dos vistos necessários para o efeito – artigo 72 da petição inicial.
Na realidade, o valor alcançado pela 2ª A. como sendo devido pelo R. respeita ao valor que iria faturar com a emissão de 367 vistos, que se encontravam em condições de obter deferimento mas que não o obtiveram por causa da privação de liberdade do A., e o valor que previsivelmente faturaria até 2019, e que não faturou por força da detenção do seu sócio e 1.º A.
Assim, também a indemnização peticionada pela 2.ª decorre diretamente da privação injustificada da liberdade e, consequentemente, cumpre aplicar o mesmo regime legal, já que o artigo 13.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas apenas é aplicável para as situações que não se fundem em privação injustificada da liberdade, uma vez que esta tem um regime especial para o qual tal disposição legal remete.
Desta feita, conclui-se que os pedidos formulados pelos AA. deveriam ter sido peticionados até 30.06.2022.
Nos termos do artigo 298.º, n.º 2 do Código Civil quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.
Não fazendo o artigo 226.º do Código de Processo Penal menção à prescrição, concluímos que a figura em causa é a caducidade, e não a prescrição, conforme alegado pelo Ministério Público.
A caducidade é apreciada oficiosamente e pode ser alegada em qualquer fase do processo, se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes. Se for estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes, necessita, para ser eficaz, de ser invocada por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público – artigos 333.º, n.º 1 e 303.º, n.º 2 do Código Civil.
A exceção foi invocada na contestação pelo Ministério Público, a parte a quem aproveita, ainda que erradamente designada, razão pela qual se impõe o seu conhecimento pelo tribunal e a correção da figura em causa.
Uma vez que a presente ação foi proposta em 28.06.2024, mostra-se decorrido o prazo de interposição da ação pelos AA. com base na privação de liberdade injustificada, razão pela qual se julga caducado o seu direito de ação.
A caducidade do direito constitui uma exceção perentória, na medida em que extingue o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, conforme o previsto no artigo 578.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.”
Concordamos com o entendimento da 1ª instância na apreciação e julgamento desta questão.
É inegável que os danos invocados, quer pelo 1ª A, quer pela 2ª A., para sustentar o pedido indemnizatório formulado, se fundam na privação de liberdade sofrida pelo 1º A., não se divisando outra causa autónoma para a indemnização peticionada. Aliás, nem os AA. formulam pedidos de indemnização com base em diferentes atuações de órgãos jurisdicionais. De acordo com o alegado na petição inicial, o 1ª A. foi detido, submetido a 1ª interrogatório judicial, na sequência do que lhe foi aplicada prisão preventiva e posteriormente obrigação de permanência na habitação, vindo ambos os AA. a ser condenados por decisão criminal proferida na 1ª instância, acabando os factos por vir a ser dados como não provados por acórdão da Relação.
Dito isto, a questão a decidir prende-se tão só com a exceção arguida pelo Ministério Público (em representação do R.) e conhecida pelo tribunal, sendo entendido pelo tribunal
a quo
que tal exceção se integra na figura da caducidade (de conhecimento oficioso, por se tratar de matéria excluída da disponibilidade das partes) e não da prescrição, em face do disposto no art. 298º/2 do Código Civil e dado que o art 226º do CPP não faz qualquer menção à prescrição.
Ou seja, no enquadramento referido, importa apurar se caducou o direito de ação dos autores pedirem quanto aos danos sofridos pela prisão ilegal do 1.º A.
Notamos que não está em causa apreciar a verificação
in casu
dos pressupostos da responsabilidade civil do Estado, pois essa apreciação, atinente aos requisitos de procedência da ação, respeita ao mérito da causa, ainda que importe convocar a análise dos regimes de responsabilidade civil aplicáveis ao caso e os respetivos prazos de caducidade.
Quer a doutrina quer a jurisprudência têm vindo a considerar que o fundamento da obrigação de indemnizar do Estado emerge diretamente do art. 22º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que consagra um princípio geral de direta responsabilidade civil do Estado, por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa, administrativa e jurisdicional (v. ac STJ 29/6/2005, P. 05A1064, relator Ponce de Leão).
Para resolver esta questão, concorrem três regimes:
i
) o regime
geral
da responsabilidade civil (art. 483.º e segs. do Cód. Civil);
ii
) o regime
especial
da responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional (art. 12.º e segs. da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, sistematicamente inserido no capítulo III homónimo);
iii
) o regime
especialíssimo
da indemnização por danos decorrentes privação da liberdade ilegal ou injustificada (arts. 225.º e 226.º do Cód. Proc. Penal).
Quanto ao regime especial, estabelecem os artigos 12º e 13º daquele diploma (Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro)
Art 12º
“Salvo o disposto nos artigos seguintes, é aplicável aos
danos ilicitamente causados pela administração da justiça
, designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável, o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa.”
Art 13º
“1 -
Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade
, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de
decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais
ou
injustificadas
por
erro grosseiro
na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.
2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na
prévia revogação da decisão danosa
pela jurisdição competente.”
Como bem sintetiza o acórdão do TRE de 7/5/2020, P. 1303/17.0BEELRA.E1, relatora Florbela Lança (www.dgsi.pt),
“A LRCEE prevê a existência de três tipos de responsabilidade da função jurisdicional: por violação do direito a uma decisão em prazo razoável (art.º 12.º); por prolação de sentença condenatória injusta e privação injustificada da liberdade (art.º 13.º/1, 1.ª parte); por prolação de decisão inconstitucional, ilegal ou em erro grosseiro sobre a apreciação dos factos (art.º 13.º/1, 2.ª PARTE).”
Mais referindo o citado aresto que
“Para efeitos do regime previsto no art.º 13.º da responsabilidade civil extracontratual do Estado, entendido à luz do art.º 22.º da Constituição, que é o seu fundamento, o erro judiciário reconduz-se ao erro cometido pelo juiz ou pelo Ministério Público.”
Já quanto ao regime especialíssimo, estabelece o art. 225º do Código de Processo Penal, para que remete o supra citado art. 13º/1, que:
“Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando:
a) A privação da liberdade for ilegal, nos termos do n.º 1 do artigo 220.º, ou do n.º 2 do artigo 222.º;
b) A privação da liberdade se tiver devido a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia;
c) Se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou atuou justificadamente; ou
d) A privação da liberdade tiver violado os n.ºs 1 a 4 do artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.”
E o art 226º/1 do CPP
“O pedido de indemnização não pode, em caso algum, ser proposto depois de decorrido
um ano
sobre o momento em que o detido ou preso foi libertado ou foi definitivamente decidido o processo penal respetivo”.
Sendo certo, como é sabido, que os regimes (mais) especiais afastam os regimes (mais) gerais, à indemnização por danos decorrentes da privação da liberdade ilegal ou injustificada é prevalecentemente aplicável o disposto nos arts. 225.º e 226.º do Cód. Proc. Penal, como, aliás, é afirmado pelo n.º 1 do art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.
Como também foi sumariado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/1/24, proferido no P. 1359/20.3T8SNT.L1.S1 (2ª secção), relatora Ana Paula Lobo (acessível em www.dgsi.pt):
“I - A ação de responsabilidade civil extracontratual do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional com fundamento em detenção ilegal e absolvição do arguido segue o regime especial aplicável aos casos de privação injustificada da liberdade constante dos arts. 225.º e 226.º do CPP.
II - Tal é reconhecido pelo art. 13.º, n.º 1, da Lei n.º 67/2007, de 31-12, e impede a aplicação do regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa, determinado pelo art.º 12.º da mesma lei, nomeadamente em matéria de prescrição do direito à indemnização, como ocorre com os demais danos ilicitamente causados pela administração da justiça.”
Ora, baseando-se no regime especialíssimo, o tribunal concluiu que
“Uma vez que a presente ação foi proposta em 28.06.2024, mostra-se decorrido o prazo de interposição da ação pelos AA. com base na privação de liberdade injustificada, razão pela qual se julga caducado o seu direito de ação.”
Concordamos com a decisão do tribunal de primeira instância quanto a ambos os autores, reconhecido que foi ser a privação da liberdade ilegal o único fundamento do pedido indemnizatório.
A resposta quanto ao primeiro A. decorre da aplicação direta do regime legal, não se oferecendo dúvidas interpretativas.
Quanto ao segundo A., pese embora se imponha reconhecer ser indiscutível que o terceiro sempre estaria excluído do direito a uma indemnização a este título – a aplicação direta do regime dos artigos 225.º e 226.º é apenas ao lesado -, é também necessário considerar que qualquer dano sofrido por um terceiro com fundamento nos mesmos factos que sustentam o pedido do próprio lesado obriga a convocar o regime dos artigos 225.º e 226.º do Cód. Proc. Penal. A tanto obriga o n.º 1 do art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro ao determinar expressamente a aplicação do regime especialíssimo da privação injustificada da liberdade.
Ou seja, quando o facto danoso invocado pelo suposto lesado seja a privação da liberdade ilegal ou injustificada, imediatamente temos de enquadrar o caso nos arts. 225.º e 226.º do Cód. Proc. Penal, por força do n.º 1 do art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, quer o lesado seja o afetado direto, quer seja um terceiro.
E encontrado o regime aplicável temos de, à luz do mesmo, aferir dos pressupostos do direito a uma indemnização e dos prazos aplicáveis para o exercício do direito.
O que não pode acontecer é invocar-se o regime dos artigos 225.º e 226.º para reclamar danos sofridos e, concomitantemente, pretender contornar-se o mesmo regime para excluir a aplicação do respetivo prazo de exercício do direito.
Uma tal solução é incoerente e viola o mais importante de todos os fatores hermenêuticos na interpretação de lei (art. 9.º do Cód. Civil):
o princípio da coerência axiológica do sistema jurídico.
Ou seja, uma vez determinado o regime aplicável, a unidade do sistema jurídico impõe a sua aplicação em todas as dimensões nele previstas – no caso, verificação dos pressupostos quanto ao mérito e prazos para o exercício do direito.
E não teríamos dificuldade em ver a necessidade de convocação deste princípio noutras situações.
Tomemos como exemplo o direito a uma
indemnização por dano não patrimonial
indireto, em geral. Podemos discutir se ele existe fora do caso de morte, conforme previsto na segunda parte do n.º 4 do art. 496.º do Cód. Civil, ou se pode ser reconhecido a outros terceiros não referidos nessa norma.
No entanto, se se admitir que um terceiro (que não o lesado direto) tem direito a uma
indemnização por um dano não patrimonial
fora do caso previsto na segunda parte do n.º 4 do art. 496.º do Cód. Civil, é indiscutível que o seu direito está sujeito ao prazo de prescrição de 3 anos previsto no art. 498.º do Cód. Civil. Não lembra a ninguém dizer que, não estando o caso expressamente previsto na lei, o prazo de prescrição aplicável é o prazo ordinário de 20 anos (art. 309.º do Cód. Civil).
Ora, também no caso dos autos, se se admitir que um terceiro (que não o lesado direto) tem direito a uma indemnização por um dano decorrente da prisão ilegal de outrem, é indiscutível que o seu direito está sujeito ao prazo de caducidade de 1 ano previsto no n.º 1 do art. 226.º do Cód. Proc. Penal. Não nos parece razoável dizer que, não estando o caso expressamente previsto na lei especial (art. 225.º do Cód. Proc. Penal) não está o exercício do direito do terceiro sujeito ao mesmo prazo de caducidade.
Imaginemos que, chegados ao Cód. Proc. Penal, depois de para este enviados pelo n.º 1 do art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, nos deparava-mos com uma norma estabelecendo, singelamente (e inconstitucionalmente, diga-se):
em caso algum o detido tem direito a uma indemnização
. Não lembraria a ninguém dizer: “bom, o detido não tem direito a uma indemnização, mas isso não quer dizer que um terceiro não o possa ter”. E se a lei concedesse ao detido o direito a uma indemnização num caso excecionalíssimo, estando o seu exercício sujeito a um curtíssimo prazo de caducidade, também não seria razoável defender não ser este prazo aplicável ao terceiro, mas apenas ao detido.
Em conclusão, à data de interposição da ação, o direito de ação dos dois AA já se mostrava caducado, como acertadamente reconheceu o tribunal de primeira instância, pelo que improcede o recurso.
*
V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, manter a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Registe e notifique.
*
Lisboa, 29 de Abril de 2025
Acórdão elaborado pela 1ª Adjunta, nos termos do artigo 663.º.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Rute Sabino Lopes
Paulo Ramos de Faria (com declaração de voto)
Ana Mónica Mendonça Pavão (com voto de vencido)
*
Declaração de voto.
Votei a decisão,
ainda
, pelas razões que se seguem – cfr. o Ac. do STJ de 27-10-2020 (
638/15.1T8STC.E1.S1
) e António Abrantes Geraldes,
Recursos em Processo Civil
, Coimbra, Almedina, 2022, 7.ª ed., nota p. 382, nota de rodapé 599.
Conforme se prevê no art. 13.º do
Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (RRCE), aprovado pela
Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, existe um regime especial aplicável aos casos em que esta responsabilidade tem com facto danoso a sentença penal condenatória injusta ou a privação injustificada da liberdade. Quando o facto danoso invocado é um destes dois, é
sempre
aplicável o regime previsto no capítulo V do título II do Livro IV da Parte I do Cód. Proc. Penal, intitulado “Da indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada”.
A que casos é que se aplica este regime especial?
– Aos casos (…) de privação injustificada da liberdade
(designadamente).
Que caso é o nosso?
– É um caso (…) de privação injustificada da liberdade
.
Que regime se aplica ao nosso caso?
– O regime especial aplicável aos casos (…) de privação injustificada da liberdade, referido no art. 13.º do RRCE
.
O que nos diz este regime especial sobre o prazo da demanda do Estado?
– Que o pedido de indemnização não pode,
em caso algum
, ser proposto depois de decorrido um ano sobre o momento em que o detido ou preso foi libertado (art. 226.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal)
– note-se: “o detido ou preso foi libertado”, não o autor foi libertado, não o titular do direito foi libertado.
Recapitulando, os arts. 225.º e 226.º do Cód. Proc. Penal dispõem sobre a “indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada”, constituindo
o
regime especial aplicável aos casos (…) de privação injustificada da liberdade
.
O art. 225.º prevê as
únicas
modalidades
de direito à indemnização com base na ocorrência deste facto danoso, tal como revela a sua epígrafe.
O art. 226.º dispõe sobre o
prazo e a legitimidade
,
em qualquer caso
, para o exercício do direito à indemnização por privação injustificada da liberdade. Ou seja, se a 2.ª autora pretende exercer um tal direito – sem curar agora de saber se o tem, ou não –, tem de o fazer no prazo previsto na lei.
É esta uma interpretação
puramente declarativa
do enunciado no n.º 1 do art. 226.º do Cód. Proc. Penal, totalmente compreendida na sua letra.
É, assim, de recusar a interpretação do texto legal que
restrinja
a sujeição ao prazo de caducidade aos casos em que o pedido é fundado, por ter o autor o direito substantivo, à luz da
única
lei que reconhece o direito a uma indemnização por privação injustificada da liberdade (art. 225.º do Cód. Proc. Penal) – convertendo-se, pois, numa interpretação parcialmente ab-rogante do claro enunciado do art. 226.º do Cód. Proc. Penal.
Seja ou não o pedido concludente, à luz da causa de pedir alegada e da única lei que reconhece o direito a uma indemnização – única por ser especial –, tem a demanda visando a “indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada” de ser instaurada no
prazo
previsto no n.º 1 do art. 226.º do Cód. Proc. Penal. Se o for, depois se verá se a única lei especial que regula a “indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada” reconhece, efetivamente, ao autor o direito de que se arroga (art. 225.º do Cód. Proc. Penal).
As
razões
que justificam a fixação de um prazo de caducidade relativamente curto para a propositura da ação – sejam a necessidade de garantir a certeza e a segurança jurídicas que devem envolver a atividade jurisdicional (isto é, a sua indiscutibilidade, mesmo em via reflexa, decorrido certo prazo), seja a simplicidade na identificação da entidade responsável e na descrição do facto danoso –
não cessam
em razão da identidade do alegado titular do direito. O mesmo é dizer que a coerência axiológica do sistema de justiça impõe a solução adotada no acórdão.
Paulo Ramos de Faria
_______________________________________________________
Declaração de voto de vencido
Voto vencida porquanto defendo posição contrária à que obteve vencimento por maioria no presente acórdão, relativamente à 2ª A./ora apelante Global Workers, Lda.
A presente acção perfila-se no domínio da responsabilidade extracontratual do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, cujo regime se encontra regulado na Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro [que aprovou o
Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas
(LRCEE)].
O art. 13º da citada lei
[“1 -
Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade
, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de
decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais
ou
injustificadas
por
erro grosseiro
na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.]
estabelece o regime geral, enquanto que os arts 225º e 226º do CPP, para que remete o 1º segmento daquela norma, estabelecem um regime especial.
Este regime especial apenas é aplicável nas situações aí previstas:
“
Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação
pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando (…)
Donde, a pretensão indemnizatória por danos emergentes de detenção ou prisão preventiva ilegal ou injustificada, como ocorre no caso do 1º A/ora apelante, está abrangida por este regime especial e, como tal, sujeita ao prazo de caducidade de 1 ano previsto no nº 1 do art. 226º do CPP.
Porém - e aqui surge a divergência face à posição que obteve vencimento no acórdão - tal regime não pode ser aplicável, em nosso entender, à indemnização requerida por
terceiros
(e não por quem sofreu a prisão ilegal ou injusta), como sucede no caso da 2ª A. /ora apelante.
A interpretação sustentada no acórdão quanto à 2ª A. não tem qualquer suporte na letra da lei, estando vedado ao intérprete considerar o pensamento legislativo que não tenha um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (art. 9º/2 do Código Civil), devendo, aliás, presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º/3 do Código Civil).
O princípio da coerência axiológica da ordem jurídica, genericamente invocado como fundamento da posição sustentada no acórdão – que pretende aplicar aos danos invocados pela 2ª A o regime especial do citado art. 225º e logo o prazo previsto no art. 226º - não pode servir de apoio à tese acolhida. Pelo contrário, esse princípio, que impõe como ponto de referência da interpretação “a unidade do sistema jurídico” (cf. art. 9º Código Civil), leva justamente à conclusão de que o regime previsto para aquele a quem foi aplicada medida de coacção privativa da liberdade ilegal ou injustificada - único visado pelos arts 225º e 226º do CPP - não é de aplicar a terceiro, sendo por conseguinte inaplicável à sociedade 2ª A, enquanto demandante por alegados prejuízos no exercício da sua actividade comercial, decorrentes da prisão sofrida pelo seu sócio, ora 1ºA.
Nesta senda, não é aceitável o argumento de que “
não é razoável”
ou “
é incoerente”
aplicar à 1ª A. um prazo para o exercício do direito de indemnização (prazo previsto no art. 226º/1 do CPP) diferente do prazo geral de prescrição do direito de indemnização previsto no art 498º/1 do Código Civil (3 anos), aplicável à 2ª A. Como dissemos, a interpretação da lei não pode deixar de partir da sua letra, sob pena de se proceder a uma interpretação que aparentemente poderia configurar uma interpretação extensiva, mas que, por ignorar os ditâmes do art. 9º do Código Civil, se transforma numa interpretação
abrogante
.
Aliás, nem do acórdão resulta minimamente justificada a solução interpretativa a que se chegou. Ainda que porventura essa interpretação (extensiva?) do nº 1 do art 226º se apoiasse no nº 2 do mesmo preceito, tal seria destituído de fundamento, posto que o nº 2 não contempla na sua previsão a indemnização de
terceiro
, mas sim a transmissão por via sucessória (às pessoas indicadas nº 2) do direito à indemnização [daquele que sofreu detenção ou prisão preventiva ilegal ou injustificada].
Em face de todo o exposto, entendemos que a apelação deveria ter sido julgada parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida na parte em que foi decidido julgar procedente a excepção de caducidade do direito invocado pela 2ª A./apelante, e determinando-se o prosseguimento dos autos quanto a esta demandante.
Ana Mónica Pavão
|
TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/4ba90b7f3d6a583c80258c890047434c?OpenDocument
|
1,747,872,000,000
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APELAÇÃO IMPROCEDENTE
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6713/24.4T8GMR.G1
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6713/24.4T8GMR.G1
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GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
|
(i) Para que a cessão de uma quota social produza efeitos perante a sociedade – que é considerada terceira em relação ao negócio –, é necessário que, além do seu consentimento (exceto nos casos dispensados por lei ou contrato), lhe seja solicitada a promoção do respetivo registo.
(ii) A partir desse momento, o cessionário, como novo titular da quota, passa a ser o único sujeito legitimado a exercer perante a sociedade os direitos sociais decorrentes dessa titularidade.
(iii) Neste enquadramento, carece de qualquer efeito útil o decretamento de providência cautelar de suspensão dos efeitos do registo da cessão da quota de um sócio a outro que foi requerida como forma de permitir que o
cedente
continue a poder exercer os referidos direitos durante a pendência da ação que, com fundamento na inexistência do título, pretende intentar para a declaração de nulidade daquele registo.
(iv) A possibilidade de convolar semelhante providência para uma outra efetivamente adequada a esconjurar o perigo que o cedente pretende evitar – o não reconhecimento da sua qualidade de sócio pela sociedade – deve ser excluída se tal perigo tiver sido alegado de forma meramente genérica e abstrata e que não permita suportar um juízo no sentido de a sua concretização redundar numa lesão grave e dificilmente reparável do direito que se pretende tutelar.
(v) Os factos relativos à quota, incluindo, portanto, a cessão, pertencem ao rol daqueles cujo registo é feito por
depósito
, consistindo este no mero arquivamento dos documentos que titulam factos sujeitos a registo, sem qualquer controlo da legalidade por parte do conservador.
(vi) Daqui decorre que tal registo não padecerá de nulidade, é sempre definitivo e não oferece presunção da verdade, ficando os seus efeitos reduzidos à oponibilidade do facto perante terceiros e à prioridade que dele decorre.
|
[
"PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM",
"PERICULUM IN MORA",
"CESSÃO DE QUOTA",
"REGISTO COMERCIAL POR DEPÓSITO",
"EFEITOS"
] |
I.
1).
AA
intentou, no dia 29 de outubro de 2024, procedimento cautelar comum contra
BB
e
EMP01..., Lda.
, pedindo que, na procedência, seja decretada, sem contraditório prévio dos requeridos, a providência de “suspensão dos efeitos do registo por depósito[,] seja perante a sociedade como perante terceiros, e mais concretamente pelo reconhecimento ao Requerente dos direitos sociais inerentes à titularidade da quota de que é proprietário.” (
sic
)
Alegou, em síntese, que: o capital social da 2.ª Requerida está dividido em duas quotas, cada uma delas no valor de € 600 000,00; uma dessas quotas pertence ao Requerente e outra ao 1.º Requerido; com o objetivo de pôr termo a desavenças surgidas entre ambos acerca da gestão da 2.ª Requerida e de uma outra sociedade em que ambos têm participação, o Requerente e o 1.º Requerido celebraram um acordo escrito pelo qual aquele se obrigou a ceder a este, ou a pessoa que para esse efeito lhe fosse indicada, a quota de que é titular no capital social da 2.ª Requerida; nesse acordo previu-se, complementarmente, ademais das contrapartidas pela cedência, que o pagamento seria feito no prazo de dez anos, em prestações mensais, na forma, local e modo a acordar ulteriormente; Requerente e 1.º Requerido declaram também atribuir eficácia real e carácter irrevogável ao referido acordo; já depois de ter resolvido esse acordo, com fundamento em incumprimento imputável ao 1.º Requerido, este solicitou à 2.ª Requerida que, com base no acordo, promovesse o registo por depósito de uma suposta cessão da quota do Requerente a seu favor, o que aquela veio a fazer sem que tivesse verificado a regularidade ou a suficiência do respetivo título; o 1.º Requerido passou, assim, a constar do registo como titular das duas quotas no capital social da 2.ª Requerida; deste modo, o registo retrata um facto (cessão da quota do Requerente ao 1.º Requerido) que nunca ocorreu e que, de resto, nunca obteve o consentimento da 2.ª Requerida; esse registo habilita o 1.º Requerido a exercer, perante a 2.ª Requerida, todos os direitos inerentes à qualidade de sócio, designadamente o direito de voto e o direito de receber, “por sua exclusiva deliberação” (
sic
), os dividendos da sociedade; por outro lado, impede o Requerente de obter qualquer tipo de informação sobre a sociedade e de promover qualquer inquérito relativo a ela; habilita ainda o requerido a vender a terceiro a quota do Requerente; acresce que o Requerente é, solidariamente com o 1.º Requerido, fiador e/ou avalista de títulos de crédito assinados em branco para
garantia
de financiamentos feitos à 2.ª Requerida, cujo montante total é de € 1 422 722,92; o 1.º Requerido tem vindo a alienar o seu património, “desconhecendo” (
sic
) o Requerente se o faz com algum propósito; “a normal pendência de qualquer ação pode vir a colocar em risco o feito útil da pretensão do Requerente anular o registo promovido pelo 1.º Requerido com a declaração de inexistência de qualquer acordo de cessão da quota”, pelo que se justifica a suspensão dos efeitos do registo por depósito realizado “até à decisão definitiva de ação” que se pronuncie sobre a “suficiência e regularidade” do título apresentado em suporte do registo por depósito e “correspondente anulação do mesmo” (
sic
).
Indeferido o pedido de dispensa de contraditório prévio, os Requeridos apresentaram oposição, na qual alegaram, também em síntese, que: ao contrário do alegado pelo Requerente, pelo referido acordo operou-se uma cessão da quota; como quer que seja, o registo limita-se a dar publicidade ao ato, não produzindo quaisquer efeitos, pelo que a providência requerida constitui uma impossibilidade; não é também possível suspender uma realidade registal, mas apenas determinar o seu cancelamento em resultado da procedência de ação que declare a invalidade do negócio que lhe serviu de suporte; não houve qualquer incumprimento das obrigações assumidas pelo 1.º Requerido no acordo de cessão da quota, pelo que a sua resolução pelo Requerente é ilícita; em qualquer caso, a quota já não existe como tal, uma vez que, em 20 de fevereiro de 2025, foi dividida em duas, uma com o valor nominal de € 296 000,00 e outra com o valor nominal de € 6 000,00; a primeira foi doada, em comum e em partes iguais, aos filhos do 1.º Requerido; a segunda foi unificada com a quota que já era titulada por este, gerando uma quota única com o valor nominal de € 306 000,00; sendo esta a realidade registal, a pretensão do Requerente está prejudicada ou impedida, o que deve determinar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
***
2). Por despacho datado de 19 de março de 2025, foi decidido o indeferimento “liminar” (
sic
) da “presente providência cautelar” (
sic
), com a seguinte fundamentação (
transcrição
):
“No caso em apreço o requerente pretende suspender os efeitos do registo por depósito da aquisição da participação social do Rqte. pelo Rqdo. na sociedade EMP01..., Lda.
Ora se registo da cessão das quotas foi lavrado por depósito - artigo 53.º-A do Código de Registo Comercial, do registo por depósito não decorre a presunção da existência da situação jurídica registada – artigo 11.º do Código de Registo Comercial.
Prescreve o artigo 53.º-A do CRComercial: “1 - Os registos são efetuados por transcrição ou depósito. 2 - O registo por transcrição consiste na extractação dos elementos que definem a situação jurídica das entidades sujeitas a registo constantes dos documentos apresentados. 3 - Sem prejuízo dos regimes especiais de depósito da prestação de contas, o registo por depósito consiste no mero arquivamento dos documentos que titulam factos sujeitos a registo. (…)”
Como decorre deste n.º 2, no registo por transcrição existe um controlo, o qual é efetuado pelo conservador que promove o mesmo e que deverá diligenciar nos moldes previstos pelo artigo 47.º do mesmo código.
Já o registo por depósito consiste no mero arquivamento dos documentos, pelo que não está o mesmo sujeito a qualquer controlo da legalidade por parte do conservador – este último apenas deverá rejeitar o registo nos casos previstos no artigo 46.º do CRComercial (ou seja, com base em fundamentos meramente formais).
Como resulta do citado artigo 11.º do CRComercial, apenas goza de presunção registral (presunção da existência e veracidade da situação jurídica) o registo comercial por transcrição definitiva.
O registo por depósito já não beneficia dessa presunção, tratando-se de um registo de publicidade em que se dá notícia de determinado facto (não gozando, pois, de presunção de verdade, até porque, em face da ausência de controlo do documento levado a registo, em última escala, o mesmo até poderá conter inexatidões, erros ou mesmo falsidades).
Ora, se o registo da cessão de quotas in casu foi lavrado por depósito, a mesma não beneficia da presunção legal de titularidade da mesma (reitera-se que apenas goza desse valor presuntivo o registo por transcrição definitivo).
Por outra via, tendo as providências cautelares como única finalidade obviar ao perigo da demora de um determinado processo, o não nascimento deste ou a sua extinção provocam o seu fim.
E sendo a sua existência justificada pela urgência não é possível seguir uma tramitação que permita apurar com certeza da existência do direito cuja tutela se pretende assegurar, a qual apenas é possível apurar no processo principal. É suficiente para alcançar uma decisão cautelar provisória, uma prova informatória, um fumus boni iuris.
Este juízo de probabilidade séria deve recair não só sobre a existência dos factos constitutivos do direito ameaçado, mas também sobre a verificação dos pressupostos jurídicos da existência do direito. O juízo de probabilidade é aplicável quer às questões de facto, quer às questões de direito, colocadas ao juiz nos procedimentos cautelares. O juiz não tem que se convencer da veracidade dos factos que integram a causa de pedir, nem de que o direito invocado existe perante a prova desses factos, bastando que a existência dos factos seja provável, tal como a existência do direito.
Seguindo-se que não tendo o registo em causa o alcance que a requerente pretende discutir, a presente providência cautelar não deve ser admitida, desde logo por não se mostrar que se possa provar a grave ameaça de lesão grave do direito, nem a mesma se justifica em termos de necessidade de tutela nem sob o ponto de vista do princípio da proporcionalidade.”
***
3). Inconformado com o assim decidido, o Requerente (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, sendo estas do seguinte teor (
transcrição
):
“1. Por muito respeito que mereça o vertido na decisão
a quo
, com a mesma não se pode de modo algum concordar, sendo que a presente decisão veio surpreender sobremaneira o aqui Recorrente, pois que, tendo indeferido liminarmente a providência, o Tribunal Recorrido não julgou corretamente.
2. Com tal decisão, o Mmo. Juiz a
quo
violou e fez errada aplicação e interpretação do disposto nos artigos 214.º, 217.º e 247.º do Código das Sociedades Comerciais; 11.º do Código do Registo Comercial; e 368.º do Código de Processo Civil.
3. Antes de nos debruçarmos sobre o efeito do registo propriamente dito, sempre teremos de concluir que a decisão sindicada padece de grave erro de julgamento, ao ignorar não só a finalidade preventiva da tutela cautelar, como também a realidade prática e jurídica das sociedades comerciais.
4. A natureza cautelar e instrumental da providência de suspensão impõe ao julgador a adoção de uma perspetiva preventiva e prudencial, e não uma exigência probatória que se aproximaria indevidamente dos critérios da ação principal.
5. Adicionalmente, ao recusar a suspensão dos efeitos do registo por depósito com base na alegada inexistência de prejuízo, o Tribunal
a quo
sacrifica, quanto a nós, desproporcionalmente os direitos do Requerente, sem qualquer ponderação efetiva entre os interesses em presença, violando, quanto ao mais, o princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
6. O
periculum in mora
não exige um dano consumado ou plenamente concretizado. Basta, como decorre do artigo 368.º do Código de Processo Civil, a verificação de um fundado receio de que a demora na obtenção da tutela definitiva torne impossível ou muito difícil a reparação do direito lesado.
7. Tal requisito assume natureza eminentemente prospetiva e destina-se a prevenir que a morosidade da justiça comprometa o efeito útil da decisão final. O que é, manifestamente, patente nos presentes autos.
8. O registo da cessão de quotas em causa encontra-se manifestamente executado através do respetivo depósito junto do registo comercial, o que é facilmente aferível através de certidão permanente da sociedade, sendo certo que daí, e de
per si
, resultam diversas consequências graves!
9. Desde logo, confere aparência de legalidade e eficácia à cessão assim registada (tal qual no registo por transcrição, com a simples diferença da menção no respetivo averbamento), criando expectativas legítimas em terceiros de boa-fé com que a sociedade se possa relacionar.
10. Depois, fragiliza a posição jurídica e societária do Recorrente, em especial quando este resolveu, válida e atempadamente (o que é o mesmo que dizer que a resolução foi muito anterior ao registo por depósito) o negócio que, aparentemente, dá substância ao respetivo registo.
11. Por fim, e mais importante ainda, o Recorrente perde, ou pelo menos coarta, os seus direitos patrimoniais e societários! O mero registo por depósito, ainda que não tenha a dita presunção de titularidade defendida pela decisão recorrida, tem o condão de, ao menos, beliscar vários direitos do sócio (v.g. direito à informação – artigo 214.º do CSC; direito ao voto nas deliberações – artigo 247.º do CSC; direito à distribuição de lucros – artigo 217.º do CSC, entre outros…), o que levará à sua perda de controlo societário, influência nas decisões ou exclusão de lucros futuros.
12. Em suma, perante o registo já efetuado da cessão de quotas contestada, o
periculum in mora
assume expressão clara, atual e intensa, não podendo ser ignorado sob pena de a providência cautelar perder a sua razão de ser. O registo alterou a estrutura societária e coartou direitos ao Recorrente de forma imediata. A reversão desses efeitos, caso não seja evitada preventivamente, tornar-se-á extraordinariamente complexa e certamente subtrairá muitos mais recursos com litígios (como a impugnação sucessiva de deliberações tomadas, entre outros).”
Concluiu que, na procedência do recurso, o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que decrete a providência cautelar requerida.
***
4). Os Requeridos (daqui em diante, Recorridos) responderam, pugnando pela improcedência do recurso. Acrescentaram que se assim não for entendido, o Tribunal da Relação deve declarar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide. Em qualquer caso, não poderá ser decretada a providência uma vez que os factos que substanciam o
fumus boni iuris
foram impugnados, havendo que produzir prova sobre eles.
***
5). O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal
ad quem
.
***
6). Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
***
II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final
,
ex vi
do art. 663/2, parte final, do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas
decisões-surpresa
(art. 3.º/3 do CPC).
Tendo isto presente, a questão que se coloca no presente recurso pode ser sintetizada nos seguintes termos: a decisão de indeferir “liminarmente” a “presente providência cautelar” (
sic
), com os fundamentos indicados pelo Tribunal
a quo
, assenta num erro de direito, mais concretamente num erro de “aplicação e interpretação do disposto nos artigos 214.º, 217.º e 247.º do Código das Sociedades Comerciais; 11.º do Código do Registo Comercial; e 368.º do Código de Processo Civil”?
Em caso de resposta afirmativa, haverá que aferir das consequências processuais da revogação da decisão recorrida à luz do contencioso de plena jurisdição que enforma o nosso sistema recursal.
***
III.
1). Na resposta à questão enunciada há que considerar os factos relativos ao
iter
processual descritos no ponto 1). do Relatório que constitui a Parte I. deste Acórdão.
Há que considerar também os seguintes factos:
1. A constituição da sociedade comercial 2.ª Requerida foi inscrita no registo comercial através da apresentação n.º 15, de 29 de novembro de 1983, nos seguintes termos:
“Firma: EMP01..., Lda.
(…)
Natureza jurídica: sociedade por quotas
(…)
Objeto: indústria de estamparia de tecidos;
Capital: € 600 000,00;
Sócios e quotas:
Quota: € 300 000,00 – Titular: BB
(…)
Quota: € 300 000,00 – Titular: AA (…)”
, conforme certidão permanente com o código de acesso n.º ...14, apresentada como documento 1 com o requerimento inicial, cujo conteúdo aqui damos por integramente reproduzido;
2. Por escrito datado de 2 de outubro de 2023, o Requerente, como 2.º outorgante, e o 1.º Requerido, como 1.º outorgante, declararam que:
“Considerandos:
A) São sócios na proporção de 50% do capital, bem como gerentes, das seguintes sociedade: EMP01..., Lda., (…); / EMP02..., Lda. (…) / EMP03..., Lda. (…)
B) Os outorgantes não pretendem continuar sócios e gerentes das aludidas sociedades (…), pelo que chegaram ao seguinte acordo que consubstanciam neste documento, nos termos das cláusulas seguintes: 1.ª Os 1.ºs outorgantes cedem aos 2.ºs outorgantes ou às pessoas singulares ou coletivas que estes venham a indicar as quotas que detêm nas sociedades acima identificadas e que por brevidade se designam de EMP02... e EMP03..., com todos os direitos e obrigações, designadamente, suprimentos, prestações suplementares e responsabilidades pessoais; / 2.ª Os 2.ºs outorgantes cedem aos 1.ºs outorgantes ou às pessoas singulares ou coletivas que estes venham a indicar a quota que detêm na sociedade acima identificada e que por brevidade se designa de EMP01..., com todos os direitos e obrigações, designadamente, suprimentos, prestações suplementares e responsabilidades pessoais; / 3.ª Como os valores das cedências das quotas referidas nas cláusulas imediatamente anteriores das cedências de quotas não são iguais, em pagamento da diferença, os 2.ºs outorgantes obrigam-se a pagar aos 1.ºs a quantia global de € 5 000 000,00 e a ceder sem haver contrapartida de pagamento de preço, do edifício da EMP02... (…) a parte correspondente ao espaço atualmente ocupado pela EMP01...; / 4.ª O pagamento referido na cláusula imediatamente anterior será efetuado no prazo de 10 anos a contar da presente data, em prestações mensais, na forma, local e modo a acordar em documentos a serem celebrados e que os outorgantes, desde já, se obrigam a assinar quando for efetuada a sua redação; / 5.ª A escritura a titular a cedência do imóvel referida na cláusula 3.ª será celebrada quando estiver constituída a propriedade horizontal que fracione autonomamente o aludido edifício em duas frações autónomas, haja as respetivas licenças e nos termos, condições, prazo e modo que forem acordados entre os outorgantes a ser determinado no documento a redigir já referido na cláusula anterior; 6.ª Os documentos referidos na cláusula 4.ª serão celebrados no prazo em que estiverem reunidas todas as condições para o efeito, designadamente junto das repartições públicas com os respetivos licenciamentos e bancos com as exonerações das responsabilidades pessoais; (…) 11.ª Em relação à gerência das referidas sociedades, aceitam em alterá-las no sentido de em relação à EMP02... e EMP03... ser designado único gerente, com todos os poderes de gerência o 2.º outorgante (…) e quanto à EMP01... ser designado único gerente o 1.º outorgante (…), nos mesmos termos, pelo que no prazo de 15 dias a contar da presente data, obrigam-se a realizar assembleias e deliberarem nestes termos, assinando as respetivas atas; / 12.ª A partir da referida data da nomeação referida na cláusula imediatamente anterior as responsabilidades de gerente e da gerência das referidas sociedades é única e exclusivamente daqueles, tanto em termos sociais como pessoais e para todos os efeitos contratuais e legais; / 13.ª As responsabilidades pessoais existentes À presente data e respeitantes a cada uma das referidas sociedades, são assumidas única e pessoal pelos 1.ºs outorgantes relativamente à EMP01... e pelos 2.ºs outorgantes quanto à EMP02... e EMP03..., que durante o prazo a acordar com os bancos e de acordo com estes, outorgarão os respetivos documentos das desonerações, obrigando-se cada um deles a assinar os documentos que para o efeito sejam necessários e exigidos por aqueles; / 14.ª Os outorgantes atribuem ao presente acordo eficácia real e carácter irrevogável, pelo que se obrigam ao seu cumprimento definitivo, sob pena de os outorgantes não faltosos poderem recorrer a juízo pedindo a condenação do faltoso no seu cumprimento, bem como uma indemnização para os compensar de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais que, porventura, venham a suportar devido ao incumprimento (…)”
, conforme documento apresentado sob o n.º 5 com o requerimento inicial, cujo conteúdo aqui damos por integramente reproduzido;
3. Por escrito datado de 17 de abril de 2024, dirigido ao 1.º Requerido, o Requerente declarou que:
“a) à data da assinatura de tal documento, o mercado têxtil apresentava-se em queda ligeira, em linha com a economia global, tendo em consideração as circunstâncias históricas que têm vindo a causar a retração da procura, como o aumento da inflação, aumento de taxa de juros e aumento dos custos de produção.
b) Os valores adiantados naquela data tiveram em consideração um normal comportamento do mercado naquela linha, e assim seriam considerados valores altos, mas ainda assim aceitáveis.
c) Todavia, de lá para cá, como é do seu conhecimento, o mercado têxtil tem caído de forma abrupta e muito acima do expectável,
d) De tal forma, que a rentabilidade do negócio apresenta quebras na ordem de, pelo menos, 30%, o que hoje é público e notório,
e) Por outro lado, a sua verificação ocorreu essencialmente no último trimestre de 2023, em momento posterior ao das conversações que estiveram na base do referido documento.
f) Esta circunstância é de tal forma relevante que implica uma alteração superveniente das circunstâncias e dos pressupostos de proposta de valor de aquisição de 50% da EMP02....
g) Sucede que, exatamente em face dessa conhecida alteração das circunstâncias apresentei já propostas de valor adequado às alterações de condições de mercado que se verificam efetivamente, sempre tendo obtido uma recusa perentória da parte de V. Exa., sem qualquer tipo de abertura em negociar,
h) Não obstante a intenção manifestada de reduzir o valor da prestação prevista naquele acordo de intenções, no sentido de poder prosseguir a concretização de todo o seu restante conteúdo, a verdade é que em face da sua recusa em aceitar as propostas revistas, não me é exigível que arque de forma unilateral com o agravamento tão relevante e abrupto das condições de mercado e que apenas se revelariam em meu desfavor, tornando-se por isso inexigível a manutenção do acordo, que deve, nos termos do disposto no artº 437 do Código Civil ser considerado resolvido, principalmente pela sua recusa em modificar os termos das intenções originais ali vertidas.
Acresce que, e não fosse essa circunstância suficiente,
i) Tive conhecimento que V. Exa. convocou, por meio de advogada ou pessoalmente, clientes e fornecedores para reunir, vindo a reunir com pelo menos dois deles, que nos relataram que essa reunião, sob um pretexto de consideração pessoal visou expor a sua desconfiança para com a gestão da EMP02... e invocar factos absolutamente difamatórios, por falsos, mas ainda pior manifestar as suas intenções disruptivas na relação societária, nomeadamente a intenção de realização de uma auditoria e, pasme-se, do sentido de voto quanto a contas que nem sequer foram ainda apresentadas...
j) Esta conduta, além de violar a mais elementar boa-fé e lealdade entre dois sócios, e ser ofensiva para a minha pessoa e meus filhos que comigo gerem a empresa, tem vindo a causar, como pretendido, uma desconfiança crescente de clientes e parceiros, tendo a EMP02... sentido perdas de 12% no primeiro trimestre de 2024, e de 28% concretamente em fevereiro e março, este valor diretamente como causa de tais considerações que achou por bem fazer sobre as relações internas entre sócios!
k) Naturalmente, esta circunstância cria um obstáculo acrescido à normal atividade da empresa, com uma óbvia diminuição de vendas e rentabilidade, a acrescer àquela que acima referi, e que dificulta ainda mais o cumprimento de qualquer prestação que se entenda a que eu esteja obrigado.
l) De facto, pela sua conduta, mesmo que entendesse ser de cumprir os estritos termos do documento assinado a 2 de outubro passado, torna-se hoje inexigível cumprir a prestação de valor ali prevista, pura e simplesmente porque V. Exa. parece ter passado a dedicar-se a boicotar a atividade e bom nome da EMP02... e da sua gestão.
Dito isto,
Além de considerar qualquer eventual acordo, cuja existência não admito, resolvido por alteração das circunstâncias, mais considero que o comportamento de V. Exa. ainda dificulta o respetivo cumprimento a um ponto que o torna impossível, considerando-me desobrigado de o cumprir”
, conforme documento apresentado sob o n.º 8 com o requerimento inicial, cujo conteúdo aqui damos por integramente reproduzido;
4. Esse escrito foi enviado ao 1.º Requerido, por carta, no dia 18 de abril, e por ele recebido no dia seguinte;
5. No dia 19 de setembro de 2024 foi feito o registo (Dep. 3400) da transmissão da quota do Requente para o 1.º Requerido, conforme certidão permanente com o código de acesso n.º ...74, apresentado como documento 3 com a oposição, cujo conteúdo aqui damos por integramente reproduzido.
6. Esse registo foi promovido pela 2.ª Requerida através do depósito do escrito do ponto 2, conforme documento apresentado sob o n.º 6 com o requerimento inicial, cujo conteúdo aqui damos por integramente reproduzido;
7. Por escrito datado de 20 de fevereiro de 2025, denominado de “Divisão , doação e unificação de quotas, o 1.º Requerido e o respetivo cônjuge, CC, como 1.ºs outorgantes, DD, como 2.º outorgante, EE, como 3.º outorgante, e FF, como 4.ª outorgante, declararam que: “Considerando que: A) os 1.ºs outorgantes adquiriram de AA, em 2/19.2013, uma quota com o valor nominal de € 300 000,00, representativa de 50% do capital social da sociedade comercial por quotas que gira sob a firma EMP01..., Lda. (…) B) Os 1.ºs outorgantes, anteriormente à cessão de quota mencionada no considerando antecedente, eram já titulares de uma quota com o valor nominal de € 300,00, representativa dos restantes 50% do capital social da sociedade (…) é celebrado o presente contrato de divisão, doação e unificação de quotas que se vaio reger pelo clausulado seguinte: 1.ª (Da divisão): Os 1.ºs outorgantes dividem em duas a quota adquirida pela cessão referida no considerando A), da seguinte forma: uma quota com o valor nominal de € 6 000,00 e outra quota com o valor nominal de € 294 000,00; / 2.ª (da doação): 1. Os 1.ºs outorgantes doam a quota ora criada com o valor nominal de € 294 000,00, em comum e em partes iguais, aos segundo, terceiro e quarto outorgantes, seus filhos, por conta da legítima, atribuindo à doação o valor nominal da quota doada (…) / 3.ª (Da unificação): Os 1.ºs outorgantes unificam a quota que detinham originalmente no capital da sociedade, com o valor nominal de € 300 000,00, e a quota ora criada, com o valor nominal de € 6 000,00, gerando uma quota única de € 306 000,00, dela passando a ser titular inscrito o 1.º outorgante”, conforme documento apresentado sob o n.º 2 com a oposição, cujo conteúdo aqui damos por integramente reproduzido;
8. O presente procedimento cautelar foi inscrito no registo predial por depósito (Dep. ...00/2024), no dia 28 de novembro de 2024, conforme certidão permanente com o código de acesso n.º ...74, apresentada como documento 3 com a oposição, cujo conteúdo aqui damos por integramente reproduzido.
9. A transmissão e a unificação de quotas referidas no ponto anterior foram registadas por depósito (Dep.’s 70/2025 e 71/2025), no dia 17 de março de 2025, conforme certidão permanente com o código de acesso n.º ...74, apresentada como documento 3 com a oposição, cujo conteúdo aqui damos por integramente reproduzido.
***
2). Os factos dos pontos 1., 5., 6., 8. e 9. estão provados através de documento autêntico; os dos pontos 2., 3. e 7. decorrem de documentos particulares indicados a propósito de cada um deles, cuja autoria e conteúdo material não foram impugnados
[1]
; o do ponto 4., alegado pelo Requerente, não foi impugnado pelos Requeridos.
***
IV.
1). Expostos os factos a considerar, vejamos a resposta a dar à questão enunciada, começando por fazer uma precisão terminológica: ao contrário do que nele foi escrito, o despacho recorrido não indeferiu a pretensão do Recorrente
liminarmente
. Indeferiu-a
subsequentemente
(à oposição dos Requeridos). Trata-se, no fundo, de uma decisão que, dispensando a produção de prova, antecipou o conhecimento do mérito do procedimento cautelar, à semelhança do que sucede, no processo declarativo comum, com o despacho saneador-sentença –
id est
, com o despacho saneador em que o juiz, sem necessidade de mais provas, procede à apreciação do pedido formulado ou de alguma exceção perentória (cf. art. 595/1, a), do CPC) –, o que se apresenta como processualmente admissível, não obstante a falta de uma norma que expressamente o preveja. Neste sentido, escreve António Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, III, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2000, p. 186) que “se o juiz já tiver elementos [findo o prazo da oposição] para conhecer, com segurança, a questão de fundo, nada obsta a que proceda à emissão da correspondente decisão, de modo semelhante ao que ocorre no âmbito do processo declarativo e independentemente de a decisão ser favorável ao requerente ou ao requerido.” Esta leitura encontra arrimo no disposto no art. 367/1 do CPC vigente, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06 (= art. 386/1 do CPC de 1961, aprovado pelo DL n.º 44129, de 28.12, na redação do DL n.º 329-A/95, de 12.12).
A qualificação de “despacho liminar” – e a de “indeferimento liminar”, que é uma das suas possibilidades – deve ser reservada para o despacho que ao juiz cabe proferir quando a petição inicial lhe seja apresentada,
ut
art. 590/1 do CPC, antes da citação do requerido.
***
2). Feita esta precisão, acrescentamos, que, como é próprio do procedimento cautelar comum, o decretamento da providência pretendida pelo Recorrente – a suspensão dos efeitos do registo da transmissão da quota de que era (é?) titular no capital social da 2.ª Recorrida para o 1.º Recorrido – tem como pressupostos: (i) a aparência de existência de um direito; (ii) um
fundado
receio de que outrem cause uma lesão nesse direito durante a natural demora na resolução definitiva do litigio (
periculum in mora
); (iii) a gravidade dessa lesão; iv) A natureza dificilmente reparável dessa mesma lesão; (iv) a concreta adequação da providência cautelar para assegurar a efetividade do direito em causa; (v) o prejuízo resultante para o requerido da providência cautelar em causa não exceder consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar (art. 368/1 e 2 do CPC).
Dizendo de outra forma, a função instrumental da tutela cautelar implica necessariamente a limitação das medidas decretadas às situações de carência de tutela jurisdicional de um direito ou de uma posição juridicamente protegida. Pressupõe-se, assim, para o decretamento de uma providência, a existência, sumariamente analisada, de um direito subjetivo na esfera jurídica do requerente no momento em que a pretensão é deduzida, tudo levando a crer que a ação definitiva será procedente. A referida análise sumária, consequência da natureza urgente do procedimento, significa que basta um juízo de verosimilhança, a dita
summaria cognitio
, que não se compadece com as exigências probatórias próprias do processo principal.
Não basta esse
fumus boni iuris
; o decretamento da providência pressupõe, também, o fundado receio de que a demora na ação principal cause uma lesão grave e dificilmente reparável ao direito de que o requerente é titular. Aqui exige-se a formação de um juízo de certeza semelhante, pelo menos, ao pressuposto por qualquer demonstração probatória feita em juízo. Por outro lado, não é toda e qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da contraparte; exige-se que esteja em causa uma lesão
grave
e
dificilmente reparável
. A análise deste requisito deve ser especialmente cuidadosa quanto estejam em causa direitos de natureza patrimonial. Nestas devem ser ponderadas as condições económicas de requerente e requerido e a maior ou menor capacidade de reconstituição da situação ou de ressarcimento dos prejuízos eventualmente causados (cf. António Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil cit., pp. 84-85).
O perigo dessa lesão ocorrer deve ser aferido objetivamente, com apoio em factos que permitam afirmar a seriedade e atualidade da ameaça, e não à luz de estados subjetivos, dúvidas ou conjeturas do requerente, o que é imposto pelo adjetivo
fundado
.
***
3). Se bem percebemos a decisão recorrida, o indeferimento da pretensão do Recorrente fundou-se na inexistência, face ao alegado no requerimento inicial, de uma situação em que, numa lógica de proporcionalidade, a natural demora na decisão da ação definitiva constitua “ameaça de lesão grave do direito” que o Recorrente visa tutelar.
Quid inde
?
***
3).1. Começamos por lembrar que o Recorrente, alegando a sua qualidade de titular de uma quota no capital social da 2.ª Recorrida, uma sociedade comercial por quotas, pretende que sejam suspensos os efeitos da inscrição no registo comercial de um ato, de natureza negocial, de transmissão dessa quota para o património do 2.º Recorrido. Alega, para tanto, que o ato inscrito não importou a transmissão da quota, que assim permanece no seu património. De qualquer modo, uma eventual transmissão da quota, a ter existido, sempre teria ficado sem efeito (
ex tunc
) por via da resolução do ato com base no qual foi lavrado o registo. Alega, finalmente, a um tempo, que até à decisão da “ação de anulação do registo” – que, assim, configura como a ação definitiva –, está impedido de exercer os seus direitos sociais e, a outro, que o 1.º Requerido está “habilitado” a retransmitir a quota a um terceiro.
Daqui resulta que o Recorrente visa tutelar, por um lado, o seu direito sobre a referida quota, enquanto objeto jurídico, e, por outro, os direitos subjetivos que ela lhe confere no contexto da sociedade e que são inerentes ao
status socii
.
Explicando esta afirmação diremos que, como é sabido, no direito português, todas as sociedades comerciais têm personalidade jurídica. Por esta razão, os sócios não têm um direito sobre o património nem sobre o estabelecimento da sociedade. Se não tivesse personalidade jurídica, a participação social incidiria sobre esse património e sobre esse estabelecimento. Atenta a personalidade de todas as sociedades comerciais, a participação dos sócios nessas sociedades incide sobre a parte social. A propósito,
vide
Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2006, p. 370.
Nos vários tipos legais de sociedades comerciais, a parte social assume designações diversas. Na sociedade por quotas as respetivas partes sociais são denominadas quotas.
O objeto da participação social é a parte social, é sobre ela que incide o direito do sócio. Só nas sociedades unipessoais a parte social corresponde à totalidade da sociedade; nas sociedades pluripessoais, corresponde a uma parte dela, e daí a sua designação.
O entendimento da parte social como objeto da participação social enfrenta uma dificuldade dogmática. Se a sociedade é pessoa jurídica, então não poderia ser objeto, porque é sujeito.
Como salienta Pedro Pais de Vasconcelos (A Participação cit., p. 371), a objeção só aparentemente é relevante. Costuma ser invocada contra a construção do direito subjetivo de personalidade como um
jus in se ipsum
: o direito subjetivo de personalidade não pode ter como objeto a própria pessoa do seu titular porque, enquanto pessoa, não pode ser objeto de um direito subjetivo. Porém, ao ser transposto para as pessoas coletivas o argumento perde quase toda a sua força, porque só as pessoas singulares são dotadas de uma dignidade e de um estatuto no Direito que não permite que possam ser objeto de direitos. As pessoas coletivas, diferentemente das pessoas singulares, não têm, no Direito, nem a dignidade das pessoas singulares, nem o seu estatuto ético-ontologicamente fundante. A personalidade coletiva é uma
ficto iuris
, uma técnica jurídica de regulação de interesses humanos, institucionalizados ou coletivos. Responde a uma necessidade técnico-jurídica de facilitar a autonomização entre o sócio e a sociedade, no aspeto pessoal (imputação de situações jurídicas) e patrimonial (principalmente a limitação da responsabilidade), e ainda de titularidade e transmissão, circulação e oneração da participação social.
Nesta perspetiva de eficiência e de praticabilidade no exercício jurídico, há que distinguir entre as sociedades com personalidade e aquelas que a não têm. Na sociedade sem personalidade, a participação social incide sobre a comunhão, o fundo comum e, por isso, no direito alemão é designada como sociedade de mão comum (
Gesamthand
). Na sociedade personalizada, a participação social não incide sobre o fundo comum, nem sobre o património, nem sobre o estabelecimento da sociedade, que são dela, sociedade, mas sim sobre a parte social, sobre a quota ou sobre as ações, consoante o respetivo tipo legal (Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, II, Coimbra, 1968, p. 84; Alexandre Soveral Martins, “Da personalidade e capacidade jurídicas das sociedades comerciais”, Estudos de Direito das Sociedades, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2008, p. 102).
Esta conclusão resulta do regime de titularidade, transmissão e oneração da parte social, que está construído de tal modo que a parte social nele é tratado como objeto: as partes sociais, as quotas e as ações são objeto de transmissão (cessão de quotas, compra e venda de ações), sucessão por morte (legado) e também de oneração (usufruto, penhor, penhora). No regime jurídico das entradas, há uma transmissão do respetivo objeto da titularidade do sócio para a da sociedade. Mesmo no direito fiscal, a participação social é tratada como património do sócio.
No seu regime técnico-jurídico, a parte social é tratada como objeto de direitos. Este objeto não tem de ser uma coisa, embora possa sê-lo, como no caso das ações tituladas que são coisas móveis. Já as quotas não estão juridicamente
coisificadas
como as ações e mantêm-se como direitos que são transmitidos por cessão. Como decorrência, não suscita dúvida que as ações tituladas, enquanto
coisas
, são suscetíveis de posse e de usucapião, ao contrário do que sucede com as quotas, que não são
coisas
. É, aliás, significativo notar que o CSC não fala em
direito de propriedade
sobre a quota, mas de
titularidade
(exemplificativamente, arts. 222, 233 e 269), o que se conjuga com o disposto no art. 1302 do Código Civil, onde se diz que só as coisas corpóreas, móveis ou imóveis, podem ser objeto do direito de propriedade.
Mas a participação social, além de ser objeto de direitos, confere ao seu titular um conjunto de direitos – os ditos poderes do sócio – que tanto assumem natureza patrimonial – o direito de obter a quota parte nos lucros , como natureza administrativa – a participação nos órgãos da sociedade, a obtenção de informações, a participação no processo de formação da vontade da sociedade, através da apresentação, discussão e voto de propostas, a impugnação de deliberações e mesmo a exoneração da sociedade.
Tais direitos “encontram com facilidade a unidade funcional imprescindível para que possam ser unificados num único direito subjetivo”, visto que todos eles contribuem, isolada ou conjuntamente, “para que obtenha êxito a afetação jurídica do sócio ao bem patrimonial que para ele representa a participação social, para a realização do seu fim: obter lucro do seu investimento na sociedade” (Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social cit., p. 491). Isto permite “enquadrar e unificar num único direito subjetivo – o
direito social
– a componente ativa da participação social” (idem, ibidem).
***
3).2. Do que antecede, resulta que a quota pode ser objeto de negócios jurídicos, designadamente translativos – isto é, que têm como efeito prático-jurídico a transmissão da respetiva titularidade.
A transmissão da titularidade da quota – que, quando feita de forma voluntária e
inter vivos
, se denomina
cessão
(Raúl Ventura, Sociedades por Quotas, I. 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 1993, p. 577; J. M. Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2013, p. 366), conceito utilizado no art. 228 do CSC e que abrange várias situações, como a compra e venda, a doação, a dação
pro soluto
e outros negócios, típicos e atípicos (Alexandre de Soveral Martins, Cessão de Quotas, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, pp. 15-16; Pedro de Albuquerque, “Art. 228.º”, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 797) –, implica que o transmitente (
cedente
)
deixa de ser o titular do apontado
direito subjetivo unitário
, o qual passa para a esfera jurídica do transmissário (
cessionário
). Compreende-se, por isto, que se afirme que, a partir do momento em que transmissão se torna eficaz perante a sociedade, esta “conhece – e só conhece – o transmissário como titular da quota” (Raúl Ventura, Sociedades por Quotas cit., p. 592).
Encontra-se sujeita ao regime da cessão de direitos (cf. arts. 425, 578/1 e 588 do Código Civil), atenta a natureza do seu objeto – a
titularidade
de direitos ou de um
direito subjetivo unitário
–, donde resulta que é enformada pelos princípios da causalidade e da consensualidade. Com efeito, pressupõe a existência e validade de um contrato-título como sua causa. A invalidade de tal contrato conduz, inexoravelmente, à invalidade dos negócios subsequentes (
cessante causa cessat effectus
), por efeito do disposto no art. 289/1 do Código Civil, onde se afirma a eficácia retroativa real da nulidade e da anulabilidade dos negócios jurídicos, por falta de legitimidade do cedente – não titular. Por outro lado, opera
solo consensu
, ou seja, por mero efeito do acordo de vontade das partes (art. 408/1 do Código Civil), substancial e formalmente válido, sem necessidade de um ato que atribua efetivamente ao cessionário a titularidade da quota, como sucederia se dependesse da
traditio
ou da inscrição no registo (que então se assumiria como constitutivo e, portanto, necessário à transmissão do direito, e não, como sucede, meramente declarativo e mera condição de oponibilidade a terceiros). Assim, Jorge Simões Cortez, “As formalidades da transmissão de quotas e ações no direito português: dos princípios à prática”, AAVV, Maria de Fátima Ribeiro / Fábio Ulhoa Coelho (coord.), Questões de Direito Societário em Portugal e no Brasil, Coimbra: Almedina, 2012, pp. 313-342); Margarida da Costa Andrade, “Art. 242.º-A”, AAVV, J. M. Coutinho de Abreu (coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário, III, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2023, p. 653.
***
3).3. Já perante a sociedade, que estando dotada de personalidade jurídica diversa dos seus sócios, é
terceiro
relativamente ao ato translativo (cf. art. 406/2 do Código Civil), os efeitos da cessão, condição para que o transmissário passe a ser tratado como o titular da quota, não se produzem
ipso facto
com a celebração do contrato, que deve revestir forma escrita, cf. resulta do art. 228/1 do CSC, na redação do DL n.º 76-A/2006, de 29.03, que eliminou a anterior exigência de escritura pública, assim revogando o art. 80/2, i), do Código do Notariado.
Tais efeitos estão, na verdade, dependentes de vários atos, o primeiro dos quais – o consentimento da sociedade – pode ser anterior ou ulterior à cessão.
Neste sentido, diz o art. 228/2, 1.ª parte, do CSC que “[a] cessão de quotas não produz efeitos para com a sociedade enquanto não for consentida por esta.” O consentimento constitui um ato jurídico unilateral, a prestar mediante deliberação dos sócios (art. 246/1, b), do CSC), que não carece de maioria qualificada. (cf. Alexandre de Soveral Martins, “Sobre o consentimento da sociedade”, BFDUC, Volume Comemorativo - 75 anos, 2002, pp. 573-688). Pode ser prestado de forma expressa ou tácita.
Compreende-se esta exigência, sem o cumprimento da qual a cessão é ineficaz em relação à sociedade (STJ 7.02.2017, 153/04.9TYLSB.L1.S1, Alexandre Reis): como escreve Raúl Ventura (Sociedades por Quotas cit., pp. 583-584), “[a] cessão duma quota traz à superfície um possível conflito de interesses. O sócio titular da quota tem interesse na realização imediata e fácil do valor pecuniário da quota, que consegue como meio de saída da sociedade. Os outros sócios podem ter interesse em que o seu sócio não seja substituído por um terceiro – ou por um certo terceiro ou por nenhum terceiro, isto é, podem querer evitar que na sociedade entre alguma pessoa indesejável sob qualquer aspeto ou podem ter interesse em que na sociedade se mantenha o sócio em questão.”
Deste modo, enquanto a cessão não for consentida, a sociedade pode ignorá-la, tudo se passando como se ela não tivesse existido. Continuará a ser o cedente, e não o cessionário, o titular da legitimidade para exercer os direitos sociais. Isto sem prejuízo do efeito
ex tunc
do consentimento superveniente, defendido na doutrina por Pedro de Albuquerque (loc. cit., p. 798) e negado em STJ 8.07.2003 (Rev. 1938/03-2.ª Secção), Ferreira de Almeida (Sumários de Acórdãos do STJ, 2003, pp. 349-350
[2]
).
Sendo esta a razão subjacente à exigência do consentimento da sociedade enquanto condição de eficácia em relação a si da cessão de quotas, compreende-se também que se prescinda dele quando este negócio seja celebrado entre sócios, conforme resulta da parte final do referido art. 228/2 do CSC. À luz deste segmento normativo, é inócuo a alegação feita pelo Recorrente no sentido de o suposto ato de cessão não ter sido consentido pela 2.ª Requerida: tanto ele (
cedente
), como o 2.º Requerido (
cessionário
), eram, ao tempo, sócios da sociedade, pelo que o ato se impunha a esta, independentemente do consentimento.
Para além do consentimento, quando não dispensado pela lei ou pelo contrato de sociedade (art. 229/2 e 3 do CSC), existem outras duas condições de eficácia da cessão relativamente ao ente societário: (i) a comunicação da cessão, feita por escrito, ou o seu reconhecimento, expresso ou tácito (art. 228/3 do CSC); e (ii) a solicitação da promoção do registo (cf. art. 242-A do CSC, na redação do art. 11.º do DL n.º 8/2007, de 17.01).
Os dois atos não se confundem, muito embora se possa questionar se o primeiro (comunicação da cessão) torna dispensável o segundo (solicitação do registo) e, bem assim, se constitui,
per se
, a sociedade no dever de promover o registo.
A propósito da primeira destas dúvidas – a única que releva para a questão decidenda –, diremos que é razoável uma resposta afirmativa. Neste sentido, J. M. Coutinho de Abreu (Curso cit., p. 369) escreve que “deve entender-se que a (documentada) solicitação à sociedade para que promova o registo da cessão de quota, feita pelo cedente e/ou pelo cessionário, vale também como comunicação à sociedade dessa cessão”, entendimento que é também expresso por Alexandre de Soveral Martins (Cessão de Quotas cit., p. 95), que acrescenta que “[n]ão há qualquer exigência de que a comunicação da cessão seja realizada mediante a utilização de uma fórmula, pelo que a solicitação da promoção do registo de uma cessão de quota realizada vale como comunicação dessa mesma cessão.” Defendendo igual solução,
vide
Maria Miguel Carvalho, “Algumas questões relacionadas com a deliberação de amortização compulsiva na sequência de uma cessão de quota não consentida pela sociedade”, AAVV, III Congresso Direito das Sociedades em Revista, Coimbra: Almedina, 2014, pp. 201-223.
Iremos ver, mais à frente, como se processa o registo da cessão de quotas. Por agora importa apenas ter presente, para melhor compreensão do que acabámos de escrever, que o ato deve ser registado, o que cabe à sociedade promover. Com efeito, resulta do art. 3.º/1, c), do Código do Registo Comercial (CRC) que a transmissão de quotas de sociedades por quotas está sujeita a registo obrigatório (art. 15 do CRC). Esse registo é feito por depósito (art. 53-A/5, a), do CRC, na redação da Lei n.º 8/2007, de 17.01). De acordo com o n.º 5 do art. 29 do CRC, “[s]alvo no que respeita ao registo de ações e outras providências judiciais, para pedir o registo de atos a efetuar por depósito apenas tem legitimidade a entidade sujeita a registo”, o que se conjuga com o disposto no art. 248-B/1 do CSC, também na redação do DL n.º 8/2007, onde se diz que “[a] sociedade promove os registos relativos a factos em que, de alguma forma, tenha tido intervenção ou mediante solicitação de quem tenha legitimidade, nos termos do número seguinte” (n.º 1) e que “[t]êm legitimidade para solicitar à sociedade a promoção do registo: a) O transmissário, o transmitente e o sócio exonerado; b) O usufrutuário e o credor pignoratício.”
Do exposto resulta que, ademais da comunicação do ato de cessão, apenas a solicitação da promoção do registo constitui requisito de eficácia perante a sociedade.
[3]
Dito de outra forma, nem a promoção nem a realização do registo, atos logicamente situados a montante da sua solicitação, constituem requisitos de que dependa a eficácia da cessão perante a sociedade, o que, diga-se, se conjuga com o disposto no art. 170 do CSC, onde se pode ler que “[a] eficácia para com a sociedade de atos que, nos termos da lei, devam ser-lhe notificados ou comunicados não depende de registo ou de publicação.” Assim, Alexandre de Soveral Martins (Cessão de Quotas cit., pp. 24-25). Também Margarida Costa Andrade (“Art. 242.º-A cit., p. 654, e “Art. 170.º”, AAVV, J. M. Coutinho de Abreu (coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário, II, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 867) sufraga este entendimento, notando que “[n]ão teria sentido que a eficácia perante a sociedade aguardasse um registo que vai ser promovido e controlado por ela própria. Ou porque a promoção lhe foi requerida pelos intervenientes, ou porque ela interveio no facto.” Contra, defendendo que “enquanto não for registada a cessão, ela não produz efeitos perante a sociedade”, Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2012, p. 458, entendimento que nos parece não ter suporte legal nem se justifica quando se pondere a natureza específica do
terceiro
em relação ao ato que é a sociedade. A propósito, Sofia Henriques (“Art. 170.º”, AAVV”, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 682), escreve mesmo que “quando se verifique o dever de notificar ou de comunicar, a sociedade não funciona como
terceiro
.
”
Estas breves considerações desvelam-nos que a providência cujo decretamento é pretendido pelo Recorrente se apresenta, afinal, absolutamente inócua para esconjurar o perigo decorrente de se ver excluído do exercício dos direitos sociais decorrentes da titularidade da quota cuja cessão foi objeto do registo. A ter ocorrido a cessão, os seus efeitos, no confronto com a sociedade, produziram-se no momento que o ato foi comunicado a esta, o que aconteceu, pelo menos, quando recebeu a solicitação para a promoção do registo.
Decretar a providência seria, nesta dimensão, um ato carecido de qualquer sentido.
***
3).4. O que antecede não basta, porém, para que a pretensão do Recorrente seja negada nesta dimensão. É que, como resulta do disposto no art. 376/3, 1.ª parte, do CPC, “[o] tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida.”
De acordo com Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, pp. 84-85), esta norma, “maleabilizando um pouco o princípio do dispositivo”, permite que o juiz decrete “a providência mais adequada, desde que contida nos limites do objeto da ação principal e não incompatível com a vontade manifestada no procedimento cautelar”, consagrando orientação semelhante à do § 938 I da ZPO alemão, que permite ao juiz determinar, segundo o seu prudente arbítrio, as providência cautelares necessárias ao fim pretendido, desde que estejam em conformidade com o requerido. Os autores acrescentam que trata-se de “um poder judicial de adequação material, de algum modo paralelo ao exercido quando o juiz profere despacho de aperfeiçoamento dum articulado deficiente (art. 590/2, b), mas agora substituindo-se o tribunal à parte, tida em conta a urgência do procedimento cautelar” e que “[r]equisito para que possa ser exercido é que a inadequação da providência concretamente requerida seja total, devendo, não fora a adequação judicial, levar à improcedência do pedido cautelar.”
É este também o entendimento expresso por António Abrantes Geraldes (Temas da Reforma cit., pp. 308-311) face à norma semelhante constante do art. 392/3 do revogado CPC de 1961, na redação do DL n.º 329-A/95, de 12.12, que conclui a sua exposição escrevendo que assim se “confere ao juiz maior liberdade de adaptação da medida cautelar adequada à situação de facto carecida de tal tipo de tutela provisória, de modo que, diversamente do que está previsto para as ações com cariz definitivo (…), o juiz não está vinculado a conceder ou a recusar a medida solicitada, devendo decretar aquele que
concretamente for adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado
, desde que a matéria de facto alegada e provada permita tal convolação.” Ainda no mesmo sentido, Carlos Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra: Almedina, 1999, p. 288), que escreve que, em sede do procedimento cautelar comum, “assiste ao juiz a possibilidade de, ouvido o requerente, por força do princípio do contraditório, convolar do tipo de medida concretamente requerida para a que considere mais eficaz e adequada à tutela do direito invocado e à prevenção do
periculum in mora
concretamente verificado.”
Contra, considerando que a norma “concede ao juiz um poder de correção da errada qualificação da providência, mas não lhe atribui qualquer poder discricionário quanto à providência a decretar (ao contrário do que se estabelece no § 938 ZPO)”, Miguel Teixeira de Sousa (Código de Processo Civil Online, CPC: art. 362.º a 409.º Versão de 2024/07, pp. 48-49). Também João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa; AAFDL, 2022, pp. 609-610), que escrevem que “[t]rata-se, no entanto, de corrigir o errado pedido do requerente em função da respetiva fundamentação; não se trata de permitir nem que o requerente formule um pedido indeterminado, nem que o tribunal conceda um
aliud
ou um
plus
do que o requerente, atendendo àquela fundamentação, deveria ter pedido.”
Sem entrar nesta discussão, diremos apenas que, no caso, ainda que fosse de cogitar a possibilidade de convolar a providência requerida para uma outra adequada a permitir que o Recorrente exerça os seus direitos sociais até à decisão da ação definitiva, partindo, para tanto, do pressuposto de que a sua intenção é a de eliminar o efeito jurídico da cessão da quota – ou, na sua tese, da putativa cessão da quota – perante a sociedade, sempre o procedimento estaria condenado ao insucesso. E por uma singela razão que, a nosso ver, é a que com maior evidência ressalta da leitura do requerimento inicial: a total falta de alegação de factos caracterizadores do
periculum in mora
.
Concretizando, lembramos que o Recorrente alegou, no requerimento inicial, que por via do registo do ato de cessão da quota, o 1.º Requerido ficou habilitado a exercer, perante a 2.ª Requerida, todos os direitos inerentes à qualidade de sócio, designadamente o direito de voto e o direito de receber, “por sua exclusiva deliberação” (
sic
), os dividendos da sociedade” e que, por outro lado, o Requerente ficou impedido de obter qualquer tipo de informação sobre a sociedade e de promover qualquer inquérito relativo a ela.
Isto mais não é que a afirmação genérica dos efeitos do negócio de cessão da quota. Não contém a afirmação de um potencial prejuízo concreto e, muito menos, a afirmação, necessariamente substanciada, da sua gravidade e difícil reparação.
Por outro lado, relembrando que o fundamento de toda a pretensão do Recorrente assenta na
inexistência
ontológica
do ato de cessão da quota que foi objeto do registo, temos de acrescentar que, a ser assim, então pura e simplesmente não há quaisquer efeitos, sequer aparentes, que careçam de ser suspensos. Sem entrarmos aqui na discussão sobre se a inexistência constitui uma espécie autónoma da invalidade do negócio jurídico (a propósito, Carlos Ferreira de Almeida, “Invalidade, inexistência e ineficácia”, Católica Law Review, I, n.º 2, maio 2017, pp. 9-33), apenas diremos que as situação que a ela se reconduzem não são produtoras de quaisquer efeitos, ao contrário do que sucede nos casos de nulidade do negócio jurídico em que existe, por um lado, uma aparência da produção dos efeitos do negócio e, por outro, a produção efetiva de alguns efeitos residuais, ainda que não despiciendos, de que António Menezes Cordeiro (“Nulidade e Anulabilidade do negócio jurídico”, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, I, Parte Geral, Coimbra: Almedina, 2020, p. 840) dá nota: “(…) a pessoa que, na base de um, negócio nulo, receba o controlo material de uma coisa, pode, em certos casos, beneficiar de uma posse que se presume de boa fé (art. 1259/1 e 1260/2); o possuidor de boa fé, por seu turno, faz seus os frutos da coisa (art. 1270/1) até que seja informado da nulidade.”
Deste modo, o Recorrente continua, de acordo com a sua tese, a poder exercer os direitos que, no confronto com a 2.ª Recorrida, lhe advêm da titularidade da quota. Se algum deles lhe for negado, poderá recorrer à via judicial, inclusive de natureza cautelar. A título de exemplo, se não convocado para uma assembleia geral, poderá pedir a declaração de nulidade das deliberações ali tomadas (art. 56/1, a), do CSC) e mesmo a suspensão da sua eficácia, “justificando a sua qualidade de sócio” e mostrando que a execução da deliberação lhe “pode causar dano apreciável.” Se privado do direito à informação, poderá, invocando a qualidade de sócio, requerer ao tribunal inquérito à sociedade (art. 216 do CPC). O que não parece curial é, antecipando a oposição ao exercício de tais direitos, procure salvaguardá-los em bloco sem invocar um concreto perigo de lesão de
todos eles
, mas apenas um perigo genérico e abstrato.
Deste modo, sem entrarmos na questão de saber se estamos, na verdade, perante uma inexistência ontológica do negócio jurídico registado – a qual se relaciona com o
fumus boni iuris
e cuja resposta depende da interpretação das declarações de vontade das partes corporizadas no escrito de 2 de outubro de 2023 –, podemos concluir que, face ao alegado no requerimento inicial, o procedimento cautelar é, nesta dimensão, manifestamente improcedente.
***
4).1. Vejamos agora a 2.ª dimensão do perigo que o Recorrente pretende esconjurar – o perigo de perda da titularidade da quota.
Recapitulando, o Requerente sustenta, a este propósito, que o registo da cessão da quota, tornando o ato
eficaz
perante terceiros, permite que o 1.º Recorrido a
revenda
– ou, dizendo de uma forma mais ampla, a transmita a terceiro.
Vimos já que, por aplicação do art. 15 do CRC, os factos relativos a quotas elencados no art. 3.º do CRC estão sujeitos a registo obrigatório, o qual, acrescentamos agora, deve ser pedido no prazo de 2 meses a contar da data em que tais atos tiverem sido titulados (n.ºs 1 e 2).
Desde o já citado DL n.º 76-A/2006, os factos relativos à quota, incluindo, portanto, a cessão, pertencem ao rol daqueles cujo registo é feito por
depósito
(art. 53-A/5, a) e g), do CRC). Este consiste, nas palavras do legislador (art. 53-A/3 do CRC), “no mero arquivamento dos documentos que titulam factos sujeitos a registo.”
O depósito de documentos que titulem factos sujeitos a registo relativos a quotas é mencionado na ficha de registo (art. 14/1 do Regulamento do Registo Comercial, aprovado pela Portaria n.º 657-A/2006, de 29.06), com indicação dos documentos constantes dos arts. 14 e 15/2 do Regulamento do Registo Comercial, que serão recolhidos no pedido de registo, entre os quais não se inclui o documento que titula o facto registando. Este não é, portanto, verificado pelo conservador. O registo é feito pelos oficiais de registo (art. 55-A/2, h), do CRC), que lhe atribuem a data do respetivo pedido (art. 55/5 do CRC).
Da não intervenção do conservador, enquanto garante da legalidade, decorre um conjunto de consequências para o registo por depósito.
Em primeiro lugar, esse registo não padecerá de nulidade (art. 22 do CRC, que restringe as causas de nulidade do registo ao
registo por transcrição
) e, coerentemente, nem o pedido nem o registo podem ser recusados com fundamento na nulidade (arts. 46 e 48 do CRC, respetivamente). Apenas pode ser rejeitado nos casos descritos no art. 46/2 do CRC, ou seja, quando o requerimento não respeitar o modelo aprovado, quando não forem pagas as quantias que se mostrem devidas, quando a entidade objeto de registo não tiver número de identificação de pessoa coletiva atribuído, se o requerente não tiver legitimidade para requerer o registo, quanto não se mostre efetuado o primeiro registo da entidade e quanto o facto não estiver sujeito a registo. Depois, só para o
registo por transcrição
, que é o registo tradicional, em que os factos estão sujeitos à qualificação do conservador, que fiscaliza a validade formal e material dos documentos, se prevê a recusa com fundamento na nulidade do ato (art. 48 do CRC).
Em segundo lugar, esse registo é sempre definitivo.
Em terceiro lugar, mais relevante, o registo por depósito não oferece presunção da verdade, ficando os seus efeitos reduzidos à oponibilidade do facto perante terceiros (art. 14 do CRC) e à prioridade (art. 12 do CRC).
Considerando estas características, é duvidoso que se esteja perante um registo no sentido próprio do termo. Relembrando a já clássica lição de Carlos Ferreira de Almeida (Publicidade e Teoria dos Registos, Coimbra: Almedina, 1966, p. 97), “registo público é o assento efetuado por um oficial público e constante de livros públicos, do livre conhecimento, direto ou indireto, por todos os interessados, no qual se atestam factos jurídicos conformes com a lei e respeitantes a uma pessoa ou a uma coisa, factos entre si conectados pela referência a um assento considerado principal, de modo a assegurar o conhecimento por terceiros da respetiva situação jurídica e do qual a lei faz derivar, como efeitos mínimos, a presunção do seu conhecimento e a capacidade probatória.”
Assim, Jorge de Seabra Lopes (Direito dos Registo e do Notariado, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 211) escreve que “chamar
registo
ao mero arquivamento de documentos, sem
qualificação
pelo conservador, representa um manifesto abuso da linguagem jurídico-registal.”
De igual modo, Maria Madalena Rodrigues Teixeira, em declaração de voto ao Parecer do Conselho Consultivo do IRN, aprovado a 16 de setembro de 2020 (Pº R.Co.4/2020 STJSR-CC
[4]
), escreve que “[a] despeito do
nomen
de “registo” que se lhe quis atribuir, os registos por depósito não correspondem, pois, a uma manifestação positiva de publicidade de factos jurídicos, que os serviços de registo possam afiançar como titulados nos documentos depositados; antes se traduzem numa mera referência ao depósito de um documento, que pode ou não titular o facto jurídico, e a um facto jurídico que, por seu turno, pode ou não ter sido titulado nos termos indicados pelo requerente no pedido e, assim, levados para a ficha de registo.” E acrescenta: “Daí que tais registos não beneficiem da fé pública, que só o crivo da qualificação jurídica e uma intervenção fundada no princípio da legalidade poderiam justificar, e tenham sido excluídos do âmbito do art. 11.º do CRCom (que, agora, apenas se refere aos registos por transcrição, por serem os únicos que, de acordo com a definição dada no art. 53.º-A/2 do CRCom, representam a situação jurídica da entidade sujeito a registo comercial), e daí também não figurarem no elenco do art. 22.º/1 do CRCom, referente à nulidade dos registos, justamente porque sobre eles não recai, em geral, qualquer sindicância formal ou substantiva por parte do serviço de registo, qualquer atuação pública que lhes confira a aparência de legalidade ou de conformidade com a realidade substantiva, capaz de outorgar o valor de confiança adicional para terceiros que sempre caraterizou a informação registal”; “Faltando-lhe esta conexão com os registos por transcrição e um controlo sistemático de legalidade por parte serviço de registo, ao registo por depósito faltará, também, a natureza de um registo público em sentido técnico-jurídico, ou seja, de um ato realizado pelo oficial público no qual se ateste um facto jurídico conforme com a lei e que, em conexão com os demais factos jurídicos inscritos, possa, assim, assegurar o conhecimento por terceiros da situação jurídica da entidade ou exercer uma “função legitimadora”, assente na presunção de que o seu conteúdo é verdadeiro ou exato e de que os direitos que dele resultam existem e pertencem ao titular inscrito”; “(…) o registo por depósito é, portanto, um meio de publicidade com regras e princípios específicos, que não se articula, nem se funde, com o registo por transcrição, e que apenas partilha do mesmo suporte de divulgação, ou seja, a ficha de registo, pelo que, quando, no art. 47.º do CRCom, se estabelecem os parâmetros da qualificação registal e se manda atender aos registos anteriores, é aos registos por transcrição que a lei se refere, porque só estes constituem um extrato dos elementos que definem a situação jurídica das entidades sujeitas a registo; porque só estes foram objeto do controlo público de legalidade; e só destes se extrai uma presunção de verdade e de exatidão.”
A esta luz, pode afirmar-se que o principal fim que o legislador atribui ao registo – a segurança no comércio jurídico – não é cumprido, o que leva a doutrina a questionar a bondade da solução legislativa.
É o caso de Pedro Maia (“Registo e cessão de quotas”, AAVV, J. M. Coutinho de Abreu (coord.), “Reformas do Código das Sociedades, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 164-176), para quem “o novo regime de registo de quotas afigura-se altamente criticável e, até, em parte, inútil: se não resulta nenhum controlo de legalidade, se não estabelece nenhuma presunção de legalidade, então de que serve o registo? Como mecanismo para publicitar factos, independentemente da sua legalidade e até mesmo da sua existência?”
É também o caso de J. A. Mouteira Guerreiro (“O registo por depósito da cessão de quotas o antes, o depois… e agora?” Temas de Registos e Notariado, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 535-546), que, também em tom crítico, refere que “tais depósitos não se podem considerar
registos
e serão mesmo injustificáveis à luz do nosso sistema jurídico – salvo, é claro, o caso das contas que já anteriormente eram feitas por depósito, precisamente porque, neste caso (neste único caso, recorde-se) ao registo incumbe apenas (… ) publicitar que foram depositadas, cabendo a respetiva análise e controlo (aliás um apurado controlo técnico) aos Serviços Fiscais.”
É, finalmente, o caso de António Menezes Cordeiro (“Do registo de quotas: as reformas de 2006, de 2007 e de 2008”, Revista de Direito das Sociedades, I, 2009, t. 2, pp. 293-326
[5]
), que escreve: “o registo dos factos relativos a quotas deixou de ter fé pública. É evidente que o mero depósito de atos relativos a quotas, feitos, para mais, por escrito, não dá quaisquer garantias de correção ou, sequer, de seriedade. Não se pode, pois, descobrir nem um efeito presuntivo, nem manifestações de publicidade positiva ou negativa, em torno da transmissão de quotas.”
Perante estas considerações, podemos concluir que, nesta dimensão, o registo cujos efeitos o Recorrente pretende ver suspensos é, afinal, absolutamente irrelevante. Ele não atribui ao respetivo sujeito ativo a titularidade da quota. Não funciona sequer como uma presunção dessa titularidade.
***
4).3. Ao escrevermos isto não estamos a ignorar a hipótese de o 1.º Requerido [re]transmitir a quota a terceiro, que registe o ato.
Simplesmente, tendo presente a tese do Recorrente – no sentido da inexistência ontológica da cessão da quota ao 1.º Recorrido –, esse registo será inócuo, ainda que o ato revista natureza onerosa e haja boa fé do
adquirente
.
Com efeito, não existindo o direito transmitido na esfera jurídica do transmitente, a aquisição apenas seria possível no quadro do art. 291 do Código Civil.
A aplicação deste, apenas cogitável para quem entenda que a quota é uma coisa ou para quem faça uma interpretação ampla do conceito de coisa usado na norma, de modo a abranger os direitos, o que se apresenta como duvidoso (a propósito, Jorge Simões Cortez, loc. cit., p. 330), é, porém, de excluir liminarmente, visto que o facto registado não passa de uma aquisição
a non domino
, ineficaz relativamente ao Recorrente e, como ensina Maria Clara Sottomayor (“Art. 291.º”, AAVV, Comentário ao Código Civil. Parte Geral, 2.ª ed., Lisboa: UCE, 2023, p. 897), o regime em causa pressupõe que[,] “na origem da cadeia de negócios inválidos, esteja o verdadeiro proprietário ou titular do direito.” De tal modo assim é que, acrescenta a autora, “[s]e um sujeito, obtendo um registo de aquisição com base em documentos falsos, vende a terceiro de boa fé que regista imediatamente a sua aquisição, não estão reunidos os requisitos do art. 291.º nem do art. 17, n.º 2, do CRP, pois o sujeito que deu origem à cadeia de negócios (ou de registos) inválidos nunca foi proprietário do bem, sendo as alienações sucessivas, a partir do sujeito que obtém o registo falso,
res inter alios acta
ou totalmente ineficazes em relação ao verdadeiro proprietário ou titular do direito.”
***
4).4. O que antecede permite-nos concluir que, nesta segunda dimensão, não há qualquer perigo que importe acautelar, o que vale por dizer que a providência requerida – ou qualquer outra em que ela pudesse ser convolada – se apresenta como desnecessária. Consequentemente, a resposta à questão enunciada é negativa. A decisão recorrida, apesar das suas aporias expositivas, apresenta-se como correta.
***
4).5. Ao mesmo resultado chegaríamos se partíssemos da causa de pedir subsidiariamente invocada pelo Recorrente – a resolução do acordo que deu origem ao registo.
Não haveria então qualquer desconformidade entre o registo e a realidade que é suposto ser por ele retratada, pelo que seria de excluir a possibilidade de
suspensão
dos efeitos daquele.
Colocar-se-ia, nessa hipótese, a possibilidade da efetivação dos efeitos da resolução, seja perante a sociedade, seja perante terceiros.
Perante a sociedade, valeriam as considerações feitas em 3).5. a propósito da não alegação de uma situação de
periculum in mora
.
Perante terceiros, temos que, operada a resolução, os seus efeitos retroativos, tendencialmente equiparados aos efeitos da declaração de nulidade e da anulação do negócio jurídico (cf. art. 433 e 434 do Código Civil), implicariam que a titularidade da quota
retornasse
à esfera jurídica do Requerente. Com efeito, conforme ensina J. C. Brandão Proença (A Resolução do Contrato no Direito Civil, Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 167), “a resolução faz ressurgir automaticamente (tratando-se da propriedade ou de outro direito real) a situação precedente aos efeitos reais causados pelo contrato, funcionando as obrigações legais de restituição (…) ou de indemnização (pelos danos derivados de uma entrega tardia, da perda ou deterioração do objeto a restituir ou da oneração do direito real do titular) como atos acessórios ou auxiliares do regresso das partes à posição antecontratual.”
Deste modo, um eventual ato de
transmissão
da quota pelo 1.º Requerido a terceiro, em momento ulterior à resolução – ou, dito com mais rigor, ao momento em que a declaração resolutória foi por ele recebida –, sempre teria de ser considerada
a non domino
e, logo, ineficaz no confronto com o Recorrente. Valeriam então as considerações feitas em 4).3., evidenciando-se, assim, que também nesta hipótese a providência seria desnecessária.
[6]
***
5). Improcedendo o recurso, as custas respetivas devem ser suportadas pelo Recorrente: art. 527/1 e 2 do CPC.
***
V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso improcedente e confirmar a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo Recorrente.
Notifique.
*
Guimarães, 22 de maio de 2025
Os juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte
2.ª Adjunta: Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade
[1]
Estabelecido que um documento particular é da autoria daquele a quem é atribuído, as declarações deste, indiscutíveis na sua materialidade, têm a eficácia que lhes competir segundo outras normas de direito material alheias ao instituto do documento: se revestirem a natureza de declarações de ciência, terão, se desfavoráveis, eficácia como confissão (arts. 376/2 e 358); se forem declarações de vontade, há que ver se por si constituem ou integram um negócio jurídico. Na verdade, como ensina Lebre de Freitas (A Falsidade no Direito Probatório, Coimbra: Coimbra Editora, 1984, pp. 55-56), “a força probatória do documento particular circunscreve-se no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nele constam como feitas pelo respetivo subscritor. Tal como no documento autêntico, a prova plena estabelecida pelo documento respeita ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia. Mas, diferentemente do documento autêntico, que provém duma entidade dotada de fé pública, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objeto da sua perceção direta. O âmbito da sua força probatória é, pois, bem mais restrito. «Com esse âmbito não tem a ver o problema da eficácia da declaração de ciência constante do documento, enquanto meio de confissão dos factos que dele são objeto. A norma do art. 376 /2 é uma aplicação dos princípios que regem a confissão e, embora tradicionalmente inserta no capítulo da força probatória dos documentos particulares, encontra-se aí deslocada – até porque, por maioria de razão, vale também para os documentos autênticos.”
[2]
(Microsoft Word - ...)
[3]
De forma diversa, J. M. Coutinho de Abreu (Curso cit., p. 369) defende que a comunicação da cessão de quotas à sociedade ou o seu reconhecimento são suficientes para que o ato se torne eficaz perante a sociedade, o que não merece a aceitação de Alexandre de Soveral Martins (Cessão de Quotas cit., p. 95), uma vez que o art. 242 -A é ulterior ao art. 228/3, “e por isso ambas as exigências devem ser respeitadas para que a cessão de quotas seja eficaz para com a sociedade.”
[4]
Pareceres do Conselho Consultivo | IRN.Justica.gov.pt
[5]
RDS Ano I (2009), Número 2
[6]
Note-se que não estão aqui em causa eventuais atos de transmissão praticados antes da resolução. Quanto a estes, haveria que considerar o disposto no art. 435 do Código Civil, em cujo n.º 1, ao dizer-se que “[a] resolução, ainda que expressamente convencionada, não prejudica os direitos adquiridos por terceiros”, se consagra um desvio à regra da eficácia retroativa da resolução e à regra da equipação dos efeitos da resolução aos efeitos da declaração de nulidade e da anulação do negócio jurídico (cf. art. 433 e 434 do Código Civil). Ao contrário do que acontece no art. 291 do Código Civil, a lei não distingue entre terceiros de boa fé ou má fé. Também não distingue entre direitos adquiridos a título gratuito ou a título oneroso. Compreende-se que assim seja como forma de evitar que os terceiros fiquem à mercê dos comportamentos dos contraentes de um contrato a que são totalmente alheios. Neste sentido, António Menezes Cordeiro (“Art. 435.º”, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, II, Das Obrigações em Geral, Coimbra: Almedina, 2021, p. 264), que ressalva, porém, que a norma deve ser interpretada restritivamente, em conjugação com a do art. 291 do Código Civil, cuja aplicação é convocada pela do art. 433 do mesmo diploma, de modo a abranger na sua previsão apenas os terceiros de boa fé. Em tais hipóteses, a obrigação de restituição depara-se com um obstáculo jurídico, tendo de ser substituída pelo valor equivalente.
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TRG
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https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/4c11a0403b67ca1f80258c9a003ddaf8?OpenDocument
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1,759,795,200,000
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NÃO PROVIDO
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133/18.7JAFUN-A.L1-5
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133/18.7JAFUN-A.L1-5
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PEDRO JOSÉ ESTEVES DE BRITO
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Sumário:
I. A fase de instrução não é uma antecipação do julgamento, mas apenas um instrumento de controlo judicial da decisão com que a investigação é encerrada;
II. O requerimento para a abertura de instrução não se confunde com a contestação, nem a instrução não se traduz num simulacro de julgamento ou na sua antecipação;
III. Caso o arguido, no requerimento para abertura de instrução que apresente, não descreva, ainda que por súmula, as razões de facto e de direito de discordância em relação à acusação, ou não precise os factos que pretenda provar com os meios de prova que indique, impedindo o juiz de instrução de proceder ao escrutínio da decisão de deduzir acusação, com vista à submissão, ou não, da causa a julgamento, que é a finalidade da instrução (cfr. art.º 286.º, n.º 1, do C.P.P.), a decisão terá que ser a de rejeição daquele, por inadmissibilidade legal da instrução (cfr. art.º 287.º, n.º 3, do C.P.P.);
IV. Nesse caso, não se impõe prévio convite ao aperfeiçoamento daquele requerimento, sem que daí resulte qualquer violação dos direitos de defesa do arguido.
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[
"INSTRUÇÃO",
"REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO",
"CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO"
] |
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório:
I.1. Da decisão recorrida:
No âmbito dos autos n.º 133/18.7JAFUN, que correm termos no Juízo de Instrução Criminal do Funchal, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, em 03-02-2025, ao abrigo do disposto no art.º 287.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 3, do Código de Processo Penal (C.P.P.), foi rejeitado o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido AA, por inadmissibilidade legal da instrução, dado que aquele não indica os factos que se espera provar através da inquirição das testemunhas que requereu como ato de instrução a realizar.
I.2. Do recurso:
Inconformado com a decisão, o arguido AA dela interpôs recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
“
I. O despacho recorrido violou o disposto no artigo 287.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal.
II. O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido cumpria, no essencial, os requisitos estabelecidos no artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
III. Ainda que se entendesse que o requerimento de abertura de instrução padecia de alguma insuficiência, tal não constitui fundamento para a sua rejeição, mas sim para a notificação do requerente para o aperfeiçoar.
IV. Ao rejeitar liminarmente o requerimento de abertura de instrução, sem dar oportunidade ao assistente de o aperfeiçoar, o Tribunal a quo violou o princípio do contraditório e o direito de acesso à justiça.
”
Terminou pedindo que o despacho recorrido fosse revogado e, em consequência, concedido ao arguido prazo para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, nos termos do art.º 287.º, n.º 2, do C.P.P.
O referido recurso foi admitido por despacho de 10-03-2025.
I.3. Das respostas:
Ao dito recurso respondeu a Digna Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido, concluindo da seguinte forma:
“
1. A fase de instrução destina-se a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito (cfr. artigo 286º, nº1, do Código de Processo Penal).
2. Estabelece o nº 2 do citado art. 287º que “o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do art. 283º”.
3. O requerimento para a abertura da instrução define o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação.
4. A estrita vinculação temática do Tribunal aos factos alegados no requerimento para abertura de instrução é uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal, prevenido no art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
5. No caso dos autos, da análise do RAI, parece-nos que o mesmo não se encontra perfeitamente delimitado, visto que não existe uma indicação concreta dos factos a provar.
6. O acórdão n.º 7/2005 do STJ fixou jurisprudência no sentido de que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art.287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”
7. Assim, e ao abrigo do princípio da igualdade de armas, também não há lugar a convite ao aperfeiçoamento do RAI apresentado pelo arguido.
8. "(...) o convite dirigido às partes, pelo juiz, para a correção de peças processuais, implica uma cognoscibilidade prévia, ainda que perfunctória, da solução do pleito, interfere nas funções atribuídas às partes e seus mandatários e pode criar falsas convicções quanto aos caminhos a seguir por forma a obter uma decisão favorável da causa". Ac. da Relação Lisboa nº 10685/2001, rel. Dr. Trigo Mesquita.
9. No caso de o requerimento de abertura de instrução não cumprir os requisitos fixados no n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, deverá ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos do disposto no nº3 do artigo 287º do CPP.
10. Pelo exposto, a decisão da Mma. Juiz não merece censura.
”
Foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação.
I.4. Do parecer:
Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer através do qual propugnou pela improcedência do recurso, acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público em 1.ª instância.
I.5. Da tramitação subsequente:
Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (C.P.P.), nada foi acrescentado.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
II. Fundamentação:
II.1. Dos poderes de cognição do tribunal de recurso:
Está pacificamente aceite na doutrina (cfr., por exemplo, MESQUITA, Paulo Dá,
in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal
, Tomo V, 2024, Livraria Almedina, pág. 217; POÇAS, Sérgio Gonçalves,
in
“Processo Penal – Quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto,
Julgar
, n.º 10, 2010, pág. 24
1
; SILVA, Germano Marques da,
in Curso de Processo Penal
, Vol. III, 2.ª edição, 2000, pág. 335) e jurisprudência (cfr., por exemplo, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-02-2024, processo n.º 105/18.1PAACB.S1
2
) que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de determinadas questões que obstem ao conhecimento do mérito do recurso (cfr., por exemplo, art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P.), são as conclusões que delimitam o seu objeto e âmbito, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19-10-1995, para fixação de jurisprudência,
in Diário da República
n.º 298, I Série A, de 28-12-1995, págs. 8211 e segs.
3
).
Na verdade, se o objeto do recurso constitui o assunto colocado à apreciação do tribunal de recurso e se das conclusões obrigatoriamente devem constar, se bem que resumidas, as razões do pedido (cfr. art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P.) e, assim, os fundamentos de facto e de direito do recurso, necessariamente terão de ser as conclusões que identificam as questões que a motivação tenha antes dado corpo, de forma a agilizar o exercício do contraditório e a permitir que o tribunal de recurso identifique, com nitidez, as matérias a tratar.
II.2. Das questões a decidir:
A esta luz, são as seguintes as questões a conhecer, pela ordem da prevalência processual sucessiva que revestem:
A. Se é fundada a rejeição do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo arguido, por inadmissibilidade legal, uma vez que não continha as razões de discordância relativamente à acusação e, no que concerne à inquirição das testemunhas que requereu como atos de instrução a realizar, era omisso quanto aos factos que, através deles, se esperava provar (cfr.
II.4.A.
); e
B. Se o recorrente deveria ter sido convidado previamente para aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução (cfr.
II.4.B.
).
II.3. Ocorrências processuais com relevo para apreciar as questões objeto do recurso:
Ora, com relevo para o definido objeto do recurso, e resultante dos atos processuais a seguir assinalados, importa atentar no seguinte:
II.3.A. Do despacho de acusação e pedido de indemnização civil (cfr. ref.ªs 55551499, 55551680, 55551724, 55551737, 55551803, 55551860, 55551886, 55551896, 55551907 de 20-06-2024, 55570808, 55570825 de 25-06-2024 e 5865695 de 15-07-2024 do processo principal):
No âmbito do inquérito n.º 133/18.7JAFUN, que correu termos no Departamento de Investigação e Ação Penal – 1.ª Secção do Funchal, em 20-06-2024 o Ministério Público deduziu acusação, em processo comum e perante tribunal coletivo, contra AA, imputando-lhe a prática, em coautoria, sob a forma consumada e em concurso efetivo, de 1 crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 202.º, als. a) e b), 217.º, n.º 1, e 218.º, n.ºs 1 e 2, als. a) e b), do C.P., de 1 crime de falsificação e contrafação de documento, p. e p. pelos arts. 255.º, al. a), 256.º, n.º 1, als. a), d) e f), do C.P. e de 1 crime de falsidade informática, p. e p. pelos arts. 2.º, als. a) e b), e 3.º, n.ºs 1 e 3, da Lei do Cibercrime.
O Ministério Público, em representação do Estado Português (Direção-Geral do Tesouro e das Finanças) deduziu pedido de indemnização civil pedindo que os demandados, entre os quais AA, fossem condenados a pagar ao Estado Português (Direção-Geral do Tesouro e das Finanças) a quantia de EUR 2 508 149,08 acrescida de juros moratórios, desde a data da prática dos factos e até efetivo e integral pagamento.
O referido arguido foi notificado do despacho de acusação e pedido de indemnização civil deduzido, mediante via postal simples, por meio de carta que se mostra depositada em 27-06-2024, e a sua ilustre defensora foi notificada do mesmo, mediante via postal registada, por meio de carta registada enviada em 25-06-2024.
II.3.B. Do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo recorrente (cfr. ref.ª 5913965 de 05-09-2024 do processo principal):
Inconformado com tal despacho de acusação, em 03-09-2025, o arguido AA apresentou requerimento de abertura de instrução com o seguinte teor:
“
AA, arguido nos autos referidos à margem, discordando integralmente da acusação particular deduzida pelo Ministério Público, vem, ao abrigo do disposto no art. 287º/1, a) do CPP, Requerer a Abertura da Instrução, nos termos e com os seguintes fundamentos:
1º
O arguido vem acusado da prática, em coautoria na forma consumada, dos crimes de burla qualificada, pelos arts. 217º/1, 218º/1 e 2, a) e b) do C.P.; falsificação e contrafação de documento, pelos arts. 256º/1, a), d), e) e f) do C.P.; e de falsidade informática, pelos arts. 3º/1 e 3 da Lei do Cibercrime.
2º
Em tal acusação, o Ministério Público formulou um pedido de indemnização no valor de € 2.508.149,08, acrescida de juros moratórios calculados à taxa legal.
3º
Ora, não se compreende a proveniência de tal valor, visto que ao somar todas as quantias em causa, chegamos ao valor de € 1.685.644,60 e não de € 2.508.149,08.
4º
Estando assim a pedir € 822.504,48 a mais do que o valor correto.
5º
Relativamente a todo o esquema por detrás da burla, o arguido nega que tenha praticado os factos referidos da acusação.
6º
Acontece que, o arguido BB, garantiu ao arguido e requerente que as regras da mobilidade aérea entre a Ilha da Madeira e Portugal continental teriam sido alteradas, sendo possível, deste modo, pagar apenas a tarifa de € 86 antes da viagem.
7º
Assim, e mesmo sob alguma reserva inicial, o arguido convencido de que tal estaria correto e começou a pagar antecipadamente apenas o valor de € 86.
8º
Porém, em nenhum momento o arguido e requerente entregou ao arguido BB, qualquer valor de subsídio de mobilidade depois de o receber junto dos CTT Correios de Portugal.
9º
Algumas das viagens que o arguido necessitou fazer, marcou-as com a ajuda do irmão, também arguido, CC, que trabalha na ... tendo direito a viagens aéras tipo I.D.Z e não "SPDH" como é referido na acusação.
10º
Ora, as viagens aéreas tipo I.D.Z., podem também ser marcadas apenas para os familiares diretos e em 1º grau dos funcionários, ou seja, pais e irmãos.
11º
Nestas circunstâncias, o arguido entregava ao irmão o valor das taxas aeroportuárias e outras que se mostrassem devidas, que, por sua vez, os entregava à sua entidade patronal, à ....
12º
Era o irmão do arguido que solicitava e pedia à ... a emissão dos bilhetes, entregando-os diretamente em mão ao arguido.
13º
Sendo impossível ao arguido BB aceder ao sistema informático da ... para obter bilhetes eletrónicos qualificados como "SPDH" – erradamente qualificados pelo Ministério Público.
14º
O arguido BB convenceu o arguido e requerente de que as viagens tipo I.D.Z., devido a alterações anteriores, teriam direito a receber um valor de subsídio de mobilidade.
15º
Justificando saber dessa informação no facto do seu pai também ter sido funcionário da ....
16º
Ao notar alguma desconfiança por parte do arguido e requerente, o arguido BB referiu ao arguido e requerente que se quisesse continuar a perder e não receber o que tinha direito, o problema é seu e quem fica a ganhar seria o Estado.
17º
Posteriormente, o arguido BB voltou a insistir com o arguido e requerente acerca deste assunto, voltando a reforçar que o arguido e requerente estava a perder subsídios de mobilidade aéria a que tinha direito.
18º
Após muita insistência, o arguido acabou por aceitar e acreditar em tais factos ditos pelo arguido BB.
19º
Estando sempre convencido de que tais práticas eram legais e lícitas.
20º
O arguido, contrariamente ao acusado pelo Ministério Público, nunca viajou propositada e intencionalmente em classes de voos e em locais de origem e destino não elegíveis.
21º
O arguido admite que viajou diversas vezes em primeira classe e/ou executiva, porém tais viagens ocorreram após situações de overbooking.
22º
Nestas situações, é permitido aos passageiros viajar em classe executiva pagando a tarifa económica.
23º
Tal aconteceu recentemente, dia ... de ... de 2024, em que o arguido viajou de Lisboa para o Funchal na classe executiva depois de inicialmente ter o bilhete da viagem na classe económica. - Doc 1.
26º
Nesta situação, foi oferecido ao arguido, à porta do avião, o lugar na classe executiva, por motivos de conveniência da ... e/ou overbooking.
27º
O arguido e requerente nunca recebeu cartões de embarque ou qualquer outro documento relacionado com as suas viagens por parte do arguido BB.
28º
Tal como nunca recebeu de qualquer outro coarguido.
29º
Os pagamentos das viagens marcadas com o arguido BB eram feitos, maioritariamente, pessoalmente e em numerário, sem prejuízo de também tê-lo feito por transferência bancária quando tal fosse necessário.
30º
Devido a um processo de execução do arguido BB, alguns dos pagamentos feitos por transferência bancária tiveram de ser remetidos para a conta do arguido DD que trabalhava com o primeiro. - Doc. 2.
Da Nulidade por insuficiência de inquérito
31º
O arguido, na data de ... de ... de 2019, requereu uma consulta aos presentes autos para assegurar a sua defesa. - requerimento esse presente no processo.
32º
Acontece que, o Ministério Público até à presente data, nada respondeu ao arguido.
33º
O arguido, posteriormente, requereu ao Ministério Público a nulidade do seu interrogatório junto da Polícia Judiciária, com a Srª Inspetora EE, que lhe negou o direito ser informado dos factos que lhe são imputados antes de prestar declarações perante qualquer entidade, direito esse referido no art. 61º/1, alínea c) do C.P.P. - requerimento esse presente no processo.
34º
Após pedir confrontação das provas e factos da acusação, a Srª Inspetora respondeu-lhe que como não presta declarações e/ou se não prestar declarações, não tenho que mostrar-lhe e/ou confrontá-lo com documentos e prova documental que temos ali. Sou, e estou, somente obrigada a fazer uma súmula dos factos indiciários que temos contra si.
35º
Violando, também, o disposto no art. 61º/1, alínea g) do C.P.P., pois negou ao arguido a diligência de mostrar as provas e meios de prova ao arguido que lhe requereu verbalmente.
36º
Assim, estamos perante uma nulidade por insuficiência do inquérito, por não terem sido praticados os atos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar- se essenciais para a descoberta da verdade, nos termos do art. 120º/2, alínea d) do C.P.P.
37º
O arguido quis tomar conhecimento não só dos factos, como também das provas substanciadoras dos factos criminais que lhe eram imputados.
38º
Perante estas violações dos direitos do arguido, o Ministério Público não se pronunciou.
39º
Não se pronunciou nem notificou o arguido da pronúncia - se é que houve - nem se pronunciou sobre o pedido do arguido de devolução ao Ministério Público e/ou à Direção-Geral do Tesouro e das Finanças de qualquer valor que tenha sido recebido ilegalmente.
40º
O arguido quer e deseja, sem embargo de tudo o que foi supra explicado, proceder à restituição imediata do valor de € 9.723,71, que admite ter recebido.
Da errada qualificação jurídica dos factos, a título de burla qualificada imputada ao arguido
41º
O Ministério Público imputa ao arguido o crime de burla qualificada com referência às alíneas a) e b) do art. 218º do C.P.
42º
Porém, ao arguido não pode ser imputada a pena de dois a oito anos por não estarmos perante um prejuízo patrimonial de valor consideravelmente elevado, ou seja, com valor superior a € 20.400 - estando aqui em causa apenas o avlor de € 9.723,71.
43º
Sendo também incorreto afirmar que o arguido faz da burla o seu modo de vida.
44º
O arguido tem a profissão de Advogado e tem a inscrição em vigor, vivendo da sua profissão.
45º
Pelo exposto, o arguido não praticou os crimes de que vem acusado.
Nestes termos e nos melhores de direito, requer a V. Exª seja declarada: a abertura de instrução e, consequentemente, proferido despacho de arquivamento do mesmo por não ter cometido qualquer um dos crimes que lhe são imputados, declarando-se, também, a sua nulidade.
Testemunhas:
1. FF - ... .... ....
2. GG; ..., ....
3. HH - ...
4. II - ...
5. JJ. - ...
6. KK - ...
7. LL - ... ....
8. MM - ...
9. NN - .... ...
10. OO - ... ....
11. PP - ...
Primeiro Requerimento: a coberto do disposto no art. 340º do C.P.P. ex vi art. 432º do C.P.C. se digne a notificar a T..., para informar, atento o alegado neste articulado, se as viagens realizadas em classe executiva eram e foram de pagamento tarifado e de venda ao público, ou ao invés, foram up grades ou transferências a coberto do comandante do voo ou por conveniência da empresa ..., assim como informar se os bilhetes tipo SPDH, no dizer do Ministério Público, erradamente, mas sim os IDZ, eram e são transmissíveis e comunicáveis aos membros da família e/ou agregado familiar. (Artigo 292º/ 1 C.P.P.)
Segundo Requerimento: a coberto do disposto do art. 340º C.P.P. ex vi art. 432º C.P.P. se digne a notificar os ..., correios de Portugal S.A., para informar os autos, se é possível, no âmbito do sistema informático vigente e que preside ao pagamento do atual subsídio social de mobilidade, introduzir um destino nacional para viagem aérea, que não esteja informaticamente pré determinado. (Art. 292º/1 C.P.P.)
Terceiro Requerimento: a coberto do disposto no art. 3410º/1 CPP ex vi art. 432º CPC, notificar a Direção Geral do Tesouro e Finanças, para informar e comunicar aos presentes autos, tendo em vista a descoberta da verdade material, e por referência, ao ora arguido, titular do cartão de cidadão nº ..., válido até ...-...-2029, NIF ..., quanto e/ou qual o real valor é que pagou ao ora arguido, a título de subsídio de mobilidade, através do CTT, Correios SA, por conta e referência aos 51 levantamentos referidos nos autos, e no referido período temporal, pois muitos desses valores foram pagos pelo arguido a título de taxas, acrescidamente aos €86, pagos ao arguido BB, isto tendo em vista apurar o exato valor pago e recebido pelo arguido, descontando as taxas pois essas eram pagas diretamente à ..., como supra se alegou. (Art. 292º/2 CPP).
Quarto Requerimento: a coberto do disposto no art. 340ª/1 CPP ex vi art. 432º CPC, notificar, tambem e ainda, a ..., para informar se as viagens de avião feitas pelo arguido, nomeadamente as 51 referidas e identificadas nos autos, foram feitas com reservas, códigos de reserva, bilhetes e cartão de embarque, etc., feitos diretamente e presencialmente pelo arguido junto da ... e seus balcões de check-in ou se foram feitos por interposta pessoa, nomeadamente através do arguido BB ou outrém. (Art. 292º/1 CPP)
Quinto Requerimento: notificar a ... e a ... e a ..., a coberto dos arts. 340/1 CPP e 432º CPC, para informarem e comunicarem aos autos o número de voos feitos entre Funchal-Lisboa-Funchal e Funchal-Porto-Funchal, que o arguido e impetrante deste requerimento realizou, a bordo dos seus aviões, nos últimos cinco anos, indicando-se o número de passageiro da ... (...) e o da ... (...), para efeitos de melhor procura e identificação das viagens. (Art. 292º/1 CPP).
Sexto Requerimento: ante o disposto no art. 292º/2 CPP, roga-se a V. Exª se digne inquirir e interrogar o arguido, sobre toda a matéria ora invocada, pois, somente de uma forma unificada e incindível, se poderá exercer e garantir a defesa do mesmo, o que se requer, também, para todas as testemunhas supra oferecidas e identificadas, pois, somente de forma incindível e não compartimentada se poderá entender na globalidade o ocorrido e vertido no presente RAI.
Sétimo Requerimento: notificar o Ministério Público para indicar N.I.B. e/ou forma de pagamento e devolução para a quantia de € 9.723,71, identificada na fls 3670, f) da acusação pública e, ainda, atento do disposto no art. 307º/2, in fine, do CPP, o que se requer e suplica também.
Oitavo Requerimento: roga-se a V. Exª se digne, ante o disposto no art. 292º/1 C.P.P. ex vi art. 432º CPC, a notificar a ..., SA e a ... , para informar os autos se, por conta dos 51 levantamentos, foram feitos pagamentos pela empresa do arguido e/ou por este próprio e/ou outrém às referidas companhias aéreas e, caso a resposta seja positiva, que valores e quantos montantes de € 86 foram pagos, sob pena de não terem sido feitos e concretizados pelo arguido BB e/ou sua representada, o arguido lhe intentar e apresentar uma queixa crime por burla e abuso de confiança o que se antolha e começa a vislumbrar e a lucubrar.
Junta: 3 documentos.
”
II.3.C. Da decisão recorrida (cfr. ref.ª 56585327 de 03-02-2025 do processo principal):
Remetidos os autos ao Juízo de Instrução Criminal do Funchal, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, em 03-02-2025 foi proferida a seguinte decisão:
“
Requerimento de fls. 3863 a 3900:
Ainda dentro do prazo legal para a sua interposição, apresentou o arguido AA segundo RAI, desta vez subscrito pela sua Ilustre Defensora.
No nosso entender, deve este segundo RAI ser admitido a análise pois não conhecemos, nesta sede, qualquer regime de preclusão decorrente da apresentação do referido primeiro (e irregular) RAI.
*
Neste RAI o arguido vem requerer que seja “proferido despacho de arquivamento do mesmo por não ter cometido qualquer um dos crimes que lhe são imputados, declarando-se, também, a sua nulidade”.
Arrola 11 testemunhas, faz 8 requerimentos probatórios e junta 3 documentos.
*
A instrução não é nem um julgamento antecipado e nem uma investigação ao retardador, mas sim uma fase processual autónoma (e facultativa) lógica e teleologicamente orientada e constitucionalmente amparada – no mencionado sentido da instrução como “mera” comprovação da decisão do Ministério Público e/ou do assistente, vai expressa a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente sufragada (artigo 32.º, nº 5, CRP). Essa estrutura postula, por sua vez, um princípio acusatório que implica uma clara distinção entre quem acusa e quem julga. Por isso que a instrução não é uma fase de investigação autónoma nem um julgamento antecipado, mas tem um fim mais modesto – aquele de comprovar ou não a decisão do Ministério Público e/ou do assistente.
Com efeito, essa fase de discussão tem o seu âmbito limitado pela lei devendo, para tanto, atender ao objectivo que a lei estabelece para aquela discussão. Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, “Nela pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança. Portanto, a instrução visa discutir a decisão de arquivamento apenas no que respeita ao juízo do Ministério Público de inexistência de indícios suficientes e discutir a decisão de acusação apenas no que respeita ao juízo do Ministério Público de existência de indícios suficientes.” (aut. Cit., in Comentário do CPP, 2ª ed. Actualizada, pág. 750).
Por seu turno como decorre do disposto no Artigo 287.º do Código de Processo Penal:
Requerimento para a abertura da instrução
1 - A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:
a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
2 - O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.
3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
Nos casos em que é requerida pelo arguido, a fase da instrução corresponde a uma garantia processual que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação; entre as garantias constitucionais de defesa em processo criminal conta-se, assim, «a de não sujeitar o arguido a julgamento quando não se verifiquem indícios suficientes para consistirem numa razoável convicção de que tenha praticado o crime» (Acórdão do TC n.º 691/1998).
A referida e supra transcrita norma estabelece como requisito único a que deve obedecer o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido, a indicação, sem sujeição a formalidades especiais e por súmula, das razões de facto e de direito da sua discordância relativamente à acusação. A esta exigência acrescerá, apenas caso o requerente o pretenda, a indicação dos actos de instrução que pretende que o juiz promova, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, espera provar, exigências que aderem forçosamente à própria natureza da fase de instrução, cosidas com a definição do respectivo objecto.
Daí que lhe seja exigido que enuncie as razões que o opõem à decisão de deduzir acusação e para além disso, também lhe exigido que se pretende refutar os indícios que determinaram a produção de uma acusação contra si, através da produção de prova que não considerada na fase de inquérito ou que não foi adequadamente produzida, o ónus de especificação dos actos instrutórios a praticar (requerimentos probatórios e prova testemunhal) e da finalidade a que todos eles se destinam.
Efectivamente sem o cumprimento destes requisitos o objecto da instrução não ficaria definido, sendo certo que esta fase se destina exclusivamente à comprovação judicial do acerto da decisão de deduzir acusação.
Aqui chegados, resta determinar qual a consequência da omissão dos requisitos no n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal.
Tais requisitos não correspondem, a qualquer formalidade mais ou menos útil, antes consubstanciam o objecto da pronúncia exigida ao juiz de instrução criminal e não podem ter outra consequência que não seja a. imediata rejeição da instrução requerida pelo arguido.
Sendo eles ou algum deles omisso, há lugar a convite ao aperfeiçoamento do RAI?
Desde já diremos que entendemos que não.
Na verdade, a possibilidade de aperfeiçoamento do requerimento de abertura da instrução traduzir-se-ia na concessão de um novo prazo para a prática do acto, sendo certo que os prazos processuais decorrem da natureza do próprio processo, não se afigurando que o prazo fixado na lei para a apresentação do requerimento de abertura de instrução seja desrazoável.
Dai que o Ac do TC nº 46/2019 já tenha decidido que não há, qualquer razão para supor que o alargamento desse prazo, pela via travessa da possibilidade de aperfeiçoamento de um requerimento inepto seja uma exigência constitucional. Acresce que a própria decisão que aprecia a observância das exigências impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal, e que rejeita o requerimento de abertura da instrução, é passível de recurso ordinário, o que dá ao arguido toda a garantia de defesa contra uma decisão eventualmente injusta.
Mais se prenunciou ainda este aresto no sentido de que tendo em conta a impossibilidade de aperfeiçoamento do requerimento, é a rejeição definitiva do pedido de abertura de instrução e, em função disso, a transição imediata do processo para a fase de julgamento. Apesar da sua aparente gravidade, uma análise cuidada revela que esta cominação não comprime significativamente as possibilidades de defesa do arguido.
Tenha-se em conta que a imediata rejeição da instrução requerida pelo arguido, sem prévia formulação de convite ao aperfeiçoamento, não constitui uma restrição irreversível das suas possibilidades de defesa. Assim é porque a inobservância do ónus atinge unicamente o direito à comprovação judicial da decisão de acusar, não limitando em medida alguma a possibilidade de os argumentos e meios de prova que o arguido pretendia levar ao conhecimento do juiz de instrução influírem no desfecho do processo, designadamente para a determinação da eventual responsabilidade criminal. Ora, se é certo que se não podem eliminar as garantias previstas para uma dada fase processual com o argumento de que os meios de defesa podem ser usados na fase processual subsequente (Acórdão do TC n.º 54/2000), não é menos verdade que a graduação das consequências é sensível a essa circunstância. Do ponto de vista das garantias de defesa do arguido, é muito relevante os elementos que pretendia carrear para a fase de instrução poderem ser mobilizados na fase de julgamento. Com efeito, a norma sindicada interfere apenas na decisão de sujeitar o arguido a julgamento, não determinando a sua condenação ou absolvição, pelo que a proteção imposta pelo n.º 1 do artigo 32.º da Constituição é naturalmente menos exigente do que a devida aos direitos que se exercem numa fase processual decisiva, como o julgamento ou o recurso.
Formulou assim o Tribunal Constitucional:
a) Não julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.os 1 e 4 da Constituição, e do princípio da proporcionalidade, a norma do artigo 287.º, n.os 2 e 3, do Código de Processo Penal, com o sentido de que não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para a abertura da instrução apresentado pelo arguido, que não contenha algum ou alguns dos requisitos previstos no n.º 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal.
*
Assim, de acordo com o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Proc 39/16.4TRGMR, de 21.06.2017:
“Enquanto a falta ou omissão das exigências previstas na 1.ª parte do n.º 2 do art. 287.º do CPP faz incorrer o requerimento de abertura de instrução em mera irregularidade (art. 118.º, n.º 2, do CPP), a falta ou omissão das exigências previstas na 2.ª parte daquele dispositivo faz incorrer o requerimento de abertura de instrução em nulidade (2.ª parte do n.º 2 do art. 287.º, als. b) e c) do n.º 3 do art. 283.º e 118.º, n.º 1, todos do CPP).”
*
No caso dos autos, verifica-se que relativamente às 11 testemunhas cuja audição se requer, nada se especifica relativamente àquele meio de prova (não foram considerados no inquérito ou não foram adequadamente produzidos?), quais os factos a que através dos seus depoimentos se espera provar? A que finalidade se destinam?
Ora, obrigando o art. 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, à taxativa indicação dos factos a provar, a fim de que o magistrado instrutor possa aquilatar da sua utilidade à decisão da causa, em termos de evitar a prática de actos inúteis, conducentes à dilação processual, como deixámos supra referido e nada disso foi concretizado pelo arguido, a omissão daquela exigência enquadrando-se na 2.ª parte do nº2 do artigo 287 do Código de Processo Penal, determina a nulidade do RAI..
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 287.º, nº 1, alínea a), nº 2 e nº 3, in fine, todos do Código de Processo Penal, rejeito o requerimento para abertura da instrução de fls. 3863 a 3900, deduzido pelo arguido AA, por inadmissibilidade legal da instrução.
*
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 1 (uma) UC, nos termos do artigo 8º, nº 5 e Tabela III, do RCP.
Notifique.
”
Em reação ao despacho recorrido, o referido arguido apenas interpôs o recurso em apreço.
II.4. Da apreciação das questões objeto do recurso:
Cumpre agora analisar as já elencadas questões suscitadas pelo recorrente (cfr.
II.2.
):
II.4.A. Da rejeição do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo arguido, por inadmissibilidade legal:
A possibilidade de o arguido requerer a abertura de instrução tem por pressuposto essencial a dedução de uma acusação, por parte do Ministério Público ou do assistente (cfr. art.º 287.º, n.º 1, al. a), do C.P.P.), estando limitada à hipótese de, pela procedência da sua pretensão, aquela não vir a ser introduzida em juízo (cfr. art.º 286.º, n.º 1, do C.P.P.).
É certo que, nesse caso, a instrução tutela o interesse legítimo do arguido em não ser submetido a julgamento (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 610/96, de 17-04-1996
4
). Contudo, este não se confunde com o reconhecimento de um qualquer direito a não ser levado a julgamento, que não tem guarida constitucional, o que bem se compreende dado que “
o facto de se ser submetido a julgamento não pode constituir, por si só, no nosso ordenamento jurídico, um atentado ao bom nome e reputação
” (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 551/98, de 29-09-1998
5
).
Assim, na apontada hipótese, a instrução tem que ser desencadeada por iniciativa do arguido (cfr. art.º 286.º, n.º 2, do C.P.P.) e visa a comprovação, por parte de um juiz de instrução (cfr. art.º 288.º, n.º 1, do C.P.P.), da decisão de deduzir acusação em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (cfr. art.º 286.º, n.º 1, do C.P.P.). Ou seja, consubstancia-se no controlo judicial do preenchimento da condição de que a lei faz depender o dever do Ministério Púbico de deduzir acusação, nos termos do artigo 283.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.P., qual seja, de durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, considerando-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança.
Daí logo decorre que a atividade a desenvolver na instrução não se pode desligar da levada a cabo no inquérito, visando verificar se a acusação é uma decorrência dos factos apurados e dos meios de prova recolhidos no inquérito (pressupostos de facto) e se a mesma se incrusta validamente no ordenamento jurídico penal (pressupostos de direito) (cfr. FRIAS, Pedro Daniel dos Anjos,
in
“Com o sol e a peneira”: um olhar destapado sobre o conceito de inadmissibilidade legal da instrução,
Julgar
, n.º 19, 2013, pág. 103).
Deste modo, em caso de acusação, por referência a esta e ao inquérito que a antecedeu, em ordem à finalidade legal da instrução, o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo arguido terá forçosamente que conter a distinta perspetiva deste sobre a matéria de facto ou sobre a questão de direito em causa e, de forma autónoma, os factos que pretende provar com os meios de prova que indique (cfr. art.º 287.º, n.º 2, do C.P.P.), assim delimitando o sentido da impugnação da decisão proferida pela entidade acusadora e, nessa medida, vinculando o escrutínio, por parte do juiz de instrução, da decisão prolatada no final do inquérito, com vista à introdução, ou não, da causa em juízo (cfr. art.º 288.º, n.º 4, do C.P.P.).
Deste modo, bem se compreende que o requerimento para abertura de instrução seja rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução (cfr. art.º 287.º, n.º 3, do C.P.P.), caso o arguido nele não descreva, ainda que por súmula, as razões de facto e de direito de discordância em relação à acusação, ou não precise os factos que pretenda provar com os meios de prova que indique, e dessa forma impeça o juiz de instrução de proceder ao escrutínio da decisão de deduzir acusação, com vista à submissão, ou não, da causa a julgamento (cfr. ALBERGARIA, Pedro Soares,
in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal
, Tomo III, Almedina, 2021, pág. 1206; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20-05-2025, processo n.º 631/23.0PILRS-A.L1-5
6
; acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 29-01-2014, processo n.º 1878/11.8TAMAI.P1
7
).
Mesmo que se entendesse que o despacho recorrido é omisso quanto aos vícios processuais invocados no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo arguido (cfr. pontos 31 a 40 –
II.3.B.
), a eventual invalidade processual da sua não apreciação no despacho recorrido, não estando cominada como nulidade (cfr. arts. 119.º e 120.º do C.P.P.), a verificar-se, consubstanciaria apenas numa irregularidade (cfr. arts. 118.º, n.ºs 1 e 2, 123.º do C.P.P.) que estaria sanada, por não ter sido invocada no prazo estabelecido na lei de processo para o efeito (cfr. art.º 123.º, n.º 1, do C.P.P. e
II.3.C.
).
É certo que “
pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado
” (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do C.P.P.). Contudo, tal pressupõe que a irregularidade ainda não esteja sanada, sob risco de, a admitir-se reparação de irregularidades já sanadas, se introduzir grave entorse no sistema qual seja a de, relativamente ao menos solene dos vícios formais se admitir, afinal, um regime de reparação não só mais permissivo do que o das nulidades relativas (cfr. art.º 120.º do C.P.P.), como equiparável, até, ao das nulidades insanáveis (cfr. art.º 119.º do C.P.P.) (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-01-2022, processo n.º 303/12.1JACBR.P1-B.P1.S1
8
).
No requerimento para abertura de instrução que apresentou o arguido pugna pela verificação de um erro no valor peticionado pelo Estado Português a título de indemnização civil, considerando que o valor correto seria EUR 1 685 644, 60 e não de EUR 2 508 149, 08 (cfr. pontos 2 a 4 –
II.3.B.
).
Pugna também pela não verificação das duas qualificativas do crime de burla imputado pelo Ministério Público previstas no art.º 218.º, n.º 2, als. a) e b), do C.P., sem contudo afastar a prevista no art.º 218.º, n.º 1, do C.P., por referência ao art.º 202.º, al. a), do C.P. (cfr. pontos 41 a 44 –
II.3.B.
).
Ora, mesmo na hipótese de procederem essas pretensões, nunca as mesmas constituiriam obstáculos à introdução da causa em juízo, o que logo evidencia não consubstanciarem razões demonstrativas do desacerto da decisão de acusar.
Por outro lado, no aludido requerimento, o arguido nega ainda os factos vertidos na acusação (cfr. pontos 5 a 30 e 45 –
II.3.B.
), chegando a fazer referência a uma situação que, temporalmente, ocorreu após o período em causa na acusação (cfr. ponto 23 –
II.3.B.
).
Ora, como é evidente, tendo esta ocorrido posteriormente, não tem a idoneidade para abalar os pressupostos dos crimes imputados, cometidos anteriormente. Seja como for, o arguido não alicerça a sua posição de negação dos factos imputados no despacho de acusação no inquérito que o antecedeu, ainda que criticando-o, surgindo a mesma desgarrada da atividade aí levada a cabo, nada dizendo sobre o que aí se passou, ou deveria ter passado, pretendendo converter a instrução na fase de julgamento, antecipando esta fase processual. Na verdade, pretende substituir a ideia matriz da comprovação preordenada à submissão ou não a julgamento por toda uma outra ideia que se concretiza em apreciar se deve ou não ser condenado pelos crimes que lhe foram imputados. Contudo, nem o requerimento para a abertura de instrução se confunde com a contestação, nem a instrução não se traduz num simulacro de julgamento.
Deste modo, sendo evidente que do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo arguido não consta a indicação autónoma dos factos que se esperava provar com as testemunhas cuja inquirição foi requerida (cfr.
II.3.B.
), dele também não constam razões de discordância relativamente à acusação suficientes para obstarem à introdução da causa em juízo.
Deste modo, não possuindo o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo arguido a aptidão de fazer desencadear a atividade inerente à finalidade da instrução, mostra-se fundada a rejeição do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo arguido, por inadmissibilidade legal desta (cfr. art.º 287.º, n.º 3, do C.P.P.), dado que não pode existir instrução para finalidade distinta da estabelecida na lei de processo para tal fase processual.
Improcede, pois, neste segmento, o recurso interposto.
II.4.B. Do falta de convite para aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução:
Subsidiariamente, o recorrente entende que o requerimento para abertura de instrução que apresentou não deveria ter sido rejeitado sem lhe ser dada a oportunidade de o aperfeiçoar.
Contudo, afigura-se que não merece qualquer reparo a imediata rejeição da instrução, perante um requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido que não obedeça integralmente às exigências de conteúdo impostas pelo art.º 287.º, n.º 2, do C.P.P., sem prévia formulação de convite ao aperfeiçoamento (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28-01-2025, processo n.º 118/24.4GBLGS.E1
9
).
Estando apenas em causa a decisão de submeter ou não o arguido a julgamento, não se poderá ignorar que a instrução tem carácter facultativo (cfr. art.º 286.º, n.º 2, do C.P.P.) e possui uma bem delimitada finalidade (cfr. art.º 286.º, n.º 1, do C.P.P.) para o que impõe a lei de processo, por parte do sujeito processual que a desencadeie, a observância de determinados requisitos de conteúdo aptos a permitir que aquela se cumpra (cfr. art.º 287.º, n.º 2, do C.P.P.), o que não se afigura constituir ónus particularmente oneroso.
Na verdade, tais requisitos não correspondem a uma mera formalidade mais ou menos útil, antes consubstanciam o pressuposto da própria inteligibilidade da pretensão deduzida e elementos essenciais do objeto da fase processual que se pretende desencadear. De facto, como resulta do já exposto (cfr.
II.4.A.
), sem a indicação das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação e, nos casos em que o arguido pretenda a realização de diligências instrutórias, a indicação dos atos pretendidos, dos meios de prova não considerados na fase anterior e dos factos que com os mesmos se pretende demonstrar, impossibilita que se apreenda e delimite o sentido da impugnação da decisão proferida pela entidade acusadora, que é o objeto da pronúncia exigida ao juiz de instrução criminal.
Acresce que inexistindo qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação da existência de razões que indiciem a sua presumível condenação, a imediata rejeição da instrução requerida pelo arguido, sem prévia formulação de convite ao aperfeiçoamento, não o impede de carrear para a fase de julgamento os elementos que pretendia mobilizar para a fase de instrução.
Por fim, a possibilidade de aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido que apresente semelhante vício de conteúdo traduzir-se-ia na concessão de um novo prazo para a prática do ato quando o mesmo decorre da lei de processo, não se afigurando desrazoável o fixado (cfr. art.º 287.º, n.º 1, al. a), do C.P.P.).
Deste modo, afigura-se não ter sido atingido qualquer direito de defesa do arguido.
Finalmente, cumpre referir que o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de não julgar inconstitucional, por violação do art.º 32.º, n.ºs 1 e 4 da C.R.P., e do princípio da proporcionalidade, a norma do art.º 287.º, n.ºs 2 e 3, do C.P.P., com o sentido de que não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido, que não contenha algum ou alguns dos requisitos previstos no art.º 287.º, n.º 2, do C.P.P. (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 46/2019, de 23-01-2019
10
).
Improcede, pois, também neste segmento o recurso interposto.
II.5. Das custas:
Só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso (cfr. art.º 513.º, n.º 1, do C.P.P.), sendo o arguido condenado em uma só taxa de justiça, ainda que responda por vários crimes, desde que sejam julgados em um só processo (cfr. art.º 513.º, n.º 2, do C.P.P.), devendo a condenação em taxa de justiça ser sempre individual e o respetivo quantitativo ser fixado pelo juiz, a final, nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais (R.C.P.) (cfr. art.º 513.º, n.º 3, do C.P.P.).
Assim, nos termos do art.º 8.º, n.º 9, do R.C.P. e da Tabela III a ele anexa, tendo o recorrente decaído totalmente no recurso que interpôs, deve ser condenado entre 3 UC e 6 UC a título de taxa de justiça, tendo em vista a complexidade da causa.
Ora, tendo em conta a mediana complexidade das questões em causa, bem como o seu número, julga-se adequado fixar a taxa de justiça em 4 UC.
III. Decisão:
Julga-se
totalmente improcedente
o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se na íntegra o despacho recorrido.
Condena-se
o recorrente no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça devida pelo mesmo em 4 UC.
Lisboa, 10-07-2025
Pedro José Esteves de Brito
Ana Cristina Cardoso
Paulo Barreto
______________________________________________
1.https://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/10/021-037-Recurso-mat%C3%A9ria-de-facto.pdf
2. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/458ff4110b557ba080258ac5002d2825?OpenDocument
3. https://files.dre.pt/1s/1995/12/298a00/82118213.pdf
4. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19960610.html
5. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19980551.html
6. https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/5a98c93b2b0e6ced80258c92004d0a2e?OpenDocument
7. https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/095178c7b892300780257c7f0032d88f?OpenDocument
8. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/73ad50e5aadfd1ff802587e3003d0399?OpenDocument
9. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/d7fd3bbafdd2d84680258c2d004b0131?OpenDocument
10. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20190046.html%5Ch
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/b3da77e85340ae6280258cc800463ea5?OpenDocument
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1,750,204,800,000
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NÃO PROVIDO
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989/23.1SXLSB.L1-3
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989/23.1SXLSB.L1-3
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CRISTINA ISABEL HENRIQUES
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I - O crime de tráfico de menor gravidade do art.º 25º, alínea a), do DL 15/93, é uma forma privilegiada do crime do art.º 21º, (...) crime que tem como pressuposto específico a existência de uma considerável diminuição da ilicitude”, conforme se consignou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2000,
CJ
, Ano VIII, tomo I, pág. 190.
II - Além de que, “o crime de tráfico de estupefacientes é um crime de perigo abstracto, protector de diversos bens jurídicos pessoais, como a integridade física e a vida dos consumidores, mas em que o bem jurídico primariamente protegido é o da saúde pública. Ou, mais precisamente, «o escopo do legislador é evitar a degradação e a destruição de seres humanos, provocadas pelo consumo de estupefacientes, que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia. Assim, o tráfico põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes; e, demais, afecta a vida em sociedade, na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos »”, como se resume no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.10.2014, em texto integral em
wwwÁgsi.pt
.
III - Ora, no caso dos autos temos como provado que os arguido dispunham já de um nível médio de organização, isto é, tinham uma casa de “recuo”, na qual um deles, acompanhado de indivíduo não identificado, procedia ao embalamento, acondicioamento, pesagem e na qual guardavam droga, dinheiro e todo o manancial de objectos necessários à actividade de tráfico e o outro procedia a entrega da droga aos consumidores que os procurassem.
IV - Possuíam embalagens de cocaína, heroína e haxixe, o que de qualquer modo, implicava terem já assegurado quem lhes fornecesse estes três tipos de droga, e tinham consigo quantia que já ascendia a mais de 800 euros, a qual foi detectada num só dia.
V - Assim, resulta indiscutível que a actuação dos arguidos integra a acção típica prevista no art.º 21º do DL 15/93, de 22.01 dado que não se detecta nenhuma diminuição considerável da ilicitude.
VI - Entendemos, e disso já demos conta noutras decisões proferidas, que a fixação da medida concreta da pena envolve para o juiz, escreve Jesheck , in Derecho Penal , pág. 1192 , Vol. II , uma certa margem de liberdade individual , não podendo , no entanto , esquecer-se que ela é, e nem podia deixar de o ser , estruturalmente aplicação do direito , devendo ter-se em apreço a culpabilidade do agente e os efeitos da pena sobre a sociedade e na vida do delinquente , por força do que dispõe o art.º 40.º n.º 1 , do CP.
VII - Em nosso entendimento, o Tribunal de recurso deverá sindicar o quantum da pena, e a sua natureza, tendo em atenção os critérios de determinação utilizados pelo Tribunal recorrido, e a fundamentação de todo o processo cognitivo que foi seguido, intervindo, no sentido da alteração se se revelarem falhas que possam influenciar essa mesma determinação ou se a mesma se revelar manifestamente desproporcionada.
VIII - Assim, a regra a seguir por este Tribunal de recurso, deverá ser sempre pautada pelo princípio da mínima intervenção, sendo todo o processo lógico de determinação da pena exata aplicada aferido em sede de recurso, e, caso seja insuficiente ou desajustado, alterado de acordo com o circunstancialismo factual assente, caso contrário, deverá ser mantido e consequentemente a pena concreta assim fixada.
IX - Na verdade, revela a fundamentação do acórdão dado a recurso, que foi feita a ponderação das necessidades de prevenção geral e especial, foi tida em conta que a ilicitude mediana, que os arguidos actuaram com dolo directo, a atuação anterior e posterior ao crime, a ausência de antecedentes criminais, e a própria personalidade dos agentes, pelo que se considera que as penas aplicadas são ajustadas e equilibradas, nada havendo a censurar à decisão.
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[
"TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES",
"TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE",
"MEDIDA CONCRETA DA PENA"
] |
Acordam em Conferência os Juízes da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
1.
Relatório:
Nos autos de Processo n.º 989/23.1SXLSB.L1.foi proferido Acórdão no qual foi decidido:
Condenar os arguidos AA e BB cada um, pela prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro, por referência às Tabelas I-A, I-B e I-C anexas ao mesmo diploma – na pena de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova, nos termos que constam na douta decisão.
Inconformado, veio o arguido
BB, interpor recurso para este Tribunal, juntando para tanto as motivações que constam dos autos, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, concluindo nos seguintes termos, que se transcrevem:
Por acórdão proferido e depositado em 31/01/2025, foi o recorrente BB foi condenado pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C anexas ao mesmo diploma legal, na pena de 4 (quatro) anos e (10) dez meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, acompanhado de regime de prova.
B. Decidindo como decidiu, o Tribunal a quo não fez uma correcta interpretação dos factos nem, tão pouco, uma adequada subsunção dos mesmos às normas princípios jurídicos que se impunham aplicar e não às que foram aplicadas.
C. Entende o recorrente, com o devido respeito, que, da prova produzida em audiência de julgamento e sua ponderação, impõe-se decisão diversa da recorrida.
D. Quanto à Matéria de Facto: O aqui Recorrente entende não ter ficado demonstrado, quanto a si, que tivesse procedido à actividade de venda de estupefacientes, muito menos “proprietário” dos bens apreendidos no interior do …, conforme o Tribunal à quo o condenou.
E. Aliás, esse facto não foi demonstrado nem por prova testemunhal nem pericial; inexiste na realidade qualquer prova.
F. A prova que existe é que o aqui Recorrente é consumidor de produto estupefaciente e que, naqueles circunstância de tempo, lugar e modo, tinha ido adquirir produto estupefaciente para consumo próprio.
G. A testemunha CC, agente da PSP, em suma, quando inquirido menciona o seguinte:
- É um local que patrulha com frequência;
- À entrada do ... estavam 2 indivíduos; era o BB e outro que não sabe quem era;
- O BB fugiu para o interior do prédio;
- Viu o BB a entrar para o quarto; - Não se recorda sequer de alguma vez ter visto o aqui Recorrente no Bairro.
H. Por sua vez, a testemunha DD (Agente da PSP), refere o seguinte, em súmula:
- Nunca tinha visto os arguidos e só os conhece desta situação;
- O BB e o AA saltaram ao mesmo tempo;
- A droga estava mais perto do AA;
- Não viu o saco a cair do bolso do AA, mas acha que é dele por estar mais próximo
I. No mais, inexiste qualquer prova testemunha, pericial, documental que permita sustentar uma condenação tão escandalosa como a que foi proferida pelo Tribunal a quo.
J. O Tribunal a quo não se pode valer unicamente de regras de experiência comum, à sua convicção ou a qualquer outro critério que não em conjunto com um meio de prova válido, e condenar o recorrente pela prática, em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, se na verdade nenhuma testemunha apresenta uma versão bastante que corrobore tal condenação.
K. Com efeito, estando os factos dados como provados, mas não o tendo sido devidamente motivado nem constar de qualquer meio de prova válido, entende-se ser nula, violando grosseiramente o disposto no art.º 374.º Código Processo Penal, porquanto o tribunal a quo formou a sua convicção, condenou o recorrente com base em factos que não foram dados como provados.
L. Ao dar como provados tais factos, nas versões que constam da fundamentação do Acórdão, violou, entre outros, o princípio da Livre apreciação da Prova, consagrado no art. 127.º do CPPenal.
M. Conforme saliente FIGUEIREDO DIAS in “Direito Processual…”, pág. 139, este princípio está associado ao “…dever de perseguir a chamada «verdade material» -, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objectivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e controlo”.
N. No entanto, e como bem enaltece HENRIQUE EIRAS in “Processo Penal Elementar”, Quid Iurys, 2003, 4.ª Edição, p. 102, refere que este princípio “…não significa que o tribunal possa utilizar essa liberdade à sua vontade, de modo discricionário e arbitrário, decidindo como entender, sem fundamentação. O Juiz tem de orientar a produção de prova para a busca da verdade material e, ao decidir, há-se fundamentar as suas decisões…”.
O. Refere também FERNANDO GAMA LOBO, in Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 2019, 3.ª Edição, pág. 223, que “As regras de experiência têm de corresponder à experiência comum, inerente à sociedade em que vive e a livre convicção têm de corresponder a substratos racionais apreensíveis pela generalidade das pessoas.”.
P. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo não observou as mais elementares regras da experiência comum, apreensíveis pela generalidade das pessoas, e em vez de aplicar o princípio sério de livre apreciação da prova, foi no sentido de somente considerar a prova - in casu, a falta de prova – da acusação num seguidismo cego da sua tese.
Q. Veja-se, assim, o mencionado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do Processo n.º 3/07.4GAVGS.C2, de01/10/2009: “a Livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencionamento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido de responsabilidade bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência”.
R. O Tribunal a quo, em evidente do Direito que se queria aplicada, condenou o Recorrente, conforme consta do Acórdão em crise, na prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C anexas ao mesmo diploma legal.
S. Não obstante, e sem prescindir da aclamada Absolvição, para o caso de assim se não entender, não se concebe este entendimento do Tribunal a quo, atento os factos dados como provados e, inevitavelmente, as circunstâncias de modo em que o crime alegadamente ocorreu.
T. Dispõe o art. 25º, al. a) do Dec. Lei nº 15/93, de 22-01: «Se, nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:
a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas Tabelas I a III, V e VI;». Conforme salienta o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-11- 2006 (
http://www.dgsi.pt/
) a respeito da previsão do mencionado art. 25º «... a atenuação não resulta de uma menor exigência de tutela punitiva face a uma menor potencialidade ofensiva de uma menor quantidade, mas antes a de atribuir menor relevo à menor perigosidade presumida da actividade criminosa, avaliada esta na sua globalidade. As circunstâncias enumeradas de forma não taxativa, deverão ser ponderadas numa perspectiva de averiguação objectiva de um menor relevo ou de um menor grau da ilicitude da acção.».
V. Salienta igualmente a este respeito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-01-2010 (
http://www.dgsi.pt/
):
«O crime de tráfico de menor gravidade, previsto no art. 25º do DL 15/93, de 22-01, como a sua própria denominação legal sugere, caracteriza-se por constituir um minus relativamente ao crime matricial, previsto no art. 21º do diploma citado.
(...)
Assim e para além das circunstâncias atinentes aos factores de aferição da ilicitude indicados no texto do art. 25º, há que ter em conta todas as demais circunstâncias susceptíveis de interferir na graduação da gravidade do facto, designadamente as que traduzam uma menor perigosidade da acção e/ou desvalor do resultado, em que a ofensa ou o perigo de ofensa aos bens jurídicos protegidos se mostre significativamente atenuado, sendo certo que para a subsunção de um comportamento delituoso (tráfico) ao tipo privilegiado do citado art. 25º, como vem defendendo o STJ, torna-se necessária a valorização global do facto, tendo presente que o legislador quis aqui incluir os casos de menor gravidade, ou seja, aqueles casos que ficam aquém da gravidade justificativa do crime tipo, o que tanto pode decorrer da verificação de circunstâncias que, global e conjuntamente sopesadas, se tenham por consideravelmente diminuidoras da ilicitude do facto, como da não ocorrência daquelas circunstâncias que o legislador pressupôs se verificarem habitualmente nos comportamentos e actividades e contemplados no crime tipo, isto é, que aumentam a quantidade do ilícito colocando-o ao nível ou grau exigível para a integração da norma que prevê e pune o crime tipo.».
Y. Transpondo tais considerações para o caso em apreço, do confronto com os factos provados valorados na sua globalidade verifica-se que a factualidade provada reconduz-se a um episódio de cedência de estupefacientes e a uma situação de detenção de estupefacientes na mesma data, destinada à cedência a terceiros mediante a obtenção de vantagem patrimonial/contrapartida monetária, desacompanhada de qualquer outro circunstancialismo fáctico de onde resulte um elevado grau de organização em termos de atividade ilícita.
X. Por conseguinte, impõe-se a absolvição do Recorrente da prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo art. 21º, n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22-01; e, operando a convolação, por força da alteração da qualificação jurídica nos termos comunicados, a condenação do Recorrente pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo art. 25º, al. a) do DL n.º 15/93, de 22-01, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C, anexa ao mesmo diploma legal.
Sem prescindir,
Em sequência, Acresce ainda:
Y. O artigo 71º, nº 1 do Código Penal estabelece que o critério legal, orientativo, para a determinação da medida da pena, assenta na culpa do agente e nas exigências de prevenção. No nº 2 alude-se às “circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele.”
E finalmente o nº3 impõe que a sentença explicite os fundamentos da medida da pena a que se chegou.
Z. É, sem dúvida, na fundamentação que devem ser tomados em consideração, designadamente, o grau de culpa do agente, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, os fins ou motivos que o determinaram, bem como a respetiva situação económica do arguido.
AA. Todavia, a culpa é o limite intransponível da medida da pena.
BB. Para a sua determinação, dispomos de duas regras fulcrais: uma primeira, que nos indica que a culpa é o fundamento para a concretização da pena, “sendo através da mesma que se fixa a sua magnitude”; uma segunda, que atenderá aos efeitos da pena na vida futura do arguido em sociedade e terá como função “reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos” e, assim, no ordenamento jurídico-legal.
CC. Todas as doutrinas sobre prevenção têm como fim último a reinserção social do agente (ressocialização), para o que se deve ter em conta os seus antecedentes criminais e a sua personalidade no conjunto dos factos.
DD. Não se coloca em crise a gravidade dos factos e as necessidades de prevenção geral reconhecidos pelo tribunal.
EE. Não obstante, entendemos que o tribunal, centrando-se, quase totalmente, na natureza ilícita e gravidade dos factos praticados, omitiu e/ou desconsiderou por completo a situação concreta do condenado quando o Acórdão é proferido.
FF. Como bem refere o Acórdão do TRLisboa supra citado, na formulação do prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto, e como refere Figueiredo Dias, para a formulação desse juízo de prognose favorável, o tribunal deverá atender especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto (in Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 518).
GG. No caso vertente, não podemos alicerçar o juízo de prognose negativo; Tampouco castigar o Arguido com uma Pena tão excessiva.
HH. Face às necessidades de prevenção especial, atendendo à personalidade do agente e ao facto de serem as suas únicas condenações, a pena aplicada parece-nos claramente excessiva.
II. Cremos que a pena aplicada, face ao princípio da proporcionalidade lato sensu, nas suas três decorrências - adequação, necessidade e proporcionalidade strito sensu - encontra-se totalmente em desarmonia com a culpa do agente.
JJ. Perante a situação familiar e social do agente, idade e condição económica, bem omo face a todos os circunstancialismos que veicularam o agente à prática dos factos criminosos, é adequada à culpa do agente e suficiente para realizar a tutela dos bens jurídicos protegidos, a revogação do acórdão - condenando pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo art. 25º, al. a) do DL n.º 15/93, de 22-01, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C, anexa ao mesmo diploma legal - aplicando ao Recorrente uma pena nunca superior a 1 ano e 6 meses, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeito a regime de prova.
Inconformado, veio também o arguido AA, interpor recurso para este Tribunal, juntando para tanto as motivações que constam dos autos, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, concluindo nos seguintes termos, que se transcrevem:
a) No entendimento do tribunal a quo, produzida a prova em sede de audiência de julgamento, resultou, no essencial, demonstrado o seguinte:
b) No dia ... de ... de 2023, os arguidos e um outro individuo cuja identidade não se logrou apurar, encontravam-se no ... do ..., no ..., a proceder, em conjunto e em concertação de esforços e vontades, à venda de heroína, de canábis e de cocaína a terceiros, em troca de quantias monetárias, de acordo com plano estabelecido entre todos.
c) Para tanto, os arguidos e o indivíduo não identificado guardavam as embalagens de heroína, de cocaína e de canábis no interior da...do ..., para evitarem serem surpreendidos na posse de grandes quantidades das aludidas substâncias.
d) Na prossecução dessa actividade, o arguido BB procedia à entrega das embalagens de heroína, de canábis e de cocaína na entrada do referido lote, a indivíduos que ali se dirigiam, recebendo em troca, as respetivas quantias monetárias.
e) Enquanto que o arguido AA e o indivíduo não identificado encontravam-se no interior da fracção …, do ... do ..., no ..., procedendo ao embalamento e guarda dos referidos produtos.
f) Pelas 16h15 deste dia, o arguido BB encontrava-se à entrada do ..., tendo entregue a um indivíduo, cuja identidade não se logrou apurar, uma embalagem.
g) Nessa altura, ao se aperceber da presença de Agentes policiais no local, o arguido BB encetou fuga para o interior do lote e dirigiu-se à fracção …, pretendendo ali refugiar-se.
h) Ali chegado, o arguido BB abriu a porta de entrada da habitação e gritou para o arguido AA: ”SALTA...SALTA!!!
i) De seguida, percorreu a habitação, entrou no quarto juntamente com o arguido AA e com o indivíduo não identificado e saltaram, os três, pela janela.
j) Nessa altura, Agentes da P.S.P. que se encontravam no exterior do prédio, intercetaram os arguidos, não tendo logrado interceptar o indivíduo não id.
k) Nesse momento, o arguido AA tinha consigo: - 30 (trinta) embalagens de cocaína (éster metílico de benzoilecgonina, com o peso líquido de 2,440 gramas (cfr. exame toxicológico de fls.101, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido); - a quantia monetária de €47,50 (quarenta e sete euros e cinquenta cêntimos).
l) Nesse momento, no interior da habitação, os arguidos tinham, ainda: - 40 (quarenta) embalagens de heroína, com o peso líquido de 5,220 gramas; - 16 (dezasseis) embalagens de heroína, com o peso líquido de 1,862 gramas; - 1 (uma) embalagem de heroína, com o peso líquido de 3,200 gramas; - 1 saco de plástico com resíduos de heroína com o peso líquido de 24,784 gramas; - 182 (cento e oitenta e duas) embalagens de cocaína (éster metílico de benzoilecgonina, com o peso líquido de 14,766 gramas (cfr. exame toxicológico de fls.98, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido); - A quantia monetária de €714,15 (setecentos e catorze euros e quinze cêntimos), subdividida em várias notas e moedas do B.C.E.; - Uma balança de precisão; - uma panela; - Uma faca; - Uma espátula - Um fogão; - Uma caixa de arma Airsoft; - Um carregador de Airsoft; - Um power bank; -Uma folha de papel com anotações alusivas às vendas de estupefaciente; - 11 telemóveis, de marcas “...”, “...”, “...”, “..., “...” m) A heroína e cocaína apreendidas destinavam-se a serem comercializadas, por ambos os arguidos, em comunhão e conjugação de esforços e vontades.
n) Ambos os arguidos conheciam as características e natureza estupefaciente dos produtos que detinham e destinavam à cedência a terceiros, mediante contrapartidas monetárias.
o) A quantia monetária apreendida foi obtida com os proventos das vendas de heroína e de cocaína efectuadas.
p) A balança de precisão, a panela, a faca, a espátula e o fogão eram utilizados pelos arguidos para pesar, fraccionar e preparar o estupefaciente que vendiam.
q) Agiram, assim, os arguidos, em comunhão e conjugação de esforços e de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida por lei.
r) Porém, salvo o devido respeito, o recorrente entende não ter ficado demonstrado, quanto a si, que tivesse procedido à actividade de venda de estupefacientes, muito menos “proprietário” dos bens apreendidos no interior do …, conforme o Tribunal à quo o condenou.
s) Aliás, esse facto não foi demonstrado nem por prova testemunhal nem pericial t) Vejamos, Quando questionada a testemunha CC (Agente da PSP) respondeu que: É um local que patrulha com frequência; À entrada do ... estavam 2 indivíduos; era o BB e outro que não sabe quem era; O BB fugiu para o interior do prédio; Foi para o … andar e gritou a alertar alguém que lá estava dentro; Viu o BB a entrar para o quarto; Não viu o AA dentro de casa, mas viu pela janela os colegas a interceptarem-no; O AA não acompanhou as diligências dentro do …; Nunca viu o AA antes no bairro; se frequenta o bairro, nunca reparou nele!
u) Ou seja, a testemunha CC patrulha o bairro há anos, não conhecia o arguido AA, nem nunca teve qualquer ocorrência com ele.
v) Não o viu dentro de casa nem à entrada do .... w) No tocante à testemunha DD (Agente da PSP); Nunca tinha visto os arguidos e só os conhece desta situação; O BB e o AA saltaram ao mesmo tempo; A droga estava mais perto do AA; Não viu o saco a cair do bolso do AA, mas acha que é dele por estar mais próximo dele;
x) Contudo o depoimento desta testemunha não mereceu qualquer credibilidade.
y) Vejamos, Numa primeira fase afirmou que tinha a certeza que os saquinhos de cocaína eram do arguido AA e que estavam ou num bolso, ou junto a ele.
z) Contudo, confrontado com o auto, afinal tinha visto o AA a atirar o saco para o chão.
aa) Ora, não é possível que alguém (in caso a testemunha), que não está à espera que alguém salte por uma janela, e por esse motivo não está a olhar diretamente, consiga afirmar que, numa fracção de segundos, e tendo saltado os 2 indivíduos ao mesmo tempo, que caíram no mesmo local, saber com precisão de quem era o saco, se era do 1.º INI que fugiu, ou se era do co-arguido BB ou do arguido AA.
bb) As restantes testemunhas nada disseram de relevante.
cc) No tocante à prova pericial, é totalmente inexistente.
dd) Não foram feitas quaisquer perícias ao saco, no sentido de se apurar da existência de vestígios lofoscópicos.
ee) Desta forma não é possível afirmar que aquele saco onde continham as 30 doses de cocaína eram pertença do arguido ora recorrente AA.
ff) De facto, a prova produzida em relação ao recorrente não é insuficiente, mas sim inexistente.
gg) Pelo que, o Tribunal a quo não se pode valer unicamente de regras de experiência comum, à sua convicção ou a qualquer outro critério que não em conjunto com um meio de prova válido, e condenar o recorrente pela prática, em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, se na verdade nenhuma testemunha afirmou ter visto o arguido a manusear os objectos encontrados no interior do …; não há nenhuma testemunha que afirme com convicção que aquele saco caído no solo pertencia ao recorrente, e por fim, não houve qualquer prova pericial que corroborasse aquela tese.
hh) Com efeito, estando os factos dados como provados, mas não o tendo sido devidamente motivado nem constar de qualquer meio de prova válido, entende-se ser nula, violando grosseiramente o disposto no art.º 374.º Código Processo Penal, porquanto o tribunal a quo formou a sua convicção, condenou o recorrente com base em factos que não foram dados como
II - Da medida da pena
ii) Conforme acima demonstrado, não ficou provado que o arguido ora recorrente procedesse, em conjunto e em concertação de esforços e vontades, à venda de heroína, canábis e cocaína a terceiros, em troca de quantias monetárias, de acordo com plano estabelecido entre todos (ponto 1); nem que o arguido AA e o indivíduo não identificado encontravam-se no interior da fracção …, do ... do ..., no ..., procedendo ao embalamento e guarda dos referidos produtos (ponto 4).
jj) Ora, caso não se entenda absolver o ora recorrente, é manifestamente excessiva a aplicação de uma pena de prisão de 4 anos e 10 meses, mesmo que suspensa na sua execução pelo mesmo período e sujeito a regime de prova, para condenar factos que não ficaram provados.
kk) Entendemos, pois, que neste ponto o tribunal a quo, face aos factos apurados em julgamento e às finalidades das penas, ao aplicar aquela pena violou os artigos 70º, 71º e 72º, todos do Código Penal.
ll) Em bom rigor, e sobretudo atento o patentemente disposto nos artigos 71º e 72º do Código Penal – que entendemos terem sido violados – várias circunstâncias militam a favor do recorrente, e que não foram devidamente tidas em conta no Acórdão recorrido, tais como: quanto ao grau de ilicitude do facto – não se pode considerar que pelo facto de um agente da PSP ter visto o arguido a saltar de um primeiro andar baixo, quase ao nível do rés do chão, seja um facto ilícito, ou pelo menos que proceda ao tráfico de estupefacientes. quanto ao modo de execução – em face da matéria de facto assente, e principalmente do depoimento das testemunhas, resulta evidente que o arguido ora recorrente nunca foi visto no ..., nem alvo de qualquer ocorrência, pelo que não se pode afirmar que exerce qualquer função relacionada com o crime de que foi condenado intensidade do dolo – não tendo praticado nenhum facto ilícito, não se pode admitir que haja dolo ou negligência; As condições pessoais e a sua situação económica - o ora recorrente AA vive com a família de origem, composta pela mãe e avó materna, contexto familiar estável e apoiante. O arguido refere-se a um contexto familiar estável e protetor e a uma dinâmica familiar positiva, avaliação corroborada pela mãe do arguido. O arguido possui um filho de dois anos de idade de um relacionamento que terminou, referindo-se a um bom entendimento com a ex-companheira e uma relação de proximidade com o filho. O arguido encontra-se trabalhar como ... após certificação profissional em ... do ano transato. Trata-se de uma oportunidade de inserção profissional efetiva. A situação económica é equilibrada e sustentável, atendendo ao rendimento médio familiar. A conduta anterior ao facto e a posterior a este – De acordo com a articulação com a PSP, o arguido não possui registos ou participações posteriores ao presente processo; e não tem quaisquer antecedentes averbados no seu registo criminal.
mm) Estas circunstâncias, só por si, mas também quando conjugadas com as demais, impõe a absolvição do arguido ora recorrente, não se podendo admitir a aplicação de qualquer pena ou condenação.
nn) De salientar que, o tribunal à quo bastou-se com referências genéricas e abstractas às exigências de prevenção geral e especial e à culpa, para a sua condenação e aplicação da medida da pena, o que vem explanado na pena do outro arguido, que é exactamente a mesma, como se de um catálogo se tratasse.
oo) Será, pois, de, caso não se entenda pela absolvição, o que apenas por mero exercício académico se admite, reduzir a medida da pena que foi aplicada ao recorrente para o mínimo legal de 4 anos, por ser o limite mínimo legalmente imposto para a factualidade que é objecto do presente processo.
pp) E por todos estes factores, entende-se que caso V. Exas. não pugnem pela absolvição, máxime a pena a aplicar ao arguido se deve situar no mínimo legal, e assim se satisfazendo, de forma adequada, as exigências de prevenção geral e especial.
***
Respondeu o Digno Magistrado do MP, pugnando pela manutenção da decisão, concluindo nos seguintes termos quanto ao arguido BB:
Não existe qualquer vício, uma vez que é são claros os motivos que determinaram que o Tribunal tivesse dado como provados os factos, bem como absolutamente apreensível o raciocínio do Tribunal. Na verdade, resulta das regras da experiência comum que o comum cidadão, se pacatamente na sua vida, nada tendo a temer, porque nada de ilícito praticou, quando ouve alguém gritar “salta, salta”, para o interior de uma habitação, a percorra a correr e salte por uma janela de, um 1º andar, para a via pública, que foi o que o arguido fez. 3 – A pena é adequada e justa, subscrevendo o entendimento do Tribunal que, a nosso ver, não merece qualquer reparo.
E quanto ao arguido AA:
1 - O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º, n.º 2, alínea a), Código de Processo Penal, verifica-se quando o Tribunal não tiver considerado provado ou não provado um facto alegado pela acusação ou pela defesa ou de que possa e deva conhecer, nos termos do artigo 358º, nº. 1, Código de Processo Penal, se esse facto for relevante para a decisão da questão da culpabilidade, ou quando, podendo fazê-lo, não tiver apurado factos que permitam uma fundada determinação da sanção; Porém, do teor do acórdão consta uma minuciosa e claríssima fundamentação da matéria de facto dada como provada e, em face disso, onde reside o vício previsto no artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal? Onde reside a falta de fundamentação? Onde reside a falta de enumeração dos factos dados como provados e não provados? Onde reside a falta de exposição tanto quanto possível completa dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal? Não existe qualquer vício, uma vez que é são claros os motivos que determinaram que o Tribunal tivesse dado como provados os factos, bem como absolutamente apreensível e lógico o raciocínio seguido pelo Tribunal. Na verdade, resulta das regras da experiência comum que o comum cidadão, se pacatamente na sua vida, nada tendo a temer, porque nada de ilícito praticou, da presença de elementos da PSP. Pelo que não é expectável que o arguido não comece a gritar “salta, salta” para o interior de uma habitação onde se encontram outros indivíduos, a percorra a correr e salte por uma janela de um 1º andar para a via pública, como fez o arguido. O arguido pretende colocar em causa é a valoração da prova realizada pelo Tribunal, mas não tendo impugnado, de forma ampla, a matéria de facto e não tendo de igual modo, logrado contrariar as regras de experiência, nem demonstrado que, por recurso a estas, a fixação factual, bem como a motivação e decisão vertida no acórdão, deveria ter sido diversa daquela que foi, não alcançou tal desiderato. 3 – Quanto à pena é adequada e justa, subscrevendo o entendimento do Tribunal que, a nosso ver, não merece qualquer reparo.
Neste Tribunal o Ilustre Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se manutenção da decisão e improcedência dos recursos.
Foi cumprido o artigo 417º, n.º2 do CPP e respondeu o arguido AA, pugnando pela posição anteriormente assumida.
Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se á conferência.
2.
Fundamentação:
Cumpre assim apreciar e decidir.
É a seguinte a decisão recorrida (fundamentação de facto)
A. Matéria de facto provada.
O tribunal, discutida a causa, deu como provados os seguintes factos:
Do acusatório.
1. No dia ... de ... de 2023, os arguidos e um outro indivíduo cuja identidade não se logrou apurar, encontravam-se no … do ..., no ..., nesta cidade, a proceder, em conjunto e em concertação de esforços
e
vontades, à venda de heroína, de canábis e de cocaína a terceiros, em troca de quantias monetárias, de acordo com plano estabelecido entre todos.
2. Para tanto, os arguidos e o indivíduo não identificado guardavam as embalagens de heroína, de cocaína e de canábis no interior da fracção … do ..., para evitarem serem surpreendidos na posse de grandes quantidades das aludidas substâncias.
3.
Na prossecução dessa actividade, o arguido BB procedia à entrega das embalagens de heroína, de canábis e de cocaína na entrada do referido lote, a indivíduos que ali se dirigiam, recebendo em troca, as respectivas quantias monetárias,
4.
Enquanto que o arguido AA e o indivíduo não identificado encontravam-se no interior da fracção … do ..., no ..., procedendo ao embalamento e guarda dos referidos produtos.
5.
Pelas 16h15 deste dia, o arguido BB encontrava-se à entrada do ..., tendo entregue a um indivíduo, cuja identidade não se logrou apurar, uma embalagem.
6.
Nessa altura, ao aperceber-se da presença de Agentes policiais no local, o arguido BB encetou fuga para o interior do lote e dirigiu-se à …, pretendendo ali refugiar-se.
7. Ali chegado, o arguido BB abriu a porta de entrada da habitação e gritou para o seu interior:
"SALTA... SALTA!!! ".
8.
De seguida, percorreu a habitação, entrou no quarto juntamente com o arguido AA e com o indivíduo não identificado e saltaram, os três, pela janela.
9.
Nessa altura, Agentes da Polícia de Segurança Pública que se encontravam no exterior do prédio, interceptaram os arguidos, não tendo logrado interceptar o indivíduo não identificado.
10.
Nesse momento, o arguido BB
tinha na
sua posse, no bolso do casaco que envergava:
i. Um frasco que continha canábis (resina) com o peso líquido de 1,856 gramas, produto este semelhante ao entregue conforme apurado em 5.;
ii. A quantia monetária de € 100,00 (cem euros).
11.
Na mesma altura, o arguido AA tinha consigo:
- 30 (trinta) embalagens de cocaína (éster metílico de benzoilecgonina), com o peso líquido de 2,440 gramas;
- A quantia monetária de € 47,50 (quarenta e sete euros e cinquenta cêntimos).
12.
Nesse momento, no interior da habitação, os arguidos tinham:
- 40 (quarenta) embalagens de heroína, com o peso líquido de 5,220 gramas; - 16 (dezasseis) embalagens de heroína, com o peso líquido de 1,862 gramas; - 1 (uma) embalagem de heroína, com o peso líquido de 3,200 gramas;
- 1 saco de plástico com resíduos de heroína com o peso líquido de 24,784 gramas;
• 182 (cento e oitenta e duas) embalagens de cocaína (éster metílico de benzoilecgonina), com o peso líquido de 14,766 gramas;
• A quantia monetária de € 714,15 (setecentos e catorze euros e quinze cêntimos), subdividida em várias notas e moedas do Banco Central Europeu;
• Uma balança de precisão;
- Uma panela;
- Uma faca;
- Uma espátula;
- Um fogão;
- Uma caixa de arma Airsoft;
Um carregador de Airsoft;
- Um power bank;
Uma folha de papel com anotações alusivas às vendas de estupefaciente; - 11 telemóveis, de marcas "...", "...", "...", "….", "...".
13.
A
canábis, heroína e cocaína apreendidas destinavam-se a serem comercializadas, por ambos os arguidos, em comunhão e conjugação de esforços e vontades.
13. Ambos os arguidos conheciam as características e natureza estupefaciente dos produtos que detinham e destinavam à cedência a terceiros, mediante contrapartidas monetárias.
14. A quantia monetária apreendida foi obtida com os proventos das vendas de canábis, heroína e de cocaína efectuadas.
15. A balança de precisão, a panela, a faca, a espátula e o fogão eram utilizados pelos arguidos para pesar, fraccionar e preparar o estupefaciente que vendiam.
16. Os arguidos agiram em comunhão e conjugação de esforços e de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era criminalmente punida por lei.
Da situação pessoal e condição sócio-económica do arguido AA.
17. O arguido AA é filho único e cresceu num contexto familiar monoparental, não tendo relação de proximidade com o pai, com quem nunca coabitou.
19. AA vive com a família de origem, composta pela mãe, EE, de 47 anos, e a avó materna, FF, de 65 anos,
20. O contexto familiar é estável e protetor, tendo uma dinâmica familiar positiva,
21. O agregado familiar reside numa casa de habitação social atribuída à família há mais de vinte anos e titulada pela progenitora do arguido com condições de habitabilidade.
22. AA frequentou a escola até ao 11° ano de escolaridade, não tendo concluído este ciclo de estudos. O arguido refere-se à desistência dos estudos pela desmotivação e desinteresse, num movimento precoce de autonomização.
23. O arguido possui um filho de dois anos de idade, fruto de um relacionamento afectivo que terminou em 2001.
24. Tem um bom entendimento com a mãe do menor e uma ligação de proximidade com o filho.
25. Ao tempo dos factos apurados de 1. a 17., o arguido estava desempregado após ter trabalhado na área da …, durante sensivelmente um ano e três meses, junto do pai da sua ex-companheira.
26. Desde ... do corrente ano, o arguido AA exerce profissionalmente a actividade de …, tendo formalizado contrato de trabalho há sensivelmente um mês.
27. Mostra-se satisfeito com esta oportunidade, relativamente à qual fez um investimento recente, ao obter a Certificação … no início do corrente ano.
28. Aufere o valor da remuneração líquida mensal de E 364,90 (trezentos e sessenta e quatro euros e noventa cêntimos).
29. O agregado familiar do arguido apresenta:
i. valor da remuneração líquida mensal dos outros elementos: C 1990,00 (mil novecentos e noventa euros).
ii. valor total das despesas/encargos mensais fixas:
- Habitação - € 120,00 (cento e vinte euros);
- Prestação de alimentos - C 150,00 euros (cento e cinquenta euros);
- Contribuição despesas domésticas - E 150,00 euros (cento e cinquenta euros).
30. AA refere-se a uma ligação positiva e de pertença ao meio onde reside e onde cresceu e socializou mantendo boas relações de vizinhança, não identificando pontos de tensão ou conflitualidade.
31. Não apresenta problemáticas de saúde.
Da situação pessoal e condição sócio-económica do arguido BB.
32. O pai do arguido BB faleceu muito jovem num acidente de viação quando aquele rondava os três anos de idade, exprimindo o arguido activação emocional face a essa perda e mostrando-se muito penalizado pela ausência da figura paterna.
33. BB possui uma irmã mais nova, de um novo relacionamento da sua mãe.
34. Embora o arguido não expresse dificuldades no relacionamento com o padrasto, não o reconhece como figura de substituição parental.
35. BB possui o 9.° ano de escolaridade, através da frequência de um curso profissional de ….
36. No ano lectivo ...2.../2024, esteve inscrito num curso profissional de ..., com equivalência ao 12.° ano, mas desistiu por falta de motivação.
37. Na sua trajetória escolar, BB regista algumas retenções no primeiro e segundo ciclo do básico, associadas a problemas de comportamento e indisciplina, tendo beneficiado no primeiro ciclo de estudos, de acompanhamento psicológico.
38. Desde que desistiu da frequência escolar tem-se mantido desocupado, reconhecendo alguma desorientação e falta de rumo.
39. Actualmente faz referência à colaboração com o avô, no … e está a tirar a carta de condução, não tendo ainda realizado o exame de código.
40. Tem planos para tirar uma licença de …, considerando esta iniciativa como facilitadora da sua inserção profissional.
41. À data das circunstâncias que deram origem ao presente processo judicial, BB mantinha a mesma situação pessoal e familiar presente.
42. O arguido vive com os avós maternos, fazendo parte deste agregado um primo de 24 anos.
43. A dinâmica familiar é positiva e protetora, embora reconheça que passou a viver com os avós há sensivelmente três anos, por incompatibilidades com a mãe, numa fase de maior rebeldia e instabilidade assumindo a dificuldade no cumprimento de regras e em aceitar a autoridade parental.
43.
O
arguido mantém uma relação de namoro com GG, de 22 anos, desde ... do ano transacto.
44. Considera tal relacionamento gratificante e positivo, reconhecendo a sua namorada como uma influência positiva e um referencial normativo.
45. Os avós de BB vivem numa casa de habitação social, em ..., que o arguido avalia com condições de habitabilidade, num contexto socio habitacional em que se sente ambientado.
46. A condição económica do agregado depende das reformas dos avós — ambos tiveram vida activa contributiva -, avaliando o arguido a situação como satisfatória que garante as suas necessidades básicas, contando igualmente com o apoio da mãe.
47. BB reporta o início dos consumos de haxixe, a partir dos dezasseis anos de idade. Numa fase inicial, caracteriza-o como um consumo ligeiro em contextos de recreativo, com intensificação gradual associada a problemas de ansiedade.
48. O arguido padece de … estando medicado e a melhorar de tal patologia.
49. No entanto, tal problema … interferiu na sua aparência e bem-estar emocional, retraindo-o na interação social.
50. O arguido considera que o acompanhamento médico e a estabilização dos problemas de ansiedade tem-lhe permitido a redução do consumo regular de haxixe.
51. BB celebrou com o ...
"contrato de formação"
tendo em vista a sua formação profissional como Técnico …, conforme teor de fls. 138 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
Dos antecedentes criminais registados.
52. Os arguidos não têm antecedentes criminais registados.
B. Matéria de facto não provada.
Da discussão da causa, e com relevância para a boa decisão da mesma, não logrou provar‑ se que:
Da contestação do arguido BB
a. Na circunstância apurada de 1. a 17., o arguido BB deslocou-se ao local a fim de proceder à compra de produto estupefaciente, por ser consumidor.
a. Após ter adquirido produto estupefaciente, tendo sido alertado por individuo desconhecido para a presença de forças policiais, displicente e instintivamente encetou fuga, porquanto tinha na sua posse o frasco apurado em 10. i), produto este destinado ao seu próprio consumo e que havia adquirido momentos antes.
b. A sua fuga prendeu-se com o facto de ter conhecimento de que o consumo de produtos estupefacientes não se encontra devidamente legalizado em Portugal, bem como pelo facto de anteriormente ter já sido interceptado por agentes policiais na posse de tais produtos, tendo receio de ser novamente interceptado.
C. Convicção do tribunal e exame crítico das provas.
Por força do estatuído no artigo 127.°, do Código de Processo Penal
«salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
Nesta sede, rege o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova e, por outra banda, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal. Como defende
Germano Marques da Silva,
in Curso de Processo Penal, vol.
II, p. 111 "a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas como uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão".
C.I. Matéria de facto provada de 1. a 17. e não provada de a) a c):
face ao legítimo direito ao silêncio exercido pelos arguidos em todo o decurso da audiência de julgamento, procedeu-se ao cotejo valorativo de quatro elementos probatórios preponderantes:
i.
Declarações prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial de arguidos detidos ocorrido a ... de ... de 2023 —
nos termos do disposto no artigo 141.°, n.° 4, alínea b), e 357.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Penal e em obediência à Jurisprudência fixada pelo
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.° 5/2023,
de 09 de Junho processo n.° 660/19.9PBOER.L1-A.S1 disponível em
haps: diariodarcpublica.pt di detalhe, diari o-republica 111-2023-214175751 -
ii.
Prova testemunhal consubstanciada nas razões de ciência evidenciadas por CC,
agente da Polícia de Segurança Pública há ..., integrando a ...,
DD,
agente da Polícia de Segurança
Pública
há..., há ... desempenhando funções na
...
da ...,
HH,
agente da Polícia de Segurança Pública há ..., desempenhando funções ... na ..., e
II,
agente da Polícia de Segurança Pública, tendo exercido funções na ..., desde ...-...-2023 em ..., dedicando-se à ...
i.
Prova documental
constante dos autos, designadamente, auto de notícia de fls.2-8, autos de apreensão de fls.17, 18, auto de busca e apreensão de fls.15-16, documentos de fls. 19, 21, 23, 34-36, 37, auto de exame e de avaliação de fls. 25-26 e reportagem fotográfica de fls.27-33 ; e
ii.
Prova pericial,
designadamente consubstanciada nos relatórios de exames periciais toxicológicos de fls. 96, 98, 101;
Em tal quadro probatório e pese embora a reprodução das declarações dos arguidos em sede de primeiro interrogatório judicial tenha ocorrido na parte final da audiência, por imperativo de explanação da convicção importa começar por atentar no que consistiram os seus individuais posicionamentos e do que se extraiu destes:
i) Arguido AA
sustentando, na sua essencialidade, que se encontrava casualmente no local porque tinha combinado ir buscar a filha à creche para ir lanchar com o compadre, quando tudo acabou por se precipitar por se ter assustado com a presença de dois indivíduos em passo apressado dizendo-lhe
"salta, salta",
facto que o levou a entrar no
…
, fracção de que desconhece o proprietário, mas porque tendo conhecimento de pretéritos episódios envolvendo abordagem policial violenta, acabou por se dispor a saltar pela janela do mesmo primeiro andar. Em sequência, assumindo a posse da quantia de cerca de E 47,00, pretendeu fazer crer que o estupefaciente (saco plástico com pacotes de cocaína) já se encontrava no chão quando saltou, enjeitando a posse do mesmo. Mais esclareceu desconhecer o co-arguido BB, bem como o indivíduo de identidade não concretamente apurada igualmente actuante (que assinalou se encontrar com máscara). De resto, assumiu saber da actividade de traficância no local, por via do que lhe relata o compadre. Pese embora reiteradamente convocado a explicar a "lógica" do ter saltado e desse modo arriscado a integridade física, manteve fundamento em reacção por medo, sinalizando nunca ter entrado no 1.° C, e apenas tendo seguido dois indivíduos que não conhece de todo.
ii) BB
rejeitando a imputação fáctica, assumindo apenas ter haxixe na quantidade de cerca de 1,9 gramas e quantia monetária de E 1,60/E 1,70, porque havia entrado no … para comprar (identificando o local como
"banca"),
ali tendo permanecido porque estava a aguardar por amigo (cuja identidade não avançou) que também tinha ido comprar. Nesta senda, uma vez que pessoa que estava a vender fugiu, decidiu segui-la, por medo em razão de já ter processo crime precedente conexo com tráfico de estupefacientes e aquela lhe ter dito
"corre, corre".
Assinalando que se encontrava encostado à porta, acabou por entrar na fracção que não conhecia, por nunca lá ter estado, desconhecendo o respectivo proprietário, acabando a sinalizar que o co-arguido AA era seu amigo e supôs ter saltado também, indicando a respectiva ordem dos alegados saltos da janela e a intervenção policial subsequente. Mais esclareceu consumir cerca de e 5,00 de haxixe por dia e, no circunstancialismo, ter comprado haxixe (o qual foi apreendido) a um indivíduo de máscara e gorro, tendo gasto E 10,00. Acerca da apreensão, remeteu para o indivíduo cuja identidade não apurou ser quem tinha o domínio de todo o estupefaciente numa bolsa, reforçando que quando saltou o estupefaciente e o dinheiro já se encontrava todo no chão.
Ora, ainda sem escalpelizar a restante prova produzida, cumpre convir que, salvo o devido respeito, decorre manifesto que tais versões, pelas suas evidentes fragilidades, comprometimentos objectivamente detectáveis, ausência de lógica e afronta à elementaridade da razão e da experiência comum, nenhum índice de credibilidade convocam.
Com efeito, se o arguido AA mal sustenta, sem sequer apresentar ou instruir prova ínfima nos autos, a razão de se encontrar no local, mesmo a admitir-se em tese que pudesse estar relacionado com convívio com compadre e perspectiva de deslocação a creche para ir buscar a filha, não se entende minimamente razoável que, na sua razão, possa ter derivado para entrar precisamente na fracção do 1.° C, de que desconhece o proprietário e se prestado a saltar de uma janela,
"apenas"
porque dois indivíduos, que não identificou, lhe surgiram em passo apressado dizendo-lhe
"salta, salta".
De resto, assim também não colhe tal deriva por ter alegado conhecimento de pretéritos episódios envolvendo abordagem policial violenta.
Convenhamos, sob o índice do padrão de um cidadão de capacitação intelectual média, na ordem da razão de alegado encontro combinado com o compadre, no preciso local de existência de uma banca de venda de produto estupefaciente, não se compreende o porquê de ter seguido quem não conhecia, entrado em fracção de cujo proprietário desconhecia e de ter dado prática a ordem de saltar de um primeiro andar arriscando objectivamente a sua integridade física.
O que haveria a temer da presença policial?
Mesmo dando como boa a tese do arguido, nada se afigura de provocar receio.
Antes pelo contrário, se reservas pudessem suscitar-se sempre teriam de se ater à actividade de traficância consabida no local e nunca a qualquer intervenção das autoridades policiais.
Ao invés, tudo consolida que tais sequenciais derivas estejam linearmente arreigadas no comprometimento e envolvimento de tal arguido na própria actividade de traficância de produtos estupefacientes.
Por seu turno, outrossim não merece qualquer credibilidade o declarado pelo arguido BB, o qual, ao contrário do desconhecimento sinalizado pelo co-arguido, assume antes ser amigo
deste. Com
efeito, a tese de deslocação para aquisição de haxixe para seu consumo e de se encontrar à espera de amigo (cuja identidade não avançou) que também tinha ido comprar e do qual não se anotou presença no local, vem a ser afrontada pela irracionalidade, permita-se-nos, de ter acabado por derivar na entrada na fracção que não conhecia, por nunca lá ter estado, desconhecendo o respectivo proprietário, acabando por saltar de janela arriscando a sua integridade física (o que lhe valeu mesmo subsequente ida a urgência hospitalar, conforme documentado), apenas porque a pessoa que estava alegadamente a vender estupefaciente acabara de fugir, decidindo segui-la, por medo em razão de já ter processo crime precedente conexo com tráfico de estupefacientes e aquela lhe ter dito
"corre, corre".
Ora, na confluência das teses de inocência, eleva-se manifestamente irrazoável que ambos os arguidos tenham adoptado idênticas reacções de fuga e risco para a própria integridade física perante a presença policial assinalada.
De resto, a um cidadão médio sem comprometimento e consciente da sua plena inocência sempre seria exigível que perante a intervenção policial em curso justificasse tranquilamente a sua presença no local, sem qualquer rebuço, mesmo para quem como o arguido BB pudesse ter acabado de adquiri haxixe.
Posto tal, tais teses vieram a evidenciar-se categoricamente postas em capital crise pela demais prova produzida.
Com efeito, conformando documentalmente linha de antagónica razão, começa por se elevar preponderante a análise ao seguinte teor:
i.
Auto de notícia e detenção de fls. 2-8 —
suporte atestativo da primeira aquisição policial noticiosa da prática criminosa pelos arguidos, bem discernindo os termos da operação policial gerada, os elementos identificativos dos arguidos, a concreta intervenção e localização espácio-temporal, assim como a cronologia dos actos e conexo descritivo global de apreensões, tudo em cumprimento rigoroso das formalidades legais;
ii.
Autos de busca e apreensão de fls. 15-16 verso (n.° 1), 17 e 17 verso (n.° 3) e 18 e 18 verso (n.° 2) —
permitindo alcançar a legalidade dos termos com respeito às apreensões conexas com as pessoas dos arguidos e reporte à residência visada, com atinência à globalidade do produto estupefaciente e quantias monetárias apuradas;
iii.
Testes rápidos de fls. 19, 21, 23 e respectivas guias de entrega de estupefaciente de fls. 20, 22, 24 —
de que brotaram os primeiros resultados do estupefaciente concretamente apreendidos aos arguidos;
i.
Documentação de fls. 34-36 —
consubstanciando manuscritos presumivelmente atinentes a anotações referentes a transacções de produto estupefaciente;
iv.
Ficha de urgência de fls. 37 —
reportando assistência hospitalar prestada em episódio de urgência ao arguido BB, no ... - com admissão às 21:20:37 de ...-...-2023 e alta no mesmo dia pelas 22:28:59 - e correlacionada com a queda decorrente da fuga apurada, com afectação concreta do tornozelo esquerdo com edema associado (desde as 16h00);
v.
vi) Reportagem fotográfica de fls. 27-33 —
da qual decorre a percepção visual do interior da residência visada pela busca, perpassando as divisões respeitantes ao hall, quartos, mobiliário e locais de guarda de produto estupefaciente, balança de precisão, telemóveis, quantias monetárias e objectos correlacionados;
vi.
vi) Auto de exame e de avaliação de fls. 25-26 —
de que ressaltou a inexistência de qualquer valor venal aos objectos apreendidos.
vii. Ademais, sob o crivo pericial, o Tribunal valorou os
relatórios de exames periciais exarados pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária e constantes de fls. 96, 98-99 e 101
do qual se extraiu concretamente os factos respectivamente provados em 10., 11.e 12.
viii. Em tal conformação documental e pericial, vieram a assentar as razões de ciência das testemunhas:
ix.
- CC,
agente da Polícia de Segurança Pública, esclarecendo os termos da sua intervenção, em binário com o colega JJ, descrevendo todo o circunstancialismo em ampla compatibilidade com o que fez constar no auto de notícia e detenção de fls. 2-8 por si próprio exarado, bem discernindo toda a actuação, posturas reactivas e precipitações detectadas sequencialmente aos arguidos e ao indivíduo terceiro que logrou a fuga. Confrontado com folhas 27 a 36 dos autos remeteu para a autoria da equipa de investigação criminal.
x.
- DD,
agente da Polícia de Segurança Pública, elucidando da intervenção que levou a cabo integrado na Equipa de Intervenção Rápida, designadamente permanecendo fora do edifício com o colega KK, e confirmando a precipitação dos arguidos e de um terceiro indivíduo pela janela do
…
(prédio conotado com a actividade de traficância). Mais confirmou todo o teor dos autos de busca e apreensão de fls. 1516 verso (n.° 1), 17 e 17 verso (n.° 3) e 18 e 18 verso (n.° 2), bem como reportagem fotográfica de folhas 27 a 36 dos autos, vindo tal confirmação a suprir pontuais e compreensíveis lacunas de reminiscência na pormenorização maior do vertido.
xi.
- HH,
agente da Polícia de Segurança Pública, cingido à confirmação do teor da reportagem fotográfica de fls. 27 a 36 dos autos, concretamente melhor explicando e discernindo a fotografia n.° 4, de fls. 28 que resultou de pedido de colega para captar a janela constante e correlacionando os manuscritos constantes de fls. 34 a 36 com o espaço retratado na fotografia n.° 3 também de fls. 28.
xii.
- II,
agente da Polícia de Segurança Pública, esclarecendo ter sido o elemento "shotgun" da operação policial ocorrida, confirmando genericamente os
termos de
busca à residência apurada e apreensão de produto estupefaciente e dinheiro, bem como o insólito da deriva de fuga em precipitação por janela.
xiii. Deste modo, ao arrepio da falta de verosimilhança ao declarado pelos arguidos, toda a demais prova elencada e assim valorada conflui sem mácula no enquadramento e actuação detectada efectivamente aos arguidos, permitindo alcançar a caracterização espacial do local dos factos, fixando os actos percepcionados aos arguidos, tudo bem permitindo concluir por uma actuação reflectiva, concertada e organizada de traficância efectiva dos produtos estupefacientes detectados.
xiv. Donde, cotejada as versões verbalizadas ao tempo do primeiro interrogatório judicial ao caudal probatório documental, pericial e testemunhal nos termos supra dissecados resulta inexorável concluir que a fragilidade da linha discursiva entendida empreender pelos arguidos, desde logo detectada aos termos, cadência e lógica discursiva empreendidos, vem a soçobrar categoricamente face ao peso da prova documental e pericial pré-constituída, a par da compatibilidade dos contributos depoimentais acabados de expor e cotejar, razão pela qual, outrossim, os factos não provados em a) a c) assim acabaram fixados.
xv. Em epílogo de apreciação das respectivas condutas apuradas aos arguidos, também os aspectos de ordem subjectiva, igualmente se provaram nos seus limites.
xvi. É sabido que os elementos subjectivos são apurados em função dos factos objectivos que indiciam a atitude psicológica do agente para com o facto.
xvii. Com efeito, as intenções, as vontades, os conhecimentos,
as representações mentais,
porque do foro psíquico do sujeito, não são realidades palpáveis, sensitivamente perceptíveis, hipostaziáveis. Desse modo, a inerente percepção, nomeadamente para efeitos judiciais, só pode ser alcançada por via da ponderação dos comportamentos exteriorizados que, de um modo mais ou menos conclusivo, demonstrem esses estados psicológicos (nas palavras de
Germano Marques da Silva,
e na linha de pensamento de Cavaleiro de Ferreira, "a maior parte das vezes os actos interiores não se provam directamente, mas por ilação de indícios ou factos exteriores.",
Curso de Processo Penal, II,
1999, p. 101).
Pretender o contrário, conduziria a apenas ser possível demonstrar a atitude psicológica do agente para com o facto no caso de confissão. Tal perspectiva afigura-se manifestamente improcedente.
Assim, quanto aos aspectos de ordem subjetiva, socorreu-se o Tribunal dos elementos objectivos disponíveis, chamando ainda à colação a doutrina do
Acórdão da Relação do Porto de 23-02-83:
quanto à intencionalidade, pertencendo o dolo
"à vida interior de cada um",
sendo
"portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, como maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência". -
cfr.
in
BMJ n.° 324/620.
Com efeito, a convicção do Tribunal quanto a estes factos, resultou da conjugação de todos os elementos de prova já
supra
enunciados entre si, bem como, com as regras de experiência comum, tudo emergindo de um elementar juízo de inferência lógica que, à luz das citadas regras da experiência comum, se estriba nos demais factos provados, sendo do conhecimento de qualquer cidadão e, por maioria de razão, de cidadãos que se dedicam e relacionam com a actividade da traficância de estupefacientes que, entre o mais, é proibido comprar, oferecer, ceder, vender, deter ou fazer transitar produtos estupefacientes nos termos apurados.
C.II. Factos provados de 18. a 52.:
acervo de incisos respeitantes à situação pessoal e condição social e económica dos arguidos valeu a examinação:
i. Primordialmente dos respectivos
relatórios sociais,
respectivamente, juntos sob ref. as 41504103 (fls. 150-152 dos autos) e 41562000;
ii. Concretamente por banda da
defesa do arguido BB:
- A tomada de inquirição às testemunhas
LL,
..., namorada do arguido desde ... de 2024 (em ... de 2023, ainda não o conhecendo), sem conhecimento do co-arguido AA, e
MM,
... mãe do arguido, sem conhecimento do co-arguido AA, as quais revelaram, a seu modo, teor abonatório.
iii) A análise
ao documento junto pelo mesmo na sua contestação e constante de fls. 138
consubstanciando de que designadamente resultou provado o facto fixado em 52.
-1‑
C.III. Quanto à inexistência de antecedentes criminais registados dos arguidos conforme vertido em 53.:
relevaram os respectivos certificados de registo criminal actualizados e juntos a fls. 153 e 154 dos autos.
Finalmente, cumpre consignar que toda a demais factualidade alegada com teor conclusivo, repetitivo ou irrelevante para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa foi necessariamente expurgada do elenco fáctico provado e não provado.
***
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
***
Atentas as conclusões do recurso, podemos delimitar o seu objeto à apreciação das seguintes questões, a saber:
A.
Insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada e nulidade da decisão por violação do disposto no artigo 374º do CPP, bem como violação do princípio da livre convicção;
Dispõe o artigo 374º do CPP que:
1. A sentença começa por um relatório que contém:
a. As indicações tendentes à identificação do arguido;
b. As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;
c. A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação ou a pronúncia, se a tiver havido;
d. A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.
2. Ao relatório segue-se a fundamentação, que cosnta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção do tribunal.
3. A sentença termina pelo dispositivo que contém: a) as disposições legais aplicáveis; b) a decisão condenatória ou absolutória; (…)
Nos termos do disposto no artigo 379º, do Código de Processo Penal, é nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º.
3 - Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.”
No caso, o acórdão não é, efectivamente, nulo, pois contém a fundamentação, na qual se elencam os factos provados e não provados, bem como uma motivação, na qual se enumeram as provas produzidas, se descreve o seu teor e se faz a análise e o exame crítico das mesmas, explicitando, de forma clara e perceptível, os motivos que levaram o tribunal a decidir como decidiu.
Os arguidos poderão não concordar com o que é dito nessa mesma fundamentação, não podem é concluir que a mesma não existe ou que é insuficiente pois o tribunal foi bastante cuidadoso a analisar a prova produzida e a fazer o exame crítico da mesma.
O acórdão descreve toda a prova produzida e, mais do que isso, analisa criticamente essa prova, ficando o destinatário a conhecer as exactas razões pelas quais o tribunal considerou provados os factos elencados na motivação da decisão de facto.
De qualquer modo, os arguidos parecem não concordar com a análise da prova e com a convicção formada pelo Tribunal.
De acordo com o disposto no art. 412º do mesmo diploma legal, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Versando sobre a matéria de facto, o Recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas (n.º 3)
Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número 3 fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (n.º 4).
No caso, muito embora os arguidos refiram, ao longo da motivação, algumas frases soltas dos depoimentos de testemunhas que imporiam decisão diversa, não obstante, tendo as provas sido gravadas, não mencionam as especificações a que aludem as alíneas b) e c) do n.º3 do artigo 412º por referência ao consignado em acta.
Nem referem também quais as provas que deveriam ser renovadas.
Tendo sempre presente que no artigo 412º do CPP se revela que quando alguém põe em causa a matéria de facto deve indicar concretamente os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõe decisão diversa da recorrida, cumpre, desde já, dizer que as provas mencionadas devem
impor
uma decisão diversa da que foi tomada, não se trata de permitir uma outra decisão, mas sim de ela ser imposta pela existência de provas que se mencionam.
Isto é, as provas de que o arguido se socorre para impugnar a decisão da matéria de facto têm que ser tão inequívocas como inabaláveis no sentido de imporem uma decisão diversa da que foi tomada.
Não se trata de existirem duas interpretações possíveis da prova produzida, tem que haver uma só, a do arguido, que se impõe pela sua evidência, pela sua certeza, pelo seu carácter inequívoco, e que obriga o Tribunal da Relação a revogar a decisão tomada pelo tribunal de primeira instância.
No caso, os arguidos não impugnaram correctamente a matéria de facto e as provas a que aludem foram tidas em consideração pelo tribunal, que as valorou no sentido descrito, não se detectando qualquer dúvida ou hesitação do tribunal, que de forma muito esclarecedora e escorreita esclareceu e revelou a sua convicção.
A livre convicção é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade, portanto, uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores (Cavaleiro de Ferreira, ob cit. P 11 e 27).
Neste sentido, o princípio que esse postula, como salienta Teresa Beleza
o valor dos meios de prova … não está legalmente pré-estabelecido. Pelo menos tendencialmente, todas as provas valem o mesmo: o tribunal apreciá-las-á segundo a sua livre convicção.
O mesmo é dizer: a liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação dada pelo treino profissional, o saber de experiência feito e honesto estudo misturado ou na expressão feliz de Castanheira Neves, trata-se de uma liberdade para a objectividade. (RMP, ano 19, 40).
Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, da Universidade Católica Editora, salienta que o princípio constitucional de livre apreciação da prova é direito constitucional concretizado e não viola a constituição da república, antes a concretiza (ac. TC n.º1165/96, reiterado pelo ac. N.º 464/97): A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permitem ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efectiva motivação da decisão.
A Constituição da República e a Lei estabelecem limites endógenos e exógenos ao exercício do poder de livre apreciação da prova. Estes limites dizem respeito: ao grau de convicção requerido para a decisão, à proibição dos meios de prova, à observância do princípio do in dubio pro reo. Os três primeiros são limites endógenos ao exercício da apreciação da prova no sentido de que condicionam o próprio processo de formação da convicção e da descoberta da verdade material. O último é um limite exógeno, no sentido de que sentido de que condiciona o resultado da apreciação da prova.
O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis. Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.
No caso dos autos, não se vislumbra qualquer erro de julgamento, muito pelo contrário, e não foram violados quaisquer preceitos legais e/ou constitucionais na apreciação da prova que foi feita.
O tribunal a quo, em face da inconsistência das declarações dos arguidos, valorou, além do mais, as declarações dos polícias que levaram a cabo as diligências e procederam às apreensões, que, aliás, não tinham qualquer motivo para mentir.
Não se detecta sequer que o Tribunal tenha ficado com alguma dúvida sobre a factualidade que entendeu assente e que justificasse o recurso ao princípio do in dúbio pro reo.
O princípio
in dubio pro reo
, como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um
non liquet
que deve ser resolvido a favor deste. Afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal (cfr. Figueiredo Dias Dtº Processual
Pena
l, pág 213).
Também não se verifica nenhum dos vícios a que alude o n.º2 do artigo 410º do CPP.
Estatui o artigo 410º, n.º2 do CPP que:
mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum:
a.
a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b.
a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c.
erro notório na apreciação da prova.
Através da consagração, no nº2 do artigo 410º do CPP, do recurso de revista alargada, o legislador pretendeu que o recurso de revista visasse, tal como preconizava a melhor doutrina, também a finalidade de obtenção de uma “decisão concretamente justa do caso, sem perder de vista o fim da uniformidade da jurisprudência” – Castanheira Neves, Questão de facto – questão de direito ou o problema metodológico da juridicidade, I Coimbra, 1967,p. 34 e seguintes.
Os vícios elencados no n.º2 do artigo 410º do CPP têm de resultar do contexto factual inserido na decisão, por si, ou em confronto com as regras da experiência comum, ou seja, tais vícios apenas existirão quando uma pessoa média facilmente deles se dá conta.
Quanto a aquilo que seja o chamado erro notório na apreciação da prova, escreve Maria João Antunes, no seu Conhecimento dos vícios previstos no artigo 410º, n.º2 do CPP, p.120, que
é de concluir por um erro notório na apreciação da prova, sempre que, para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo Tribunal, nisto se concretizando a limitação ao princípio da livre apreciação da prova estipulada no artigo 127º do CPP, quando afirma que a prova é apreciada segundo as regras da experiência.
Percorrida a decisão, não se vislumbram os vícios do artigo 410º do CPP. Na decisão estão explanados os factos que conduziram à decisão e a possibilitaram, não há qualquer contradição na fundamentação, nem tão pouco é notório qualquer erro na apreciação da prova. Nos factos provados e não provados nenhuma insuficiência se detecta.
Por outro lado, não há nenhuma contradição na matéria de facto, entre a matéria de facto e a respectiva motivação ou a qualificação jurídica dada.
Concluindo, não sendo procedente a impugnação da matéria de facto, não estando verificado nenhum dos vícios a que alude o n.º2 do artigo 410º, do CPP , entendemos terem os Mmos Juízes a quo feito correcta interpretação dos factos.
B.
Subsunção jurídica ao artigo 21º versus artigo 25º da lei 15/93 de 22.01;
O arguido BB conclui que as suas condutas, a terem sido praticadas, integram a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. no artigo 25º do dec. Lei 15/93 de 22.01, isto é, um tráfico de menor gravidade.
Nos termos do art.º 21º, n.º 1, do DL 15/93, de 22.01, “quem, sem para tal se encontrar autorizado, (...) oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder, ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art.º 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.
Porém, nos termos do art.º 25º, alínea a), do mesmo diploma legal, se nestes casos “a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações nas tabelas I a III (...)”.
Assim, “o crime de tráfico de menor gravidade do art.º 25º, alínea a), do DL 15/93, é uma forma privilegiada do crime do art.º 21º, (...) crime que tem como pressuposto específico a existência de uma considerável diminuição da ilicitude”, conforme se consignou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2000,
CJ
, Ano VIII, tomo I, pág. 190.
Além de que, “o crime de tráfico de estupefacientes é um crime de perigo abstracto, protector de diversos bens jurídicos pessoais, como a integridade física e a vida dos consumidores, mas em que o bem jurídico primariamente protegido é o da saúde pública. Ou, mais precisamente, «o escopo do legislador é evitar a degradação e a destruição de seres humanos, provocadas pelo consumo de estupefacientes, que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia. Assim, o tráfico põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes; e, demais, afecta a vida em sociedade, na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos »”, como se resume no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.10.2014, em texto integral em
wwwÁgsi.pt
.
Ora, no caso dos autos temos como provado que os arguido dispunham já de um nível médio de organização, isto é, tinham uma casa de “recuo”, na qual um deles, acompanhado de indivíduo não identificado, procedia ao embalamento, acondicioamento, pesagem e na qual guardavam droga, dinheiro e todo o manancial de objectos necessários à actividade de tráfico e o outro procedia a entrega da droga aos consumidores que os procurassem.
Possuíam embalagens de cocaína, heroína e haxixe, o que de qualquer modo, implicava terem já assegurado quem lhes fornecesse estes três tipos de droga, e tinham consigo quantia que já ascendia a mais de 800 euros, a qual foi detectada num só dia.
Assim, resulta indiscutível que a actuação dos arguidos integra a acção típica prevista no art.º 21º do DL 15/93, de 22.01 dado que não se detecta nenhuma diminuição considerável da ilicitude.
Bem andou o tribunal a quo em subsumir as condutas dos arguidos ao artigo 21º e não ao artigo 25º da Lei da droga.
C.
Medida das penas
Ambos os arguidos se insurgem contra as penas que lhes foram aplicadas, no caso, pena de quatro anos e dez meses de prisão, suspensa por igual período, sujeitas a regime de prova.
Na determinação da medida concreta da pena, o Tribunal deverá ter em atenção as funções de prevenção geral e especial das penas sem, contudo, perder de vista a culpa do agente (artigo 71º, nº 1 do Código Penal).
A medida da pena deverá constituir resposta às exigências de prevenção, tendo em conta na sua determinação certos fatores que, não fazendo parte do tipo legal de crime, tenham relevância para aquele efeito, estejam esses fatores previstos ou não na lei e sejam eles favoráveis ou desfavoráveis ao agente (artigo 71º, nº 2 do Código Penal).
Com efeito, hoje em dia, predominam as teorias relativas, as quais perspetivam as penas não como um fim em si mesmo (de retribuição ao agente do mal do crime – teorias absolutas), mas como um meio de prevenção criminal – prevenção geral positiva (de tutela da confiança na validade das normas, ligada à proteção de bens jurídicos, visando a restauração da paz jurídica) e de prevenção especial positiva de inserção ou reinserção social do agente, (Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, tomo I, 2ª ed., Coimbra Editora, 2007, p. 49 a 57).
São as considerações de prevenção geral que justificam que se fale de uma moldura da pena, cujo limite máximo corresponderá ao ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, a pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas.
O limite mínimo da moldura corresponderá ao mínimo da pena que, em concreto, ainda protege com eficácia os bens jurídicos tutelados, o mínimo imprescindível a assegurar as expectativas de proteção da comunidade. A culpa funcionará como pressuposto e limite máximo inultrapassável da medida da pena, nos termos do disposto no artigo 40º, nº 2 do Código Penal – é o Princípio da Culpa, fundado nas exigências irrenunciáveis de respeito pela dignidade da pessoa humana (artigos 1º e 25º da Constituição).
Para além disso, a pena, na sua execução, deverá sempre ter um carácter socializador e pedagógico (artigo 40º, 1, in fine do Código Penal).
Retomando o caso dos autos, podemos verificar, face à fundamentação da escolha e fixação da pena concretas aplicadas aos recorrentes por parte do Tribunal recorrido que foram devidamente ponderados os princípios que deverão presidir a essa decisão.
Na verdade, atendeu o Tribunal a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime pelo qual foram condenados, depunham a seu favor e contra si, nomeadamente o seu dolo direto, o grau de ilicitude, e ao facto ainda de não terem antecedentes criminais anteriores a prática do crime, e ao grau de inserção na sociedade, tudo aliás de acordo com o disposto no artigo 71º do CP.
Ora, atentas as molduras penais abstratamente aplicáveis ao crime pelo qual os recorrentes foram condenados, podemos concluir que as mesmas estão muito próximas do limite mínimo.
Entendemos, e disso já demos conta noutras decisões proferidas, que a fixação da medida concreta da pena envolve para o juiz, escreve Jesheck , in Derecho Penal , pág. 1192 , Vol. II , uma certa margem de liberdade individual , não podendo , no entanto , esquecer-se que ela é, e nem podia deixar de o ser , estruturalmente aplicação do direito , devendo ter-se em apreço a culpabilidade do agente e os efeitos da pena sobre a sociedade e na vida do delinquente , por força do que dispõe o art.º 40.º n.º 1 , do CP.
Em nosso entendimento, o Tribunal de recurso deverá sindicar o quantum da pena, e a sua natureza, tendo em atenção os critérios de determinação utilizados pelo Tribunal recorrido, e a fundamentação de todo o processo cognitivo que foi seguido, intervindo, no sentido da alteração se se revelarem falhas que possam influenciar essa mesma determinação ou se a mesma se revelar manifestamente desproporcionada.
Assim, a regra a seguir por este Tribunal de recurso, deverá ser sempre pautada pelo princípio da mínima intervenção, sendo todo o processo lógico de determinação da pena exata aplicada aferido em sede de recurso, e, caso seja insuficiente ou desajustado, alterado de acordo com o circunstancialismo factual assente, caso contrário, deverá ser mantido e consequentemente a pena concreta assim fixada.
Na verdade, revela a fundamentação do acórdão dado a recurso, que foi feita a ponderação das necessidades de prevenção geral e especial, foi tida em conta que a ilicitude mediana, que os arguidos actuaram com dolo directo, a atuação anterior e posterior ao crime, a ausência de antecedentes criminais, e a própria personalidade dos agentes, pelo que se considera que as penas aplicadas são ajustadas e equilibradas, nada havendo a censurar à decisão.
3. Decisão:
Assim, e pelo exposto, julgam-se não providos os recursos interpostos pelos arguidos, mantendo na íntegra a decisão recorrida.
Notifique.
Custas pelos arguidos que se fixam em 4 UCS cada um.
Lisboa, 18 de Junho de 2025
Cristina Isabel Henriques
Maria da Graça dos Santos Silva
Francisco Henriques
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/72fa6b4f5e73f3a880258cb90052be86?OpenDocument
|
1,741,824,000,000
| null |
976/23.0T8TNV.E1
|
976/23.0T8TNV.E1
|
VÍTOR SEQUINHO DOS SANTOS
|
Não existe fundamento jurídico para condenar as recorridas no pagamento, à recorrente, de qualquer quantia como contrapartida pelo facto de esta ter pernoitado temporariamente em casa daquelas e aí se ter deslocado, durante o mesmo período, para verificar como a recorrida se encontrava. A recorrente alegou a celebração de um contrato oneroso de prestação de serviços, mas não conseguiu provar essa celebração.
|
[
"IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO",
"REQUISITOS",
"PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS"
] |
Processo n.º 976/23.0T8TNV.E1
Autora/recorrente: (…).
Rés/recorridas: (…); (…).
Pedido: Condenação das rés a pagarem, à autora, uma remuneração horária, à razão de € 8,00 x 16 horas diárias x 50 dias, cujo montante total é de € 6.400,00, bem como juros de mora vencidos e vincendos, a contar da citação até efectivo e integral pagamento.
Sentença recorrida: Julgou a acção improcedente, absolvendo as rés do pedido.
Conclusões do recurso:
1 – Deve ser alterada a convicção do tribunal
a quo
, as declarações de parte da recorrente e os depoimentos das testemunhas arroladas, apesar de não estarem familiarizados com os tribunais por ter sido a primeira vez que o fizeram foram claramente isentos e assertivos, ao contrário do que foi vertido na sentença posta em crise.
2 – O doc. 2 junto aos autos não foi tido em conta para a boa decisão da causa o qual é perfeitamente esclarecedor dos dias trabalhados e dos montantes que foram acordados pelas partes para pagamento dos serviços prestados.
3 – Como já reflectido supra, os factos que foram dados como não provados distorcem completamente a realidade, basta ouvir as declarações de parte de recorrente, para se chegar a conclusão diversa.
4 – Não há motivo ou razão que justifique a descaracterização/falta de credibilidade que o tribunal
a quo
fez, das declarações de parte da recorrente e do testemunho do seu actual companheiro, que foram sérios, isentos e assertivos.
5 – A recorrente e o seu companheiro são pessoas de escolaridade baixa, vivem no meio rural, são de idade avançada e pouco comunicativas, sentindo-se, claro está, retraídas perante figuras desconhecidas e imponentes numa sala de tribunal.
6 – Razão pela qual, deveria ter sido pelo tribunal
a quo
tido em consideração que a postura que este refere de
«rígida e tensa»
, se deve precisamente ao facto de se encontrarem envoltas num ambiente que não conhecem e ainda que foi a primeira vez que entraram num tribunal.
7 – E, mais devido a falta da recorrente, convocada para prestar declarações, não foi possível ao tribunal aferir do comportamento da recorrida que faltou à audiência de julgamento duas vezes.
8 – Não pode assim aferir da sua postura e de como reagiria com as perguntas colocadas na mesma medida que aconteceu com as declarações da recorrente e como tal ser levado também em conta para a boa decisão da causa.
9 – Além disso, o facto de a recorrida (…) não ter comparecido à audiência final, tendo tornado impossível o seu depoimento de parte, não é menos verdade que isso não impediu a recorrente de fazer prova dos serviços realizados em benefício da parte faltosa.
10 – A recorrente não deve favores as recorridas e não lhe prestou serviços a fazer refeições e a dormir em casa delas foram do seu conforto, sem partilhar cama com o seu companheiro, simplesmente
pro bono
, ambas as recorridas de início prometeram pagar e não o fizeram.
11 – Provado ficou que a recorrente prestou aqueles serviços naqueles dias e naquelas horas indicadas no documento junto aos autos.
12 – Senão vejamos, o tribunal
a quo
deu como provado que a recorrida (…) tem dificuldades de locomoção, não elencando o porquê dessas dificuldades, apenas que se prendem com o facto de ser uma pessoa idosa.
13 – Tal factualidade, tendo sido provada, prova por consequência a razão da contratação da recorrente, motivo que a mesma elencou durante a sessão de discussão e julgamento, ou seja, que foi contratada por aquelas para exercer funções domésticas que aquela já não podia/conseguia realizar por via da idade avançada.
14 – A par dessa situação, o tribunal
a quo
considerou ainda como provado que a recorrida (…) esteve ausente da casa onde habita com a recorrida, ou seja, o tribunal
a quo
está até na sentença a contradizer-se, pois dá até como provados factos que determinariam a procedência da acção movida pela recorrente.
15 – Ademais, o tribunal
a quo
considera que não foi paga qualquer quantia à ora recorrente pelo período em que ela prestou serviços domésticos, o que é de facto realidade, mas depois absolve as recorridas.
16 – No entanto não se pode daí interpretar, o que incrivelmente o tribunal
a quo
fez, que o serviço que envolve cuidar de pessoa idosa, limpar a casa, arrumar, passar a ferro e cozinhar as refeições diárias tenha sido feito de forma gratuita, ultrapassando mesmo os limites do razoável, 50 dias de trabalho à razão de 16 horas diárias gratuito.
17 – Nessa conformidade, não se concede que tenham sido valorados e dados como provados alguns factos, mas não que os serviços domésticos foram de facto prestados e como tal é devida uma quantia pecuniária pela prestação dos mesmos.
18 – Note-se aliás que a recorrente havia acordado com a recorrida (…) os períodos de horário em que teria que estar a trabalhar e os quais coincidiam necessariamente com a hora das refeições e com o horário noturno.
19 – Tendo inclusive, conforme supra referido, que a recorrente pernoitava na casa da recorrida como forma de lhe prestar toda a assistência que pudesse ser necessária durante a noite, ficando encarregue de cuidar desta da melhor forma possível e dar-lhe o leite à noite.
20 – Só uma decisão descabida como foi a do tribunal
a quo
para considerar que a recorrente apenas visitava a recorrida, quando na realidade não a visitava, mas sim trabalhava com o objectivo de dali retirar proveitos do trabalho.
21 – Conforme já supra exposto, só numa visão muito distorcida se poderia admitir que a recorrente iria prestar os seus serviços de forma gratuita, perdendo o seu tempo, deixar o conforto da sua casa e de dormir junto do seu companheiro, para ir servir de ama seca aquela pessoa idosa, acamada e a quem não deve favores.
22 – Aceitou prestar aqueles serviços mediante um preço que foi falado entre as partes e aceite desde início, como firmou a recorrente e não foi desmentido por nenhuma das recorridas.
23 – Dito isso, o tribunal
a quo
deveria ter feito um juízo mais critico e assertivo de acordo com a prova que foi produzida e cuja gravação se encontra transcrita.
24 – Não se limitando a tribunal
a quo
a dar a maioria dos factos como não provados só porque, a postura da recorrente e da sua testemunha não ter agradado ao tribunal, que inclusivamente a intimidou dizendo que não estava a falar a verdade.
25 – Razão pela qual, não se concede e muito menos concorda com o juízo feito pelo tribunal
a quo
, que proferiu a sentença totalmente inadequada e injusta face à prova produzida nos autos.
Assim, nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis e sempre com o douto suprimento de V. Exas. deve ser dado provimento ao presente recurso, proferindo-se acórdão que revogue a sentença proferida pelo Juízo Local Cível de Torres Novas, condenando-se as recorridas ao pagamento da retribuição diária pela prestação de serviços domésticos realizados em seu benefício de acordo com o preço hora acordado e discriminado no documento junto aos autos que não foi impugnado.
Questões a decidir:
1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
2 – Direito da recorrente ao pagamento de uma remuneração por parte das recorridas.
Factos julgados provados pelo tribunal
a quo
:
1. A autora e as rés são vizinhas.
2. No passado, a autora cuidou dos cães das rés sem qualquer remuneração.
3. A ré (…) tem dificuldades de locomoção.
4. A ré I(…) esteve fora da casa onde habita com a ré (…), em datas e por período de tempo não concretamente apurados, situados no ano de 2023.
5. Durante o período referido em 4, a autora pernoitou na casa das rés.
6. Durante o período referido em 4, a autora ia, durante o dia, a casa das rés, pelo menos para verificar como a ré (…) estava.
7. As rés não pagaram qualquer quantia à autora pelo referido em 5 e 6.
Factos julgados não provados pelo tribunal
a quo
:
a) A autora, no exercício da sua actividade diária, presta serviços domésticos a terceiros, faz limpeza de condomínios e habitações particulares e cuida também de idosos, nas suas próprias habitações.
b) No dia 10.02.2023 a ré (…) e a autora combinaram entre si que a autora cuidaria da ré (…), mãe da ré (…) e pessoa de idade avançada, e procederia à limpeza e arrumação da casa, à preparação das refeições, lavaria a roupa e passaria a ferro na casa das rés.
c) Na altura referida em b), a ré (…) estava muito debilitada e tinha grandes dificuldades de locomoção.
d) A ré (…) e a autora combinaram que os serviços a prestar pela autora seriam realizados em dois períodos distintos do dia: duas horas durante o dia (entre as 9h00m e as 19h00m) e 14 horas no período noturno (desde as 19h00m e até às 9h00m do dia seguinte).
e) A autora e a ré (…) combinaram que esta pagaria à autora, pelos serviços referidos em b), o valor de € 8,00 à hora.
f) O valor referido em e) estava um pouco abaixo do valor de mercado.
g) A autora prestou os serviços referidos em b) e nos horários mencionados em d), ininterruptamente, desde o dia 10.02.2023 e até ao dia 17.02.2023.
h) Embora não tenha pago os serviços prestados no período referido em g), a ré (…) comprometeu-se perante a autora a pagar-lhe mais, uma vez que queria que continuasse a prestar tais serviços.
i) Alguns dias depois de 17.02.2023 a ré (…) voltou a contactar a autora e solicitou-lhe que voltasse a prestar os serviços domésticos referidos em b), nos horários e com as condições referidos em d) e e), o que a autora aceitou.
j) A autora prestou os serviços referidos em b) e nos horários mencionados em d), ininterruptamente, desde o dia 26.02.2023 e até ao dia 08.04.2023.
k) No período referido em j), a autora não foi contactada pela ré (…), não apareceu na casa da ré (…) e ficou incomunicável.
l) Antes do referido em 4 dos factos provados, a autora visitava a ré (…) diariamente.
m) A pernoita da autora em casa das rés, durante a ausência da ré (…), referida em 4 dos factos provados, foi sugerida pela própria autora que, sabendo que a ré (…) tinha necessidade de se deslocar a Leiria a fim de tratar assuntos pessoais, se prontificou a tal durante os dias em que aquela estivesse em Leiria.
n) A ré (…) é autónoma, executa algumas tarefas domésticas e confeciona refeições simples.
o) Durante o período referido em 4 dos factos provados, a autora e a ré (…) fizeram refeições juntas e a autora comeu e bebeu do que quis, na casa das rés.
*
1 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
A recorrente manifesta inconformismo relativamente à decisão proferida pelo tribunal
a quo
sobre a matéria de facto. Contudo, tal manifestação não é, por si só, suficiente para que o tribunal
ad quem
possa sindicar aquela decisão. Para tanto, a recorrente tem de cumprir os ónus estabelecidos no artigo 640.º do CPC. Vejamos se o fez.
O n.º 1 do artigo 640.º do CPC estabelece que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
A alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo estabelece que, no caso previsto na alínea b) do n.º 1, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
A recorrente não cumpriu qualquer dos ónus referidos.
Desde logo, nem no corpo das alegações, nem nas conclusões, a recorrente especifica os concretos pontos da matéria de facto, provada e/ou não provada, que considera terem sido incorrectamente julgados. Limita-se a exprimir o seu inconformismo acerca da globalidade da decisão sobre a matéria de facto, afirma que o tribunal
a quo
valorou mal a prova e cometeu
«muitos erros e grosseiros»
, insiste na versão factual que perante aquele sustentou, mas não passa disso. Deixou, assim, de cumprir o ónus estabelecido no artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC.
Também é evidente o incumprimento do ónus estabelecido no artigo 640.º, n.º 1, alínea c), do CPC. Este ónus cumpre-se através da especificação, relativamente a cada um dos concretos pontos da matéria de facto que se considera incorrectamente julgados, da decisão que se considera dever ser proferida. Por exemplo, especificando que o conteúdo do ponto 1 da matéria de facto provada deverá ser julgado não provado, que o conteúdo do ponto 2 da matéria de facto não provada deverá ser julgado provado, ou que a redacção do ponto 3 da matéria de facto provada deverá deixar de ser x e deverá passar a ser y. É este o sentido da exigência, enfatizada pelo n.º 1 do artigo 640.º do CPC, de que o recorrente
especifique
os
concretos
pontos de facto que considera incorrectamente julgados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as
concretas
questões de facto impugnadas. É evidente o propósito legal de afastar a admissibilidade de impugnações genéricas da decisão sobre a matéria de facto, que implicariam a realização de um novo julgamento da globalidade da matéria de facto pelo tribunal
ad quem
. Não foi esse o modelo de recurso da decisão sobre a matéria de facto que o legislador pretendeu.
No que concerne ao ónus estabelecido pelos n.ºs 1, alínea b), e 2, alínea a), do artigo 640.º do CPC, poderia parecer, numa primeira abordagem, que a recorrente o cumpriu, ao menos em alguma medida, porquanto, nas suas alegações, transcreveu parcialmente o seu depoimento de parte e fez uma súmula dos depoimentos das testemunhas (…), (…) e (…). Porém, não é assim.
A parte final da alínea a) do n.º 2 do artigo 640.º do CPC permite que, em vez da indicação, com exactidão, das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, o recorrente proceda à transcrição dos excertos que considere relevantes. Não permite, todavia, que o recorrente substitua aquela indicação por uma súmula, feita por si, de um ou mais depoimentos. Tal súmula mais não é que um conjunto de apontamentos, tomados, em princípio, pelo seu advogado, sobre o conteúdo dos referidos depoimentos, cuja correspondência com estes não oferece qualquer fiabilidade. Sendo assim, a súmula dos depoimentos das testemunhas (…), (…) e (…) não tem qualquer valor.
A transcrição parcial do depoimento de parte da recorrente também não cumpre o ónus previsto nos n.ºs 1, alínea b) e 2, alínea a), do artigo 640.º do CPC, pela singela razão de que tal cumprimento pressupõe o do ónus previsto na alínea a) do n.º 1. A alínea a) exige a especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados e a alínea b) exige a especificação dos concretos meios probatórios que impunham decisão sobre
os pontos da matéria de facto impugnados
diversa da recorrida. Da articulação destas duas normas resulta que a especificação dos meios probatórios referidos na alínea b) deve reportar-se a cada um dos concretos pontos referidos na alínea a). Ou seja, constitui ónus do recorrente indicar os concretos meios probatórios respeitantes a cada ponto da matéria de facto ou, eventualmente, a cada conjunto de pontos da matéria de facto entre si relacionados, desde que, nesta última hipótese, não seja desvirtuada a exigência legal de especificação.
A recorrente não procedeu nestes termos. Nem poderia fazê-lo, dado não ter procedido à especificação exigida pela alínea a) do n.º 1. A recorrente transcreveu partes significativas do seu depoimento de parte, mas sem reporte a qualquer ponto específico da matéria de facto. Em vez disso, limitou-se a anunciar, genericamente, que,
«para complementar e fazer prova de que a decisão tomada está errada, vamos analisar as declarações de parte da recorrente e os depoimentos das duas testemunhas que se passam a transcrever»
. Em seguida, transcreveu parcialmente o seu depoimento de parte e fez uma súmula dos depoimentos das testemunhas anteriormente referidas, sem mais. Ou seja, precisamente o contrário daquilo que as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC exigem que o recorrente faça.
Nos termos em que a recorrente a fez, tal transcrição é inútil, pois não se percebe o que ela pretende, em concreto, demonstrar com cada um dos excertos do seu depoimento que daquela foram objecto.
Concluindo, a recorrente tinha o ónus de cumprir todas as exigências feitas pelo artigo 640.º do CPC e não cumpriu uma única. Em consequência, não poderá o tribunal
ad quem
proceder a qualquer alteração da decisão sobre a matéria de facto.
2 – Direito da recorrente ao pagamento de uma remuneração por parte das recorridas:
O recurso apenas poderia proceder se a decisão sobre a matéria de facto sofresse uma alteração profunda. Porém, pelas razões que referimos no ponto anterior, essa decisão deverá manter-se inalterada.
Sendo assim, apenas ficou provado, em resumo, que:
- As recorridas vivem na mesma casa e são vizinhas da recorrente;
- Durante um período em que a recorrida Isabel se ausentou, a recorrente pernoitou em casa das recorridas;
- No mesmo período, durante o dia, a recorrente deslocava-se a casa das recorridas, pelo menos para verificar como a recorrida Florinda, que tinha dificuldades de locomoção, se encontrava;
- As recorridas não pagaram qualquer quantia à recorrente.
Não ficou provado, nomeadamente que a recorrente e a recorrida (…) combinaram entre si que a primeira, mediante o pagamento de uma remuneração, cuidaria da recorrida (…) e procederia, em casa desta, à limpeza e arrumação, à preparação das refeições, à lavagem da roupa e à passagem de roupa a ferro.
Em face disto, tal como o tribunal
a quo
decidiu, não existe fundamento jurídico para condenar as recorridas no pagamento, à recorrente, de qualquer quantia como contrapartida pelo facto de esta ter pernoitado temporariamente em casa daquelas e aí se ter deslocado, durante o mesmo período, para verificar como a recorrida (…) se encontrava. A recorrente alegou a celebração de um contrato oneroso de prestação de serviços, mas não conseguiu provar essa celebração.
Consequentemente, deverá a sentença recorrida ser confirmada, improcedendo o recurso.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
13.03.2025
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
Cristina Dá Mesquita (1.ª adjunta)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário (2.ª adjunta)
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TRE
|
https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/8adf12fb169a956880258c5e00355844?OpenDocument
|
1,754,352,000,000
| null |
887/24.1T8OLH-A.E1
|
887/24.1T8OLH-A.E1
|
CRISTINA DÁ MESQUITA
|
O reclamante vem defender que
a decisão recorrida
(aquela que foi proferida pelo tribunal de primeira instância) é um verdadeiro despacho de indeferimento liminar, pelo que se trata de um caso em que, excepcionalmente, a lei estatui garantias de recorribilidade por irrelevância do valor da causa e do valor da sucumbência.
|
[
"RECLAMAÇÃO CONTRA DESPACHO QUE NÃO ADMITIR OU RETIVER RECURSO",
"LEGITIMIDADE PARA RECORRER"
] |
Relatora: Cristina Dá Mesquita
Adjuntas: Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:
(…), advogado e recorrente
nos autos, após ter sido notificado da
decisão singular proferida no dia 20 de março de 2025
que indeferiu a reclamação por ele deduzida e, em conformidade, manteve a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância que decidiu pela não admissão do recurso interposto pelo reclamante, veio requerer que sobre a matéria recaia acórdão.
Nos termos do disposto no artigo 652.º, n.º 2, do CPC, aplicável
ex vi
artigo 643.º, n.º 4, do mesmo diploma normativo, o relator deve submeter o caso à conferência, depois de ouvida a parte contrária.
Deste modo, e tendo a parte contrária exercido o contraditório, cumpre decidir.
A decisão singular reclamada tem o seguinte teor:
«
Do mérito da reclamação
Na presente reclamação está em causa o despacho do julgador a quo que não admitiu o recurso de apelação que o aqui reclamante interpôs da decisão proferida em 11 de dezembro de 2024, cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
«Em face do exposto, o Tribunal decide:
a) Julgar sem efeito os atos praticados pelo senhor dr. João Nabais, ilustre advogado nos presentes autos e, em consequência:
b) Indeferir liminarmente a petição inicial;
c) Condenar o ilustre advogado que subscreveu o requerimento inicial nas custas do processo.».
Como resulta do exposto supra o tribunal reclamado decidiu não admitir o recurso interposto pelo aqui reclamante.
O essencial da argumentação do tribunal reclamado está contido no seguinte trecho:
«O Requerente não é parte principal, nem acessória, na presente acção.
Por outro lado, apenas se pode afirmar que a decisão em crise prejudica directa e efectivamente o Recorrente na medida em que o condena nas custas do processo.
As custas do processo alcançarão, até ao momento, o valor de 6 unidades de conta, ou seja, € 612,00 – artigo 6.º, n.º 1 e Tabela I, linha 6, coluna A do Regulamento das Custas Processuais e artigo 296.º da Lei n.º 45-A/2024, de 31 de Dezembro.
Sucede que, em face de tal valor, não existe sucumbência para se admitir o recurso, por força do disposto no artigo 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Ou seja, a responsabilidade pelas custas seria o único critério a conferir legitimidade ao Recorrente para interpor o recurso.
Sucede que o valor de tal responsabilidade – € 612,00 –, que constitui o limite pelo qual a decisão prejudica directa e efectivamente o Recorrente, é substancialmente inferior a metade do valor da alçada dos tribunais de primeira instância».
Na sua reclamação, o reclamante argumenta que: a) o despacho reclamado admite que o recorrente tem legitimidade para recorrer, pelo menos porque foi direta e pessoalmente condenado em custas, b) a motivação do recurso apresentada «não pode ser seccionada (como parece ser feito no despacho ora reclamado)», e c) a sentença recorrida deixou bem claro que se verifica a exceção dilatória de falta de representação, a qual é de conhecimento oficioso e leva à extinção da instância, tendo o tribunal reclamado “olvidado” o disposto no artigo 629.º, n.º 2, alínea c), do CPC, segundo o qual o recurso de tal decisão (indeferimento liminar da petição inicial) é admissível independentemente do valor da causa e da sucumbência.
Liminarmente se dirá que não assiste razão ao reclamante.
O reclamante dr. (…) apresentou recurso em nome próprio da decisão proferida pelo tribunal reclamado em 11 de dezembro de 2024, anunciando logo no intróito do requerimento de recurso que o faz «por ser direta e efetivamente prejudicado» pela decisão, «não se conformando com o seu teor».
O julgador da primeira instância reconheceu legitimidade ao ora reclamante para recorrer da decisão proferida em 11 de dezembro de 2024 mas apenas quanto ao segmento decisório que condenou o recorrente nas custas do processo.
Diz o reclamante que a motivação do recurso «não pode ser seccionada», o que levaria a considerar que o reclamante teria também legitimidade para recorrer do segmento da decisão judicial que indeferiu liminarmente a petição inicial.
Contudo, sem razão, como resulta, desde logo, do disposto no artigo 635.º, n.º 2, do CPC, o qual dispõe o seguinte: «Se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é igualmente lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que recorre».
Ou seja, contendo a decisão segmentos decisórios autónomos e cindíveis, como sucede in casu, há que apreciar relativamente a cada um desses segmentos os pressupostos de recorribilidade, sendo possível que os mesmos só estejam reunidos em relação a algum ou alguns deles, caso em que os demais transitam em julgado, ou por não serem recorríveis ou por sobre eles não ter recaído recurso.
In casu caso não vem posto em causa que o reclamante/recorrente não é parte (principal ou acessória) da instância processual, pelo que a sua legitimidade recursória é aferida em face do disposto no artigo 631.º/2, do CPC. De acordo com este preceito legal o critério de aferição da legitimidade recursória é o “prejuízo direto e efetivo”. Como ensina Rui Pinto 1: «(…) por definição quem não é parte ou quem não é parte principal não participa na construção do objeto processual pois não deduz pedidos (a primeira) ou apenas participa como mero auxiliar, ou, quando muito, num âmbito objetivamente restrito (a segunda: ver artigo 321.º n.º 2 e 323.º n.º 1): só quem é parte principal pode vencer ou esperar-se que vença. Por isso, o legislador reservou o critério material para esses sujeitos dado ser irrelevante para o recurso o comportamento processual prévio desses sujeitos».
O “prejuízo direto e efetivo” tem de ser um prejuízo “real”, não um prejuízo reflexo, indireto ou até hipotético. A propósito da legitimidade para recorrer no que respeita a quem não é parte na instância processual, dizia, a propósito, Alberto dos Reis 2: «Como deve entender-se o requisito “prejuízo directo”? Em primeiro lugar é fora de dúvida que a expressão legal exclui o prejuízo indireto ou reflexo; em segundo lugar deve ter-se como certo que o prejuízo há-de ser actual e positivo: não é suficiente o prejuízo eventual, incerto ou longínquo».
No caso concreto, o recorrente/reclamante alegou na motivação do recurso por si apresentada, que «nos termos do artigo 48.º/2, do CPC a decisão aqui sob escrutínio até pode implicar que o recorrente possa vir a ser responsabilizado por prejuízos que, pela atuação que teve neste processo, possa ter causado. Para além de, naturalmente, considerando-se que atuou sem os devidos poderes de representação também poder importar eventual responsabilidade disciplinar perante a Ordem dos Advogados» (sic).
O que o recorrente/reclamante ali invocou foi que em face da decisão que indeferiu liminarmente a petição inicial com o fundamento de que a autora não se encontra devidamente representada pelo advogado (o ora reclamante) que subscreveu a petição inicial e que a falta de representação não foi validamente sanada, ele-apelante / reclamante poderia eventualmente vir a ser afetado por tal decisão no seu património, caso venha a ser responsabilizado por eventuais prejuízos causados pela sua conduta neste processo, ou pessoalmente, caso venha a ser instaurado contra si um processo disciplinar pela Ordem dos Advogados. Ou seja, o que o reclamante invoca são prejuízos “hipotéticos”, que não caiem na alçada do critério previsto no artigo 631.º/2, do CPC. Donde “prejuízo direto e efetivo” para o reclamante advém apenas da sua condenação em custas, ou seja, do segmento decisório que o condenou em custas, pelo que apenas relativamente a este tem o reclamante legitimidade recursória.
O reclamante não impugna o segmento do despacho reclamado onde se diz que «as custas no processo alcançarão, até ao momento, o valor de 6 unidades de conta, ou seja, € 612,00 (…)» e que «(…) em face de tal valor não existe sucumbência para se admitir o recurso, por força do disposto no artigo 629.º, n.º 1, do CPC». Isto é, o reclamante não põe em causa que a decisão que lhe é desfavorável e da qual está a recorrer não tem valor superior a metade da alçada do tribunal a quo. Por conseguinte, e não estando aqui em causa uma situação em que a lei, excecionalmente, estatui garantias de recorribilidade por irrelevância do valor da causa e do valor sucumbência, a decisão em causa não é irrecorrível por força do disposto no artigo 629.º, n.º 1, do CPC.
Resulta assim de todo o exposto que a reclamação não merece provimento.
DECISÃO
Em face do exposto, indefere-se a reclamação, mantendo-se a decisão proferida pelo tribunal reclamado de não admissão do recurso interposto pelo reclamante.
As custas são da responsabilidade do reclamante, atento o seu decaimento, embora a esse título apenas seja devido o pagamento de custas de parte porquanto o reclamante pagou a taxa de justiça devida pelo impulso processual.
Notifique.»
O reclamante vem defender que
a decisão recorrida
(aquela que foi proferida pelo tribunal de primeira instância) é um verdadeiro despacho de indeferimento liminar, pelo que se trata de um caso em que, excecionalmente, a lei estatui garantias de recorribilidade por irrelevância do valor da causa e do valor da sucumbência; aduz que a condenação em custas – da qual diz ter recorrido – está «intrinsecamente ligada ao prosseguimento dos autos, porque a condenação em custas, pessoal e diretamente sofrida pelo recorrente,
só é reversível
se se considerar que, ao invés do que entendeu o tribunal recorrido, tinha poderes para representar a requerente e, em seu nome, deduzir e apresentar em juízo a petição inicial»; finaliza, dizendo que a falta de regularização do pressuposto processual do patrocínio judiciário é suscetível de se repercutir na esfera jurídica da parte e do próprio advogado e que este último deve ter a possibilidade de exercer o contraditório quanto à suposta irregularidade do exercício do patrocínio judiciário.
Apreciando.
Como ponto prévio diremos que aquilo que está em causa e que foi objeto de decisão singular foi a
legitimidade
recursória do reclamante (que é um pressuposto especial subjetivo) e não a
recorribilidade
da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, donde irreleva para o caso concreto o disposto no artigo 629.º, n.º 3, alínea c), do CPC, o qual se refere à irrelevância do valor da causa e da sucumbência na situação ali prevista.
A decisão recorrida proferida pelo tribunal de primeira instância e que foi objeto de recurso (não admitido) contém,
para além do segmento em que fixa o valor da causa
, os seguintes segmentos decisórios: i.
julga sem efeito os atos praticados nos autos, pelo sr. dr. (…)
; ii.
indefere liminarmente a petição inicial
; e iii. condena o advogado que subscreveu o requerimento inicial nas custas do processo.
Resulta da fundamentação da decisão recorrida que o tribunal
a quo
julgou que o sr. advogado que subscreveu a petição inicial
não demonstrou estar munido de efetivos poderes de representação forense da sociedade autora
,
porque o subscritor da procuração que aquele juntou aos autos não tem poderes atuais de vincular e de constituir representantes da sociedade autora.
A condenação em custas do sr. advogado, ora reclamante e recorrente
fundou-se
no disposto no artigo 48.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o qual, epigrafado
Falta, insuficiência e irregularidade do mandato
, dispõe o seguinte:
«O juiz fixa o prazo dentro do qual deve ser suprida a falta ou corrigido o vício e ratificado o processado, findo o qual, sem que esteja regularizada a situação,
fica sem efeito tudo o que tiver sido praticado pelo mandatário
,
devendo este ser condenado nas custas respetivas
e, se tiver agido culposamente, na indemnização dos prejuízos a que tenha dado causa».
Resulta de tal preceito legal que a falta de regularização do pressuposto processual do patrocínio judiciário com a subsequente declaração de invalidade dos atos praticados pelo advogado é sancionada,
no que ao advogado respeita
, com sua condenação em custas e, tendo agido com culpa, com o pagamento de uma indemnização. A
condenação do mandatário nas custas está, por conseguinte, correlacionada com o facto de terem sido dados sem efeito os atos por ele praticados (o que, por sua vez, resulta da falta de suprimento, pela parte, da falta de procuração, ou da insuficiência/irregularidade da mesma).
O artigo 631.º, n.ºs 1 e 2, do CPC fornece os critérios
de aferição da legitimidade para recorrer. Aquele preceito legal distingue entre “
parte”
e “
terceiro”
, ou seja, entre
os titulares da relação jurídica processual
a que respeita a decisão
e os não titulares
. Assim, relativamente às “
partes”
(principais) o artigo 631.º, n.º 1, estabelece o
critério do vencimento
para determinar se a parte pode, ou não, recorrer; no que respeita a “
terceiros”
, o critério de aferição da legitimidade para recorrer é o do “prejuízo direto e efetivo” (artigo 631.º, n.º 2, do CPC)
[1]
.
Como se assinalou na decisão singular reclamada,
o “prejuízo direto e efetivo” tem de ser um prejuízo “real”. Ali se citou o ensinamento do professor Alberto dos Reis
[2]
, que dizia o seguinte:
«Como deve entender-se o requisito “prejuízo directo”? Em primeiro lugar é fora de dúvida que a expressão legal
exclui o prejuízo indireto ou reflexo
; em segundo lugar deve ter-se como certo que o prejuízo há-de ser actual e positivo:
não é suficiente o prejuízo eventual, incerto ou longínquo
»
(negritos nossos).
No caso não é controvertido que o recorrente não é titular da relação jurídica processual, donde o critério de aferição de legitimidade quanto a ele é o «prejuízo direto e efetivo». Esse prejuízo
direto e efetivo
é a sua condenação nas custas do processo
em resultado de terem sido considerados sem efeito os atos por ele praticados no processo
. Donde, tal condenação não se poder dissociar daquele facto –
terem sido dados sem efeito os atos por ele praticados no processo
– e, assim sendo, o recorrente tem legitimidade para recorrer do segmento decisório
no qual se funda a sua condenação em custas
, ou seja, do segmento decisório que declarou sem efeito os atos por ele praticados por falta de poderes forenses e indeferiu liminarmente o requerimento inicial.
Por todo o exposto, a decisão singular reclamada deve ser substituída por outra que admita o recurso e ordene a requisição do processo principal ao tribunal de primeira instância, em conformidade com o disposto no artigo 643.º, n.º 6, do CPC.
DECISÃO
Em face do exposto, acordam em deferir a presente reclamação, revogando a decisão singular reclamada e, em conformidade, ordenam a requisição do processo principal ao tribunal de primeira instância.
As custas são da responsabilidade da reclamada, porque ficou vencida, sendo que a este título apenas são devidas custas de parte, uma vez que a reclamada/apelada já procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pela resposta à reclamação.
Notifique.
Évora, 8 de maio de 2025
Cristina Dá Mesquita
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
____________________________________________
[1] Dispõe este normativo legal que «As pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias».
[2] Código de Processo Civil Anotado, Volume V, 3.ª Edição, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 272.
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/a3171e1787d622c680258ca0002bd0dc?OpenDocument
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1,756,944,000,000
| null |
444/24.2GFLLE-B.E1
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444/24.2GFLLE-B.E1
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JORGE ANTUNES
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A fundamentação da decisão de reexame, quando não haja qualquer alteração das circunstâncias desde a última decisão, satisfaz-se com a remissão para os fundamentos, de facto e de direito, do despacho que aplicou a medida de coação ou que a manteve.
Não ocorre qualquer falta de fundamentação no despacho proferido em 17.12.2024 – tratando-se de despacho sobre a possibilidade de alteração do regime coativo, o dever de fundamentação mostra-se cumprido com a indicação concreta de que “(…)Não ocorreram quaisquer alterações nos pressupostos de facto e de direito que determinaram a prolação do despacho que decretou a prisão preventiva do arguido, em ordem a atenuar ou eliminar os fundamentos de perigo de fuga, continuação da atividade criminosa e para a aquisição e conservação ou veracidade da prova, uma vez que os elementos indiciários entretanto recolhidos não infirmam os fundamentos daquela decisão.
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[
"PRISÃO PREVENTIVA",
"DECISÃO DE REEXAME",
"FUNDAMENTAÇÃO"
] |
Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
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I – RELATÓRIO
1. No Inquérito n.º 444/24.2GFLLE, que corre termos nos Serviços do Ministério Público da Procuradoria da Comarca de … – Departamento de Investigação e Acção Penal – … ª Secção de …, após primeiro interrogatório judicial de arguidos detidos, foi proferido despacho judicial de aplicação de medidas de coação, no qual a Mma. Juíza de Instrução do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo de Instrução Criminal de … – Juiz …, decidiu aplicar aos arguidos AA e BB, com os demais sinais dos autos, a medida de prisão preventiva, por terem sido considerados fortemente indiciados da prática, em coautoria material, de dois crimes de roubo agravados, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.os 1 e 2, alínea b), por referência ao artigo 204.º, n.º 2, alínea a), ambos do Código Penal.
2. Inconformados com esse despacho, os sobreditos arguidos interpuseram recurso peticionando que a medida de coação de prisão preventiva aplicada fosse revogada e que os mesmos ficassem apenas sujeitos a termo de identidade e residência.
3. Tal recurso subiu a este Tribunal da Relação de Évora e foi julgado improcedente por Acórdão proferido em 16 de dezembro de 2024 – cfr. decisão proferida no apenso de recurso nº 444/24.2GFLLE-A.E1.
4. Por despacho judicial proferido no Processo de Inquérito nº 444/24.2GFLLE no dia 17 de dezembro de 2024 foi reexaminado o estatuto coativo dos arguidos sujeitos a prisão preventiva, nos termos do disposto no artigo 213º do Código de Processo Penal, tendo sido mantida essa medida de coação, com os seguintes fundamentos:
“Da revisão do estatuto coativo:
Nos presentes autos, por decisão de 18 de setembro de 2024, foi determinado que o arguido AA e o arguido BB aguardassem os ulteriores termos sujeitos à medida de coação de prisão preventiva, nos termos do disposto nos artigos 191.º, 192.º, 193.º 194.º, 195.º, 202.º e 204.º do Código de Processo Penal., por se encontrarem indiciados pela prática de dois crimes de roubo, agravados, previstos pelos artigos 210.º, n.º 1 e 2 da alínea b) do Código Penal.
Tal medida de coação foi ordenada atentos os fundamentos de facto e de direito constantes do despacho supra identificado, para os quais se remete e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, designadamente atento o perigo de fuga, de continuação da atividade criminosa, o perigo de aquisição e manutenção da veracidade da prova e de perturbação do inquérito bem como o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade pública.
Consigna-se que não se encontra ainda esgotado o prazo de duração máxima da medida de coacção de prisão preventiva (artigo 215.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código de Processo Penal).
Sem prescindir, não se entende ser necessário, nesta fase, proceder à audição dos arguidos, desde logo, porque não há qualquer alteração ao quadro fáctico verificado e apresentado em sede de primeiro interrogatório que, de alguma forma, atenuassem as exigências cautelares que estiveram subjacentes à aplicação aos arguidos da medida de coacção mais gravosa.
Assim, inexistindo qualquer alteração, em termos atenuativos, das circunstâncias que fundamentaram a aplicação aos arguidos da medida de coacção de prisão preventiva, decide-se que AA e BB devem permanecer preventivamente presos– cfr. artigos 204.º e 213.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal.
Notifique.
Comunique ao TEP.”.
5. Notificados do despacho proferido em 17.12.2024, vieram os arguidos apresentar requerimento em 2 de janeiro de 2025, a arguir a nulidade daquele despacho por omissão de pronúncia, nos seguintes termos:
AA e BB, arguidos melhor identificados nos autos, tendo sido notificados do despacho que manteve a medida de coação de prisão preventiva dos arguidos, vêm arguir a irregularidade daquele Despacho por omissão de pronuncia, nos termos do art. 123º do CPP e com os seguintes fundamentos:
Como sabemos, a omissão de pronúncia a que se refere artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal constitui uma nulidade da sentença e quanto a estas nulidades não existe norma de conteúdo idêntico à do n.º 3 do artigo 380.º do mesmo código.
Não sendo a decisão de manutenção da medida de coacção uma sentença, a eventual omissão de pronúncia de que tal despacho padeça tem que ser decidida à luz do princípio geral enunciado no n.º 4 do artigo 97.º do Código de Processo Penal.
O que a lei exige no n.º 4 do artigo 97.º do Código de Processo Penal é que o juiz indique, de forma compreensível, os factos e o direito relevantes para o que decidiu, relativamente à questão concreta apreciada no acto decisório, sendo esta questão concreta que deve ser objecto do seu [do juiz] discurso argumentativo, sob pena de irregularidade, sujeita ao regime do artigo 123.º do mesmo código, arguível no prazo de três dias previsto no seu n.º 1, sob pena de sanação.
Motivo pelo qual os arguidos vêm, aqui, arguir a irregularidade do despacho que os manteve em prisão preventiva com a fundamentação cliché de que “inexistiu qualquer alteração” apesar das muitas diligências investigatórias realizadas desde da aplicação da MC de PP até à presente data e sem que nada se dissesse quanto a elas no despacho agora impugnado.
Fazendo-o os arguidos no 2º dia após o prazo, juntam o comprovativo de pagamento da respetiva multa.
Como sabemos, também, as medidas de coacção visam assegurar as exigências processuais de natureza cautelar, devendo ser, em concreto, necessárias e adequadas a tais exigências e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas (artigos 191.º, n.º 1, e 193.º, n.º 1) e tendo, necessariamente, natureza temporária.
Sabemos, ainda, que depois de decretada e transitada a respectiva decisão, a medida de coacção fica sujeita à cláusula rebus sic stantibus, o que vale dizer que só pode ser revogada se tiver sido aplicada fora das hipóteses ou das condições previstas na lei, ou se tiverem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação, e que só pode ser substituída por outra medida, menos grave, se e quando tenha ocorrido uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação, nos termos do n.º 3 do artigo 212.º do Código de Processo Penal.
Que é precisamente isso que entendem os arguidos ter acontecido através das diligências de inquérito determinadas e realizadas após a aplicação da PP aos arguidos, até por requerimento dos próprios arguidos ou da sua sujeição, voluntária, a tais diligências probatórias, a saber:
1. testemunhas ouvidas após a aplicação da MC de prisão preventiva, nomeadamente a inquirição das testemunhas CC e DD,
2. informação prestada pelo Hotel …
3. informações prestadas pela Companhia aérea ….
4. Resultado das perícias efectuadas nos presentes autos a que o MP fez referência no seu Despacho … de 26/11/2024.
5. Perícia efectuada ao ADN encontrado na garrafa de água apreendida nos presentes autos e a comparação deste com o ADN extraído aos arguidos através da Zaragatoa bocal a que os mesmos, voluntariamente, se sujeitaram no passado dia 16 de dezembro de 2024.
Sobre tais meios de prova que constam dos autos o despacho que manteve a prisão preventiva dos arguidos nada diz, nenhuma referência é feita a tais meios de prova recolhidos em inquérito após a aplicação da MC de PP aos arguidos e de que forma os mesmos infirmam ou mantém a forte indiciação dos factos que lhe são imputados na decisão que lhes aplicou ab início a prisão preventiva. O despacho que manteve a PP dos arguidos actuou como se os mesmos não existissem!
Nestes termos e nos melhores de direito deve o Despacho que manteve a PP dos arguidos ser revogado e substituído por outro no qual seja analisada a prova trazida aos autos após a aplicação da MC de PP, requerendo-se a este Tribunal que explicite, de forma clara e lógica, em que medida tais meios de prova fundamentam ou não uma alteração da forte indicação verificada na decisão que aplicou tal MC e o seu relevo na reconfiguração dos perigos a que alude o artigo 204.º do Código de Processo Penal.
O Tribunal tem a obrigação, sob pena de omissão de pronuncia e de fundamentação, de no despacho de reavaliação dos pressupostos da manutenção da PP, de avaliar as circunstâncias novas que foram trazidas, entretanto ao processo e de reavaliar a manutenção ou não da forte indicação dos factos que constam da decisão que aplicou a PP, assenta sempre num juízo de probabilidade de verificação de uma situação futura que altera as exigências cautelares até então existentes.
E esse juízo nunca pode ser feito em termos abstratos, antes terá de assentar em factos concretos, existentes nos autos à data da respetiva ponderação, donde se possa concluir, como séria, a probabilidade de ocorrência de um facto futuro que coloque em causa a adequação e proporcionalidade da medida de coação pré-existente, enquanto garante das exigências cautelares, aplicáveis no caso em apreço.
Nada disto foi feito no despacho a que nos referimos. O Despacho agora em crise nada mais é do que um despacho matriz que nada diz em concreto sobre as novas provas que, entretanto, foram recolhidas em sede de inquérito e que, sem dúvida, alguma depauperam a conclusão de forte indiciação a que se chegou na decisão que aplicou a medida de coação de prisão preventiva aplicada aos arguido a 18 de setembro de 2024, até porque tais novos elementos de prova demonstram que os arguidos à data dos factos em causa nos presentes autos encontravam-se noutro local, noutro pais”.
6. Sobre esse requerimento de arguição de nulidade recaiu, após promoção do Ministério Público, o seguinte despacho judicial, proferido em 8 de janeiro de 2025:
“Vêm os arguidos AA e BB arguir a irregularidade do despacho que procede ao reexame das medidas de coação que lhe foram aplicadas por falta de fundamentação no que toca à apreciação das diligências investigatórias realizadas desde a aplicação da medida de coação de Prisão Preventiva.
Foi dado o contraditório ao Digno Magistrado do Ministério Público tendo o mesmo promovido o indeferimento do requerido dado que inexiste qualquer invalidade do despacho proferido a 17.12.2024.
Cumpre decidir.
Com efeito, nos termos do artº 97º nº 5 CPP, “os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”. A exigência de fundamentação das «decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente» constitui aliás imposição constitucional - artº 205º nº 1 da CRP.
Sem prescindir, também é certo que a apreciação do reexame dos pressupostos da prisão preventiva é um ato judicial decisório que, como tal, tem de ser fundamentado. Contudo, como tem sido entendido de forma unânime pela jurisprudência e pela doutrina, as exigências de fundamentação do despacho que procede ao reexame da aludida medida de coação são menores que as exigíveis ao despacho que as aplicou, sobretudo quando não se verificaram alterações relativamente aos factos que fundaram os pressupostos da aplicação da medida em causa.
Com efeito, destinando-se o despacho apenas a proceder à reapreciação dos pressupostos constantes do despacho que anteriormente determinou a aplicação da medida de coação e que a justificaram, a sua fundamentação tem apenas por objeto a análise de circunstâncias supervenientes cuja ocorrência possa abalar a sustentabilidade dos pressupostos que conduziram à aplicação daquela medida de coação, alterando-os e, por essa via, levando à sua substituição ou revogação.
Ora, no caso concreto e conforme foi referido no despacho proferido a 17.12.2024 entendemos que inexistiu qualquer alteração ao quadro fático verificado e apresentado em sede de primeiro interrogatório que, de alguma forma, atenuasse as exigências cautelares que estiveram subjacentes à aplicação aos arguidos da medida de coação mais gravosa. E, a tal conclusão se chegou face à investigação realizada até ao momento e bem espelhada na promoção proferida a 16.12.2024 pela Digna titular do presente inquérito, a qual se passa a transcrever: « pese embora os arguidos invoquem que não se encontravam em território nacional, pelo menos no dia 25/07/2024, e as testemunhas DD e CC tenham declarado que se encontravam com os mesmos, em período de férias, não consideramos tais declarações credíveis. Verifica-se que as testemunhas alegam ser companheiras dos arguidos, o que sempre revela um interesse directo em confirmar as versões daqueles, ao que acresce que a documentação fornecida pelas mesmas se tratam de meras cópias.
Por outro lado, verifica-se que ambos os arguidos foram presencialmente reconhecidos e que existem imagens de videovigilância nas quais é visivelmente identificado o arguido BB, em território nacional, no dia 23/08/2024, o que coloca em crise as declarações prestadas quer pelos arguidos, quer pelas testemunhas acima referidas.»
Ora, louvando-nos na apreciação imediata de quem presidiu às inquirições das citadas testemunhas e na prova documental junta aos autos conclui-se que, até ao momento, não existe qualquer alteração factual ao quadro apresentado aquando do interrogatório judicial e consequentemente não houve qualquer atenuação dos perigos que estiveram subjacentes na decisão de aplicar a medida de coação de prisão preventiva.
Assim, tendo-se concluído que inexistiram quaisquer alterações consideramos um ato inútil “copiar” o despacho que aplicou a medida de coação e descrever a investigação realizada até ao momento. Nestes casos, salvo melhor opinião, tal despacho basta-se em declarar apenas que não se mostram alteradas as circunstâncias de facto e de direito que determinaram a aplicação daquela medida de coação.
No mesmo sentido, Cons. Maia Costa ( In Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar e outros, 3ª ed., 2021, pág. 829) refere que: “A fundamentação da decisão de reexame, quando não haja nenhuma alteração das circunstâncias desde a última decisão, satisfaz-se com a remissão para os fundamentos, de facto e de direito, do despacho que aplicou a medida de coação ou que a manteve”.
Pelo exposto, consideramos que inexiste qualquer irregularidade do despacho proferido a 17.12.2024, sendo de o manter na integra.
Notifique”.
7. Inconformados com os despachos judiciais proferidos em 17 de dezembro de 2024 e 8 de janeiro de 2025 (despacho de manutenção da medida de coação de prisão preventiva e despacho de indeferimento da arguição de irregularidade daquele despacho), os arguidos AA e BB interpuseram o presente recurso, peticionando a revogação dos referidos despachos e da medida de coação de prisão preventiva a que se acham sujeitos. Da motivação do recurso extrairam as seguintes conclusões (transcrição):
“1. Objecto do presente recurso: Despacho proferido no passado dia 17 de dezembro de 2024 com a ref. … e, ainda, o despacho do dia 8 de janeiro de 2025, através dos quais – o segundo em complemento do primeiro - foi decidido manter os arguidos ora recorrentes sujeitos à MC de Prisão Preventiva,
2. Aos Recorrentes foi-lhes aplicada, a 17 de setembro de 2024, a MC de prisão preventiva, por se ter entendido que os autos indiciavam fortemente, a prática pelos recorrentes, de dois crimes de roubo agravado P. e P. pelos art. 210º, nº 1 e 2 alínea a) do CP e por se ter entendido, ainda, que se verificavam – em concreto - os perigos de fuga, perigo de continuação da actividade criminosa e, ainda, o perigo de perturbação da ordem e tranquilidades públicas.
3. Foram levadas a cabo, após a prisão preventiva dos recorrentes, várias diligências probatórias, algumas delas até a pedido dos recorrentes que sempre afirmaram não terem sido os autores dos factos e que à data dos mesmos, encontravam-se de férias fora de Portugal.
4. Desde então, os arguidos juntaram prova testemunhal e documental, requereram a realização de diligências investigatórias e até se submeteram a exame pericial para provarem a sua inocência.
5. Decorridos três meses desde a aplicação dessa medida de coacção, houve lugar ao reexame dos pressupostos subjacentes à mesma, em cumprimento do disposto no artigo 213.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal,
6. Tendo concluído o Tribunal recorrido que inexistia quaisquer elementos no processo que tornassem necessária a prévia audição dos arguidos, que não se encontravam esgotados os prazos máximos da prisão preventiva dos arguidos e que atentos os fundamentos de facto e de direito constantes do despacho que lhes aplicou a prisão preventiva inexistia qualquer alteração em termos atenuativos daquelas mesmas circunstâncias, pelo que se decidiu manter os recorrentes sujeitos à mesma medida de coação de prisão preventiva.
7. Decisão com a qual os recorrentes não podem concordar por vários motivos:
8. Primeiro o Despacho que manteve os arguidos em prisão preventiva é irregular por total falta de fundamentação irregularidade que foi arguida pelos recorrentes a 30 de dezembro de 2024 e que foi julgada improcedente por Despacho de 18/01/2024.
9. Vieram os arguidos requerer a irregularidade do Despacho que os manteve em prisão preventiva, por entenderem que – como tantos outros - se tratava de um Despacho geral e abstracto sem fazer qualquer análise do caso em concreto e das (muitas provas) que foram recolhidas após primeiro interrogatório.
10. Ora, no caso dos autos, e após a aplicação da MC de PP muitas provas foram recolhidas que exigiam que o Tribunal recorrido as analisasse e as tivesse em conta no momento em que decidisse da manutenção ou não da MC de prisão preventiva a que os recorrentes estão sujeitos e determinasse, antes de mais, se os factos outrora julgados como fortemente indiciados, hoje (com essas novas provas) se encontram igualmente fortemente indiciados.
11. Sobre a realização e resultado de tais meios de prova a decisão recorrida nem uma palavra. Temos apenas o tal despacho padrão que nada diz de concreto.
12. No despacho de 8 de janeiro de 2025, apesar de julgada improcedente a irregularidade arguida, o Tribunal vem agora, neste novo despacho, fundamentar a decisão anteriormente transcrevendo, sem mais, uma promoção do MP (nunca notificada aos arguidos). – Despacho que aqui damos por integralmente reproduzido.
13. O MP nada fez para confirmar da (in)veracidade das cópias juntas aos autos pelos arguidos.
14. A testemunha CC disponibilizou-se para entregar o seu telemóvel para perícia para que o MP pudesse determinar, através de perícia ao seu telemóvel, se as fotografias juntas e respetiva localização, data e hora foram alteradas, ou se correspondem à verdade. O MP não quis.
15. Foi requerida informação às companhias aéreas e hotéis para prova de que os arguidos à data dos factos não se encontravam em Portugal – o Despacho em causa não fez qualquer referência a tais informações.
16. Desconhecemos de onde o MP, e o despacho proferido pelo JIC, retirou a conclusão que das imagens de videovigilância é visivelmente identificado o arguido BB.
17. O que sabemos é que os reconhecimentos presencias de fls. 67 e 73 e realizado pela testemunha EE foram realizados no âmbito do processo nº 444/24.2GFLLE, não havendo qualquer outro elemento de prova que coloque os arguidos no local dos factos, nomeadamente as imagens de vigilância do parque do … e da entrada do … a fls. 36 e 56. Por outro lado, da inquirição desta testemunha de fls. 18 e 19 resulta que a testemunha foi abordada por trás apenas conseguindo identificar a roupa que os assaltantes traziam vestido e que um deles teria entre os 20 e 30 anos de idade não conseguindo especificar mais nenhum detalhe. A fls. 20 esta mesma testemunha voltou a ser inquirida confirmando que foi abordada por trás, descrevendo a indumentária que os assaltantes traziam e que um deles teria entre os 20 e 30 anos não tendo conseguido reter mais nenhuma característica dos assaltantes. Pergunta-se: como pode esta testemunha, depois, fazer um reconhecimento presencial dos indivíduos que a assaltaram?
18. Depois temos o reconhecimento feito por FF de fls. 92 e seguintes, já no âmbito do NUIPC 487/24.6…, em que identifica o arguido AA.
19. Ora, segundo o MP, este arguido nem sequer aparece nas imagens de vigilância da Marina …, sendo que quem é captado por essas câmaras segundo o MP será o arguido BB. Todas as testemunhas falam em 3 indivíduos, são três os indivíduos que aparecem nas câmaras de vigilância e nenhum deles é o arguido reconhecido pela testemunha.
20. Mais: segundo as testemunhas inquiridas no âmbito deste NUIPC o individuo assaltante tinha na mão uma garrafa de água que atirou para um chão. Essa garrafa de água foi apreendida a fls. 28 e sujeita a exame pericial. Terminado o Exame e junto o respectivo relatório pericial o mesmo concluiu que o perfil de ADN masculino encontrado na garrafa de água não tem identidade com os perfis dos arguidos BB e AA. Segundo o MP o individuo que se vê nas câmaras com a garrafa de água na mão é o arguido BB, mas afinal o exame pericial diz que o ADN encontrado na garrafa não é seu.
21. Posto isto, nenhuma credibilidade podem merecer os reconhecimentos efectuados e a conclusão (não sabemos de quem) de que nas imagens de vigilância de … é “visivelmente identificado o arguido BB” ?
22. A promoção do MP, e consequentemente o Despacho recorrido, não faz qualquer referência à prova pericial junta aos autos, até porque esta presume-se subtraída à livre apreciação quer do MP quer do julgador. Não poderia o MP dizer que a mesma não é credível ou que se trata de mera cópia. Então o MP, e o JIC, agiu como se a mesma não existisse.
23. Por sua vez o despacho do dia 8 (que mais não é do que a fundamentação do despacho do dia 30), como é uma transcrição pura e dura da promoção do MP, também não faz qualquer referência à prova pericial existente nos autos.
24. Assim, e aqui chegados, entendemos, salvo melhor opinião que as provas entretanto coligidas para os autos enfraquecem a forte indiciação dos factos imputados aos arguidos quer no âmbito do NUIPC 444/24.2GFLLE, quer os factos que lhes são imputados no NUIPC 487/24.6… DE TAL FORMA QUE PERMITEM HOJE AFIRMAR A MERA INDICIAÇÃO E NÃO MAIS A SUA FORTE INDICIAÇÃO, deixando de subsistir as circunstâncias que justificaram a aos arguidos a MC de PP tendo ocorrido uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação, nos termos do n.º 3 do artigo 212.º do Código de Processo Penal, pelo que deveria o JIC de … ter proferido decisão que revogasse a MC de prisão preventiva a que os arguidos se encontram sujeitos, substituindo-a por outra não privativa da liberdade e que entende como adequada à situação concreta e actual dos arguidos.
25. Por todo o exposto, entendemos que a decisão recorrida para além de não fundamentada inicialmente e depois, com o despacho do dia 8 de janeiro de 2025 limitar-se a transcrever uma promoção do MP não sendo uma verdadeira decisão do JIZ, não atendeu à situação concreta em causa nos presentes autos, e às provas coligidas após o primeiro interrogatório judicial dos arguidos e o necessário e acentuado enfraquecimento na forte indiciação dos factos outrora determinada.
26. O Tribunal limitou-se na decisão recorrida e no despacho subsequente a despir-se da sua função de decidir, de agir como o Juiz das liberdades, com o pretexto de que se louva na apreciação que foi feita, não pelo Tribunal, mas que outros fizeram, no caso, que o MP fez aquando presidiu às inquirições das testemunhas e da prova documental junta aos autos, desconhecendo – ou pelo menos desconsiderando – a prova pericial também ela junta aos autos, reproduzindo as meras considerações/conjeturas que resultam da promoção do MP, que não se inserem no pressuposto referenciado no art.º 204.º, al. a), do CPP pelo que este condicionalismo não se verifica.
27. Aqui chegados, é de se concluir que a MC mantida pelo despacho recorrido não respeita os princípios da adequação, proporcionalidade e subsidiariedade..”.
8. Admitido o recurso, a subir de imediato, em separado e sem efeito suspensivo, ao mesmo respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida.
Formulou as seguintes conclusões:
“1. Por decisão proferida, em 17 de Dezembro de 2024, foi determinada a manutenção da medida de coacção de prisão preventiva aplicada aos arguidos AA e BB, porquanto se considerou inexistir qualquer alteração, em termos atenuativos, das circunstâncias que fundamentaram a aplicação aos arguidos da medida de coacção de prisão preventiva.
2. Em 8 de Janeiro de 2025, face ao requerimento de irregularidade apresentado pelos arguidos, foi proferido novo despacho pela Mmª Juiz de Instrução Criminal no qual, em síntese, se concluiu “que inexistiu qualquer alteração ao quadro fático verificado e apresentado em sede de primeiro interrogatório que, de alguma forma, atenuasse as exigências cautelares que estiveram subjacentes à aplicação aos arguidos da medida de coação mais gravosa. E, a tal conclusão se chegou face à investigação realizada até ao momento”.
3. Não se conformando com tal decisão, os arguidos vieram da mesma recorrer, alegando em síntese que o Tribunal a quo não se pronunciou quanto aos elementos probatórios recolhidos nos autos entre a data da realização do 1.º interrogatório e a data do reexame das medidas de coacção e que, perante os mesmos deveria ter considerado que os arguidos não se encontravam fortemente indiciados da prática dos ilícitos em apreço e, em consequência procedido à alteração da medida de coacção aplicada aos mesmos.
4. Em sede de reexame dos pressupostos de aplicação da medida de coação, esta deve ser alterada caso se verifique uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a sua aplicação – art.º 212º CPP -, pelo que em conformidade com tais normativos a fundamentação resumir-se-á á apreciação da existência ou não de factos novos/ alteração das circunstancias que determinem uma atenuação das exigências cautelares.
5. Ora, no caso em concreto os elementos probatórios recolhidos, entre a data da sujeição dos arguidos à medida de coacção e à data do seu reexame, não se afiguram susceptíveis de alterar que a forte indiciação da autoria dos factos pelos arguidos, quer as exigências cautelares sentidas em concreto.
6. Os elementos documentais juntos pelos arguidos, tratando-se de meras cópias de reservas de alojamento e de voos e de fotografias (ficheiros que podem ser alterados e manipulados) e o teor do depoimento das testemunhas DD e CC, não revelam aptidão para infirmar o que resulta fortemente indiciado com base na prova existente nos autos, designadamente dos reconhecimentos pessoais efectuados e das imagens de videovigilância recolhidas.
7. Note-se que quer quanto a regularidade e quer quanto à credibilidade dos reconhecimentos presenciais realizados nos presentes autos, o Venerando Tribunal da Relação de Évora já se pronunciou, conforme consta do arresto em apenso aos autos
8. Assim, considerando a prova existente nos autos, não se pode considerar que se suscitem quaisquer dúvidas quanto à autoria dos factos pelos arguidos, nem os elementos probatórios carreados até à data do reexame das medidas de coacção colocam em crise ou invalidam os elementos probatórios já constantes dos mesmos.
9. Assim, considera-se que inexistiu qualquer alteração ao quadro fático verificado e apresentado em sede de primeiro interrogatório que, de alguma forma, atenuasse as exigências cautelares que estiveram subjacentes à aplicação aos arguidos da medida de coacção, não se verificando qualquer irregularidade ou invalidade das decisões proferidas.”.
9. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, vertendo no mesmo o seguinte:
“Em síntese, os arguidos invocam que o despacho ora em crise é irregular, por falta de fundamentação, alegando que após a realização de primeiro interrogatório judicial foram trazidos aos autos elementos probatórios acerca dos quais o Tribunal a quo não se pronunciou, nem alterou a medida de coação aplicada correspondentemente. Defendem que em presença de tais elementos probatórios, designadamente o teor dos depoimentos das testemunhas DD e CC e o resultado da prova pericial realizada, deveria o Tribunal recorrido ter considerado que não se encontrava fortemente indiciada a prática dos ilícitos em apreço e, em consequência, deveria ter procedido à alteração da medida de coação aplicada aos arguidos recorrentes.
A tais argumentos respondeu o Ministério Público na primeira instância de forma acertada, alegando, em síntese, o seguinte:
• Os elementos apresentados pelos arguidos, incluindo reservas de alojamento, voos e depoimentos testemunhais, não foram considerados idóneos para abalar a prova constante dos autos, sustentada em reconhecimentos pessoais e imagens de videovigilância;
• A regularidade e a substituição dos reconhecimentos já foram apreciadas pelo Tribunal da Relação de Évora;
• Conclui o Ministério Público inexistirem factos novos que justifiquem a alteração da medida de coação ou que afirmem a forte indicação existente, pelo que pugna pela total improcedência do recurso e manutenção do estatuto processual a que se encontram sujeitos os arguidos.
Ponderando os termos da decisão recorrida, a motivação do recurso interposto pelos arguidos e a resposta do Ministério Público na primeira instância, com a qual se concorda, endereçamos agora a estes autos o nosso parecer de que não deve o recurso obter provimento, por não merecer reparo a decisão recorrida, devendo os arguidos manter-se sujeitos à medida de coação de prisão preventiva.”.
10. Cumprido o contraditório, não foi apresentada resposta ao parecer do Ministério Público.
11. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
II – QUESTÕES A DECIDIR.
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com as decisões impugnadas, as questões a examinar e decidir correspondem às seguintes:
- se ocorre irregularidade do despacho de reexame do regime de medidas de coação por omissão de pronúncia / falta de fundamentação;
- se sobrevieram ao inquérito razões que alterem as circunstâncias em que foi determinada a prisão preventiva e se ocorre fundamento para revogação dessa medida.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
Para além dos elementos que já resultam do relatório supra, revelam interesse para a apreciação do recurso os seguintes elementos que se mostram documentados nos autos e que deles faziam já parte nas datas em que foram proferidos os despachos recorridos:
i. No dia 11 de outubro de 2024, o arguido AA requereu a junção aos autos de documentos que apresentou com as seguintes referências:
a. Documento comprovativo de reserva de estada no “Hotel …”, sito na Avenida …, em … (Espanha) no hiato temporal compreendido entre 22/07/2024 e 25/07/2024.
b. Documento comprovativo de passagem aérea da companhia … datada de 31/07/2024 com partida do aeroporto de … (Espanha) e chegada a … (Itália), pertencente ao Arguido.
c. Documento comprovativo de passagem aérea da companhia … datada de 31/07/2024 com partida do aeroporto de … (Espanha) e chegada a … (Itália), pertencente a CC.
d. Fotogramas com metainformação datada de 23/07/2024 e geolocalização detalhada (… – Espanha).
e. Fotogramas com metainformação datada de 24/07/2024 e geolocalização detalhada (… – Espanha).
f. Fotogramas com metainformação datada de 25/07/2024 e geolocalização detalhada (… – Espanha).
g. Fotogramas com metainformação datada de 26/07/2024 e geolocalização detalhada (… – Espanha).
h. Fotogramas com metainformação datada de 27/07/2024 e geolocalização detalhada (… – Espanha).
i. Fotogramas com metainformação datada de 28/07/2024 e geolocalização detalhada (… – Espanha).
j. Fotogramas com metainformação datada de 31/07/2024 e geolocalização detalhada (… – Itália).
ii. No dia 19 de novembro de 2024, o arguido AA requereu a junção aos autos de documento que referenciou como comprovativo de estadia de BB no Hotel …, em …, na data dos factos em causa no NUIPC444/24.2GFLLE e requereu que seja solicitado ao referido Hotel que informe os autos se o arguido BB esteve ali hospedado entre os dias 23/07/2024 e 28/07/2024, com a indicação do dia do check in e do dia do check out;
iii. No dia 19 de novembro de 2024, deu também entrada nos autos outro requerimento em nome do arguido AA tendo, para além do mais, o seguinte conteúdo:
“(…) vem dizer e requerer a V. Exa. o seguinte:
A. Relativamente à reserva, em que é referido no Despacho em causa que se tratam de meras reservas e que não comprovam que o arguido ali esteve, vimos agora dizer e requerer a junção aos autos dos seguintes documentos:
1. No dia 25 de julho de 2024, data em que ocorreram os factos em causa no NUIPC 444/24.2GFLLE, o arguido consegue estabelecer e provar a seguinte sequencia de acontecimentos na sua vida:
a) viajou de … para … na companhia da sua namorada CC no dia 25 de julho de 2024, tendo saído de … nesse dia pelas 12 horas e 35 minutos e aterrado em … pelas 14 horas 15 minutos – Doc. 1
b) às 10 horas e 35 minutos o arguido já se encontrava no aeroporto de … para viajar para … – doc. 2
c) e às 15 horas e 19 já se encontrava a passear pelas ruas de … – doc. 3
d) tendo permanecido em … – doc. 4 a doc. 8
e) o arguido ficou em … e … nos dias seguintes até ao dia 31/07/2024, data em que viaja para … – Doc. 9 a 19 e doc. 20.
Face ao exposto e tendo em conta os documentos agora juntos e os outrora, e a data dos factos que deram origem ao NUIPC 444/24.2GFLLE, requer-se que seja oficiada a companhia aérea … para saber se o arguido AA embarcou ou não no dia 25 de junho de 2024 de … para …, qual a hora em que realizou o check in, qual o voo e respectivo horário de embarque e hora de chegada a … e, ainda, a companhia aérea … para saber se o arguido viajou ou não no dia 31 de julho de 2024 para …, em que voo, e respectivo horário de embarque e chegada a ….
B. Quanto às fotografias juntas, as mesmas foram tiradas pela namorada do arguido, a partir do seu telemóvel, pelo que o arguido requer que a mesma seja notificada para entregar à ordem dos presentes autos o seu telemóvel para que o mesmo possa ser sujeito a uma perícia para se determinar – sem dúvidas para ninguém – “a forma da sua obtenção, datas e locais onde as mesmas foram tiradas”, entrega com a qual a mesma já concordou.
C. Quanto à inquirição da testemunha CC, namorada do aqui arguido AA, e tal como solicitado, somos a identificar da seguinte forma:
CC
Contacto telemóvel: …
Endereço: …
Email: …”
iv. No dia 26 de novembro de 2024, a Digna Magistrada do Ministério Público que dirige o inquérito proferiu despacho a solicitar as seguintes informações, na sequência do requerido pela defesa:
“Elabore ofício, que assinarei, previamente traduzido para língua francesa, a remeter através do email …@hotmail.fr, solicitando ao “Hotel … que, em 10 dias, informe se BB, nascido em …/…/1990, documento de identificação n.º …, esteve hospedado nesse hotel, entre 23/07/2024 e 28/07/2024.
Em caso afirmativo solicita-se o envio de documentação existente.
(…)
Elabore ofício que assinarei, previamente traduzido para língua espanhola, a enviar através do email …@....com, solicitando à Companhia área … que, em 10 dias, informe se AA, nascido em …-…-1990, documento de identificação francês …, efectuou embarque no voo … – …, no dia 25 de Julho de 2024, pelas 12h35.
Em caso afirmativo, solicite o envio de toda a documentação existente e disponível.”
Tendo sido solicitadas tais informações, não foi obtida nos autos qualquer resposta;
v. No dia 11 de dezembro de 2024 foram inquiridas na qualidade de testemunhas DD e CC;
vi. No dia 16 de dezembro de 2024 a Digna Magistrada do Ministério Público que dirige o inquérito proferiu despacho a solicitar as seguintes informações, na sequência do requerido pela defesa:
“Elabore ofício, que assinarei, previamente traduzido para língua espanhola, a enviar através do email .. @....com, solicitando à Companhia área … que, em 10 dias, informe se AA, nascido em …-…-1990, documento de identificação francês …, efectuou embarque no voo … – …, no dia 25 de Julho de 2024, pelas 12h35.
Em caso afirmativo, solicite o envio de toda a documentação existente e disponível.”
Tendo sido solicitadas tais informações, não foi obtida nos autos qualquer resposta;
vii. No dia 16 de dezembro de 2024, este Tribunal da Relação de Évora proferiu Acórdão no Apenso nº 444/24.2GFLLE-A.E1, que julgou improcedente o recurso interposto do despacho que aplicou aos ora recorrentes a medida de prisão preventiva, tendo nesse Acórdão sido apreciada a questão da verificação de fortes indícios do cometimento pelos arguidos dos crimes imputados, nos seguintes termos:
“3.4. No despacho recorrido a Mma. Juíza de Instrução entendeu que os autos indiciam a prática, pelos arguidos AA e BB, em coautoria material, de dois crimes de roubo agravados, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.os 1 e 2, alínea b), por referência ao artigo 204.º, n.º 2, alínea a), ambos do Código Penal.
Baseou-se para tanto nos elementos do processo, indicados na promoção do Ministério Público de apresentação a primeiro interrogatório judicial, que reproduziu no despacho recorrido, os quais entendeu sustentarem a indiciação dos factos imputados, tendo a Mma. Juíza de Instrução assinalado que ambos os arguidos prestaram declarações, negando, em suma, os factos, dizendo que, para além de não os terem praticado, não estiveram em território nacional nas datas apontadas, ou seja, no dia 25 de julho e no dia 23 de agosto de 2024. Porém, analisada toda a prova indicada pelo Ministério Público não é isso que resulta.
Ora, no que concerne ao NUIPC 444/24.2GFLLE, a Mma. Juíza de Instrução começou por referir os depoimentos prestados por EE e GG que, na sua globalidade, são consentâneos entre si e credíveis à luz das regras da experiência comum.
EE, no dia dos factos – 25 de julho –, foi inquirida na GNR declarando que, pelas 14h30m, após efetuar compras no supermercado “…”, dirigiu-se ao seu veículo tendo sido abordada por um indivíduo que descreveu que trajava calções de cor clara, t-shirt branca e boné e que a agarrou pelo braço esquerdo puxando-lhe o seu relógio de marca “…”. Ato contínuo, descreve que esse indivíduo se fazia acompanhar por um outro cidadão que trajava calças pretas e t-shirt e que ambos se colocaram em fuga.
Também no dia 25 de julho, GG foi inquirida como testemunha, uma vez que presenciou dois indivíduos a correr para a parte de trás do estabelecimento “…”, um deles vestindo uns calções e um boné de cor clara e simultaneamente viu uma senhora a correr atrás deles gritando “Help! Help! They steal my wacth”.
Por outro lado, analisando as imagens de videovigilância de fls. 55 a 57, é visível que a ofendida naquele dia, hora e local se deslocou ao “…” munida de um relógio no pulso esquerdo.
Por outro lado, as suas declarações são corroboradas, não só pelo depoimento da testemunha GG, como também pela análise das imagens de videovigilância de fls. 36 a 50. É certo que não se conseguem identificar os indivíduos que se encontram a correr, porém, das imagens é percetível que estamos perante dois cidadãos no local dos factos e que se encontram vestidos tal como descritos pela ofendida, ou seja, um com cores claras e outro com cores negras.
Sem prescindir, a Mma. Juíza de Instrução assinalou ainda que atendeu aos autos de reconhecimento pessoal juntos a fls. 67 a 68 e fls. 73 a 75, onde se constata que a ofendida não teve dúvidas a identificar os arguidos BB e AA, especificando que o primeiro indivíduo foi quem lhe puxou pelo braço e subtraiu o relógio e que o segundo o acompanhava e também se colocou em fuga.
Quanto às lesões da ofendida, a Mma. Juíza de Instrução atendeu às suas declarações bem como à fotografia junta a fls. 63, sendo que, no que diz respeito ao valor do relógio, nesta fase e sem dispor de outros meios de prova, atendeu às últimas declarações que aquela prestou.
Ora, analisados os elementos indicados e ouvido o registo gravado das declarações que os arguidos prestaram em sede de primeiro interrogatório judicial, a Relação não pode deixar de estar de acordo com o juízo de forte indiciação do cometimento, pelos arguidos AA e BB, em coautoria material, do imputado crime de roubo na pessoa da ofendida EE, ocorrido no dia 25 de junho de 2024.
O despacho recorrido é suficientemente elucidativo, elencando os elementos de prova considerados decisivos e efetuando um exame crítico dos mesmos, em função do que sustentou de modo fundamentado a existência de fortes indícios da prática do imputado crime.
Neste contexto, salienta-se a relevância dos reconhecimentos pessoais efetuados pela ofendida EE, constantes dos autos já indicados, dos quais resulta que a ofendida não teve dúvidas em identificar AA e BB como autores dos factos, valoração que se encontra fundadamente apoiada na referida prova e é consentânea com os demais elementos do processo, conforme entendeu a Mma. Juíza de Instrução.
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Aqui chegados, há que assinalar que os arguidos AA e BB centraram a sua motivação recursória na alegada circunstância de os elementos de prova que lhe foram disponibilizados pelo Ministério Público não serem suficientes para suportar a forte indiciação da factualidade suscetível de consubstanciar a prática dos crime de roubo agravado que lhes é imputada.
Isto no pressuposto, invocado pelos recorrentes, de que os reconhecimentos feitos por EE e FF não podem valer como prova, o que, como já vimos e se concluiu em 3.3., não procede.
*
A este respeito, alega-se ainda no recurso que o reconhecimento feito pela ofendida EE não merece qualquer credibilidade tendo em conta que esta testemunha identifica o recorrente AA como sendo um dos autores dos factos, quando, conforme resulta dos documentos juntos pela defesa no requerimento apresentado em 10 de outubro de 2024, o mesmo, na data em questão – 25 de julho de 2024 – não se encontrava, sequer, em Portugal, estando, então, em …, Espanha [ponto 10, alínea f), do aludido requerimento].
Como se observa, o requerimento apresentado pelo arguido AA, em 10 de outubro de 2024 (ref.ª Citius …), é posterior à decisão de aplicação da prisão preventiva, aqui sob recurso, proferida em 18 de setembro de 2024.
Os documentos que foram juntos com o referido requerimento, conforme indicado no ponto 10, alínea f), da peça processual, são, segundo o requerente, fotogramas com metainformação datada de 25-07-2024 e geolocalização detalhada (… – Espanha).
Ora, tratando-se de um documento posterior à decisão sindicada, o mesmo não pode ser atendido por este tribunal, pois de outro modo estaria a permitir-se a apreciação, pela instância de recurso, de elemento que não foi do conhecimento da instância recorrida, o que é manifestamente contrário à função legalmente cometida à Relação, em sede de recurso penal ordinário.
Na segunda instância reaprecia-se a decisão recorrida, tendo por base os elementos de que a primeira instância dispunha, à data em que a decisão foi tomada (18 de setembro de 2024), sendo unicamente estes a considerar no recurso que a Relação aqui decide.
A utilização de novas provas pelo arguido, de forma a que sejam assegurados, na plenitude, os seus direitos de defesa, não passa necessariamente pela consagração do direito de solicitar a um tribunal de segunda instância, que está a decidir sobre a procedência de um recurso ordinário, que analise e pondere, em primeira mão, essas provas supervenientes ao juízo realizado em primeira instância, sendo que, em matéria de medidas de coação, essa utilização é conseguida através de outros mecanismos processuais, mormente os previstos nos artigos 212.º e 213.º do CPP.
O que, no fundo, vai ao encontro da tramitação levada a cabo nos presentes autos, quando, na sequência da apresentação do referido requerimento de 10 de outubro de 2024, o Ministério Público proferiu despacho (ref.ª Citius …) no qual determinou que a pretendida realização de interrogatório subsequente do arguido AA seja oportunamente tida em consideração, face à necessidade de produzir outros elementos probatórios, tais como a conclusão das perícias já ordenadas. Em relação aos documentos juntos pelos arguidos, o Ministério Público fez constar que se trata de meras cópias, de meras reservas, as quais só por si não atestam que em tais datas o arguido efetivamente esteve em tais locais, sendo que, em relação aos documentos com alegadas fotografias do arguido AA, desconhece a forma de obtenção dos mesmos e se correspondem às datas e locais ali indicados. Por fim, quanto à inquirição, como testemunha, de CC, companheira de AA, a decisão foi no sentido de solicitar à Ilustre Mandatária do requerente que forneça a identificação completa da mesma, contacto telefónico e email, por forma a diligenciar para que tal tenha lugar por meios de telecomunicação à distância.
Seja como for, em nome da prossecução das garantias de defesa, incluindo o direito de recurso, e do princípio da presunção de inocência, sempre se dirá neste acórdão que os documentos em questão, incorporando alegadas fotografias do arguido AA nas cidades espanholas que indica, tal como se apresentam, não revelam aptidão para infirmar o que resulta fortemente indiciado com base na prova dos autos, mormente do reconhecimento pessoal já referido, no sentido de que aquele foi coautor dos imputados factos perpetrados contra Jacqueline Smith, em 25 de julho de 2024.
A junção de documentos efetuada, não permite verificação ou validação da sua autenticidade, particularmente da informação neles contida, quando é sabido que os ficheiros de gravação de metadados relativos a uma fotografia digital (é o caso dos arquivos “Exchangeable Image File Format”, ou apenas EXIF, utilizados nas máquinas digitais e nas câmaras dos smartphones e tablets), como os que dizem respeito à localização e à data da respetiva captura, são facilmente manipuláveis e editáveis, pelo que nesta fase se suscitam fundadas objeções à atribuição de relevância aos apontados documentos, nos termos pretendidos pelo recorrente.
Assim, atendendo ao acima exposto, a pretensão que a este respeito foi deduzida no recurso não merece acolhimento.
Diga-se, ainda, que a estadia no país vizinho, particularmente em cidades como … e …, que distam cerca de 420 e 450 km do local dos factos, respetivamente, com o fácil acesso, por via terrestre, que é conhecido, permitindo grande mobilidade, é compatível com o cometimento, em Portugal, de atos delituosos como os aqui indiciados e o regresso a terras de Espanha, para estadia. De resto, é de recordar que, conforme consta indicado no auto de visionamento de fls. 36 a 50, do que é observável nas imagens de videovigilância aí reproduzidas, o veículo em que os arguidos se fizeram deslocar aquando dos factos de 25 de julho de 2024, de marca …, modelo …, teria matrícula espanhola (cf. fls. 50).
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No que diz respeito NUIPC 487/24.6…, a Mma. Juíza de Instrução começou por referir que atendeu às inquirições das testemunhas HH, II e FF conjugadas, não só pelas regras da experiência comum, como também pelo auto de reconhecimento pessoal de fls.92 a 94 e as imagens de videovigilância e CD anexo, constantes de fls. 100 a 102 e 103 a 108.
FF, namorada do ofendido, não teve dúvidas em reconhecer o arguido AA como o autor da subtração do relógio do seu companheiro.
Tal ocorrência foi presenciada e confirmada pelas testemunhas HH e II, as quais não só corroboraram a subtração, como também a violência que foi exercida pelo arguido e por mais dois acompanhantes, descrevendo que um deles trajava uma t-shirt de cor branca.
Também a testemunha FF descreve que um desses indivíduos trajava um polo de cor creme e calças escuras e o outro vestia uma camisa de manga curta escura e calças escuras.
Ora, segundo a Mma. Juíza de Instrução, analisando as imagens de videovigilância retiradas minutos antes da subtração e perto do local dos factos, podemos constatar dois indivíduos trajando o descrito pelas testemunhas e que se encontravam a caminhar atrás do ofendido e da respetiva companheira (testemunha FF).
Assim, não teve a magistrada judicial dúvidas de que foram estes dois indivíduos que empurraram o corpo de JJ, causando a sua queda no solo e que o arguido AA agarrou o braço esquerdo de JJ, exercendo força sobre o mesmo e retirando-lhe o relógio certificado a fls. 37.
Por último, a Mma. Juíza de Instrução assinala que não teve dúvidas em identificar BB como um dos indivíduos que seguiram o ofendido e a testemunha FF, analisadas que foram as imagens de videovigilância referidas, em comparação com o arguido que esteve presente no interrogatório judicial.
Concluindo, deste modo, que todos os factos apresentados pelo Ministério Público se encontram indiciados.
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Analisados os elementos indicados e tendo ainda em conta as declarações prestadas no primeiro interrogatório judicial, a Relação não pode, também aqui, deixar de estar de acordo com o juízo de forte indiciação do cometimento, por AA, em coautoria material com outros dois indivíduos, do imputado crime de roubo agravado na pessoa do ofendido JJ, ocorrido no dia 23 de agosto de 2024, estando sustentada de modo fundamentado a existência de fortes indícios da prática do crime, pelo referido arguido.
A este respeito, salienta-se a relevância do reconhecimento pessoal efetuado por FF, constante do auto de fls. 92 a 94 (NUIPC 487/24.6…) dos quais resulta que esta testemunha, que, conjuntamente com o ofendido JJ, vivenciou os factos na primeira pessoa, não teve dúvidas em identificar AA como um dos seus autores, valoração que se encontra fundadamente apoiada na referida prova e é consentânea com os demais elementos dos autos, conforme entendeu a Mma. Juíza de Instrução.
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Se isto é assim quanto à conduta de AA, também o mesmo se conclui quanto à participação de BB no ilícito referido, se bem que com base noutros elementos de prova que, de igual modo, permitem formular um juízo de existência de fortes indícios do cometimento dos factos.
Vejamos.
Em primeiro lugar, cumpre referir que os indícios se retiram de todas as provas válidas que podem ser utilizadas para formar a convicção sobre a existência do crime (que aqui ninguém questiona, mostrando-se assente) e a responsabilidade dos agentes. Podendo, assim, resultar de prova indireta, para a qual a demonstração dos factos pressupõe que a factualidade conhecida permite adquirir ou alcançar a realidade de um facto não diretamente demonstrado, por via de um procedimento lógico de indução, apoiado nas regras da ciência, da experiência ou da normalidade da vida, de que determinados factos são a consequência de outros, tendo presente que a conexão causal entre o que se conhece e o que se apurou de uma forma indireta [numa relação factos-base → factos-consequência] pressupõe uma consistência apta a validar a inferência efetuada.
Juízo de inferência que deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência e da vida. Dos factos-base há de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, direto, segundo as regras da experiência.
É certo que, no acervo de elementos que serviram de prova para o juízo de indiciação formulado na decisão recorrida, não há o reconhecimento por parte da testemunha FF, relativamente à pessoa de BB.
Contudo, certo é também que, no depoimento que prestou a fls. 85 a 88 (NUIPC 487/24.6…), FF descreve que um dos indivíduos que participou no roubo do relógio de JJ trajava um polo de cor creme e calças escuras.
O que, conjugado com a análise das imagens de videovigilância retiradas minutos antes da subtração, perto do local dos factos, permitiu à Mma. Juíza de Instrução, em comparação com o arguido que esteve presente no interrogatório judicial, não ter dúvidas em identificar BB como um dos indivíduos que seguiram o ofendido e a testemunha FF.
Existe, efetivamente, uma determinada sucessão de eventos circunstanciais que convergem no sentido da ocorrência do roubo perpetrado contra JJ e de onde se extrai, à luz das regras da experiência, a inferência segura de que o arguido BB participou nos factos, sendo coautor do ilícito.
Expliquemos.
Aquando da denúncia que apresentou do roubo, cerca de 45 minutos depois de o mesmo ter sido perpetrado, o ofendido JJ relatou à GNR que, no dia 23 de agosto de 2024, pelas 23h15m, quando regressava à sua viatura, na Rua …, em frente à Farmácia …, …, um indivíduo estava atrás da viatura. Assim que foi abrir a porta, sentiu um homem nas suas costas e pensou que este iria subtrair a chave do seu carro, tendo começado a se defender enquanto o suspeito o agarrava no braço esquerdo. Nesse momento, outros dois suspeitos aparecem para o empurrar e também empurram a sua namorada, Sr.ª FF, que estava lá a chegar para o ajudar, e um deles atirou água com uma garrafa e depois atirou-a para o chão, seguindo fuga a pé.
Os suspeitos eram romenos ou indostânicos e um deles tinha cabelo preto, barba aparada, musculado e cerca de 1,75m. Outro tinha cabelo encaracolado castanho claro curto, musculado e cerca de 1,73m e o terceiro era magro, com cabelo preto, bigode, nariz grande pontiagudo e cerca de 1,90m.
Após os suspeitos terem encetado fuga, verificou que tinha algumas escoriações no braço esquerdo e que o seu relógio, marca …, modelo …, com bracelete castanha, pelo qual pagou cerca de 60 000,00 €, tinha desaparecido.
Questionado sobre onde esteve anteriormente, JJ informou que, entre as 20h00m e as 22h15m, esteve no “…” e, após sair desse estabelecimento, estacionou a sua viatura em frente da Farmácia … e foi sempre acompanhado pela Sr.ª FF, caminhando a pé até à Marina …, onde esteve entre as 22h30m e as 23h15m, tendo voltado para o carro por volta dessa hora (fls.26 a 27-v.º do NUIPC 487/24.6…).
Temos, assim, que, entre as 22h30m e as 23h15m do referido dia 23 de agosto, o ofendido JJ andou a pé na Marina …, na companhia de FF.
O que é confirmado pelas imagens capturadas pelo equipamento de videovigilância existente no local, juntas a fls.104 a 107 do NUIPC 487/24.6…, nas quais se pode ver o casal JJ e FF, a caminhar pelo passeio da referida marina e, uns metros atrás, entre outras pessoas que por ali também caminhavam, seguia o arguido BB, na companhia de dois indivíduos, nos termos acima referidos.
Nas citadas imagens consta a indicação de 22h52m e 22h53m do dia 23 de agosto de 2024.
No interrogatório judicial, o arguido BB optou por prestar declarações e, a este respeito, negou ter estado em Portugal na data em questão, dizendo que chegou ao nosso país, por via área, proveniente de …, no dia 31 de agosto, tendo aqui permanecido em gozo de férias e contando ir embora perto da data em que foi detido.
Tendo-lhe sido exibidos os referidos fotogramas de fls.105 a 107 (NUIPC 487/24.6…), o arguido BB disse que não é ele que figura nos mesmos nem reconhece ninguém.
Isto quando, recorde-se, a Mma. Juíza de Instrução, analisando as imagens de videovigilância retiradas minutos antes da subtração e perto do local dos factos, constatou tratar-se de dois indivíduos trajando o descrito pelas testemunhas e que se encontravam a caminhar atrás do ofendido e da respetiva companheira (testemunha FF), sendo que, comparando o teor das imagens de videovigilância referidas, com a pessoa do arguido que esteve presente no interrogatório judicial, não teve a magistrada judicial dúvidas em identificar BB como um dos indivíduos que seguiram o ofendido e a testemunha FF.
Nos fotogramas pode ver-se que BB trajava um polo de cor creme e calças que, embora de uma cor que aparenta ser creme ou castanha clara, é seguramente de tom mais escuro do que o do polo que na altura envergava.
Atente-se, ainda, ao modus operandi revelado pelos factos fortemente indiciados de 25 de julho de 2023, em que sobressai a preparação, organização e forma articulada de os coautores agirem na prossecução do propósito delituoso comum – neste caso, os arguidos AA e BB, os únicos que, por ora, estão identificados.
Também aqui, o arguido negou ter estado em Portugal nessa data, afirmando que, em 25 de julho de 2024, se encontrava em …, com a irmã e os quatro filhos desta.
Ora, tudo isto, aliado à circunstância de, em 23 de agosto de 2024, se encontrarem os dois, AA e BB, no mesmo local, precisamente na janela temporal em que ocorreram os factos de que foi vítima JJ (tendo já sido confirmado por nós que AA está fortemente indiciado de ter participado no roubo contra JJ), quando é certo que não se divisa uma explicação lógica e racional para tamanha coincidência espácio-temporal relativamente a AA e BB, nacionais de outro país que aqui não residem nem lhes é conhecida qualquer conexão com o território nacional, a que acresce que, em 13 de setembro de 2024, estavam de volta a Portugal e à zona em causa, alegadamente de visita, em férias, nos leva a concluir que os elementos de prova existentes nos autos à data em que foi proferida a decisão recorrida suportam pela apontada via indireta a forte indiciação de que BB participou nos factos perpetrados contra JJ, tendo sido um dos dois indivíduos que empurraram o corpo ofendido e causaram a sua queda no solo, ao passo que o arguido AA agarrou o braço esquerdo de JJ, exercendo força sobre o mesmo e retirando-lhe o relógio certificado a fls. 37.
Não é crível nem razoável ou plausível, pois desafia as regras da lógica e do normal acontecer, que perante os acontecimentos de 23 de agosto, espácio-temporalmente a convergir para a inferência sustentada de que BB participou no roubo a JJ, nos termos descritos, o arguido fosse mais um dos muitos turistas em férias no … que, na ocasião, se encontrava apenas a passear na Marina …, quando é certo que o mesmo nem admite ter estado em Portugal na referida data e nega até uma evidência observável nos fotogramas juntos ao processo.
*
Assim, considerando os fortes indícios da prática dos factos imputados aos arguidos e as necessidades cautelares verificadas no caso concreto, é de concluir que a opção pela prisão preventiva se encontra legitimada pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, a que acresce que, feita a devida ponderação à luz do princípio da subsidiariedade, é também de concluir que qualquer outra medida de coação que não a prisão preventiva se mostra insuficiente para garantir as indicadas exigências processuais de natureza cautelar (artigo 193.º, n.os 2 e 3 do CPP).
De notar que, no caso em análise, a factualidade fortemente indiciada é reveladora de persistência delituosa por parte de AA e BB, evidenciando o domínio do modus operandi, no contexto de uma prática caracterizada por alguma organização e método como a que se indiciou nos autos, o que permitiu aos arguidos concluir com êxito a realização dos delitos. (…)”.
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APRECIANDO.
Consideram os recorrentes que o despacho proferido em 17 de dezembro de 2024, no qual foi reexaminado o estatuto coativo dos arguidos sujeitos a prisão preventiva, padece de irregularidade, por se tratar de “um Despacho geral e abstracto sem fazer qualquer análise do caso em concreto e das (muitas provas) que foram recolhidas após primeiro interrogatório”, acrescentando que “no caso dos autos, e após a aplicação da MC de PP muitas provas foram recolhidas que exigiam que o Tribunal recorrido as analisasse e as tivesse em conta no momento em que decidisse da manutenção ou não da MC de prisão preventiva a que os recorrentes estão sujeitos e determinasse, antes de mais, se os factos outrora julgados como fortemente indiciados, hoje (com essas novas provas) se encontram igualmente fortemente indiciados”.
Concluiram que o despacho “nada diz de concreto”.
Tem assento na Lei Fundamental — artigo 205°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa — a imposição da obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente, devendo esta ser feita na forma prevista na lei.
Por sua vez, estabelece-se no artigo 97°, n° 5, do Código de Processo Penal, que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
A falta de fundamentação da sentença integra nulidade, conforme resulta dos artigos 374°, n° 2 e 379°, n°1, alínea a), do CPP, mas a omissão de fundamentação de despacho decisório que não seja de mero expediente (com excepção da situação prevista no n° 6, do artigo 194° e da decisão instrutória, esta face ao disposto nos artigos 308°, n° 2 e 283°, n° 3, do mesmo diploma) constitui mera irregularidade.
Os arguidos arguiram essa irregularidade e, na sequência disso, veio a ser proferido o segundo despacho recorrido, datado de 8 de janeiro de 2025, que indeferiu a arguição.
E indeferiu bem, diremos nós.
Não ocorre qualquer falta de fundamentação no despacho proferido em 17.12.2024 – tratando-se de despacho sobre a possibilidade de alteração do regime coativo, o dever de fundamentação mostra-se cumprido com a indicação concreta de que “(…)Não ocorreram quaisquer alterações nos pressupostos de facto e de direito que determinaram a prolação do despacho que decretou a prisão preventiva do arguido, em ordem a atenuar ou eliminar os fundamentos de perigo de fuga, continuação da atividade criminosa e para a aquisição e conservação ou veracidade da prova, uma vez que os elementos indiciários entretanto recolhidos não infirmam os fundamentos daquela decisão”. Tendo em consideração que se trata de despacho que procede ao reexame dos pressupostos do regime coativo, com vista à apreciação da possibilidade de substituição da medida vigente, o dever de fundamentação reporta-se às circunstâncias que possam levar à alteração dos pressupostos dessa anterior decisão que constituem o objecto de reexame, pois que só essa alteração constitui objecto do despacho de reexame”1. Como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 23.11.2022: «Ao proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva, não existe qualquer dúvida que o juiz profere um ato judicial decisório que, como tal, tem de ser fundamentado. Contudo, como tem sido entendido de forma unânime pela jurisprudência e pela doutrina, as exigências de fundamentação do despacho que procede ao reexame das aludidas medidas de coação são menores que as exigíveis ao despacho que as aplicou, sobretudo quando não se verificaram, entretanto, alterações relativamente aos factos que fundaram os pressupostos da aplicação da medida em causa. Com efeito, destinando-se o despacho proferido ao abrigo do disposto no artº 213º do C.P.Penal, como é o caso do despacho recorrido, apenas a proceder à reapreciação dos pressupostos constantes do despacho que anteriormente determinou a aplicação da medida de coação e que a justificaram, a sua fundamentação tem apenas por objeto a análise de circunstâncias supervenientes cuja ocorrência possa abalar a sustentabilidade dos pressupostos que conduziram à aplicação daquela medida de coação, alterando-os e, por essa via, levando à sua substituição ou revogação. Como se refere no Ac. Rel. Guimarães de 19.10.2009[4] "Satisfaz as exigências de fundamentação, o despacho que, reexaminando os pressupostos da prisão preventiva, se limita a declarar que não se mostram alteradas as circunstâncias de facto e de direito que determinaram a aplicação daquela medida de coação. Seria inútil exigir que nesses casos o juiz copiasse o despacho para o qual remete, o qual é do conhecimento dos interessados." No mesmo sentido se pronuncia o Cons. Maia Costa[5], quando, em anotação ao artº 213º, a esse propósito, afirma: “A fundamentação da decisão de reexame, quando não haja nenhuma alteração das circunstâncias desde a última decisão, satisfaz-se com a remissão para os fundamentos, de facto e de direito, do despacho que aplicou a medida de coação ou que a manteve”. Também Paulo Pinto de Albuquerque[6], citando o Ac. Rel. Lisboa de 04.11.2004, in CJ, XXIX, Tomo 5, pág. 128, expende: “Se aquando do reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação não se verificarem circunstâncias supervenientes que modifiquem as exigências cautelares ou alterem os pressupostos da medida de coação, basta a referência à persistência do condicionalismo que justificou a medida para fundamentar a decisão da sua manutenção”»2.
E não se diga que na decisão recorrida se deixaram por apreciar questões concretas suscitadas pela defesa e que, por isso, tal decisão enferma de omissão de pronúncia.
No caso concreto, impunha-se que na decisão recorrida se apreciasse a possibilidade de substituição de uma medida de coação por outra, por constatação superveniente de circunstâncias que o justificassem.
Impõe-se, pois, concluir que o despacho proferido em 17.12.2024 não carecia de mais aprofundada fundamentação, constituindo apreciação concretizada e suficiente da questão que o Tribunal devia resolver.
Não ocorre irregularidade alguma.
Questão diferente é a de saber se a decisão tomada constitui uma decisão correta e, por isso, de manter.
Importa, pois, apreciar se, tal como se decidiu no despacho proferido em 17.12.2024, estamos perante a inexistência de qualquer alteração, em termos atenuativos, das circunstâncias que fundamentaram a aplicação aos arguidos da medida de coação de prisão preventiva.
Neste domínio, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 3/1996, fixou jurisprudência no seguinte sentido: “A prisão preventiva deve ser revogada ou substituída por outra medida de coacção logo que se verifiquem circunstâncias que tal justifiquem, nos termos do artigo 212º do Código de Processo Penal, independentemente do reexame trimestral dos seus pressupostos, imposto pelo artigo 213º do mesmo Código.”3.
Como de há muito se vem assinalando, o reverso lógico dessa jurisprudência fixada é o da imodificabilidade do regime coativo (maxime da prisão preventiva) enquanto permanecerem as circunstâncias que determinaram a sua aplicação.
Nesse sentido podemos encontrar, desde logo e entre muitos outos arestos, o Acórdão da Relação de Lisboa de 18 de dezembro de 2003, em cujo sumário se lê: “1- Reverso lógico da jurisprudência fixada pelo Acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça nº 3/96, é que a decisão que aplicar a prisão preventiva, apesar de não ser definitiva, é intocável enquanto subsistirem os pressupostos que a determinaram, isto é enquanto não houver alterações das circunstâncias que fundamentaram a prisão preventiva.
(…) Como tem sido entendimento uniformemente perfilhado pelos nossos tribunais, a decisão que impõe a prisão preventiva, apesar de não ser definitiva, é intocável e imodificável enquanto não se verificar uma alteração, em termos atenuativos, das circunstâncias que a fundamentaram, ou seja, enquanto subsistirem inalterados os pressupostos da sua aplicação.
Com isto, deixamos a afirmação, respaldada na orientação jurisprudencial pacífica dos nossos Tribunais Superiores, de que a decisão que determina a prisão preventiva, se não for objeto de recurso ou, tendo-o sido, mas mantida nos seus precisos termos, adquire força de caso julgado formal, sem prejuízo do princípio rebus sic stantibus, condição a que, pelas contínuas variações do seu condicionalismo, estão sujeitas as medidas de coação. No caso concreto, o recurso interposto do despacho que aplicou a medida de prisão preventiva foi julgado improcedente, por Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora proferido em 16.12.2024. Tendo presente o que se decidiu no momento da aplicação da prisão preventiva e as razões apresentadas por este Tribunal da Relação de Évora para manter tal decisão de imposição dessa medida de coação, importa aferir se aos autos foram trazidos elementos novos que possam ter o efeito pretendido pela defesa – enfraquecer a indiciação dos crimes imputados aos arguidos. A defesa entende que a documentação apresentada e a inquirição das testemunhas DD e CC constituem elementos novos com relevância atenuativa capazes de afastar a forte indiciação dos crimes. Mas não têm razão. Como bem considerou o Ministério Público nos autos, embora as referidas testemunhas tenham declarado que se encontravam com os arguidos fora do território nacional nas datas da prática dos factos em causa, tais depoimentos não são credíveis. “Verifica-se que as testemunhas alegam ser companheiras dos arguidos, o que sempre revela um interesse directo em confirmar as versões daqueles”. Sobre a relevância dos documentos juntos aos autos após a prolação do despacho que determinou a aplicação da prisão preventiva, foram já claras as indicações vertidas no Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 16 de dezembro último (apenso A). Como ali se escreveu:
“Como se observa, o requerimento apresentado pelo arguido AA, em 10 de outubro de 2024 (ref.ª Citius …), é posterior à decisão de aplicação da prisão preventiva, aqui sob recurso, proferida em 18 de setembro de 2024.
Os documentos que foram juntos com o referido requerimento, conforme indicado no ponto 10, alínea f), da peça processual, são, segundo o requerente, fotogramas com metainformação datada de 25-07-2024 e geolocalização detalhada (… – Espanha).
Ora, tratando-se de um documento posterior à decisão sindicada, o mesmo não pode ser atendido por este tribunal, pois de outro modo estaria a permitir-se a apreciação, pela instância de recurso, de elemento que não foi do conhecimento da instância recorrida, o que é manifestamente contrário à função legalmente cometida à Relação, em sede de recurso penal ordinário.
Na segunda instância reaprecia-se a decisão recorrida, tendo por base os elementos de que a primeira instância dispunha, à data em que a decisão foi tomada (18 de setembro de 2024), sendo unicamente estes a considerar no recurso que a Relação aqui decide.
A utilização de novas provas pelo arguido, de forma a que sejam assegurados, na plenitude, os seus direitos de defesa, não passa necessariamente pela consagração do direito de solicitar a um tribunal de segunda instância, que está a decidir sobre a procedência de um recurso ordinário, que analise e pondere, em primeira mão, essas provas supervenientes ao juízo realizado em primeira instância, sendo que, em matéria de medidas de coação, essa utilização é conseguida através de outros mecanismos processuais, mormente os previstos nos artigos 212.º e 213.º do CPP.
O que, no fundo, vai ao encontro da tramitação levada a cabo nos presentes autos, quando, na sequência da apresentação do referido requerimento de 10 de outubro de 2024, o Ministério Público proferiu despacho (ref.ª Citius …) no qual determinou que a pretendida realização de interrogatório subsequente do arguido AA seja oportunamente tida em consideração, face à necessidade de produzir outros elementos probatórios, tais como a conclusão das perícias já ordenadas. Em relação aos documentos juntos pelos arguidos, o Ministério Público fez constar que se trata de meras cópias, de meras reservas, as quais só por si não atestam que em tais datas o arguido efetivamente esteve em tais locais, sendo que, em relação aos documentos com alegadas fotografias do arguido AA, desconhece a forma de obtenção dos mesmos e se correspondem às datas e locais ali indicados.
(…)
Seja como for, em nome da prossecução das garantias de defesa, incluindo o direito de recurso, e do princípio da presunção de inocência, sempre se dirá neste acórdão que os documentos em questão, incorporando alegadas fotografias do arguido AA nas cidades espanholas que indica, tal como se apresentam, não revelam aptidão para infirmar o que resulta fortemente indiciado com base na prova dos autos, mormente do reconhecimento pessoal já referido, no sentido de que aquele foi coautor dos imputados factos perpetrados contra EE, em 25 de julho de 2024.
A junção de documentos efetuada, não permite verificação ou validação da sua autenticidade, particularmente da informação neles contida, quando é sabido que os ficheiros de gravação de metadados relativos a uma fotografia digital (é o caso dos arquivos “Exchangeable Image File Format”, ou apenas EXIF, utilizados nas máquinas digitais e nas câmaras dos smartphones e tablets), como os que dizem respeito à localização e à data da respetiva captura, são facilmente manipuláveis e editáveis, pelo que nesta fase se suscitam fundadas objeções à atribuição de relevância aos apontados documentos, nos termos pretendidos pelo recorrente.
(…)
Diga-se, ainda, que a estadia no país vizinho, particularmente em cidades como … e …, que distam cerca de 420 e 450 km do local dos factos, respetivamente, com o fácil acesso, por via terrestre, que é conhecido, permitindo grande mobilidade, é compatível com o cometimento, em Portugal, de atos delituosos como os aqui indiciados e o regresso a terras de Espanha, para estadia. De resto, é de recordar que, conforme consta indicado no auto de visionamento de fls. 36 a 50, do que é observável nas imagens de videovigilância aí reproduzidas, o veículo em que os arguidos se fizeram deslocar aquando dos factos de 25 de julho de 2024, de marca …, modelo …, teria matrícula espanhola (cf. fls. 50).” (destacados nossos)
As considerações tecidas naquele Acórdão desta Relação de Évora merecem a nossa total adesão. Nenhuma garantia de fidedignidade das informações constantes dos documentos juntos se mostra adquirida, não podendo dar-se simplesmente como verdadeiro o conteúdo dos documentos quando se sabe que os ficheiros de gravação de metadados relativos a uma fotografia digital, como os que dizem respeito à localização e à data da respetiva captura, são facilmente manipuláveis e editáveis. Na internet, em fontes abertas, colhem-se informações divulgadas para qualquer interessado, acerca da simplicidade dos procedimentos necessários para alterar os ficheiros de gravação de metadados. Veja-se a título de exemplo o que se indica em
https://www.adobe.com/pt/creativecloud/file-types/image/raster/exif-file.html:
“Os EXIFs são criados automaticamente pela sua câmera digital quando você tira fotografias. A informação é salva dentro das propriedades da sua foto. Para editar um EXIF ou ocultar as informações que você não quer que outros acessem, você precisará de uma ferramenta que permita editar e remover metadados de imagem. Há várias ferramentas online gratuitas e pagas que podem ajudá-lo com isso. Por exemplo, o Adobe Bridge não só permite editar metadados de imagens, mas também escolher quais informações você quer que sejam exibidas ou redigidas quando a foto for publicada. É fácil editar metadados de imagem. Basta abrir a imagem no Adobe Bridge. Em seguida, selecione Editar > Preferências antes de escolher a caixa suspensa de metadados. Depois, você poderá editar e remover suas opções de metadados”.
Posto isto, importa deixar claro que o Ministério Público, ao contrário do que afirmam os recorrentes, não se dispensou de desenvolver diligências no sentido de apurar se os arguidos efetivamente se encontravam fora do território nacional, nas datas em questão. Como se consignou supra, foram solicitadas informações às indicadas unidade hoteleira e companhia de aviação. Sucede que tais solicitações não se mostravam satisfeitas à data em que foram proferidos os despachos recorridos. Nenhum elemento de prova fidedigno se mostrava junto aos autos a infirmar a presença dos arguidos nos locais dos factos e nas circunstâncias de tempo em que os crimes foram cometidos. Porque igualmente invocado pelos recorrentes o exame pericial comparativo dos vestígios de ADN deixados na garrafa apreendida, importa mencionar que o respetivo relatório só chegou aos autos depois de proferidos os despachos recorridos, não constituindo, por isso, elemento que o Tribunal a quo devesse ter tido em consideração. Sempre diremos que o resultado negativo desse exame pericial, não se mostra apto a afastar a forte indiciação da prática dos crimes pelos arguidos assente nos elementos que foram considerados aquando da aplicação da prisão preventiva.
Nesta conformidade, resta concluir pelo acerto do decidido – a permanência das circunstâncias que determinaram a aplicação da prisão preventiva, torna imodificável a situação dos arguidos, até sobrevir alteração das circunstâncias. O que ao Tribunal recorrido se impunha na prolação da decisão recorrida era aferir da existência de circunstâncias novas que justificassem a alteração da medida. A condição “rebus sic stantibus” limitava a margem do Tribunal recorrido, impondo-lhe o parâmetro que efectivamente foi seguido - enquanto não ocorrerem alterações fundamentais na situação existente à data em que foi determinada a prisão preventiva, não pode o tribunal reformar essa decisão, sob pena de instabilidade jurídica decorrente de julgados contraditórios. Nenhuns elementos novos com relevo atenuativo surgiram nos autos, sendo óbvio que a isso não se reconduz a mera junção dos documentos apresentados pela defesa ou a colheita dos depoimentos das testemunhas DD e CC, companheiras dos arguidos.
Por isso, as decisões recorridas não enfermam de qualquer omissão de pronúncia, mostrando-se irrepreensível o juízo de que não ocorreram quaisquer alterações nos pressupostos de facto e de direito que determinaram a prolação do despacho que decretou a prisão preventiva dos arguidos.
Improcede, assim, o recurso.
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V - Decisão.
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em jugar improcedente o recurso interposto pelos arguidos AA e BB, confirmando os despachos recorridos e, consequentemente, a manutenção da medida de prisão preventiva aplicada aos mesmos.
Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça a suportar por cada um.
*
D.N. (comunicando-se de imediato a decisão ao Processo de Inquérito nº 444/24.2GFLLE)
*
O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).
24
Évora, 9 de abril de 2025
Jorge Antunes (Relator)
Carla Oliveira (1ª Adjunta)
Manuel Ramos Soares (2º Adjunto)
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1 Cfr. Ac. Rel. Coimbra de 18.11.2009 – Relator: Jorge Dias – acessível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/8fd11c1f71c56ae480257682003522d0?OpenDocument
2 Cfr. Ac. Rel. Porto de 23.11.2022 – Relatora Eduarda Lobo – acessível em:
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/37338810203c889880258925003f7dd5?OpenDocument
3 Acórdão de fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 3/96, acessível em:
https://data.dre.pt/eli/ac/3/1996/03/14/p/dre/pt/html
4 Cfr. a Decisão Sumária datada de 12/09/2020 (Tribunal da Relação de Lisboa – 9ª Secção) – Relatora Desembargadora Maria do Carmo Ferreira, acessível em:
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/e6851f30454ee52c802585e5002c5c84?OpenDocument
, onde se referencia o Ac. Rel. Porto de 21 de Junho de 2006, relatado por Isabel Celeste Alves Pais Martins, o Ac. do TC de 30/07/2003, proferido no P.º 485/03, publicado no DR II Série de 04/02/2004, o Ac. TRL de 13/10/2004, proferido no P.º 5558/04-3 e, bem assim, o Acórdão do STJ de 07/01/1998 in BMJ 473, pág. 564, onde se lê: “A decisão que impõe a prisão preventiva apesar de não ser definitiva, é intocável e imodificável enquanto subsistirem os pressupostos que a ditaram, isto é enquanto não houver alteração das circunstâncias que fundamentaram a prisão preventiva”. No sentido dessa jurisprudência encontramos ali também as seguintes referência: “cf. Ac. da RE de 27/11/2007, relatado por Ribeiro Cardoso, in www.gde.mj.pt processo 2720/07-1, donde citamos: “1. O princípio "rebus sic stantibus", válido para frequentemente se indeferir o pedido de substituição da prisão preventiva por medida mais favorável, é também de seguir nas situações inversas, em que está em causa a aplicação ao arguido de medida mais gravosa que a anterior, o que impedirá qualquer alteração para situação mais desfavorável, sem alteração superveniente das circunstâncias tidas em conta pelos despachos anteriores já transitados.”; Ac. da RL de 23/11/2005, relatado por Clemente Lima, in www.pgdlisboa.pt, processo 10691/05-3, donde citamos: “I - As medidas de coacção, na medida em que se encontram sujeitas à condição rebus sic stantibus, só podem ser comutadas em presença de materialidade sobreveniente ao momento da decretação da medida, ainda que tal materialidade se traduza em não mais do que a passagem do tempo – desde que esta circunstância, por si, atenue ou altere as exigências cautelares que se pretendeu salvaguardar com a primitiva decisão. …”; Ac. RL de 31/01/2007,relatado por Ricardo Silva, in www.gde.mj.pt processo 10919/2006-3, do qual citamos: “…II - Contudo, estando as medidas de coacção sujeitas à condição rebus sic standibus, a substituição de uma medida de coacção por outra menos grave apenas se justifica quando se verifique uma atenuação das exigências cautelares que tenham determinado a sua aplicação. III - A decisão que impõe a prisão preventiva, apesar de não ser definitiva, é intocável e imodificável enquanto não se verificar uma alteração, em termos atenuativos, das circunstâncias que a fundamentaram, ou seja, enquanto subsistirem inalterados os pressupostos da sua aplicação. …”; Ac. da RL de 19/07/2002, relatado por Goes Pinheiro, in www.gde.mj.pt processo 0044879, do qual citamos: “O tribunal não pode alterar a posição já tomada sobre a subsistência dos pressupostos determinativos da prisão preventiva, na ausência de alteração factual, se aquela medida tiver sido tomada no respeito da lei, sob pena de instabilidade jurídica e desprestigio do mesmo tribunal.”. Ainda neste sentido, cf. os Ac. da RL de 29/09/1998, relatado por Franco de Sá, in www.gde.mj.pt processo 0056405; Ac. da RL de 14/08/2001, relatado por Trigo Mesquita, in www.gde.mj.pt processo 0080099; Ac. da RL de 27/09/2000, relatado por Miranda Jones, in www.gde.mj.pt processo 0069723; Ac. da RL de 12/07/2001, relatado por Alberto Semedo, in www.gde.mj.pt processo 0071549; Ac. da RL de 28/08/2000, relatado por Cotrim Mendes, in www.gde.mj.pt processo 0077833; Ac. da RP de 28/04/2004, relatado por Coelho Vieira, in www.gde.mj.pt processo 0441521; Ac. da RP de 20/03/1991, relatado por Castro Ribeiro, in www.gde.mj.pt processo 9120194; Ac. da RC de 24/02/1999, relatado por Serafim Alexandre, in www.gde.mj.pt processo 171/99; Ac. da RG de 08/05/2006, relatado por Estelita de Mendonça, in www.gde.mj.pt processo 783/06-1; Ac. da RE de 28/02/2012, relatado por Ana Bacelar Cruz, in www.gde.mj.pt, processo 16/11.1PEBJA-A:E1; Ac. da RE de 26/06/2012, relatado por António João Latas, in
www.gde.mj.pt
, processo 506/11.6GFLLE-A.E1, e Ac. da RC de 10/09/2012, relatado por Fernando Monterroso, in www.gde.mj.pt processo 48/12.2GAVNF-B.G1.
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/3d2735c41697445280258c850052ffdf?OpenDocument
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1,747,872,000,000
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NÃO PROVIDO
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802/24.2PCLSB-A.L1-9
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802/24.2PCLSB-A.L1-9
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CRISTINA SANTANA
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I. Estando indiciada a pática pelo arguido de um crime de violação, p. e p. pelo artigo 164º, nº2, al. a), do C.Penal e, atento o circunstancialismo factico em que o mesmo terá sido cometido, verificado concreto perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação da tranquilidade públicas, uma medida não privativa da liberdade não acautelaria, de forma eficaz, tais perigos.
II. Sendo o arguido jovem e estando integrado no agregado familiar dos progenitores, a medida de coação aplicada, obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica, mostra-se adequada às exigências cautelares e proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente lhe serão aplicadas, respeitando a decisão do Tribunal
a quo
o estatu
ído nos artigos 191º, 193º, 201º e 204º, nº 1, al. c), todos do CPP.
|
[
"VIOLAÇÃO"
] |
Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I Relatório
1.
Em 15.1.2025, na sequência do primeiro interrogatório judicial a que foi submetido, foi imposta ao arguido
AA
, com os demais sinais dos autos, a medida de coacção de prisão preventiva.
Por despacho proferido em 05.02.2025, foi determinada a substituição da medida aplicada pela medida de Obrigação de Permanência da Habitação, sujeita a vigilância electrónica.
2.
Em 17.2.2025, o arguido interpôs
recurso
.de tais despachos.
Transcrevem-se as conclusões de tal resposta:
“I
Entendeu o Ministério Público e o Tribunal a quo que o Arguido se mostrava indiciado da prática de um crime de violação p. e p. pelo artigo 164º, n.º 2, alínea a) do C.P.
II
Das declarações das testemunhas ouvidas, nomeadamente, da Ofendida BB, fls. 77 e seguintes, CC, fls. 81 e seguintes, não resultam indícios de qualquer abuso de natureza sexual por parte cio Arguido.
III
Elaborado o Relatório Pericial de Natureza Sexual em Direito Penal, de 13/05/2024, constante de fls. 38 e seguintes resulta o seguinte:
2.3 A nível da região anal e peri-anal
Foi efectuado exame na posição ginecológica e a examinada estava relaxada. Não se observaram lesões traumáticas.
2.4 A nível da região genital e peri-genital
A examinada é púbere e apresenta um desenvolvimento físico e sexual compatível com a idade real, Foi efectuado exame na posição ginecológica e a examinada estava relaxada
- Região vulvar: de configuração anatómica, sem lesões traumáticas recentes
- Hímen: anular, franjeado, rosado, membrana livre sem soluções de continuidade e presença de petéquias, ás 9h na membrana himenial. Vagina e colo do útero: não observados. Não foi introduzido espéculo por antecedentes ginecológicos e ausência de vestígios hemáticos nas zaragatoas colhidas."
Assim, do relatório da Perícia de Natureza Sexual em Direito Penal, não existem quaisquer vestígios de penetração vaginal como se refere na matéria indiciária.
IV
Do relatório Pericial de fls. 58 dos autos resulta que nas cuecas da Ofendida apenas se observa "... um perfil de ADN idêntico ao perfil de BB",
V
Do relatório Pericial do Serviço de Química e Toxicologia Forenses, de fls. 195. e seguintes resulta, ainda que na zaragatoa vulvar (C 1) e Zaragatoa vaginal (C1) "Não foi identificado qualquer haplótipo do cromossoma Y"
VI
Assim, em face do depoimento das testemunhas ouvidas em sede de inquérito e dos Exames periciais nunca o Tribunal a quo poderia ter dado como indiciado que:
10. De imediato, o arguido puxou os calções e as cuecas de BB para baixo, até à zona dos tornozelos, e colocou-a deitada no chão, apoiada sobre os joelhos e com o quadril levantado.
11. De imediato, o arguido baixou também as suas calças, colocou-se por trás de BB e introduziu o seu pénis erecto na vagina de BB, fazendo movimentos de vaivém, durante alguns minutos.
VII
Entendeu o Tribunal a quo que o facto do Tribunal a quo ter detetado "petéquias na membrana himenial às 9h." era a prova provada de que exista violação!!!!
VIII
Como resulta da consulta em fontes abertas petéquias: são pequenos pontos vermelhos, roxos ou marrom que normalmente surgem agrupados, como resultado de um pequeno sangramento sob a pele ou mucosas
https://www.tuasaude.com/petequias/
IX
As petéquias podem ser causadas por traumas, doenças infecciosas distúrbios dos vasos sanguíneos, reações alérgicas, doenças auto-imunes ou como efeito colateral de certos medicamentos, por exemplo.
X
Consta do relatório pericial, página 4, fls. 39: "Não se apurou pelo testemunho qual a origem da mesma."
XI
Assim, é manifesto que afirmar-se, como fez o Tribunal a quo que: "lesões estas que, pela sua natureza e localização, tudo indica terem decorrido diretamente da agressão sexual cuja prática pelo arguido se encontra fortemente indiciada..."é no mínimo temerário...
XII
Com o devido respeito, não existe uma única prova de que a Ofendida tenha sido abusada sexualmente. Não existe um único indício de que o Arguido introduziu o seu pénis erecto na vagina de BB.
XIII
A prova pericial contraria as conclusões retiradas pelo Ministério público e pelo Tribunal a quo.
Mas mais,
XIV
No ponto 15 da matéria indiciaria:
"Nessa ocasião, CC deparou-se com o arguido despido da cintura para baixo, posicionado por trás de BB, agarrando-a na zona da cintura, ficando o mesmo atrapalhado e, de imediato, subiu as suas calças."
XV
Nunca o Ministério Público poderia retirar das declarações da testemunha CC que:
"... CC deparou-se com o arguido despido da cintura para baixo..."
XVI
Aquilo que se mostra escrito, e que a referida testemunha terá declarado, fls. 82, linhas 17 a 24 foi que:
"Nesse momento, deparou-se com uma rapariga de joelhos, com o quadril e a saia levantados, com as cuecas vestidas. Com a cabeça praticamente dentro da sanita, inanimada e com um individuo, atrás delas, com as mãos na zona da cintura das calças.
Questionado o indivíduo sobre o motivo pelo qual estariam ambos. no interior do compartimento, tendo este respondido que "estava a ajudar a amiga, porque ela estava maldisposta e a vomitar e que ela estava a fazer chichi" (sic)
XVII
Em momento algum a testemunha refere que visualizou "... o arguido despido da cintura para baixo..."
XVIII
O amigo da ofendida que alertou o Segurança, não referiu que a amiga estivesse a ser abusada, mas sim que "... estava já há muito tempo caída no chão da casa de banho."
XIX
Foi, pois, perante este cenário que o Arguido agarrou na Ofendida colocou junto à sanita para que a mesma pudesse vomitar.
XX
Como acima tivemos oportunidade de referir não existe um único indício de que o Arguido tivesse violado a Ofendida.
XXI
No caso sub judice, por tudo o que acima se encontra exposto, não existindo qualquer prova, ainda que indiciária, de que o Arguido penetrou, a vagina da Ofendida com o seu pénis, atente-se que na recolha de elementos em zaragatoa na vagina não foram encontrados quaisquer elementos, não poderia o Tribunal a quo ter considerado indiciado a prática do referido crime.
XXII
O Tribunal a quo considerou indiciado que:
O arguido tem a ocupação de estudante, frequentando o 30 e último ano da licenciatura em engenharia informática e multimédia no ...);
Não tem antecedentes criminais.
XXIII
Com o devido respeito, o Tribunal a quo não teve em atenção a fragilidade dos indícios recolhidos, nem o facto de que o Arguido foi detido no dia 14 de janeiro de 2025 por factos praticados em 13/05/2024.
XXIV
Se o Tribunal a quo entendia que ao Arguido era de aplicar uma medida de coação deveria ter optado por uma medida não privativa da liberdade, nomeadamente, uma apresentação semanal junto do órgão de Polícia Criminal ou até, eventualmente, a proibição de frequentar casas de diversão noturnas como discotecas.
XXV
Aplicar ao Arguido, nesta fase da sua vida, quando se encontra a terminar o seu curso superior de Engenharia no ..., uma medida de coação que o impede de acompanhar as aulas e frequentar o curso é condicionar irremediavelmente a sua vida e o seu futuro.
XXVI
A presunção de inocência de uma pessoa não se admite exige-se aos Tribunais têm a obrigação de a respeitar.
XXVII
Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou os artigos 1640, do Código penal, 1920, 1930, 2010, 2020, 2040 do Código de Processo penal e bem assim os artigos 280 e 320 da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deve o presente Recurso obter provimento.
Assim decidindo farão V. Exas. JUSTIÇA
3.
O recurso foi admitido, por despacho proferido em 27.02.2025,. a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
4.
Na primeira instância, na sua
resposta,
apresentada em 31.03.2025, o pugnou o Digno Magistrado do Ministério Público pelo não provimento do recurso.
Transcrevem-se as conclusões da resposta apresentada:
“a) Não assiste razão ao recorrente, devendo o recurso ser julgado totalmente improcedente e confirmada a decisão recorrida.
b) O arguido AA foi sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido por resultar fortemente indiciada a prática de um crime de violação, p. e p. pelo art.º 164.2, n.2 2, al. a) do Código Penal, a que corresponde a moldura abstracta de 3 a 10 anos.
c) O juízo de forte indiciação sobre a prática da totalidade dos factos constantes da apresentação a 1.2 interrogatório judicial de arguido detido foi formulado de acordo com os elementos probatórios em que os presentes autos se mostram instruídos.
d) O arguido optou por se remeter ao silêncio, não tendo apresentado o seu contributo com a sua eventual versão distinta.
e) Não obstante, serviram de elementos de prova, através de apreciação crítica e conjugada, os autos de inquirição da vítima BB, bem como das demais testemunhas inquiridas, a saber: DD, EE e CC.
f) Em complemento, o Auto de Apreensão e o auto de visionamento das imagens de videovigilância, e que permitem visualizar a dinâmica da conduta do arguido, corroboram a forte indiciação.
g) De maior importância resulta, ainda, o resultado do relatório pericial, de fls. 37 a 39, donde resultam observadas lesões traumáticas a nível da superfície corporal, na zona genital, pois "designadamente petéquias na membrana imenial, ás 9h, lesões estas que, pela sua natureza e localização, tudo indicia terem decorrido directamente da agressão sexual cuja prática pelo arguido se encontra fortemente indiciada, a qual, segundo as regras da experiência comum, constitui causa adequada para produzir tais resultados."
h) Acresce que, ao contrário do que alega o recorrente, não só foram identificados cromossomas Y na zaragatoa perianal, como os mesmos foram coincidentes com o haplótipo do arguido AA, conforme resulta do relatório pericial junto a fls. 219, requerendo-se a junção do mesmo à certidão a remeter ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
i) Assim, entendemos que os despachos proferidos pelo Tribunal a quo não merecem as críticas referidas no Recurso apresentado pelo recorrente.
j) A medida de coacção aplicada foi a correcta, proporcional e adequada, em face dos perigos verificados.
k) Verifica-se um concreto e fundado perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, bem como um perigo de continuação da actividade criminosa.
I) A única medida de coacção que se mostra adequada e proporcional aos factos em causa e à personalidade do arguido, bem como à pena de prisão efectiva que, previsivelmente, lhe virá a ser aplicada em julgamento, fazendo um juízo de prognose, é a medida de coacção de prisão preventiva, a qual se substituiu para OPHVE, fundamentadamente.
m) Assim, nenhuma censura merecem os despachos recorridos, devendo o recurso improceder e a decisão recorrida ser integralmente confirmada.
Termos em que, decidindo pela manutenção do douto despacho recorrido, nos seus exactos termos e fundamentos, farão V. Exas., como sempre,
JUSTIÇA!
5.
Remetidos os autos a este Tribunal, nos termos e para os efeitos no art.º 416º do C.P.P. foram os autos com vista à Ex.mª Procuradora-Geral Adjunta que emitiu o
Parecer
que se transcreve:
“
Visto do Ministério Público
[art.º 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal]
1. O Recurso.
O recurso foi interposto pelo arguido AA do despacho judicial, de 15.012025, proferido pelo Meritíssimo Juíz de Instrução Criminal, do Tribunal Central de Instrução Criminal que, após o 1.º interrogatório judicial, considerou que a prova reunida indicia fortemente que o, agora, recorrente incorreu na prática, em autoria material, de um crime de violação, p.p. pelo art.º 164.º, n.º 2, al. a) do Código Penal, a que corresponde a moldura abstrata de 3 a 10 anos de prisão e decretou a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, por se verificarem os perigos de continuação da atividade criminosa e de grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas, tudo ao abrigo do disposto dos arts. 191.º, 192.º, 193.º, 195.º, 196.º, 202.º, n.º 1, al. a) e 204.º, n.º 1, al. c), todos do Cód. Processo Penal.
O recorrente fundamenta o recurso na insuficiência de indícios, desproporcionalidade da medida, na inexistência de perigo da perturbação, ordem e da tranquilidade pública e bem assim da inexistência de perigo de continuação da atividade criminosa e pretende a revogação do despacho sindicado com a restituição à liberdade, sujeito a uma apresentação semanal junto do órgão de Polícia Criminal ou até, eventualmente, a proibição de frequentar casas de diversão noturnas como discotecas.
2. Posição do Ministério Público na 1.ª instância
O Ministério Público apresentou Resposta defendendo a confirmação do decidido, entendendo que a única medida de coação idónea a cumprir as funcionalidades e as necessidades processuais atuais respeitantes ao inquérito é a que se encontra em vigor – a de Prisão Preventiva, pois as medidas coativas não privativas da liberdade não são idóneas a satisfazer as necessidades cautelares, tendo em conta a liberdade de ação, de movimentos e de contactos que proporcionam, já que, se não restringido na sua liberdade pessoal e de movimentos, o arguido não deixará de atuar, considerando o seu modus operandi, o que leva a crer que poderia fazer o mesmo com outras jovens raparigas/mulheres.
3. Posição do Ministério Público no TRL
Analisados os elementos de prova certificados, o despacho recorrido e os fundamentos do recurso, aderimos inteiramente à resposta ao recurso apresentada pela nossa Colega na 1.ª instância, por se apresentar fundamentada, crítica, clara e adequada.
Sempre se dirá que os factos que se encontram fortemente indiciados (além das demais, v.g. da prova pericial resulta que, e ao contrário do que alega o recorrente, não só foram identificados cromossomas Y na zaragatoa perianal, como os mesmos foram coincidentes com o haplótipo do arguido AA cfr. relatório pericial junto a fls. 219) , a sua natureza e gravidade não permitem concluir por uma mitigação das exigências cautelares quanto ao arguido.
Ora, o crime de violação é dos mais graves dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual por ser dos que mais intensamente lesa a liberdade e a autenticidade da expressão da vida sexual das pessoas. Trata-se de crimes que revelam elevado grau de ilicitude e de culpa, indiciadores de instintos primários mal dominados, insensibilidade moral e baixeza de carácter. Numa estrutura social como a nossa, assente em determinados valores de defesa e proteção da comunidade e da pessoa, não podemos deixar de concluir que a descrita conduta do arguido é muito grave, pois que os referidos valores foram grosseiramente violados.
A conduta do arguido é merecedora da mais acentuada censurabilidade pelo cidadão comum, atentos os bens jurídicos afetados.
Por outro lado, estamos perante crimes que, pelo especial bem jurídico protegido, levam o cidadão comum a um descrédito nas instâncias formais de controlo, caso estas não respondam eficaz e convenientemente, possibilitando, na ausência de tal resposta, reações emotivas e de choque e estamos, sem dúvida, perante atos de violência que não só assumem contornos de intensa desumanidade, como revelam pela sua natureza e personalidade do seu agente, um forte perigo de continuação da atividade criminosa.
Frise-se ainda que em 1º interrogatório de arguido detido, este remeteu-se ao silêncio. Este silêncio, ainda que seja um direito que ao arguido assiste, manifesta (pelo menos até ao momento em que é decidida a aplicação da medida de coação) uma indisponibilidade pessoal do arguido para o esclarecimento dos factos ilícitos indiciados no inquérito e por maioria de razão o grau da sua participação na prática dos mesmos. Não assumir, não esclarecer, perante a evidência probatória, faz deduzir a ausência de insight crítico do arguido relativamente à sua conduta. Nada resulta dos autos que o arguido tenha interiorizado o desvalor da sua conduta, receando-se que situações como a dos autos, face à ausência de consciência valorativa e da dimensão traumática desta forma de violência, que coloca gravemente em perigo a saúde psicológica da vítima, se voltem a repetir.
Termos em que entendemos que o arguido se deve manter sujeito à medida de coação que lhe foi aplicada, por se configurar como a única apta a prevenir os perigos de continuação da atividade delituosa e perturbação grave da ordem e tranquilidade e públicas, adequada às exigências cautelares que o caso requer, proporcional à gravidade do crime e à pena que previsivelmente virá a ser aplicada, sendo de negar provimento ao recurso.
Mas a final, não obstante, melhor se dirá.
*
Lisboa, ds”
Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, o arguido veio responder nos seguintes termos:
“AA, Recorrente, nos autos acima melhor identificados, notificado do parecer do Ministério Público, vem, muito respeitosamente, nos termos do artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, em resposta, dizer o seguinte:
Refere a Digníssima Senhora Procuradora Geral Adjunta no seu parecer:
“(…)
Analisados os elementos de prova certificados, o despacho recorrido e os fundamentos do recurso, aderimos inteiramente à resposta ao recurso apresentada pela nossa Colega na 1.ª instância, por se apresentar fundamentada, crítica, clara e adequada. Sempre se dirá que os factos que se encontram fortemente indiciados (além das demais, v.g. da prova pericial resulta que, e ao contrário do que alega o recorrente, não só foram identificados cromossomas Y na zaragatoa perianal, como os mesmos foram coincidentes com o haplótipo do arguido AA cfr. relatório pericial junto a fls. 219), a sua natureza e gravidade não permitem concluir por uma mitigação das exigências cautelares quanto ao arguido.
Ora, o crime de violação é dos mais graves dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual por ser dos que mais intensamente lesa a liberdade e a autenticidade da expressão da vida sexual das pessoas. Trata-se de crimes que revelam elevado grau de ilicitude e de culpa, indiciadores de instintos primários mal dominados, insensibilidade moral e baixeza de carácter. Numa estrutura social como a nossa, assente em determinados valores de defesa e proteção da comunidade e da pessoa, não podemos deixar de concluir que a descrita conduta do arguido é muito grave, pois que os referidos valores foram grosseiramente violados.
A conduta do arguido é merecedora da mais acentuada censurabilidade pelo cidadão comum, atentos os bens jurídicos afetados.
Por outro lado, estamos perante crimes que, pelo especial bem jurídico protegido, levam o cidadão comum a um descrédito nas instâncias formais de controlo, caso estas não respondam eficaz e convenientemente, possibilitando, na ausência de tal resposta, reações emotivas e de choque e estamos, sem dúvida, perante atos de violência que não só assumem contornos de intensa desumanidade, como revelam pela sua natureza e personalidade do seu agente, um forte perigo de continuação da atividade criminosa. Frise-se ainda que em 1º interrogatório de arguido detido, este remeteu-se ao silêncio. Este silêncio, ainda que seja um direito que ao arguido assiste, manifesta (pelo menos até ao momento em que é decidida a aplicação da medida de coação) uma indisponibilidade pessoal do arguido para o esclarecimento dos factos ilícitos indiciados no inquérito e por maioria de razão o grau da sua participação na prática dos mesmos. Não assumir, não esclarecer, perante a evidência probatória, faz deduzir a ausência de insight critico do arguido relativamente à sua conduta. Nada resulta dos autos que o arguido tenha interiorizado o desvalor da sua conduta, receando-se que situações como a dos autos, face à ausência de consciência valorativa e da dimensão traumática desta forma de violência, que coloca gravemente em perigo a saúde psicológica da vítima, se voltem a repetir.
Termos em que entendemos que o arguido se deve manter sujeito à medida de coação que lhe foi aplicada, por se configurar como a única apta a prevenir os perigos de continuação da atividade delituosa e perturbação grave da ordem e tranquilidade e públicas, adequada às exigências cautelares que o caso requer, proporcional à gravidade do crime e à pena que previsivelmente virá a ser aplicada, sendo de negar provimento ao recurso.”
Não iremos obviamente aduzir, por maçador que seriam, os argumentos já amplamente expandidos no modesto recurso apresentado.
Com o devido respeito,
Das declarações das testemunhas ouvidas, nomeadamente, da Ofendia BB, fls. 77 e seguintes, CC, fls. 81 e seguintes, não resultam indícios de qualquer abuso de natureza sexual por parte do Arguido.
Elaborado o Relatório Pericial de Natureza Sexual em Direito Penal, de
13/05/2024
, constante de fls. 38 e seguintes resulta o seguinte:
“2.3 A nível da região anal e peri-anal
Foi efectuado exame na posição ginecológica e a examinada estava relaxada. Não se observaram lesões traumáticas.
2.4 A nível da região genital e peri-genital
A examinada é púbere e apresenta um desenvolvimento físico e sexual compatível com a idade real. Foi efectuado exame na posição ginecológica e a examinada estava relaxada
- Região vulvar: de configuração anatómica, sem lesões traumáticas recentes
- Hímen: anular, franjeado, rosado, membrana livre sem soluções de continuidade e presença de petéquias, às 9h na membrana himenial.
Vagina e colo do útero: não observados. Não foi introduzido espéculo por antecedentes ginecológicos e ausência de vestígios hemáticos nas zaragatoas colhidas.”
Resultando também do relatório da Perícia de Natureza Sexual em Direito Penal, não existem quaisquer vestígios de penetração vaginal como se refere na matéria indiciária.
Do relatório Pericial de fls. 58 dos autos resulta que nas cuecas da Ofendida apenas se observa “… um perfil de ADN idêntico ao perfil de BB”.
Do relatório Pericial do Serviço de Química e Toxicologia Forenses, de fls. 195 e seguintes resulta, ainda que na zaragatoa vulvar (C 1) e Zaragatoa vaginal (C1)
“Não foi identificado qualquer haplótipo do cromossoma Y”
Do depoimento das testemunhas ouvidas em sede de inquérito e dos Exames periciais nunca o Tribunal a quo poderia ter dado como indiciado que:
“10. De imediato, o arguido puxou os calções e as cuecas de BB para baixo, até à zona dos tornozelos, e colocou-a deitada no chão, apoiada sobre os joelhos e com o quadril levantado.
11. De imediato, o arguido baixou também as suas calças, colocou-se por trás de BB e introduziu o seu pénis erecto na vagina de BB, fazendo movimentos de vaivém, durante alguns minutos.”
Não existe uma única prova de que a Ofendida tenha sido abusada sexualmente.
Não existe um único indício de que o Arguido introduziu o seu pénis erecto na vagina de BB.
A prova pericial contraria as conclusões retiradas pelo Ministério público e pelo Tribunal a quo.
Mas mais,
No ponto 15 da matéria indiciária:
“Nessa ocasião, CC deparou-se com o arguido despido da cintura para baixo, posicionado por trás de BB, agarrando-a na zona da cintura, ficando o mesmo atrapalhado e, de imediato, subiu as suas calças.”
Nunca o Ministério Público poderia retirar das declarações da testemunha CC que:
“… CC deparou-se com o arguido despido da cintura para baixo…”
Aquilo que se mostra escrito, e que a referida testemunha terá declarado, fls. 82, linhas 17 a 24 foi que:
“Nesse momento, deparou-se com uma rapariga de joelhos, com o quadril e a saia levantados, com as cuecas vestidas. Com a cabeça praticamente dentro da sanita, inanimada e com um indivíduo, atrás delas, com as mãos na zona da cintura das calças.
Questionado o indivíduo sobre o motivo pelo qual estariam ambos no interior do compartimento, tendo este respondido que “estava a ajudar a amiga, porque ela estava maldisposta e a vomitar e que ela estava a fazer chichi” (sic)
Em momento algum a testemunha refere que visualizou “… o arguido despido da cintura para baixo…”
O amigo da ofendida que alertou o Segurança, não referiu que a amiga estivesse a ser abusada, mas sim que “… estava já há muito tempo caída no chão da casa de banho.”
Foi, pois, perante este cenário que o Arguido agarrou na Ofendida e a colocou junto à sanita para que a mesma pudesse vomitar.
Por tudo o que acima se encontra exposto, não existindo qualquer prova, ainda que indiciária, de que o Arguido penetrou a vagina da Ofendida com o seu pénis, atente-se que na recolha de elementos em zaragatoa na vagina não foram encontrados quaisquer elementos, não poderia o Tribunal a quo ter considerado indiciado a prática do referido crime.
O Tribunal a quo considerou indiciado que:
• O arguido tem a ocupação de estudante, frequentando o 3º e último ano da licenciatura em engenharia informática e multimédia no ...);
• Não tem antecedentes criminais.
O Tribunal a quo não teve em atenção a fragilidade dos indícios recolhidos, nem o facto de que o Arguido foi detido no dia 14 de janeiro de 2025 por factos praticados em 13/05/2024.
Se o Tribunal a quo entendia que ao Arguido era de aplicar uma medida de coação deveria ter optado por uma medida não privativa da liberdade, nomeadamente, uma apresentação semanal junto do órgão de Polícia Criminal ou até, eventualmente, a proibição de frequentar casas de diversão noturnas como discotecas.
Aplicar ao Arguido, nesta fase da sua vida, quando se encontra a terminar o seu curso superior de Engenharia no ..., uma medida de coação que o impede de acompanhar as aulas e frequentar o curso é condicionar irremediavelmente a sua vida e o seu futuro.
A presunção de inocência de uma pessoa não se admite exige-se e os Tribunais têm a obrigação de a respeitar.
Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou os artigos 164º, do Código penal, 192º, 193º, 201º, 202º, 204º do Código de Processo penal e bem assim os artigos 28º e 32º da Constituição da República Portuguesa.
Assim decidindo farão V. Exas. a esperada,
Justiça!
Após exame preliminar, foram colhidos os vistos legais.
Foram os autos à conferência.
II Fundamentação
1.
Conforme jurisprudência pacífica o Supremo Tribunal de Justiça – vide, por todos e dada a demais jurisprudência nele referida, Ac. de 28.4.99, CJ/STJ, 1999, tomo 2, página 196 -, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, isto sem prejuízo do conhecimento oficioso das questões elencadas no art.º 410º, nº 2, do C.P.P..
Assim, face às conclusões apresentadas são as seguintes as questões que constituem o objecto do recurso:
A- Da ausência de indícios bastantes do cometimento por parte do Recorrente do crime que, indiciariamente, lhe é imputado.
B- Da inadequação de medida aplicada e da adequação da medida prevista no artigo 198º do CPP ou, se assim não se entender, se deve “ser dada prioridade a outras menos gravosas por ordem crescente”.
2. A decisão recorrida (transcrição na parte relevante):
Referência: 9178128 Inquérito (Atos Jurisdicionais) 802/24.2PCLSB
AUTO DE INTERROGATÓRIO
(COM GRAVAÇÃO)
(1º Interrogatório Judicial de arguido detido - Art.º 141º C. P. Penal)
Aos 14 dias do mês de janeiro de 2025, pelas 18:08 horas, neste Tribunal Central
de Instrução Criminal, Juiz 1, onde se encontravam presentes os Exmos.: --
Mm.º Juiz de Direito: Dr. FF
Procuradora da República: Dra. GG
Oficial de Justiça: HH
Tendo o arguido declarado previamente nos presentes autos, a intenção de não constituir advogado e dada a obrigatoriedade imposta pelo art.º 64º, nº 1, al. a) e 141º, nº 2, ambos do C. P. Penal, ao abrigo do disposto no art.º 3º, nº 1, da Portaria nº 10/2008, de 3 de Janeiro, foi-lhe nomeado defensora oficiosa, a Sra. Dra. II, com cédula profissional n.º 18507L a qual se encontrava presente e aceitou o cargo.
Iniciado o presente ato, o Mm.º Juiz de Direito advertiu o arguido de que a falta de resposta às perguntas que lhe vão ser feitas sobre a sua identidade, ou a falsidade da mesma, o pode fazer incorrer em responsabilidade penal, tendo respondido da seguinte forma:
Nome: AA. —
Filiação: JJ e KK. —
Data de nascimento: .../.../1999. —
Natural de: .... —
Nacionalidade: Portuguesa. —
Naturalidade: ...
Estado civil: Solteiro. —
Profissão: Estudante. —
Domicílio: Rua ...
Em seguida, nos termos do disposto no art.º 141º, nº 4, al. a), do C. P. Penal, o Mm.º Juiz de Direito informou o arguido dos direitos referidos no art.º 61.º, n.º 1, do referido diploma legal, explicando-lhe os mesmos.
Informou-o ainda, nos termos da al. b) do nº 4 do citado art.º 141º do C. P. Penal de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova.
Informou-o por fim, nos termos das al. c), d) e e) do nº 4 do citado Art.º 141º do C. P. Penal, dos motivos da detenção, designadamente dos factos que lhe são concretamente imputados, nos exatos termos da douta promoção que antecede, através da entrega de cópia, sendo que os factos também lhe foram lidos porquanto o arguido declarou que tem conhecimento dos mesmos, os quais são os seguintes:
1. No dia 13/05/2024,, pelas 06:00 horas, o arguido AA encontrava-se no estabelecimento de diversão nocturna ..., sito no ....
2. Previamente, o arguido muniu-se de vários frascos contendo GAMABUTIROLACTONA (GBL), os quais havia adquirido anteriormente, em circunstancialismo não apurado, e transportou-os para aquele estabelecimento, com o fim de os ceder ou vender a terceiros.
3. Assim, nessa ocasião, o arguido apercebeu-se da presença de BB, de 19 anos, a qual se encontrava naquele local a celebrar o seu aniversário, acompanhada de cerca de 10 pessoas, e tendo a mesma ingerido algumas bebidas alcoólicas.
4. Por volta das 06:10 horas, o arguido aproximou-se BB, sem que antes a mesma lhe fosse apresentada, e disse-lhe: "posso beijar-te? Posso beijar-te?". De seguida, perguntou a BB e aos amigos desta se queriam "ecstasy", tendo todos anuído, pelo que experimentaram o produto que o arguido lhes entregou, bebendo cerca de 2 a 4 gotas de um líquido que se encontrava num frasco contendo GAMABUTIROLACTONA (GBL).
5. De seguida, o arguido chamou BB, e outras amigas desta, à parte, junto à casa de banho feminina daquele estabelecimento de diversão nocturno, e perguntou-lhes se queriam experimentar mais produto idêntico ao que já lhes tinha oferecido, tendo repetido várias vezes a pergunta.
6. Ao mesmo tempo, dirigiu-se a BB e perguntou-lhe se a podia beijar, repetindo que queria muito beijá-la, tendo a mesma respondido que não queria.
7. A dada altura, EE, uma das amigas que acompanhava o grupo de BB, — e que havia consumido GAMABUTIROLACTONA (GBL) que o arguido lhe facultou momentos antes — perdeu os sentidos na pista de dança, sendo levada para o exterior, e transportada numa ambulância que lhe prestou assistência médica.
8. Nessa ocasião, também BB se apercebeu que, após ter consumido GAMABUTIROLACTONA (GBL) que o arguido lhe facultou momentos antes, começou a sentir tonturas e falta de percepção da realidade e memória do que estava a acontecer naquele momento, tendo-se deslocado várias vezes à casa de banho feminina.
9. Apercebendo-se que BB se encontrava sem percepção da realidade, num estado de desorientação decorrente do consumo de GAMABUTIROLACTONA (GBL) que o arguido lhe facultou momentos antes, este seguiu-a para o interior da casa de banho feminina, levando-a para o interior de um dos cubículos individuais e trancando-se de seguida, juntamente com BB.
10. De imediato, o arguido puxou os calções e as cuecas de BB para baixo, até à zona dos tornozelos, e colocou-a deitada no chão, apoiada sobre os joelhos e com o quadril levantado.
11. De imediato, o arguido baixou também as suas calças, colocou-se por trás de BB e introduziu o seu pénis erecto na vagina de BB, fazendo movimentos de vaivém, durante alguns minutos.
12. Nessa ocasião, CC, vigilante daquele estabelecimento, foi alertado por um cliente para se dirigir à casa de banho feminina.
13. De imediato, CC deslocou-se à casa de banho feminina, tendo-se deparado com a porta de um cubículo fechada, encontrando-se no interior o arguido e BB, batendo para que abrissem.
14. Como ninguém respondeu, nem abriram a porta, CC forçou a porta, abrindo-a.
15. Nessa ocasião, CC deparou-se com o arguido despido da cintura para baixo, posicionado por trás de BB, agarrando-a na zona da cintura, ficando o mesmo atrapalhado, e, de imediato, subiu as suas calças.
16. Por seu turno, verificou que BB se encontrava deitada no chão, com a cabeça quase no interior da sanita, em estado inconsciente, sem verbalizar qualquer palavra, estando apoiada sobre os joelhos e com o quadril levantado, tendo as suas cuecas e calções puxados até à zona dos tornozelos.
17. De imediato, o arguido ausentou-se do local, dirigindo-se à casa de banho masculina e, de seguida, deslocou-se para a pista de dança, onde foi abordado por Agentes da PSP que foram chamados ao local, tendo encontrado na posse do arguido uma embalagem contendo 6,400 ml de GBL (GAMABUTIROLACTONA).
18. Naquela ocasião, BB não verbalizava qualquer palavra, encontrando-se inanimada, durante vários minutos, tendo sido transportada da casa de banho feminina para um local reservado, ao colo, por dois vigilantes daquele estabelecimento, necessitando de ser transportada para assistência hospitalar pelos Bombeiros Voluntários de Lisboa.
19. BB nunca tinha tido, anteriormente, relações sexuais com qualquer pessoa.
20. No exame pericial realizado a BB foram detectadas três escoriações avermelhadas, grosseiramente verticais, na região axilar direita, a maior, linear com 2 cm de comprimento e a menor infracentimétrica, bem com a presença de petéquias, às 9h na membrana himenial.
21. Ao agir da forma acima descrita, quis o arguido aproveitar-se da falta de capacitação motora e percepção da realidade e memória em que BB se encontrava, decorrente do consumo de GAMABUTIROLACTONA (GBL) que o arguido previamente lhe facultou, sabendo este que aquela não estava em condições físicas e psicológicas para decidir ou para se opor à prática de actos sexuais, sendo incapaz de formular a sua vontade para a prática de tais actos, ou para sequer repelir a conduta do arguido.
22. Não obstante, quis o arguido aproveitar-se de tal estado de incapacidade e vulnerabilidade por si promovido, para conduzir BB até ao cubículo da casa de banho feminina, trancando-se com esta no seu interior, a fim de manter com a mesma os descritos actos sexuais, de cópula vaginal, contra a vontade desta, e mediante o uso de força física.
23. O arguido sabia que, ao manter o referido acto sexual com BB, afectava a integridade psicológica e emocional da mesma e a impedia de se autodeterminar na sua liberdade sexual.
24. Agiu, todavia, com propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos, aproveitando-se da circunstância de aquela se encontrar sob o efeito de GAMABUTIROLACTONA (GBL), que o arguido previamente lhe facultou, e incapaz de oferecer qualquer resistência à sua vontade, querendo obter satisfação sexual através daquela, o que conseguiu.
25. O arguido agiu, ainda, movido por excitação, e pelo estado de incapacidade cognitivo que provocou a BB, mediante a entrega e consumo de GAMABUTIROLACTONA (GBL), que a tornava incapaz de lhe resistir, com o propósito de manter com ela coito vaginal satisfazendo os seus instintos libidinosos, o que conseguiu.
26. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida criminalmente.
*
Pelo exposto, mostra-se fortemente indiciada a prática pelo arguido AA, em autoria material, sob a forma consumada, de 1 crime de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2, al. a) do Código Penal (punível com pena de prisão de três a dez anos).
Prova que fundamenta a indiciação:
Ø Documental:
A constante dos autos, designadamente:• Auto de apreensão, a fls. 32;• Auto de denúncia, a fls. 36;• Relatório pericial, a fls. 37-39;• Relatório pericial, a fls. 58-59;• Ficha de urgência clínica, a fls. 63-67;• Relatório pericial, a fls. 71;• Análises clínicas, a fls. 72-76;• Auto de visionamento das imagens de videovigilância, a fls. 85 a 94;• Suporte digital, a fls. 104 e 115;• Auto de Notícia, a fls. 106;• Auto de apreensão, a fls. 111;• Teste rápido, a fls. 113.
Ø Testemunhal:
1. BB, melhor id. a fls. 77; 2. LL, melhor id. a fls. 81; 3. MM, melhor id. a fls. 96; 4. EE, melhor id. a fls. 100.
***
Pelo arguido foi dito não pretender prestar declarações quanto aos factos, apenas prestou declarações quanto à sua situação pessoal e profissional, tendo as mesmas sido gravadas com início pelas 18:27:34 horas e o seu termo pelas 18:30:09 horas.
Lidas as declarações quanto aos seus elementos de identificação e achando tudo o que do auto consta conforme, o arguido assina com a sua defensora.
(Arguido: AA)
(Defensora oficiosa: Dr. II)
— Seque Promoção, Requerimento e Despacho: -
SEGUIDAMENTE FOI DADA A PALAVRA À DIGNA MAGISTRADA DO MINISTÉRIO PÚBLICO que promoveu, em síntese o seguinte:
TIPO DE CRIME:
Ø 1 crime de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2, al. a) do Código Penal (punível com
pena de prisão de três a dez anos).
PERIGOS:
Ø Perigo de continuação da atividade criminosa;
Ø Perigo de perturbação e da tranquilidade da ordem públicas.
MEDIDA DE COAÇÃO:
Ø Termo de identidade e residência que já prestou e;
Ø Prisão Preventiva
Tudo conforme registado no sistema de gravação áudio em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu inicio ocorreu pelas 18:30:10 horas e o seu termo pelas 18:38:51 horas. --
DADA A PALAVRA À ILUSTRE DEFENSORA OFICIOSA DO ARGUIDO: "No seu uso declarou discordar da posição assumida pelo MP, requerendo a aplicação de uma medida de coacção não privativa da liberdade", consignando-se que o seu início ocorreu pelas 18:38:52 horas e o seu termo pelas 18:42:00 horas.
SEGUIDAMENTE PELO MMO. JUIZ FOI PROFERIDO O SEGUINTE DESPACHO:
"Uma vez que necessito de ponderar relativamente à concreta medida de coação a aplicar ao arguido, não irei proceder de imediato à leitura do despacho a que alude o artigo 194º nº1 do C.P.P., interrompendo a presente diligência, a qual será retomada no dia
15-01-2025
, pelas 9:30 horas.
Passe os correspondentes mandados de condução do arguido."
Seguidamente, foi dada a palavra à defesa do arguido que referiu:
"A defesa aqui nomeada encontra-se, na data designada para continuação da prolação do despacho, com julgamento já agendado também para as 09:30, pelo que se requer a alteração da hora.", o que não mereceu oposição por parte da Digna Magistrada do Ministério Público.
SEGUIDAMENTE PELO MMO. JUIZ FOI PROFERIDO O SEGUINTE DESPACHO:
"Atentos os fundamentos invocados pela Ilustre Defensora, defiro o requerido, designando para continuação da presente diligência, o dia de amanhã, pelas 12:00 horas, dando-se sem efeito a hora anteriormente designada.
Passe os correspondentes mandados de condução do arguido."
***
Do despacho que antecede foram os presentes notificados.
Para constar se lavrou o presente auto que vai ser assinado, quando são 19:00 horas.—
Referência: 9178498 Inquérito (Atos Jurisdicionais) 802/24.2PCLSB
AUTO DE INTERROGATÓRIO
(Continuação)
(COM GRAVAÇÃO)
(1º Interrogatório Judicial de arguido detido - Art.º 141º C. P. Penal)
Ao 15 de janeiro de 2025, pelas 12:08 horas, neste Tribunal Central de Instrução
Criminal, Juiz 1, onde se encontravam presentes os Exmos.: --
Mm.º Juiz de Direito: Dr. FF
Procuradora da República: Dra. GG
Oficial de Justiça: NN
Ilustre Defensora Oficiosa do arguido: Dra. II, com a cédula profissional n.º 18507L
SEGUIDAMENTE PELO MM.º JUIZ FOI PROFERIDO O SEGUINTE:
DESPACHO
A detenção do arguido AA foi legal, porquanto efectuada fora de flagrante delito, ao abrigo de mandados de detenção emitidos pelo Ministério Público, nos termos dos arts. 257.º e 258.º, ambos do Cód. Processo Penal.
Foi respeitado o prazo de apresentação a que se referem os artigos 141.º, n.º 1 e 254.º, n.º 1, al. a) do mesmo diploma.
Tendo em conta a análise crítica e conjugada da globalidade dos elementos probatórios elencados na promoção do Ministério Público de apresentação do arguido, a fls. 163 dos autos, considero encontrar-se fortemente indiciada toda a factualidade a que é feita referência no requerimento do Ministério Público de apresentação do arguido.
Mais ficou indiciado, relativamente à condição pessoal do arguido AA, o seguinte:
- o arguido tem a ocupação de estudante, frequentando o 3.º e último ano da licenciatura em engenharia informática e multimédia no ...);
- vive numa casa arrendada, que partilha com outros três colegas, também estes naturais dos ..., pagando os pais do arguido a quantia mensal de € 340,00, relativamente à parcela da renda que incumbe ao arguido suportar;
- não tem filhos;
- não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
**
O arguido AA remeteu-se ao silêncio, relativamente ao objecto do requerimento do Ministério Público de apresentação de arguido, direito que processualmente lhe é conferido, de maneira que não contribuiu, em nada, para o apuramento dos factos.
Os factos indiciados resultam, assim, da apreciação crítica e conjugada de todos os elementos probatórios carreados para os autos, elencados na promoção do Ministério Público de apresentação do arguido, a fls. 163 dos autos, com especial enfoque para o depoimento da vítima BB.
Inquirida na qualidade de testemunha, BB referiu que na data dos factos, ou seja, na noite 12 para 13 de Maio de 2024, numa altura em que se encontrava a passar férias em Portugal, dirigiu-se, na companhia de outras pessoas que conheceu no nosso país, para uma discoteca, cuja denominação desconhece. Referiu que, no interior da discoteca, um indivíduo desconhecido, que, através da fotografia constante em ficha de identificação civil que lhe foi exibida, reconheceu como tratando-se do ora arguido, se dirigiu a si, e às pessoas de que se fazia acompanhar (EE, OO e DD), tendo-lhes oferecido ecstasy, dando indicações para se encontrarem com ele junto à casa de banho feminina, o que sucedeu, tendo todos aceitado consumir. Acrescentou que, a dado momento, o arguido focou-se em si e noutra rapariga do grupo, tendo-se apercebido que o estupefaciente ingerido estaria a fazer-lhe efeito, tendo-lhe pedido várias vezes para a beijar, o que a depoente sempre recusou. Esclareceu que o indivíduo possuía um frasco com um líquido que, da primeira vez, foi dividido entre si e as pessoas que estavam consigo, e que, da segunda e última vez, o indivíduo ofereceu apenas a si, sendo que consumiu mais quantidade que da primeira vez. Esclareceu que em ambas as situações aceitou a oferta, pelo que consumiu o referido estupefaciente por vontade própria, se bem que no momento em que o indivíduo lhe ofereceu o referido estupefaciente, não lhe pareceu tratar-se de ecstasy, mas não perguntou para confirmar Após ter ingerido tal estupefaciente, sentiu-se demasiado tonta e entorpecida, percebendo que não era apenas derivado ao efeito do álcool que havia consumido nessa noite. Referiu, ainda, que a última recordação que teve daquela noite, foi pelas 05H00, quando se encontrava a dançar, tendo a percepção que estavam menos pessoas no interior da discoteca. Após, já só tem memória de acordar no interior da ambulância. Acrescentou que, antes dessa data, nunca havia mantido relações sexuais consentidas, pelo que era virgem. Reiterou nunca ter manifestado querer manter intimidade com o indivíduo, tendo recusado sempre os pedidos de troca de beijos com o mesmo (auto de inquirição de fls. 77 a 80).
O depoimento prestado pela vítima encontra suporte de prova no depoimento das demais testemunhas inquiridas, a saber, DD, EE (auto de inquirição de fls. 100 a 102) e CC.
A testemunha DD referiu que, na data dos factos, se dirigiu a uma discoteca, integrando um grupo de quatro a cinco pessoas, em que se incluíam, ainda, a BB e a EE. Após entrarem no referido estabelecimento, foram abordados por um indivíduo desconhecido, que lhes deu indicações para se encontrarem como ele junto à casa de banho, onde ofereceu à BB e á EE uma coisa que ele chamou de "ecstasy líquido negro". Presenciou tanto a BB, como a EE, a ingerirem o conteúdo de um frasco, que o depoente afirmou serem de 02/04 gotas, ao passo que o depoente apenas ingeriu meio frasco, ou seja, uma gota. Foram depois para a pista de dança, onde o referido indivíduo dançava com a BB, e o depoente dançava com a EE, encontrando-se todos juntos. Cerca de vinte minutos depois, pelas 06H00, a EE perdeu os sentidos, pelo que decidiram tirá-la da pista de dança, sendo que, quando se encontravam a descer as escadas com a EE, aperceberam-se que a BB não estava com eles, pelo que tentaram procura-la, sem sucesso. Por terem chamado uma ambulância para a EE, acabaram por abandonar o referido estabelecimento, tendo o depoente acompanhado a EE ao hospital. O depoente continuou a tentar encetar contacto telefónico com a BB, sendo que, a um dado momento, um segurança da discoteca atendeu, dizendo que esta estava inconsciente e que tinha sido encontrada na casa de banho com um indivíduo, que lhe disse que o melhor seria o depoente regressar à discoteca. Quando chegou à discoteca reparou que a BB estava num local reservado, acordada e assustada, mas ainda pouco consciente, tendo-a ajudado a entrar na ambulância. Acrescentou, ainda, que antes desse dia, nunca tinha consumido produto estupefaciente da natureza daquele que lhes foi oferecido pelo referido indivíduo, sendo que, na altura, acreditou tratar-se de "ecstasy líquido". No entanto, segundo o que outra rapariga do grupo, de nome PP, lhe disse, tal estupefaciente correspondia a
GHB.
Disse, ainda, que o estado em que a BB se encontrava se devia exclusivamente ao consumo de tal estupefaciente, uma vez que o tempo de transição da diversão ao estado de inconsciência foi repentino e o que diferiu do estado dela e de EE, em relação a si e a PP (auto de inquirição de fls. 96 a 99).
A testemunha CC, por seu turno, deu conta de, à data dos factos, exercer as funções de segurança-porteiro no estabelecimento de diversão nocturna ..., e de ter sido alertado por um cliente para se dirigir à casa de banho do estabelecimento, por uma sua amiga se encontrar há já muito tempo caída no chão da casa de banho. Disse-lhe, ainda, que ao espreitar, viu a amiga dentro do cubículo, de joelhos e alguém atrás dela, não tendo conseguido diferenciar se era um homem ou uma mulher. Face ao exposto, decidiu ir ao local, tendo percecionado que, no interior da casa de banho feminina, um dos compartimentos se encontrava fechado. Decidiu bater à porta, informando quem se encontrasse no interior do compartimento, que era da segurança do estabelecimento. Por ninguém ter respondido, acabou por forçar a abertura da porta, tendo-se, nesse momento deparado com uma rapariga de joelhos, com o quadril e a saia levantados, com as cuecas vestidas, com a cabeça praticamente dentro da sanita, inanimada e com um indivíduo, atrás dela, com as mãos na zona da cintura das calças, aparentando estar a subir as calças ou a ajeitá-las. Questionou, então, o indivíduo, sobre o motivo de estarem ambos no interior do compartimento, tendo este respondido que estava a ajudar a amiga, por ela estar maldisposta e a vomitar e que ela estava a fazer chichi. Referiu, ainda, que, na ocasião, ficou convicto que a situação descrita pelo indivíduo não correspondia ao que estava a visualizar, uma vez que a rapariga não estava sentada na sanita e que o chão não estava molhado. Decidiu chamar uma senhora da limpeza para compor a roupa da rapariga e pediu auxílio a um colega para a retirar do interior da casa de banho. Solicitou a um outro colega que ficasse a aguardar a chegada da polícia ao local, junto do indivíduo, tendo o depoente, de seguida, transportado a rapariga, a braços, com o colega que tinha chamado para o auxiliar, para uma zona mais recatada, exclusivamente para funcionários. Tentaram falar com ela, o que não foi possível, por a mesma se manter completamente inanimada e não responder. Acrescentou que os agentes da PSP, chamados ao local, falaram com o indivíduo, e que, ao efectuarem uma revista sumária ao mesmo, encontraram um frasco, contendo uma substância desconhecida. Ao ver o conteúdo do frasco, percepcionou que se tratava de uma droga usada pelos violadores, para ter actos sexuais, que, se tomada em grandes quantidades, deixa uma pessoa inanimada, do que tem conhecimento por trabalhar na noite, onde é habitual o consumo dessas substâncias. Posteriormente, os Bombeiros Voluntários de Lisboa chegaram ao local, tendo confirmado a inconsciência da rapariga, pelo que a conduziram ao Hospital (auto de inquirição de fls. 81 a 83).
Refira-se que, o relato dos factos efectuado pela testemunha CC, encontra suporte de prova no auto de notícia de fls. 106 e 107, de onde resulta que, na sequência da revista efectuada ao arguido, foi encontrado e apreendido, um frasco de cor castanha, contendo no seu interior produto suspeito de ser estupefaciente, nomeadamente GHB, no auto de apreensão de fls. 111 e 111v. e no relatório pericial de fls. 69, comprovativo da qualidade do produto apreendido, GAMABUTIROLACTONA, e onde se refere que a ingestão deste produto tem efeitos semelhantes aos provocados pela ingestão de gama-ácido hidroxibutírico (GHB).
E encontra, igualmente, suporte de prova no auto de visionamento das imagens de videovigilância, de fls. 85 a 94, onde é visível o arguido a dirigir-se sozinho à casa de banho feminina da discoteca e a introduzir-se no seu interior, bem como, cerca de doze minutos depois do arguido se ter introduzido na casa de banho, um rapaz não identificado a dirigir-se ao local, a ajoelhar-se no chão, por forma a espreitar para baixo de uma das cabines existentes no interior da casa de banho feminina, a sair do corredor e a regressar à casa de banho feminina, cerca de um minuto depois, agora acompanhado de um segurança do estabelecimento.
O tribunal valorou, igualmente, o relatório pericial que integra fls. 37 a 39 dos autos, de onde resulta que na sequência do exame efectuado à vítima BB, foram observadas lesões traumáticas a nível da superfície corporal, nomeadamente uma lesão traumática na região genital, designadamente petéquias na membrana imenial, ás 9h, lesões estas que, pela sua natureza e localização, tudo indicia terem decorrido directamente da agressão sexual cuja prática pelo arguido se encontra fortemente indiciada, a qual, segundo as regras da experiência comum, constitui causa adequada para produzir tais resultados.
Em suma, em face da análise crítica e conjugada de todos os elementos probatórios, de natureza pericial, documental e testemunhal existentes nos autos, é nosso entendimento encontrar-se fortemente indiciada nos autos toda a factualidade a que é feita referência no requerimento do Ministério Público de apresentação de arguido, designadamente que, nas circunstâncias de tempo e de lugar aí referidas, o arguido, o arguido facultou GAMABUTIROLACTONA à vítima, BB, para que esta a consumisse, e, por via de tal consumo, ficasse numa situação de falta de capacitação motora e percepção da realidade e memória, num estado de total ausência de condições físicas e psicológicas, que a impossibilitava de um qualquer poder de decisão ou de manifestar oposição à prática dos actos sexuais que o arguido visava perpetrar, tendo-se o arguido aproveitado de tal estado de incapacidade e vulnerabilidade por si promovido, para, após se introduzir no interior da casa de banho feminina do estabelecimento ..., manter com esta actos sexuais de cópula vaginal, bem sabendo que a mesma se encontrava inconsciente, e, por esse motivo, numa situação de total impossibilidade de resistir aos desígnios do arguido.
No que respeita às condições pessoais do arguido, consideradas como indiciadas, atendeu-se às declarações do próprio, não lhe sendo conhecidos antecedentes criminais, uma vez que o Ministério Público não indicou o CRC do arguido no requerimento.
Atenta a matéria de facto supra referida, é nosso entendimento indiciarem fortemente os autos a prática, pelo arguido AA, em autoria material, de um crime de violação, p.p. pelo art.º 164.º, n.º 2, al. a) do Código Penal, a que corresponde a moldura abstacta de 3 a 10 anos de prisão.
Pese embora não seja conhecido ao arguido, que conta 25 anos de idade, passado criminal, atentas as circunstâncias e o à vontade com que o arguido cometeu o ilícito criminal indiciado, o tipo de actos/acções que levou a cabo com vista à satisfação dos seus instintos libidinosos, nem sequer a circunstância de se encontrar num espaço público o tendo demovido de concretizar os seus desígnios, bem como a premeditação espelhada na actividade criminosa, consideramos existir um manifesto perigo de continuação da actividade criminosa, em face da personalidade do arguido espelhada nos factos, denotando o mesmo falta de controlo dos seus impulsos sexuais, pelo que, caso permanecesse em liberdade, existiria um concreto e fundado perigo de, com vista à satisfação dos seus desejos sexuais, o arguido voltar a incorrer na prática de factos da mesma natureza, devendo-se a este propósito salientar que, atenta a prova produzida nos autos, tudo permite inferir que, na data dos factos, o arguido apenas não submeteu EE, que acompanhava a ofendida, a actos sexuais da mesma natureza, em virtude de esta, na sequência do consumo do produto facultado pelo arguido, ter desmaiado na pista de dança, e, por esse motivo, ter sido conduzida ao hospital.
No caso vertente, consideramos fazer-se sentir, igualmente, um concreto e fundado perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas relacionado com as consequências que decorrem para as vítimas dos actos de violação. A colocação num ambiente livre de quem tem sobre si a suspeita, fortemente indiciada, da comissão de um crime de violação, gera, em concreto, alarme social.
Nestes termos, consideramos que, por ora, a única medida de coacção que se mostra adequada e proporcional aos factos em causa e à personalidade do arguido, bem como à pena de prisão efectiva que, previsivelmente, lhe virá a ser aplicada em julgamento, fazendo um juízo de prognose, é a medida de coacção de prisão preventiva, mostrando-se inadequadas todas as outras, o que se determina em conformidade com os princípios constantes dos arts. 191.º, 192.º, 193.º, 195.º, 196.º, 202.º, n.º 1, al. a) e 204.º, n.º 1, al. c), todos do Cód. Processo Penal.
No entanto, no caso vertente, consideramos que a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação, com recurso a dispositivos de vigilância electrónica, especialmente se executada na residência dos progenitores do arguido, poderá revelar-se adequada e suficiente para obstar aos perigos referidos e á gravidade do crime indiciado. Claro que esta decisão é condicionada à existência de condições para a execução da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica.
Nenhuma outra medida de coacção tem a virtualidade de obstar aos perigos referidos.
Pelo que, pese embora se determine que, por ora, que o arguido deva aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, determina-se, igualmente, que se solicite à DGRSP a informação prévia a que alude o art.º 7.º, n.º 2 da Lei n.º 33/2010, de 2 de Setembro.
Notifique.
Cumpra o art.º 194.º, n.º 10 do Cód. Processo Penal. /
Passe mandados de condução do arguido ao Estabelecimento Prisional.
Comunique ao TEP.
Organize translado.
Devolva ao DIAP.
Logo após, pelo Mm.a Juiz questionou o arguido se o mesmo expressa o seu consentimento relativamente à medida de coação de OPHVE, a cumprir na residência dos seus pais, sita na Rua ..., ..., tendo no uso da mesma dito que concordava.
Tudo conforme registado no sistema de gravação áudio em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 12:08:47 horas e o seu termo pelas 12:29:13 horas.-
Do despacho que antecede foram os presentes notificados, bem como o arguido o qual entrou na sala. --
Para constar se lavrou o presente auto que vai ser assinado, quando são 12:31 horas.—
3. Decidindo
A - Da alegada inexistência de indícios fortes do cometimento por parte do arguido do crime que, indiciariamente, lhe é imputado:
A doutrina e a jurisprudência têm-se debruçado sobre o conceito de fortes indícios.
“Quando a lei fala em fortes indícios há que ter em conta a compreensão ou abrangência exacta dessa realidade, pois o legislador se limitou a falar em indícios, mas em fortes indícios, o que inculca a ideia da necessidade de que a suspeita sobre a autoria ou participação no crime tenha uma base de sustentação segura. Isto é: não basta que essa suspeita assente num qualquer estrato factual, mas antes em factos de relevo que façam acreditar que eles são idóneos e bastantes para imputar ao arguido essa responsabilidade, sob pena de se arriscar uma medida tão gravosa como esta em relação a alguém que pode estar inocente ou sobre o qual não haja indícios seguros de que com toda a probabilidade vem há a ser condenado pelo crime imputado.”
1
Existirão fortes indícios quando existir “Uma suspeita veemente em relação ao cometimento do facto punível, isto é, deve existir um grau elevado de probabilidade.”
2
“…serão fortes indícios aqueles que, no contexto de um particular estado de desenvolvimento da investigação se apresentam particularmente claros, inequívocos e fiáveis.”
3
A análise da existência de fortes indícios da prática pelo recorrente do crime em causa tem que ser efectuada analisando as provas de forma global e à luz das regras gerais da experiência comum.
Analisando a decisão recorrida, constata-se que a mesma analisou os diversos meios de prova de forma conjugada e concluiu pela forte indiciação dos factos que sustentaram a imputação ao arguido do crime de violação, p. e p. pelo artigo 164º, nº 2, al. a), do C.Penal.:
Analisando os meios de prova tidos em conta na decisão e atenta a linha do tempo, decorre indiciado o seguinte circunstancialismo fáctico:
- Na noite de
12 para 13 de Maio do ano de 2024
, a ofendida BB encontrava-se no estabelecimento denominado ... na companhia de outros jovens, designadamente DD e EE. O arguido aproximou-se do grupo e referiu que tinha “ecstasy líquido negro” e estes aceitaram consumir o produto, o que fizeram junto ao corredor das casas de banho.
Tais factos resultam indiciados dos depoimentos da ofendida, BB, constante a fls 77 e 78 dos autos, e de DD, constante de fls 96 a 99.
- De seguida, o arguido perguntou várias vezes à ofendida se podia beijá-la, tendo esta respondido que não. De seguida, o arguido ofereceu apenas à depoente o mencionado produto, que esta consumiu, embora desconfiando de que não se trataria de ecstasy.
Sentiu-se entorpecida, foi dançar. Depois só se lembra de ter acordado a ambulância.
Afirmou nunca ter tido relações sexuais.
Tais factos resultam indiciados dos depoimentos da ofendida, constante a fls 77 e 78 dos autos.
- Das imagens de videovigilância do mencionado estabelecimento, constantes de fls 85 a 94, decorre que:
O arguido entrou na casa de banho feminina às 06.15.21, cfr fotogramas 6 e 7 juntos aos autos.
Ás 06.27.36, um individuo espreitou por baixo das cabines existentes no interior da casa de banho feminina, saiu e regressou, às 06.28.37, acompanhado de um segurança cfr Fotogramas 8 e 9.
O Segurança entrou na referida casa de banho, forçando a porta, às 06.28.42 fotograma 10.
- Do depoimento do segurança, de nome CC (vide fls 81 a 83) resulta que o mesmo afirmou que:
Um cliente dirigiu-se a si dizendo que uma amiga estava na casa de banho há muito tempo e, por isso, tinha espreitado por baixo da porta da casa de banho tendo verificado que a amiga ali se encontrava e que havia alguém atrás dela de joelhos.
Por isso, dirigiu-se à casa de banho e bateu à porta dizendo que era segurança e, como ninguém respondeu, forçou a porta e entrou.
No interior da casa de banho, encontravam-se uma rapariga de joelhos, com o quadril e saia levantados, com cuecas vestidas, com a cabeça praticamente dentro da sanita, inanimada e com um indivíduo atrás dela, com as mãos na cintura das calças, aparentando estar a subir as calças ou a ajeitá-las.
A rapariga estava inconsciente.
Solicitou a um colega que ficasse, junto do indivíduo, a aguardar a chegada a chegada da polícia. Quando os agentes da PSP chegaram fizeram uma revista ao arguido e apreenderam um frasco
Quando os bombeiros chegaram a rapariga ainda estava inanimada.
- A fls 69/70 consta o exame realizado ao líquido contido no frasco apreendido ao arguido que concluiu pela presença de substancia activa de Gamabutirolactona.
- A fls 37 a 40 consta o Relatório de Perícia de Natureza Sexual realizado a BB pelo INML em 13.5.2025.
De tal relatório destaca-se o ponto 4 que se transcreve:
Foi também observada lesão traumática na região genital designadamente petéquias na membrana himenal, às 9 horas. Não se pelo testemunho qual a origem da mesma. Sobre essa lesão, acrescenta-se que: - É compatível com traumatismo de natureza contundente.
Mais resulta e tal relatório que foram efectuadas colheitas, designadamente zaragatoa perianal.
- A fls 194/195 consta o Relatório Pericial Criminalística – Biológica – do qual consta que na zaragatoa perianal referida “Foi identificada a presença d um haplotipo do cromossoma y.
Com base na análise da prova, concluiu o Senhor Juiz de Instrução que se encontram fortemente indiciados todos os factos constantes do requerimento apresentado pelo Ministério Público.
Dissecados estes meios de prova, com base nas regras da experiência, corrobora-se a análise feita pela primeira instância, excepção feita aos pontos 11, 15 e 16 do requerimento.
Na verdade, entende este Tribunal
ad quem
que se apura indiciariamente que:
11 – De imediato, o arguido baixou também as suas calças, colocou-se por trás de BB e introduziu, pelo menos parcialmente, o seu pénis erecto na vagina de BB, causando sangramento da membrana himenal.
15 – Nessa ocasião, CC deparou-se com a ofendida BB de joelhos, com o quadril e a saia levantados, com as cuecas vestidas, com a cabeça praticamente dentro da sanita, inanimada.
16- Mais verificou que o arguido estava posicionado atrás de BB, com as mãos na zona da cintura das calças, aparentando estar a subir as calças ou a ajeitá-las.
Ora, esta alteração quanto à matéria entendida como fortemente indiciada não contende com o enquadramento jurídico-penal plasmado na decisão recorrida.
Em conclusão, mostra-se suficientemente indiciada a prática pelo arguido de factos que integram o crime p. e p. pelo artigo 164º, nº2, al. a), do C.Penal.
B-
Da inadequação da medida aplicada e da adequação da medida prevista nº artigo 198º do CPP – ou de proibição de frequentar casas de diversão noturnas como discotecas.
Impõe-se agora analisar se se verificam os requisitos para aplicação de medida de coação.
Ora, o princípio da inocência e o direito à liberdade, consagrados constitucionalmente, têm que ser compaginados com a necessidade de, de forma eficaz, acautelar os perigos a que alude o artigo 204º do C.P.P..
Excepção feita ao T.I.R., nenhuma medida de coacção pode ser aplicada sem que se verifique, em concreto e no momento, qualquer dos perigos referidos no art.º 204º do C.P.P.: a) fuga ou perigo de fuga; b) perigo de perturbação do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova ou c) perigo, em razão da natureza ou das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
Ora, concretizam-se na decisão recorrida as razões pelas quais foi entendido estarem verificadas as circunstâncias previstas na alínea c) do nº 1 do artigo 204º do CPP, razões que este Tribunal corrobora.
Mostram-se, pois preenchidos os requisitos legais para aplicação de medida de coacção, para além do TIR.
Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 193º do C.P.P., as medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Como determina no nº 2 do aludido preceito, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação apenas deverão ser decretadas quando outra medida de coacção não seja adequada às exigências cautelares do caso e quando seja proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas. Tal norma decorre do disposto no nº 2 do artigo 28º da C.R.P., consagrando-se o carácter excepcional da prisão preventiva.
Mesmo entendendo-se que existem fortes indícios da prática pelo arguido do crime de violação, cumpre verificar se as exigências cautelares poderiam ser salvaguardadas com a aplicação de medidas menos gravosas.
É consabido que o crime de violação gera grande intranquilidade social. Por pertinente, transcreve-se a seguinte análise: “O perigo de perturbação da ordem e tranquilidade pública decorre directamente dos termos em que são perpetrados certos crimes, pela revolta e insegurança que geram nas pessoas, sobretudo quando não se lhes segue uma imediata reação reasseguradora por parte do aparelho repressivo em que repousa a crença da ordem e segurança comunitárias.”
4
Conclui-se na decisão recorrida que as necessidades cautelares que se fazem sentir não se compadecem com a aplicação de outras medidas de coação que não as aplicadas e, na verdade, atenta a natureza do crime e o circunstancialismo em que o mesmo terá sido praticado, as medidas propugnadas pelo recorrente bem como quaisquer outras não privativas da liberdade seriam, assim se entende, manifestamente inadequadas, por ineficazes, para acautelar os mencionados perigos.
In casu
estavam verificados os pressupostos da aplicação a medida prevista no artigo 202º do CPP que, adequadamente o por tal se ter mostrado viável, o Tribunal
a quo
substituiu pela medida prevista no artigo 201º, nº1, do CPP.
Em face de todo o exposto, conclui-se que o Tribunal
a quo,
após uma serena e adequada ponderação, aplicou as únicas medidas adequadas e suficientes para prevenir os perigos que se impunha acautelar.
Improcede, pois, o recurso por se considerar que o despacho recorrido não merece reparo.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram este Colectivo em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa e justiça em 3 UCs.
Lisboa, 22 de Maio de 2025
Consigna-se que a presente decisão foi processada e revista pela relatora e a primeira signatária.
Cristina Santana
Ana Paula Guedes
Maria de Fátima R. Marques Bessa
_______________________________________________________
1. Vide Simas Santos e Leal Henriques, in CPP Anotado, vol I, p. 995
2. Vide Claux Roxin, in Derecho Processual Penal, p. 259, Editores Del Puerto, 2000, 25ª Ed.
3. Ac TRE de 22.1.2019, Proc. 2/17.8GBFAR-C.L1
4. Ac TRP de 8.2.2012, relatado por Ricardo Costa Silva in
http://www.dgsi.pt
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/5682cb78fc68101380258c99004c84d5?OpenDocument
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1,746,489,600,000
| null |
1055/21.0T8ABF.E1
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1055/21.0T8ABF.E1
|
MARIA DOMINGAS SIMÕES
|
I. Tendo sido proferido despacho a validar a apresentação da petição inicial inicialmente rejeitada pela secretaria, na sequência de apresentação pelo autor de DUC comprovativo do pagamento da taxa de justiça, tal decisão formou caso julgado formal, obstando a que fosse posteriormente proferida uma outra, contrária, a determinar “o indeferimento da mesma petição” com fundamento naquela recusa.
II. Tendo os autos sido tramitados durante três anos, tendo-se logrado concretizar a citação dos RR, cidadãos estrangeiros residentes na Suécia na pessoa da sua Il. Mandatária com poderes para o acto e tendo estes apresentado contestação, foi criada pelo tribunal uma
situação de confiança
, assente na boa fé e gerada pela aparência de que a inicial recusa da petição se encontrava ultrapassada, em função da qual o autor definiu a sua subsequente atuação no processo e que merece proteção, obstando à aplicação de um efeito preclusivo com o qual a parte prejudicada razoavelmente já não poderia contar.
(Sumário da Relatora)
|
[
"SECRETARIA JUDICIAL",
"PETIÇÃO INICIAL",
"ADMISSÃO",
"PRINCÍPIO DA CONFIANÇA"
] |
Processo 1055/21.0T8ABF.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo Local Cível de Albufeira
I. Relatório
Inconformado com o despacho proferido em 16/11/2024 [Ref.ª 133660635] que “indeferiu a petição inicial”, decretando “a extinção da instância”, veio o autor (…) apresentar o presente recurso, cuja alegação rematou com as seguintes conclusões;
1.ª No dia 18.11.2021, o A. intentou uma acção contra os RR., a requerer a condenação dos mesmos, no pagamento da fatura n
.
º …/2018
,
de 12-04-2018, no valor de € 11.250,81 (onze mil e duzentos e cinquenta euros e oitenta e um cêntimos), acrescido de juros de mora comerciais vencidos, calculados à taxa legal, desde a data do vencimento da fatura, até à data de entrada da presente Ação, o que perfaz o valor de € 2.839,51 (dois mil e oitocentos e trinta e nove euros e cinquenta e um cêntimos), resultante de serviços prestados pelo A., aos RR.
2.ª O A., juntou, aquando da entrada da petição inicial, o comprovativo do pedido do apoio judiciário junto da Segurança Social, que deu entrada junto daqueles Serviços em 15.10.2021.
3.ª Já tinham decorrido os trinta dias do deferimento tácito do aludido pedido.
4.ª Em 26.11.2021, a petição inicial do A. foi recusada pela Secretaria, por considerar que não foi junto aos autos, o pagamento da taxa de justiça, ou o comprovativo da concessão ao A. do apoio judicial pela Segurança Social.
5.ª Em 29.11.2021, o mandatário do A., juntou aos autos, o comprovativo do pagamento de 50% da taxa de justiça, respeitante à petição inicial.
6.ª Posteriormente a esse facto, os autos prosseguiram os seus termos, porquanto, o M.mo Juiz, determinou a realização de diversos actos processuais necessários a regularização da instância (artigo 6
.
º do CPC).
7.ª Os R.R foram citados na pessoa da sua Ilustre mandatária para contestar, o que fizeram.
8.ª A acção consolidou-se, nos termos do artigo 260
.
º do CPC.
9.ª Decorridos quase três anos, o tribunal
a quo
, decide que face à recusa do recebimento da petição inicial pela Secretaria e a ausência da reclamação para o juiz do oficio de recusa, tal situação consolidou-se, inexistindo outra norma que legitime o prosseguimento da causa, pelo que, indefere a petição inicial com a consequente extinção da instância e, oportunamente, o arquivamento dos autos.
10.ª O Tribunal
a quo
, com a sua decisão, coloca em causa os princípios da confiança e boa fé processual, uma vez que, após o oficio de recusa pela Secretaria da Petição Inicial, os autos prosseguiram a sua tramitação normal, gerando a convicção no A. de que se encontrava sanada a ausência da reclamação para juiz, do aludido ofício.
11.ª Com a sua decisão, o tribunal
a quo
violou os princípios, designadamente, da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos, artigo 2.º da C.R.P.
.
Conclui pela procedência do recurso, devendo “ser proferido acórdão revogatório da decisão recorrida, admitido a petição inicial e ordenando o prosseguimento dos presentes autos”.
Os RR (…) e mulher, (…), contra-alegaram, sustentando sem surpresa o bem fundado da decisão recorrida.
*
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objeto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se se verifica o fundamento invocado na decisão recorrida para decretar a extinção da presente instância.
*
II. Fundamentação
De facto
Relevam para a decisão os seguintes factos ocorridos no processo:
1. O autor e ora recorrente (…) instaurou contra (…) e mulher, (…), residentes em (…) 1, 1414-2 (…), na Suécia, a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final a condenação dos demandados no pagamento da quantia de € 11.250,81, referente à fatura n.º …/2018, de 12 de Abril de 2018, acrescida dos juros de mora vencidos, que liquidou no valor de € 2.839,51, reclamando ainda os vincendos, contados desde a data da propositura da ação até integral pagamento à taxa em vigor para os créditos de natureza comercial.
2. O autor deu entrada da petição em juízo no dia 18/11/2021, nela mencionando juntar “Documento comprovativo do pedido de apoio judiciário”, tendo procedido à junção de recibo de entrega de documentos no Centro Distrital de Setúbal da Segurança Social para efeitos de requerimento de “proteção jurídica”, datado de 15 de Outubro de 2021 (cfr. fls. 30 dos autos).
3. Por ofício cuja data de elaboração vem certificada como sendo o dia 26/11/2021, foi o Il. Mandatário do autor notificado de que
“Nos termos do artigo 17.º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 170/2017, de 13 de março, fica notificado, na qualidade de Mandatário, e relativamente ao processo supra identificado, da recusa da petição inicial apresentada, nos termos e para os efeitos do artigo 558.º, n.º 1, alínea f)
,
do CPC.
Do ato de recusa da petição inicial poderá apresentar reclamação, nos termos do n.º 1 do artigo 559.º do CPC. Decorrido o prazo para a reclamação da recusa, ou, havendo reclamação, após o trânsito em julgado da decisão que confirme o não recebimento, considera-se a peça recusada, dando-se a respetiva baixa na distribuição.
Prazo: 10 dias”.
4. Com data de 29/11/2021 o autor fez juntar aos autos requerimento a pedir a junção aos autos
“do DUC e respetivo comprovativo do seu pagamento de 50% da taxa de justiça, respeitante à petição inicial”.
5. Em 22/12/2021, o mandatário do A. foi notificado pela Secretaria para juntar aos autos, no prazo de 10 dias, a tradução da petição inicial para a língua sueca ou inglesa com vista à citação dos RR.
6. Em 6/1/2022, o autor apresentou requerimento com o seguinte teor:
“(…), autor nos autos de processo em epígrafe, notificado do despacho com referência n
.
º 122637837
,
de 22-12-2021, vem solicitar a V. Exa., a dilação do prazo por mais 15 dias, a contar da data final do prazo inicialmente atribuído, para junção aos autos, da tradução em língua sueca ou inglesa da P.I. e demais documentos anexos.
Tal pedido, enquadra-se na necessidade de pedir mais do que um orçamento, tendo em atenção os valores pedidos pela tradução constante no 1º orçamento que se anexa.”
7. Sobre o requerimento a que se refere o ponto anterior recaiu o despacho de 23/1/2022 [Ref.ª 122994097] a deferir o requerido pelo prazo de 20 dias.
8. Em 31/1/2021 o Autor procedeu à junção aos autos da “tradução certificada para a língua inglesa, da petição inicial e dos documentos que a compõem, a fim de se proceder à citação dos Réus”.
9. Em 8/4/2022 a Il. Advogada (…) apresentou requerimento nos autos [Ref.ª 41901204] arguindo a irregularidade da citação efetuada e requerendo a repetição do acto, vindo posteriormente a juntar procuração outorgada a seu favor pelos RR (cfr. requerimento com a Ref.ª 42217353).
10. Com data de 30 de Junho de 2022 foi proferido despacho [Ref.ª 124855479] com o seguinte teor:
“ Ref.ª 122339427, de 26.11.2021
Consigna-se que foi paga taxa de justiça pelo autor nos temos do artigo 560.º do CPC.
***
Ref.ª 9977441, de 08.04.2022
Considerando um eventual deferimento do requerimento supra, e a fim de agilizar o prosseguimento dos autos, notifique a senhora mandatária dos réus para,
querendo
, em 10 dias, juntar aos autos procuração forense que lhe atribua poderes especiais para receber citações no âmbito deste processo em nome dos seus representados, dada a sua residência na Suécia”.
11. O despacho transcrito no ponto anterior foi notificado às partes [Ref.ªs 124947485 e 124947486] .
12. Em 6/9/2022 a Il Mandatária dos RR procedeu à junção aos autos de procurações conferindo-lhe poderes para, entre o mais, receber citações.
13. Em 4 de Outubro de 2023 foi proferido despacho [Ref.ª 129694156] a ordenar a citação dos RR na pessoa da sua Il. Mandatária.
14. Em 7/11/2023 os RR contestaram, peça que concluíram nos seguintes termos:
“(…) deve considerar-se
i- procedente por provada a exceção de prescrição da dívida e em consequência ser determinada a extinção da instância e os Réus absolvidos do pedido;
ii- que a estar em causa uma dívida, o que não se concebe, estaria em causa uma dívida não comercial pelo que deveria improceder na parte dos juros vencidos que excedem € 1. 622,58.
iii -que a estar em causa uma dívida, o que não se concebe, estaria em causa uma dívida não comercial pelo que os juros vincendos seriam calculados á taxa legal de 4% e não à taxa comercial.
iv – que os RR. pagaram à sociedade (…) – Construções Unipessoal, Lda. o montante total de € 20.400,0 (vinte mil e quatrocentos euros) e
v – que a sociedade A. não concluiu as obras constantes do orçamento
vi – que a assinatura aposta no doc. n.º 8 junto com a PI não foi feita pelos RR, nomeadamente pelo R. (…)”.
15. Em 16/11/2024 foi proferido o despacho ora recorrido [Ref.ª com o seguinte exato teor:
“Compulsados os autos, verifica-se que
a secretaria deste Tribunal procedeu à recusa da petição inicial
nos termos e para os efeitos do artigo 558.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Civil – cfr. Ref.ª Citius 122339427, de 26/11/2021.
Havendo rejeição ou recusa de recebimento da petição inicial, tudo se passa como se esta não tivesse sido sequer apresentada, ou seja, como se a ação não tivesse sido instaurada (já que, nos termos do disposto no artigo 259.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o início da instância supõe que a petição se considere apresentada).
Situação que se verifica no caso sub judice, uma vez que o autor (...)
acatou a recusa da petição inicial pela secretaria, não reclamando para o juiz, limitando-se a apresentar o documento a que se refere a primeira parte do disposto no na alínea f) do artigo 558.º do Código de Processo Civil, para efeitos, adiantamos, de aplicação do preceituado no
artigo 560.º do Código de Processo Civil
. Todavia,
considerando que a causa em apreço importa a constituição de mandatário [face ao valor dado à ação pelo autor, concretamente € 11.250,81 (onze mil e duzentos e cinquenta euros e oitenta e um cêntimos)] e que a parte está patrocinada, e sendo tais requisitos cumulativos, bem se vê que tal preceito legal não tem aplicação nos presentes autos
[cfr. neste sentido, a título meramente exemplificativo, o disposto no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02/12/2021, processo n.º 4269/21.9T8BRG.G1, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09/04/2024, processo n.º 3444/23.6T8LRS-B.L1-7, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/11/2023, processo n.º 26/23.6YFLSB, todos disponíveis em
www.dgsi.pt
].
Sendo certo que,
face à recusa de recebimento da petição inicial e à ausência de reclamação para o juiz, tal situação consolidou-se.
Assim,
inexistindo qualquer outra norma que, neste particular contexto, legitime o pretendido prosseguimento da causa, deve a petição inicial ser indeferida, o que se determina, com a consequente
extinção da instância.
Registe, notifique e d.n..
Arquive oportunamente.”
*
De Direito
Do “indeferimento da petição” e consequente “extinção da instância”
Antecipando a decisão, afigura-se evidente a razão do apelante.
Antes de mais, tendo o autor invocado na petição ter requerido o apoio judiciário, o que fez acompanhar da prova de que o requerimento tinha sido apresentado há mais de 30 dias, ainda que não tenha invocado expressamente a formação do ato de deferimento tácito, conforme prevê o n.º 3 do artigo 25.º da LAJ, afigura-se que a secretaria não teria fundamento para proceder à recusa da petição inicial nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 558.º do CPC, antes devendo, na dúvida, submeter os autos ao Sr. Juiz.
Seja como for, tendo o autor e ora apelante procedido ao pagamento de 50% do valor da taxa de justiça – sem que tenha sido junta aos autos a eventual posterior decisão proferida pela SS que recaiu sobre o requerimento apresentado e sem que tenha sido ordenada a sua junção – por despacho exarado a 30 de Junho de 2022, o qual foi devidamente notificado a ambas as partes, a Mm.ª juíza consignou expressamente que havia sido
“paga taxa de justiça pelo autor nos temos do artigo 560.º do CPC",
com o sentido inequívoco de validar a apresentação da petição, assim considerada proposta na data da sua apresentação em juízo.
O despacho proferido, reconduzindo-se a decisão de admissão de articulado, era suscetível de apelação autónoma nos termos do artigo 644.º, n.º 2, alínea d), do CPCivil, pelo que, não tendo sido impugnado – na contestação apresentada os RR nem sequer suscitaram a questão – transitou em julgado, formando caso julgado formal (cfr. artigo 620.º do mesmo diploma legal). Deste modo, e ao invés do que vem referido na decisão recorrida, o que se consolidou nos autos foi a decisão proferida a 30 de Junho,
pelo que não podia a sra. Juíza vir agora, decorridos três anos e depois de uma custosa tramitação, “dar o dito por não dito”,
indiferente ao caso julgado formal que se formara.
Mas por um outro e também decisivo fundamento a decisão recorrida não poderá manter-se.
Como o autor bem refere nas suas alegações, o aludido despacho e a tramitação posterior à apresentação do DUC comprovativo do pagamento da taxa de justiça foram de molde a nele criar uma
situação de confiança
, assente na boa fé e gerada pela aparência de que a inicial recusa da petição se encontrava ultrapassada, legítima convicção em função da qual definiu a sua subsequente atuação no processo, procedendo designadamente à tradução legalizada da petição inicial e dos numerosos documentos que a acompanhavam, a fim de se concretizar a citação dos demandados, com o elevado custo associado de que deu nota nos autos. Assim sendo, e conforme se decidiu no acórdão do STJ de 9/7/2014 (processo n.º 2577/05.5TBPMS-P.C3.S1, acessível em
www.dgsi.pt
)
“(…) a proteção dessa confiança conduz à preservação da posição nela alicerçada, ou seja, à manutenção das vantagens que assistiriam ao confiante."
Como também se refere no acórdão deste TRE de 18/10/2018 (proc. n.º 399/13.9TBTVR-K.E1, acessível em www.dgsi.pt), “A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, tem vindo a acentuar a prevalência dos princípios da boa fé [“
que não pode ser exclusivo dos atos das partes, mas terá de abranger igualmente ao atos dos magistrados”
AUJ de 31/3/2009]
[1]
e da confiança [
gerada nos interessados quanto a uma determinada conformação ou orientação processual determinada pelo juiz
– Ac. do STJ de 17/5/2016], no confronto com critérios de legalidade estrita”. Apesar de estarem em causa efeitos preclusivos resultantes da inobservância pelas partes de determinados prazos processuais, a situação é perfeitamente transponível para o caso que se aprecia.
Considerou-se no citado AUJ n.º 9/2009 que “O julgador não deve proferir decisões que surpreendam as partes. Ou porque não foram debatidas, ou porque não se esperaria que as tomasse, atentas as posições processuais antes assumidas”. E acrescentou-se “Com efeito, a mera irrelevância do caso julgado não é consistente com os princípios de cooperação, da boa fé processual, da prevalência do fundo sobre a forma e da direcção do processo pelo juiz, que o legislador de 1995 afirmou expressamente como princípios estruturantes do processo civil português, em particular na definição das relações entre os diversos intervenientes processuais, e que obrigam, neste caso, a tutelar a confiança que aquela mesma afirmação mereceu à requerida.
Os termos explícitos do despacho – «o presente procedimento cautelar não tem já natureza urgente» –, do qual consta também a determinação de que a requerida seja notificada para deduzir oposição, querendo, «não obstante» o procedimento não correr em férias judiciais, são adequados a criar no destinatário a convicção de que o prazo de que em concreto se tratava não corria em férias judiciais.
Tal convicção merece tutela do direito; e a lei de processo civil contém os mecanismos necessários à protecção da confiança assim criada na requerida”.
Nos casos apreciados pelo STJ estão em causa situações, idêntica àquela que se verifica nos presentes autos, em que uma determinada conformação do processo criou na parte uma legítima expetativa, que merece a tutela do direito, de que tal orientação seria continuada, obstando a que o juiz venha posteriormente, ao arrepio da confiança criada, impor uma limitação ou preclusão processual com a qual a parte prejudicada já não podia razoavelmente contar.
Tudo em suma para concluir que, também por esta via, a decisão recorrida não poderá ser mantida, impondo-se a sua revogação.
*
III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso apresentado pelo autor, revogando em consequência a decisão recorrida e determinando o prosseguimento dos autos.
Custas a cargo dos RR que, tendo-se oposto, decaíram (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCiv.).
Évora, 05 de Junho de 2025
Maria Domingas Simões
Mário Branco Coelho
Ana Margarida Leite
*
Sumário:
(…)
__________________________________________________
[1] Está em causa o AUJ n.º 9/2009, publicado no DR n.º 96, I-Série A, de 19 de Maio de 2009.
|
TRE
|
https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/ddc86122a8ad9f0980258cbd002c7a37?OpenDocument
|
1,739,404,800,000
|
APELAÇÃO IMPROCEDENTE
|
540/24.6T8GMR-B.G1
|
540/24.6T8GMR-B.G1
|
ALCIDES RODRIGUES
|
I - O Supremo Tribunal de Justiça vem aplicando, sem divergências, o curto prazo de prescrição (de cinco anos) do art. 310.º, al. e), do Código Civil às prestações de reembolso de contratos de mútuo, prestações essas em que os juros estão integrados.
II - Tal aplicação é extensiva ao caso das prestações serem declaradas antecipadamente vencidas, nos termos do art. 781º do Cód. Civil (entendimento que foi uniformizado pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2022, de 30/06/2022, publicado in Diário da República, Iª Série, n.º 184, de 22/09/2022) e ao caso do crédito resultar da resolução do contrato de mútuo
.
|
[
"EXECUÇÃO",
"MÚTUO",
"AMORTIZAÇÃO",
"PRESCRIÇÃO EXTINTIVA",
"ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR"
] |
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I. Relatório
Por apenso aos autos de execução ordinária n.º 100/23...., intentados por EMP01... – Stc, os executados AA e BB deduziram oposição à execução, por embargos de executado, visando a extinção da execução (ref.ª ...95).
Alegaram para tanto, e em síntese, que:
- a embargante não tinha consciência de se vincular nos termos que são alegados pela exequente;
- há preenchimento abusivo;
- prescreveu o título cambiário;
- não foi interpelado para cumprimento;
- prescreveu o crédito da exequente e os juros, e
- a exequente age em abuso de direito.
*
Recebidos liminarmente, a exequente/embargada apresentou contestação, na qual concluiu pela improcedência dos embargos de executado e pelo prosseguimento da execução (ref.ªs ...09 e ...32).
*
Por despacho de 23/05/2024, a exequente foi convidada a esclarecer a data de resolução do contrato (ref.ª ...99).
*
A exequente respondeu ao despacho convite (ref.ª ...34).
*
Cumprido o contraditório, os embargantes sustentaram novamente a prescrição do crédito subjacente à livrança (ref.ª ...37).
*
Notificadas as partes da intenção do tribunal em proferir saneador-sentença, não foi deduzida oposição (ref.ª ...27).
*
Foi proferido despacho saneador-sentença, datado de 1/01/2024, onde se reconheceu a prescrição do crédito exequendo, tendo-se decidido julgar totalmente procedentes os embargos de executado e determinar a extinção da execução relativamente aos embargantes (ref.ª ...02).
*
Inconformada com esta sentença, dela interpôs recurso a embargada/exequente (ref.ª ...72), tendo rematado as suas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«i. O presente recurso de apelação tem por objeto a sentença proferida pelo Juízo de Execução de Guimarães, Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga (doravante Tribunal a quo), que julgou procedentes os embargos, reconhecendo a prescrição do crédito exequendo e, em consequência, julgou extinta a execução.
ii. Em suma, o douto Tribunal a quo decidiu declarar a prescrição do crédito exequendo, na medida em que considera que a restituição do capital, no âmbito de um contrato de crédito, deve ser submetido ao prazo de prescrição mais curto, de 5 (cinco) anos, sob pena de se desvirtuar a sua ratio, que vista estimular uma cobrança imediata e célere dos montantes fraccionados.
iii. Salvo o devido respeito, que é muito, por opinião contrária, a decisão judicial recorrida merece total reparo na medida em que, a mesma, não foi proferida conforme aos ditames da lei e do direito, pois entende a Recorrente que não terá sido apreciada nos termos que eram exigidos no que tange à aplicação do direito.
iv. Não obstante e salvo o devido respeito, que é muito, não pode a Recorrente conformar-se com tal decisão, sendo seu firme entendimento que o Douto Tribunal a quo não fez justa e sã aplicação do Direito, tendo decidido da forma mais gravosa para a Recorrente.
v. O Banco 1..., S.A., no exercício da sua atividade bancária, celebrou, em 15 de Abril de 2013, a pedido dos Executados /Embargantes AA E BB, um contrato de empréstimo, ao qual foi atribuído o n.º ...43, mediante o qual aquele concedeu aos referidos Executados/Embargantes um crédito no montante de € 26.137,95 (vinte e seis mil cento e trinta e sete euros e noventa e cinco cêntimos).
vi. Para garantia do bom e fiel cumprimento do referido contrato, foi subscrita uma livrança em branco pelos Executado, ora Embargante, AA, na qualidade de Gerente, e avalizada pelos Executados, ora Embargantes AA E BB, livrança à qual foi dado o n.º ...95....
vii. O referido empréstimo foi integralmente utilizado, tendo os referidos Executados/Embargantes deixado de efetuar os pagamentos a que estavam adstritos a 15 de Abril de 2014.
viii. Com o vencimento da totalidade das prestações, após a resolução do contrato, o plano de amortização contratualmente convencionado foi dado sem efeito, deixando, em consequência, de ser exigíveis as quotas de amortização de capital e juros.
ix. Pelo que, entende a Recorrente que não serão exigíveis as diversas prestações periódicas acordadas para a liquidação do financiamento, mas sim a totalidade do montante ainda em dívida.
x. Neste seguimento, estamos perante uma obrigação única, que resulta da celebração do contrato de crédito, passível de ser fracionada no tempo, mas não poderá ser equiparada a uma prestação periódica e renovável dependente do decurso do tempo.
xi. Dada a natureza do contrato de crédito celebrado, como uma obrigação pecuniária única cujo pagamento é diferido no tempo, não deve, nem poderá ser equiparado a um plano de amortização de capitais e juros – prestações duradouras.
xii. Atendendo à necessária distinção entre obrigações únicas com pagamentos fracionados e prestações periódicas, é certo que a obrigação em apreço se situa nas primeiras: obrigação única com pagamentos fracionados, razão pela qual não poderá ser aplicável o prazo de prescrição de 5 anos, previsto no artigo 310.º, alínea e) do Código Civil.
xiii. Salvo o devido respeito, que é muito, estamos perante uma situação que exige a aplicação prazo de prescrição de 20 anos, aplicável nos termos do disposto no artigo 309.º do Código Civil.
xiv. Assim mesmo determina a Doutrina (vide “Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, volume III, página 47, 1.º, 2.º e 3.º parágrafos do ponto IV”): “Na verdade, na situação prevista no artigo 310.º, alínea e) não estará em causa uma única obrigação pecuniária emergente de um contrato de financiamento, ainda que com pagamento diferido no tempo, a que caberia aplicar o prazo ordinário de prescrição de vinte anos.”
xv. Pelo que não é, nem pode ser subsumível a presente situação à previsão contida na alínea e) do artigo 310º do Código Civil, uma vez que estamos na presença de uma única obrigação (um contrato de empréstimo) que, embora passível de ser fracionada e diferida no tempo, jamais pode ser equiparada a uma prestação periódica, renovável e cuja constituição depende do decurso do tempo, sendo que, os mútuos bancários, independentemente das várias formas que possam assumir, nunca prescrevem antes de decorridos, pelo menos, 20 anos.
xvi. De acordo com o contrato que titula a livrança executada, o reembolso seria feito no prazo de 10 (dez) anos, com o vencimento da última prestação a ocorrer apenas em 15/04/2023, que de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça por força do acórdão n.º 6/2022, de 22 de setembro: «I - No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação. II - Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.»
xvii. Assim, cfr. supra exposto, tendo a resolução contratual operado em 28/07/2023, o prazo de prescrição de 5 (cinco) anos aplica-se relativamente a cada amortização de capital e juros.
xviii. Resolvido o contrato extrajudicialmente, como o foi, com base no incumprimento definitivo de um contrato de empréstimo em que as partes haviam acordado num plano de pagamento em prestações mensais e sucessivas, que englobava o pagamento de parte do capital e dos juros, e reclamando a Recorrente o montante total da dívida, não tem aplicação o disposto no artigo 310.º, alínea e) do Código Civil.
xix. Nada resulta do disposto no artigo 310.º do Código Civil que permita a interpretação que aquele prazo de prescrição tem aplicabilidade nos mútuos bancários à totalidade do capital em dívida à data do incumprimento.
xx. O vencimento imediato das prestações restantes significa, por si só, que o plano de pagamento faseado anteriormente acordado deixa de estar em vigor, ocorrendo uma perda do benefício do prazo de pagamento contido em cada uma das prestações, pelo que, fica sem efeito o plano de amortização da dívida inicialmente acordado e os valores em dívida voltam a assumir a sua natureza original de capital e de juros.
xxi. Desfeita a união anteriormente contida em cada uma das prestações entre uma parcela de capital e outra a título de juros, nenhuma razão subsiste para sujeitar a dívida de capital e dívida de juros ao mesmo prazo prescricional.
xxii. Aquando a instauração da acção executiva, a Recorrente peticionou pela condenação da Embargada no pagamento do capital acrescido de juros moratórios em face do seu vencimento exigiu a totalidade da dívida e não o pagamento de prestações avulsas, pois embora tenha existido um plano de pagamento este não influencia o conteúdo global e unitário desta obrigação.
xxiii. A este propósito vejamos o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16/03/2017, Relator Jorge Teixeira, proferido no processo nº 589/15.0T8VNF-A.G1, que refere que:
“I- No mútuo bancário, em que o reembolso da dívida foi objecto de um plano de amortização, composto por diversas quotas, que integram uma parcela de capital e outra de juros remuneratórios, que se traduzem na existência de várias prestações periódicas, com prazos de vencimento autónomos, cada uma destas prestações mensais encontrar-se-á sujeita ao prazo prescricional privativo de cinco anos, previsto na al. g), do artigo 310º, do CC.
II- Mas se em caso de incumprimento, o mutuante considerar vencidas todas as prestações, ficando sem efeito o plano de pagamento acordado, os valores em divida voltam a assumir em pleno a sua natureza original de capital e de “juros, ficando o capital sujeito ao prazo ordinário de 20 anos.”
xxiv. E o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/06/2018, Relator Jorge Arcanjo, proferido no processo nº 17012/17.8YIPRT.C1, que refere que:
“Resolvido extrajudicialmente com base no incumprimento definitivo um contrato de mútuo em que as partes haviam acordado num plano de pagamento em prestações mensais e sucessivas, que englobava o pagamento de parte do capital e dos juros, e reclamando a credora o montante da dívida, não tem aplicação o disposto no art. 310º, e) do Código Civil – prescrição de cinco anos – porque o crédito reclamado já não se configura como “quotas de amortização”, mas antes como dívida (global) proveniente da “relação de liquidação.”
xxv. É, pois, esta a interpretação que decorre do enunciado normativo, a qual não se pode, nem deve, deslocar dos critérios de correspondência verbal impostos pelo artigo 9.º do Código Civil.
xxvii. Semelhante entendimento é sufragado na doutrina ensinada pelo Dr. António Menezes Cordeiro que dita que “(…) a prescrição quinquenal apenas se irá aplicando escalonadamente, na medida do plano de pagamento inicial, pois é este o combinado e que as partes têm como referência; (…) podemos acrescentar que na eventualidade do vencimento antecipado, já não se trata de quotas de amortização. (…) “(Tratado de Direito Civil, V, págs. 175 e 176).
xxvii. Não estando perante quotas de amortização e por uma pluralidade de prestações, mas antes sim na presença de obrigações unitárias que aquando do seu incumprimento recuperam a sua globalidade, a decisão a ser proferida por este colendo Tribunal e que melhor satisfará os ditames da justiça, apenas será a de revogar a decisão recorrida.
xxviii. Considerando que ao caso em apreço se aplica o prazo prescricional de 20 anos e que por conseguinte, à data da instauração da acção executiva ainda não havia decorrido o prazo de prescrição ordinário para o cumprimento da obrigação exequenda.
xxix. A interpretação do artigo 310.º, al. e) do Código Civil, de que se aplicará a regra prescricional excecional de cinco anos aos contratos de financiamento liquidáveis em prestações mensais e sucessivas, de capital e juros, quando o vencimento antecipado das obrigações ocorre por incumprimento contratual dos mutuários e que essa prescrição abrange a totalidade da dívida, viola os princípios constitucionais da segurança jurídica, proporcionalidade e, ainda o princípio da tutela jurisdicional efetiva.
xxx. Não se vislumbra qualquer alteração legislativa e/ou da realidade existente que permitisse ou permita à ora Recorrente entender que a sua possibilidade de recuperação de créditos seria mitigada por um prazo de cinco anos.
xxxi. Neste seguimento, entende a Recorrente que está em causa a violação de expectativas legítimas criadas em função de uma alteração de entendimento doutrinal e jurisprudencial quanto à aplicação das normas referentes à prescrição das dívidas.
xxxii. Criar um mecanismo de ilibar os devedores de honrar os seus compromissos é nada mais, nada menos, de que frustrar os princípios basilares que regem a celebração dos contratos: pacta sunt servanda.
xxxiii. A Recorrente não pode conceber que sejam prioritários os interesses de incumprimento reiterado de créditos que, em última instância, podem colocar em causa o sistema financeiro, face a interesses de cumprimento rigoroso e coercivo das obrigações contratualmente assumidas.
xxxiv. Acresce que a referida interpretação normativa tende a impedir o acesso aos Tribunais para cobrança de créditos, decorridos mais de cinco anos, desde que a dívida seja liquidável em prestações, aquando da sua constituição, violando, assim, o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
xxxv. Esta limitação da possibilidade de cobrança judicial dos créditos, imposta por tal interpretação normativa, fundamenta-se num manifesto erro interpretativo que tem por base uma proteção desnecessária e desmesurada dos Devedores, tendo em consideração os mecanismos existentes na nossa Ordem Jurídica para prevenir situações de insolvência
xxxvi. No entendimento da Recorrente, o douto Tribunal a quo não pode distinguir onde a lei não distingue, sob pena de se limitar injustificadamente o acesso aos tribunais.
xxxvii. Nesta sequência, deverá ser considerada, concretamente, inconstitucional a interpretação segundo a qual aos contratos liquidáveis em prestações, de capital e juros, se aplica o prazo excecional de cinco anos.
xxxviii. Atendendo aos motivos supra explanados, é forçoso concluir pelo manifesto erro de apreciação do Direito na douta sentença proferida pelo Tribunal a quo.
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, QUE VOSSAS EXCELÊNCIAS DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER RECEBIDO, ADMITIDO POR PROVADO E EM CONSEQUÊNCIA REVOGADA A SENTENÇA QUE ORA SE RECORRE, DETERMINANDO-SE O PROSSEGUIMENTO DA EXECUÇÃO.».
*
Contra-alegaram os embargantes/executados, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da sentença recorrida (ref.ª ...28).
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (ref.ª ...10).
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Delimitação do objeto do recurso
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber da prescrição da dívida exequenda, por aplicação do art. 310.º, alínea e), do Código Civil.
*
III.
Fundamentos
IV. Fundamentação de facto
A decisão recorrida deu como assentes, face aos articulados e documentos juntos, os seguintes factos e dinâmica processual:
Do requerimento executivo:
a) Por Deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal tomada em reunião extraordinária, de 20 de Dezembro de 2015, foi aprovada a aplicação de uma medida de resolução ao Banco 1..., S.A. e na sequência da qual foi constituída a sociedade EMP02..., S.A. (inicialmente designada por “EMP03...”), tendo-se determinado a transferência para a mesma, dos ativos, passivos e elementos extrapatrimoniais sob gestão do Banco 1..., S.A;
b) Por contrato de cessão de créditos celebrado em ../../2016, a EMP02..., S.A. cedeu à sociedade EMP04..., S.A.R.L., os créditos que detinha sobre os Executados AA, CC e BB, bem como todas as garantias e acessórios a eles inerentes;
c) A carteira de créditos objecto de cessão inclui o Contrato n.º ...43;
d) Por contrato de cessão de créditos celebrado em ../../2022, a EMP04...., cedeu à sociedade EMP05..., essas mesmas responsabilidades bancárias;
e) Por contrato de cessão de créditos outorgado em 29 de Junho de 2022, a EMP05.... cedeu-os à sociedade EMP01... - STC, S.A., ora Exequente tendo-lhe sido transmitidas todas as garantias e acessórios do mesmo.
f) É dada à execução uma livrança subscrita em 15.04.2013 pelos Executados, no montante total de € 58.652,34 (cinquenta e oito mil, seiscentos e cinquenta e dois euros e trinta e quatro cêntimos), a qual se venceu em 11.08.2023, destinada a garantir o cumprimento das obrigações emergentes do contrato referido em c);
g) Os Executados, AA, CC e BB, apuseram, pelo seu punho, no verso do título e por baixo da expressão "Bom por aval ao subscritor" as respectivas assinaturas;
h) A exequente remeteu aos Executados as cartas juntas ao requerimento executivo como documento 5 as quais não foram recepcionadas pelos executados.
Da petição de embargos:
i) A livrança apresentada à execução foi avalizada pelos Embargantes em branco, em 15/04/2013;
j) Os Embargantes nunca foram notificados para sua inclusão em PERSI;
k) A EMP06... foi declarada insolvente por sentença de 28/09/2021, no processo 3779/21...., do Juízo de Comércio de Guimarães – Juiz ....
Da contestação:
l) Os Embargantes subscreveram o contrato de empréstimo referido em c) que serviu de pacto de preenchimento em relação à livrança em causa e cujo teor se encontra plasmado no documento junto à contestação aos embargos como doc. 1 – “contrato de mútuo” e se dá por integralmente reproduzido;
m) As missivas referidas em h) foram enviadas para a morada contratual.
Dos requerimentos de 17/6 (da exequente) e de 18/6 (dos executados):
n) O mutuante resolveu o contrato referido em c) no dia 15/4/2014;
l) A execução de que estes autos são apenso foi intentada em 20/1/2024.
*
V. Fundamentação de direito.
1. Da prescrição das quotas de amortização de capital e dos juros com elas pagáveis (art. 310.º, alínea e), do Código Civil).
Na sentença recorrida, a Mm.ª Juíza “
a quo
” julgou procedente a invocada excepção de prescrição do crédito exequendo, aduzindo para o efeito estar-se perante “
amortizações de capital pagáveis com os juros
”, subsumível à previsão normativa do art. 310º, al. e) do Cód. Civil.
Alicerçou-se para o efeito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2022, de 22 de Setembro (publicado no Diário da República n.º 184/2022, Série I de 2022-09-22, páginas 5 – 15), concretizando que o «
contrato subjacente ao título que se pretende executar prevê a restituição do capital (acrescido de juros) em 120 prestações, que devem ser submetidos ao prazo de prescrição mais curto de cinco anos, sob pena de se desvirtuar a sua ratio, que visa estimular uma cobrança imediata e célere dos montantes fraccionados, impedindo um avolumar de dívidas de capital e juros
».
Do assim decidido discorda a embargada/recorrente, argumentando para o efeito que, «
estamos perante uma obrigação única, que resulta da celebração do contrato de crédito, passível de ser fracionada no tempo, mas não poderá ser equiparada a uma prestação periódica e renovável dependente do decurso do tempo
», que, «[
d]ada a natureza do contrato de crédito celebrado, como uma obrigação pecuniária única cujo pagamento é diferido no tempo, não deve, nem poderá ser equiparado a um plano de amortização de capitais e juros – prestações duradouras
», estando-se perante obrigação única com pagamentos fracionados, razão pela qual não será aplicável o prazo de prescrição de 5 anos, previsto no art. 310.º, alínea e) do Cód. Civil, mas antes o prazo ordinário de prescrição do art. 309.º do mesmo diploma legal, sendo que os mútuos bancários, independentemente das várias formas que possam assumir, nunca prescrevem antes de decorridos, pelo menos, 20 (vinte) anos.
Vejamos como decidir.
De acordo com o disposto no art. 298.º, n.º 1, do Código Civil (CC), estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição.
A prescrição é ditada, numa primeira linha, pelo valor da segurança jurídica e da certeza do direito, embora também em nome do interesse particular do devedor, funcionando como reação à inércia do titular do direito, fundando-se num imperativo de justiça
[1]
.
Segundo a lição de Orlando de Carvalho, «
a prescrição é uma forma de extinção de direitos de crédito, na área dos direitos das obrigações, direitos que deixam de ser judicialmente exigíveis, passando a obrigação civil a obrigação natural
»
[2]
.
Na verdade, o decurso do tempo é um facto jurídico não negocial, é um acontecimento natural juridicamente relevante, ou seja, produtor de efeitos jurídicos.
Uma vez completado o prazo de prescrição, o beneficiário da mesma tem a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito, como decorre do disposto no art. 304.º, n.º 1, do CC. Ou seja, a prescrição não extingue a obrigação; o efeito da prescrição é o de facultar ao obrigado o poder de recusar o cumprimento. Oposta com êxito a prescrição, o titular do direito perde uma das faculdades que lhe assistia, deixando de poder exigir o cumprimento judicial da prestação.
A prescrição configura-se como uma excepção peremptória, assumindo a natureza de um facto obstativo do exercício de um direito e tendo como consequência a absolvição, total ou parcial, do pedido (cfr. art. 576º, n.º 3, do CPC).
Estabelece o art. 309º do CC que o prazo ordinário de prescrição é de vinte anos, prevendo, o art. 310º do mesmo diploma legal, as designadas presunções de curto prazo, isto é, de cinco anos.
Entre os casos de prazo de prescrição de cinco anos, prevê-se, no art. 310º, alínea e), “[
a]s quotas de amortização do capital pagáveis com os juros
”.
A prescrição a que se refere o citado normativo não é uma prescrição presuntiva como a que vem prevista nos arts. 312º e ss. do CC, mas sim uma prescrição de curto prazo, uma prescrição extintiva, destinada a evitar que o credor retarde demasiado a exigência de créditos periodicamente renováveis, tornando excessivamente pesada a prestação a cargo do devedor
[3]
.
Esta prescrição destina-se a evitar a ruína do devedor, pela acumulação da dívida, derivada designadamente de quotas de amortização de capital pagável com juros. Numa situação destas, a exigência do pagamento de uma só vez, decorridos demasiados anos, poderia provocar a insolvência do devedor a viver dos rendimentos, nomeadamente do trabalho, e que o legislador, conhecedor das opções possíveis, quis prudentemente prevenir, colocando no credor maior diligência temporal na recuperação do seu crédito
[4]
.
Em todo o caso, a “ratio” das prescrições de curto prazo, se radica na protecção do devedor, protegido contra a acumulação da sua dívida, também visa estimular a cobrança pontual dos montantes fraccionados pelo credor, evitando o diferimento do exercício do direito de crédito
[5]
.
A circunstância do direito de crédito se vencer na sua totalidade, em resultado do incumprimento, não altera o seu enquadramento em termos da prescrição, sob pena de se poder verificar uma situação de insolvência, a qual, manifestamente, o legislador pretendeu evitar, quando consagrou o prazo comum da prescrição da alínea e) do art. 310.º do CC.
Como tem sido salientado, os contratos de mútuo são o caso paradigmático de acordos de amortização.
No Ac. do STJ de 29/09/2016 (relator Lopes do Rego), in
www.dgsi.pt
. – no qual estava igualmente em causa a efectivação de direitos emergentes de um mútuo bancário –, explicitou-se que o Código Civil de 1966 veio a considerar, no art. 310.º, al. e), que a amortização fracionada do capital em dívida, quando realizada conjuntamente com o pagamento dos juros vencidos, originando uma prestação unitária e global, envolve a aplicabilidade a toda essa prestação do prazo quinquenal de prescrição, equiparando tal situação à das prestações periodicamente renováveis,
“(…) ou seja, o legislador entendeu que, neste caso (das amortizações de capital pagas conjuntamente com os juros), o regime prescricional do débito parcelado ou fracionado de amortização do capital deveria ser absorvido pelo que inquestionavelmente vigora em sede da típica prestação periodicamente renovável de juros, devendo valer para todas as prestações sucessivas e globais, convencionadas pelas partes, quer para amortização do capital, quer para pagamento dos juros sucessivamente vencidos, o prazo curto de prescrição decorrente do referido art. 310.º
”.
Como se explicita no Ac. do STJ de 15/09/2022 (relator Nuno Pinto Oliveira), in
www.dgsi.pt
., a obrigação unitária assumida pelos mutuários é “
compartimentada num mútuo e respectivos juros
”. Está em causa uma “
obrigação de valor predeterminado cujo cumprimento, por acordo das partes, foi fraccionado ou parcelado num número fixado de prestações mensais
”. A obrigação unitária, compartimentada num mútuo e respectivos juros, “
converte-se numa prestação mensal de fraccionada quantia global
”. Estando em causa uma “
obrigação de valor predeterminado cujo cumprimento, por acordo das partes, foi fraccionado ou parcelado
”, — estando em causa uma obrigação fraccionada ou repartida —, a dívida “
seria amortizada na medida em que se processasse o seu cumprimento
”.
O acordo pelo qual se “compartimenta” a obrigação de restituição do capital em prestações é um acordo de amortização e cada uma das prestações em que a obrigação de restituição se “compartimenta” é uma quota de amortização. Em consequência, cada uma das prestações mensais devidas pelo mutuário ao mutante é uma quota de amortização do capital no sentido do art. 310.º, alínea e), do CC.
Pode assim afirmar-se que, na doutrina maioritária, não suscitava particular controvérsia a aplicabilidade do prazo curto de prescrição de cinco anos às obrigações, de natureza híbrida, que visam simultaneamente operar a amortização e a remuneração do capital mutuado.
A questão em apreço, como se disse, prende-se com a
prescrição das quotas de amortização do capital pagáveis com juros no caso de, em razão do incumprimento de uma delas, haver sido declarado o vencimento de todas as quotas de amortização, o mesmo valendo no caso do crédito resultar da resolução do contrato de mútuo.
Questão esta – saber se passa a ser aplicável o prazo ordinário de prescrição de 20 anos (como propugnado pela recorrente) ou se continua a ser aplicável o prazo de prescrição de cinco anos do art. 310.º, al. e) do CC (como decidido na sentença impugnada) como propugnado pelos recorrentes) – suscitou alguma divergência jurisprudencial
[6]
.
A resposta, no sentido aliás já dominante, foi dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, em Pleno das Secções Cíveis, em Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2022, de 30/06/2022 (relator Vieira e Cunha), no processo n.º 1736/19.8T8AGD.B.P1.S1, publicado in Diário da República, Iª Série, n.º 184, de 22/09/2022, tirado por unanimidade, que clarificou a questão, fixando, no segmento uniformizador, a seguinte jurisprudência:
«
I. No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310º, alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação.
II. Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incluindo o seu termo ‘a quo’ na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas
».
Donde se refira que o STJ vem aplicando, sem divergências, o curto prazo de prescrição do art. 310.º, al. e), do CC às prestações de reembolso de contratos de mútuo, prestações essas em que os juros estão integrados; aplicação essa extensiva ao caso das prestações serem declaradas antecipadamente vencidas, nos termos do art. 781º do C. Civil (entendimento esse uniformizado pelo citado AUJ n.º 6/2022) e ao caso do crédito resultar da resolução do contrato de mútuo
[7]
.
É indubitável, como se explicitou no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 13/2024, de 12/09/2024 (relator António Barateiro Martins), publicado in D.R. Iª Série, n.º 200 (2024-10-15) P. 1-16, que «
a previsão do art. 310.º/e) do C. Civil abrange as hipóteses de obrigações pecuniárias, pagáveis em prestações sucessivas e que incorporem duas frações distintas: uma de capital e, outra, de juros, em proporção variável, a pagar conjuntamente, o que significa que a situação prevista»
no citado normativo
«pressupõe, em termos factuais, a individualização de um plano de amortização, assente numa distribuição, temporal e parcelar, do capital e dos juros correspondentes, a título de remuneração de capital.
Em síntese, subjacente à consagração desta prescrição de curto prazo está a estipulação, entre as partes, de um plano de reembolso gradual e ao longo do tempo do capital, que visa facilitar e agilizar o pagamento através do fracionamento da dívida em parcelas de capital, o que faz com que se passe a estar perante prestações que se vencem em certo e determinado tempo, levando consigo o perigo sério de acumulação de dívida
».
Como refere Ana Filipa Morais Antunes
[8]
:
“[N]a situação prevista no art. 310.º/e) não estará em causa uma única obrigação pecuniária emergente de um contrato de financiamento, ainda que com pagamento diferido no tempo, a que caberia aplicar o prazo ordinário de prescrição, de 20 anos, mas sim, diversamente, uma hipótese distinta resultante do acordo entre credor e devedor e cristalizada num plano de amortização do capital e dos juros correspondentes, que, sendo composto por diversas prestações periódicas, impõe a aplicação de um prazo especial de prescrição de curta duração. O referido plano, reitera-se, obedece a um propósito de agilização do reembolso do crédito, facilitando a respetiva liquidação em prestações autónomas, de montante mais reduzido. Por outro lado, visa estimular a cobrança pontual dos montantes fracionados pelo credor, evitando o diferimento do exercício do direito de crédito para o termo do contrato, tendo por objeto a totalidade do montante da dívida.
Constituirão, assim, indícios reveladores da existência de quotas de amortização de capital pagáveis com juros: em 1.º lugar, a circunstância de nos encontrarmos perante quotas integradas por duas frações – uma de capital e outra de juros, a pagar conjuntamente; em 2.º lugar, o facto de serem acordadas prestações periódicas, isto é, várias obrigações distintas, embora todas emergentes do mesmo vínculo fundamental, de que nascem sucessivamente, e que se vencerão uma após outra.
A vontade das partes deverá, pois, ser atendida, não se podendo desconsiderar a referida intenção comum de agilizar a amortização do capital e o pagamento dos juros correspondentes. Caberá, pois, nessa eventualidade, reconhecer a existência de várias prestações pecuniárias, com prazos de vencimento autónomos, cada qual sujeita a um prazo prescricional privativo, de 5 anos (…)”.
Com vista à subsunção das prestações de reembolso dos contratos de mútuo ao curto prazo de prescrição quinquenal do art. 310.º, al. e) do CC é reiteradamente apresentada a seguinte argumentação
[9]
:
- a obrigação unitária, compartimentada num mútuo e respetivos juros, converte-se numa prestação mensal fracionada da quantia global;
- estando em causa uma obrigação de valor predeterminado cujo cumprimento, por acordo das partes, foi fracionado ou parcelado, a dívida será amortizada na medida em que se processe o seu cumprimento;
- o acordo pelo qual se “compartimenta” a obrigação de restituição do capital é um acordo de amortização e cada uma das prestações em que a obrigação de restituição se “compartimenta” é uma quota de amortização;
- em consequência, cada uma das prestações mensais devidas pelo mutuário é uma quota de amortização do capital no sentido do art. 310.º, alínea e), do Código Civil.
O que significa ser liminarmente de rejeitar o entendimento propugnado pela recorrente no sentido de que o prazo de prescrição aplicável é o prazo de prescrição de vinte anos, previsto no art. 309.º do CC, bem como o de que os mútuos bancários nunca prescrevem antes de decorridos, pelo menos, 20 (vinte) anos.
Os termos em que o Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça uniformizou a jurisprudência não deixam margem para dúvidas – o prazo de prescrição de cinco anos conta-se desde a data do vencimento antecipado e em relação a todas as prestações/ a todas as quotas antecipadamente vencidas
[10]
.
Efectivamente, ocorrendo o vencimento antecipado, nos termos do art. 781.º do CC, das quotas de amortização de capital mutuado pagável com juros, continua a aplicar-se às quotas assim antecipadamente vencidas o prazo de prescrição de 5 anos do art. 310.º, al. e) do CC; prazo esse que se inicia e começa a correr, em relação a todas as quotas assim vencidas, na data em que ocorreu o vencimento antecipado (por ser nesta data que o direito passa a poder ser exercido – cfr. art. 306.º, n.º 1, do CC.
Para efeitos de prescrição, o vencimento ou exigibilidade imediata das prestações, por força do disposto no art. 781.º do CC, não altera a natureza das obrigações inicialmente assumidas – continuam a ser quotas de amortização do capital –, só se alterando o momento da sua exigibilidade, o que também significa que o aproveitamento da faculdade prevista no art. 781.º do CC não equivale à resolução contratual, não se estando na relação de liquidação (mas ainda na ação de cumprimento) quando, ao abrigo do citado normativo, se pede o pagamento de todas as prestações.
O que significa, no que aqui interessa – e diferentemente do defendido pela recorrente –, que, vencendo-se e tornando-se exigíveis todas as prestações, por força do disposto no art. 781.º do CC, a prescrição quinquenal não tem como termo inicial, em relação a cada uma das prestações, a data de vencimento (de cada uma dessas prestações) constante do plano de reembolso inicialmente gizado pelas partes, mas sim que a prescrição quinquenal se reporta e conta em relação a todas as prestações a partir da data – termo inicial – em que foi exercida a faculdade prevista no art. 781.º, ou seja, a partir da data em que se venceram e tornaram exigíveis todas as prestações
[11]
.
Em concreto, o contrato de mútuo foi resolvido em 15/04/2014 e a livrança, por que se garantia o cumprimento das obrigações emergentes do contrato de mútuo, foi avalizada pelos Embargantes em branco, em 15/04/2013; a acção executiva foi proposta no dia 20/01/2024 (ref.ª ...69) e os embargantes (AA e BB) foram citados para a execução no dia 12/02/2024 (ref.ªs ...08 e ...16); entre a data da resolução do contrato, com o vencimento da totalidade da dívida, e a data da citação dos aludidos executados para a propositura da acção executiva passaram mais de nove anos.
Logo, secundando o decidido na sentença recorrida, deverá dizer-se que a dívida prescreveu, por aplicação do art. 301.º, alínea e), do Código Civil.
Com vista a impedir a verificação da invocada exceção da prescrição extintiva contrapõe a exequente/recorrente afirmando que «
a interpretação do art. 310.º, al. e) do CC, de que se aplicará a regra prescricional excecional de cinco anos aos contratos de financiamento liquidáveis em prestações mensais e sucessivas, de capital e juros, quando o vencimento antecipado das obrigações ocorre por incumprimento contratual dos mutuários e que essa prescrição abrange a totalidade da dívida, viola os princípios constitucionais da segurança jurídica, proporcionalidade e, ainda o princípio da tutela jurisdicional efetiva
», acrescentando não se vislumbrar «
qualquer alteração legislativa e/ou da realidade existente que permitisse ou permita à ora Recorrente entender que a sua possibilidade de recuperação de créditos seria mitigada por um prazo de cinco anos
».
De acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o princípio da confiança enquanto decorrência do princípio do Estado de direito consagrado no art. 2.º da Constituição da República Portuguesa exige uma certa constância da actuação do Estado, incluindo da actuação dos tribunais, a fim de se alcançar alguma estabilidade da ordem jurídica
[12]
. O ponto é particularmente relevante na sucessão de prazos, designadamente de prescrição, sendo que o art. 297.º do CC tem a especial preocupação de proteger a confiança em caso de sucessão de prazos fixados por quaisquer autoridades, incluindo pelos tribunais.
O princípio da tutela jurisdicional efetiva é um direito fundamental previsto na Constituição da República Portuguesa (CRP) que implica o direito de acesso aos tribunais para defesa de direitos individuais, não podendo as normas que modelam este acesso obstaculizá-lo ao ponto de o tornar impossível ou dificultá-lo de forma não objetivamente exigível.
O princípio da proporcionalidade está consagrado no art. 18º, n.º 2, da CRP, o qual se desdobra em três subprincípios
[13]
:
«
Princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos);
Princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato);
Princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).»
De igual modo, atento o teor da divergência colocada pela recorrente, impõe-se tecer breves considerações sobre o valor da jurisprudência uniformizada.
Como é sabido, o Acórdão de uniformização de jurisprudência é uma decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que tem por objetivo, em nome da segurança jurídica, pôr termo a uma divergência ou contradição entre acórdãos proferidos por este Tribunal ou pelos Tribunais da Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito.
Os acórdãos de uniformização jurisprudencial visam garantir a certeza do direito e o princípio da igualdade, evitando que decisões judiciais que envolvam a mesma lei e a mesma questão de direito obtenham dos tribunais colegiais respostas diferentes. O acórdão de uniformização de jurisprudência vale inter partes mas não tem efeito vinculativo extra-processual, sem prejuízo do seu caráter orientador e persuasivo.
A
jurisprudência uniformizada não é vinculativa para quaisquer tribunais – mesmo para os tribunais judiciais. O seu acatamento pelas instâncias é assegurado de forma indirecta, através da admissibilidade de recurso das decisões que a contrariem, independentemente do valor da causa e da sucumbência da parte
[14]
(art. 629º, n.º 2, al. c) do CPC).
A lei não deixou, porém, de lhe atribuir um especial relevo, conferindo-lhe implicitamente força persuasiva
[15]
.
Como se explicitou no Ac. do STJ de 24/05/2022 (relatora Graça Amaral), in
www.dgsi.pt
., “
não obstante a jurisprudência uniformizada possu[a] apenas uma natureza persuasiva, a mesma deve ser respeitada pelos tribunais de instância e pelo próprio STJ, pois a aplicação do direito não pode ser alheada dos valores da igualdade, da segurança e da certeza jurídicas, pressupostos da própria legitimação da decisão. Assim, a linha interpretativa fixada nos acórdãos uniformizadores só deverá ser objecto de desvio, no âmbito do mesmo quadro legal, perante diferenças fácticas relevantes e/ou (novos) argumentos jurídicos que não encontrem base de ponderação nos fundamentos que sustentaram tais arestos.
Nessa medida, a natureza persuasiva dos acórdãos uniformizadores encontra respaldo em normas processuais de admissibilidade dos recursos (como é o caso da alínea
[c)]
do n.º 2 do artigo 629.º do CPC) visando a natural aceitação e acatamento da respectiva jurisprudência pelos tribunais inferiores e pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça
”
[16]
[17]
.
Para contrariar a doutrina uniformizada pelo Supremo devem valer fortes razões ou outras especiais circunstâncias que porventura ainda não tenham sido suficientemente ponderadas
[18]
.
Ora, estando em causa a interpretação do art. 310º, al. e), do CC, impõe-se ter presente e acatar o sentido interpretativo que lhe foi fixado pelo referido acórdão Uniformizador n.º 6/2022, já que, no caso, não se encontram razões
(fácticas e/ou jurídicas) para não poder ser acolhido.
Para se poder divergir de tal sentido interpretativo, impunha-se que a situação registasse
especificidades relevantes ao nível fáctico e/ou em termos de argumentação jurídica, que não tivessem sido levadas em conta no acórdão uniformizador.
Tal, porém, não acontece, pois, a recorrente limita-se a invocar em abono da sua posição os argumentos já expressos na jurisprudência que propugnava pela aplicação do regime prescricional previsto no art. 309º do CC, ao invés do art. 310º, al. e) do CC, sendo que aquele entendimento foi rejeitado,
por unanimidade
, isto é, sem qualquer voto de vencido, no referido acórdão uniformizador. Tal sentido de voto por unanimidade não pode deixar de relevar no sentido de não ser de acolher a tese oposta à que veio a obter total vencimento.
Assim sendo, não se verificando razões (tanto ao nível fáctico, como em termos de argumentação jurídica) para não acatar o inequívoco sentido interpretativo fixado pelo AUJ n.º 6/2022, forçoso será concluir pela prescrição do crédito exequendo.
Acresce que, atento o curto lapso de tempo decorrido desde a prolação do AUJ, não se encontrando razões de natureza jurídica nem argumentação de carácter económica/financeira para divergirmos do entendimento uniforme do nosso mais alto Tribunal Superior, não se nos oferece dúvidas que é esse que é aqui de sufragar.
Mais se dirá que a solução consagrada no citado AUJ n.º 6/2022 não traduz uma ruptura com a anterior jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (cf. art. 686.º do CPC), visto que já anteriormente era essa a posição predominante no STJ (e nos demais Tribunais Superiores
[19]
). Ou seja, nem se poderá dizer que estamos perante a possibilidade de uma ruptura com uma jurisprudência constante e estabilizada, através de um acórdão proferido pelo Pleno das Secções Cíveis, o que poderia ter como correlato necessário a possibilidade de uma compressão dos seus efeitos, incluindo do seu efeito uniformizador
[20]
.
Por conseguinte, nem se coloca a necessidade de limitar temporalmente os efeitos da decisão – a alínea e) do art. 310.º do Cód. Civil –, de modo a que não deveria aplicar-se sem que decorresse um período razoável para que os particulares adaptassem o seu comportamento a uma nova jurisprudência, em ruptura com a anterior.
Importa, por fim, relembrar que, com os curtos prazos de prescrição de 5 anos, visou a lei evitar que o credor deixasse acumular os seus créditos (retardando em demasia a exigência de créditos periodicamente renováveis) a ponto de ser mais tarde ao devedor excessivamente oneroso pagar
[21]
, o que se mostra salvaguardado com a solução acolhida na decisão recorrida.
Em suma, tendo decorrido o prazo de cinco anos, sem que tenha sido invocada e provada qualquer causa interruptiva ou suspensiva, o direito de crédito exequendo, em relação a todas as prestações / a todas as quotas antecipadamente vencidas, encontra-se prescrito em relação aos embargantes, ora recorridos, pelo que estes podem recusar o cumprimento da prestação e opor-se à exigência coerciva do direito de crédito.
Termos em que improcede a apelação, sendo de confirmar a sentença recorrida (que, reconhecendo a prescrição do crédito exequendo, julgou procedentes os embargos de executado com a consequente extinção da execução quanto aos embargantes).
*
2. Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 527º do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção.
Como a apelação foi julgada improcedente, mercê do princípio da causalidade, as respetivas custas serão da responsabilidade da recorrente (art. 527º do CPC).
*
VI. DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo da recorrente (art. 527.º do CPC).
*
Guimarães, 13 de fevereiro de 2025
Alcides Rodrigues (relator)
Maria Luísa Duarte Ramos (1ª adjunta)
Maria dos Anjos Melo Nogueira (2ª adjunta)
[1]
Cfr. Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, Anotação aos artigos 296.º a 333.º do Código Civil (“O tempo e a sua repercussão nas relações jurídicas”), Coimbra Editora, 2008, pp. 20 e ss.
[2]
Cfr. Sumários desenvolvidos de Teoria Geral do Direito Civil, Centelha, Coimbra, 1981, p. 153.
[3]
Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1987, p. 280.
[4]
Cfr. Vaz Serra, BMJ, n.º 107, p. 285.
[5]
Cfr. Ana Filipa Morais Antunes, Algumas Questões sobre Prescrição e Caducidade, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia, III, 2010, pg. 47
[6]
Cfr. Nos Tribunais da Relação, preconizando a aplicação do prazo ordinário de 20 anos; o Ac. da RC. 26/4/2016 (relatora Maria João Areias), Ac. da RC de 15/12/2020 (relatora Maria Teresa Albuquerque), Ac. da RL de 12/11/2020, (relatora Maria do Céu Silva), Ac. da RL de 19/1/2021 (relatora Isabel Salgado), Ac. da RG de 16/3/2017 (relator Jorge Teixeira) e Ac. da RE de 12/4/2018 (relator Mário Coelho), in
www.dgsi.pt
.; no Supremo Tribunal de Justiça, perfilhando o entendimento da aplicação do prazo de prescrição de cinco anos, os Acs. de 29/9/2016 (relator Lopes do Rego) de 8/4/2021 (relator Nuno Pinto Oliveira), de 9/2/2021 (relator Fernando Samões), de 14/1/2021 (relator Tibério Nunes da Silva), de 12/11/2020 (relatora Maria do Rosário Morgado), de 3/11/2020 (relatora Fátima Gomes), de 23/1/2020 (relator Nuno Pinto Oliveira) e de 27/3/2014 (relator Silva Gonçalves) ), in
www.dgsi.pt
.
[7]
Cfr. Ac. do STJ de 23.01.2020 (relator Nuno Pinto Oliveira), proferido no processo n.º 4518.17.8T8LOU-A.P1.S1, in ECLI:PT:STJ:2020:4518.17.8T8LOU.A.P1.S1 e Acs. do STJ de 03/11/2020 (relatora Fátima Gomes) e de 06/07/2021 (relatora Fátima Gomes), in
www.dgsi.pt
.
[8]
Cfr. “Algumas Questões sobre a Prescrição e Caducidade”, em Estudos de Homenagem ao Prof. Sérvulo Correia, p. 47 e ss.
[9]
Cfr. Ac. do STJ de 23-01-2020 (relator Nuno Pinto Oliveira), proferido no processo n.º 4518/17.8T8LOU-A.P1.S1, in ECLI:PT:STJ:2020:4518.17.8T8LOU.A.P1.S1.
[10]
Cfr. Ac. do STJ de 15/09/2022 (relator Nuno Pinto Oliveira), in
www.dgsi.pt
.
[11]
Cfr., seguindo a uniformizada jurisprudência, Acs. do STJ de 12/07/2022 (relator António Barateiro Martins), de 29/09/2022 (relator Ferreira Lopes), de 29/09/2022 (relator Vieira e Cunha), de 28/09/2022 (relator Luís Espírito Santo), de 11/10/2022 (relatora Ana Resende), de 13/10/2022 (relator Rijo Ferreira) e de 15/09/2022 (relator Nuno Pinto Oliveira), todos disponíveis in
www.dgsi.pt
.
[12]
Cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 202/2014, de 3/03/2014, in
www.dgsi.pt
.
[13]
Cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 187/2001, de 2/05/2001, in
www.dgsi.pt
.
[14]
Cfr. Luís Correia de Mendonça/Henriques Antunes, Dos Recursos (regime do Dec. Lei n.º 303/2007), Quid Iuris, 2009, p. 329.
[15]
Cfr., Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª ed., Almedina, p. 463.
[16]
“
Saindo beneficiados com a resolução ou prevenção de querelas jurisprudenciais os valores da segurança e certeza do direito e também o princípio da igualdade perante a lei interpretanda, o incremento dessa actividade judicativa repercutir-se-á também, em termos mediatos, na redução da litigância, ante a perspectiva da previsível resposta a determinada questão jurídica que tenha sido objecto de uniformização jurisprudencial. Também não devem ser desconsiderados os efeitos positivos na valorização da actividade do próprio Supremo no sistema judiciário e na sua visibilidade perante a sociedade. Através da uniformização de jurisprudência sai valorizada a competência que exclusivamente é atribuída ao Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, traduzida através de acórdãos com valor para-legislativo, ao mesmo tempo que, sanando ou prevenindo polémicas jurisprudenciais, potencia os factores da segurança e da certeza na aplicação do direito, contribuindo também para a maior eficácia e celeridade do sistema judiciário
.” – Abrantes Geraldes, Uniformização de Jurisprudência, acedido em
https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2015/07/painel_3_recursos_abrantesgeraldes.pdf
[17]
Cfr. Reclamação do STJ de 12-05-2016 (relator Abrantes Geraldes), proferida no âmbito do Processo n.º 982/10.4TBPTL.G1-A.S1, constando do seu sumário “
Os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência, conquanto não tenham a força obrigatória geral que era atribuída aos Assentos pelo revogado art. 2º do CC, têm um valor reforçado que deriva não apenas do facto de emanarem do Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, como ainda de o seu não acatamento pelos tribunais de 1ª instância e Relação constituir motivo para a admissibilidade especial de recurso, nos termos do art. 629º, nº 2, al. c), do CPC. 2. Esse valor reforçado impõe-se ao próprio Supremo Tribunal de Justiça, sendo projectado, além do mais, pelo dever que recai sobre o relator ou os adjuntos de proporem ao Presidente o julgamento ampliado da revista sempre que se projecte o vencimento de solução diversa da uniformizada
”.
[18]
Cfr., Abrantes Geraldes, Recursos (…), p. 465.
[19]
Cfr., reconhecendo a predominância desse entendimento, Júlio Gomes, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2ªed., 2014, 2018, UCP/Editora, p. 922 (anotação ao art. 310º).
[20]
Cfr., a propósito o voto de vencido do Sr. Conselheiro Nuno Manuel Pinto Oliveira, no citado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 13/2024, de 12/09/2024 (relator António Barateiro Martins), publicado in D.R. Iª Série, n.º 200 (2024-10-15), pp. 1-16.
[21]
Cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1983, p. 452, e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., 1987, Coimbra Editora, p. 280.
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TRG
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https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/013c4f65b6ba429780258c3600357668?OpenDocument
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1,737,590,400,000
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CONFIRMADA
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728/24.0T8MTS.P1
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728/24.0T8MTS.P1
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MANUELA MACHADO
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I - Em matéria de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, deve atribuir-se a culpa na sua produção, por presunção judicial (art. 351.º do CC) ao condutor que violou regras de direito estradal, desde que ele não logre demonstrar a existência de quaisquer circunstâncias anormais que determinaram tal facto.
II - Se da matéria de facto provada, não resulta a prática de qualquer infração por parte da condutora, não se verifica qualquer presunção judicial de culpa que aquela tenha que ilidir.
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[
"RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DE ACIDENTE DE VIAÇÃO",
"PRESUNÇÃO JUDICIAL DE CULPA"
] |
Apelação 728/24.0T8MTS.P1
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
A..., Lda., intentou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra B..., SA, e C... – Companhia de Seguros, SA, todos melhor identificados nos autos, pedindo a condenação das rés no pagamento da quantia de 20.545,00€ (vinte mil quinhentos e quarenta e cinco euros), acrescida de juros vincendos à taxa legal contados desde a citação até total e efetivo pagamento.
Para o efeito alegou, em síntese, que no dia 15 de agosto de 2022, pelas 06 horas, na auto estrada ..., ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes três veículos que circulavam nessa via, no sentido ...-..., tendo esse embate ocorrido por responsabilidade dos condutores dos veículos seguros nas rés, de matrículas ..-VX-.. e AH-..-.., uma vez que estes embateram no seu veículo, de matrícula ..-TC-.., sendo que em consequência desse acidente, a autora sofreu danos de natureza patrimonial, que quantifica.
Citadas as rés, ambas contestaram, defendendo-se apenas por impugnação.
Admitiram a celebração dos contratos de seguro em relação aos veículos intervenientes, bem como a ocorrência do acidente, mas alegaram que o mesmo não sucedeu da forma descrita pela autora na petição inicial, antes atribuindo a culpa na sua produção aos outros veículos, que não o próprio segurado, mais impugnando os danos, quer por desconhecimento, quer por não serem responsáveis pelos mesmos.
Foi proferido despacho saneador, com a identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Prosseguindo o processo para julgamento, ao qual se procedeu, foi proferida sentença que decidiu:
“Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente por parcialmente provada e, em consequência:
a) condeno a 2ª ré C... – Companhia de Seguros, SA a pagar à autora a quantia de 20.545,00€ (vinte mil quinhentos e quarenta e cinco euros), acrescida de juros de mora vincendos à taxa de juros civis contados desde a citação até total e efetivo pagamento;
b) absolvo a 1º ré B..., SA do pedido contra si formulado.
Custas:
Custas a cargo de autora e 2ª ré C... – Companhia de Seguros, SA, nos termos do art. 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil, na proporção de 5% para a autora e 95% para a ré.
Registe.
Notifique.”.
*
Não se conformando com o assim decidido, veio a Ré C... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
A apelante formulou as seguintes conclusões:
“1. A douta decisão recorrida não poderá manter-se uma vez que a decisão nela inserta consubstancia uma solução que viola os preceitos legais e os princípios jurídicos aplicáveis, afigurando-se, pois, como injusta.
2. A Recorrente não pode concordar com a solução encontrada pelo Tribunal a quo que, no fundo se limita a dizer que a responsabilidade do condutor do veículo segurado na ora recorrente se deve ao facto de circular ao volante do AV a uma velocidade superior à legalmente permitida e, também, a circular com uma TAS superior à legalmente permitida.
3. Na verdade, contrariamente àquilo que o Tribunal a quo defende, a condutora do VX violou, pelo menos, três regras de circulação estradal que, se tivessem sido cumpridas, teriam evitado a eclosão do sinistro dos autos.
4. No local do sinistro (auto-estrada ...), atento o sentido de marcha dos veículos intervenientes no sinistro comporta três vias de trânsito sendo que a condutora do VX circulava na faixa do meio sem que para isso houvesse algum motivo (factos provados 4 e 8).
5. Com este comportamento a condutora do VX encontrava-se a violar o disposto no art.º 13.º, n.º 1 do Código da Estrada: “A posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes”.
6. A condutora do VX deveria estar a usar a faixa de rodagem mais à direita, assim como o devia estar a fazer o condutor do veículo propriedade da Autora.
7. Não resultou provado qualquer facto que justificasse esta conduta de ambos os condutores pelo que os mesmos incorreram numa violação do código da estrada.
8. Se ambos os veículos estivessem a circular na faixa de rodagem mais à direita nunca o embate entre o veículo segurado na Recorrente (que circulava na faixa de rodagem mais à esquerda pois estava a efectuar a manobra de ultrapassagem de ambos os veículos que o precediam).
9. Acresce referir que não resultou provado que a condutora do VX tivesse iniciado a manobra de ultrapassagem tendo previamente accionado o sinal de ultrapassagem (sinal luminoso).
10. Dispõe o art.º 21.º, n.º 1 do Código da Estrada que “Quando o condutor pretender reduzir a velocidade, parar, estacionar, mudar de direção ou de via de trânsito, iniciar uma ultrapassagem ou inverter o sentido de marcha, deve assinalar com a necessária antecedência a sua intenção.”
11. Por seu turno, dispõe o art.º 11., n.º 2 do mesmo diploma legal que “Os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança”.
12. Ora, a condutora do VX não tinha o sinal luminoso sinalizador da ultrapassagem do veículo propriedade da Autora ligado bem como a sua condutora não se certificou que podia realizar a manobra de ultrapassagem se prejudicar o demais tráfego automóvel que se processava a ....
13. Circulasse o veículo segurado na Recorrente a que velocidade circulasse, atentas as características da via descritas no ponto 4. dos factos provados, a condutora do VX tinha possibilidade de o ver pelo retrovisor e, por conseguinte, esperar que o mesmo ultrapassasse o VX, evitando o sinistro dos autos.
14. Desta forma, a condutora do VX violou as citadas disposições do Código da Estrada.
15. As Recorridas e não lograram afastar a presunção de culpa que impendia sobre a sua conduta, nomeadamente, qual o motivo pelo qual o veículo propriedade da Autora e o VX se encontrava, a circular na faixa central da ... e porque é que a condutora do VX para além de não sinalizar a manobra de ultrapassagem do veículo propriedade da Autora não se certificou que podia fazer a manobra de ultrapassagem sem causar embaraço ao demais tráfego uma vez que o local do sinistro se trata de uma recta.
16. Assim, relativamente ao condutor do veículo segurado na Recorrente, o facto de o mesmo circular com uma velocidade ligeiramente superior á legalmente permitida no local do sinistro (que é uma via de velocidade rápida) e o facto de o mesmo circular com uma TAS superior á legalmente permitida não poderá concluir-se como fez o Tribunal a quo que isso, por si só, foi o motivo causador do sinistro.
17. Se a condutora do VX não tivesse iniciado a manobra de ultrapassagem nos termos em que o faz o veículo segurado na Recorrente teria passado pelos demais veículos em que qualquer acidente se tivesse processado.
18. O que levou à eclosão do sinistro foi, apenas e só, a manobra de ultrapassagem temerária efectuada pela condutora do VX que tinha todas as condições para não o ter feito.
19. A responsabilidade pela produção do acidente mostra-se imputável em exclusivo, a título de culpa, à condutora do VX, ao abrigo do disposto no art.º 483.º do Código Civil.
20. Termos em que a douta sentença violou por erro de interpretação, o disposto nos art.ºs 11.º, n.º 2, 13.º, n.º 1 e 21.º, n.º 1 todos do Código da Estrada e art.º 483.º do Código Civil.
Nestes termos e nos mais de direito, sempre sem prescindir do douto suprimento de V. Exas., deve a sentença do Tribunal da Comarca de Matosinhos ser revogada, absolvendo-se a Recorrente do pedido.”.
Foram apresentadas contra-alegações pela Ré B..., S.A., pugnando pela improcedência do recurso, com a consequente confirmação da sentença recorrida.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DO MÉRITO DO RECURSO
1. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela Apelante, a única questão a apreciar consiste em decidir se deve ser alterada a análise jurídica que foi feita na sentença recorrida, por errada aplicação das regras de direito aplicáveis ao caso, concluindo-se pela absolvição da recorrente, do pedido.
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2. Apreciando:
2.1. A decisão recorrida
A apelante não impugnou a matéria de facto dada como provada e não provada, pelo que se consideram assentes os seguintes factos:
1. No dia 15 de agosto de 2022, a hora não concretamente apurada, mas que se situou entre as 04h45m e as 06h, na auto estrada ..., ao km 9,450, em Matosinhos, ocorreu um sinistro.
2. No qual foram intervenientes:
a) veículo ligeiro de mercadorias da marca Renault modelo ..., de matrícula ..-TC-.., pertença da autora e conduzido por AA,
b) o veículo ligeiro de passageiros, marca Mini, modelo ..., matrícula ..-VX-.., pertença de BB e por esta conduzido, segurado na 1ª ré pela apólice n.º ...,
c) o veículo ligeiro de passageiros, marca Volvo, marca ... de matrícula AH-..-.., pertença de CC e por este conduzido, segurado na 2ª ré pela apólice ....
3. A via tem dois sentidos de trânsito, separada por um separador/corredor central.
4. O local, no sentido sul-norte, desenha-se em reta, estando a faixa de rodagem daquele sentido dividida em três vias de trânsito, com uma largura total de 11,5 metros, ladeadas, à direita, por uma berma de 2,0 metros de largura.
5. As referidas vias de transito encontravam-se separadas por linha longitudinal de traço descontínuo M2, impresso no pavimento, conforme auto policial junto com a petição inicial.
6. A velocidade máxima do local onde ocorreu o sinistro encontra-se, como se encontrava na altura, limitada a 100 kms horários, conforme consta nas placas de sinalização localizadas naquela parte do troço.
7. Não chovia e a via, com piso betuminoso, estava seca.
8. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas, o veículo da autora circulava na faixa do meio/central da faixa rodagem, quando foi embatido na traseira esquerda da sua viatura pelo veículo VX segurado pela 1ª ré, que estava a iniciar a sua ultrapassagem.
9. O veículo VX embateu no veículo da autora com o seu canto frontal esquerdo.
10. Esse embate foi provocado pelo embate do veículo AH-..-.. no veículo VX, que impulsionou este contra o veículo da autora.
11. O veículo AH-..-.. embateu no veículo VX com a sua lateral esquerda dianteira, no canto traseiro esquerdo deste.
12. O veículo AH-..-.. circulava na faixa mais à esquerda, a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 100 km/h.
13. O veículo da autora circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas a rondar os 80 km/h.
14. O veículo VX circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas situada entre os 90 km e a velocidade a que seguia o veículo AH.
15. Na sequência do embate referido em 8, o veículo da autora rodopiou e veio a imobilizar-se sensivelmente na zona da faixa central, virado para o sentido sul/norte em que seguia.
16. O veículo AH veio a imobilizar-se a cerca de 80 metros à frente, na berma.
17. O veículo VX veio a imobilizar-se na berma, de frente para o rail, perpendicular à via.
18. O veículo da autora, em consequência deste sinistro, sofreu danos no canto traseiro esquerdo, apanhando assim a zona traseira e a lateral esquerda.
19. A 1ª ré apresentou à autora uma proposta inicial e condicional de perda total, conforme documento 4 junto com a petição inicial, mas posteriormente veio a declinar a sua responsabilidade.
20. Em consequência do sinistro, o veículo da autora sofreu estragos que levaram à sua perda total.
21. Um veículo de características idênticas ao da autora em momento anterior ao sinistro tinha um valor de mercado de € 15.342,58, ao qual deve ser deduzido o valor do salvado (€ 5.395,00), conforme documento 3 junto com a petição inicial.
22. A autora utilizava o veículo TC diariamente para a sua atividade profissional, designadamente para transporte de mercadorias, deslocações a fornecedores e transporte de pessoal.
23. O condutor do veículo AH, submetido ao teste de controle do álcool, acusou uma taxa de alcoolémia de 1,380 g/l, deduzido o valor erro máximo admissível e, após realizar a contraprova, acusou a taxa de 0,979 g/l.
24. Em consequência de ter estado a ingerir bebidas alcoólicas, o condutor do veículo AH seguia de forma desatenta, em velocidade superior aos 100 km/h, sem atentar ao sinal vertical de limite de velocidade e ao tráfego que circulava na via.
25. A 1ª ré B... declinou a sua responsabilidade mediante comunicação enviada à autora em 11 de julho de 2023.
26. A 2ª ré C... declinou a sua responsabilidade mediante comunicação enviada à autora em 07 de setembro de 2023.
E consideram-se não provados, os factos seguintes:
a) No momento do sinistro era de dia;
b) O veículo da autora estava a terminar uma manobra de ultrapassagem de um pesado que seguia na faixa mais à direita;
c) O veículo da autora despistou-se em direção ao separador central, onde raspa com a lateral direita para, logo de seguida, sofrer novo embate na lateral esquerda, pelo veículo AH-..-.. (segurado pela 2ª ré);
d) O veículo da autora também sofreu danos na lateral direita.
e) A condutora do veículo VX iniciou a manobra sem se certificar que não vinham outros veículos;
f) O veículo VX seguia pela via da direita;
g) A sua condutora olhou pelo espelho retrovisor e certificou-se que nenhum veículo, na sua retaguarda, estava próximo;
h) Sinalizou a intenção de ultrapassagem com o sinal luminoso de mudança de direção à esquerda;
i) O condutor do veículo AH circulava a uma velocidade não inferior a 180 km/h;
j) O veículo AH encontrava-se a circular a uma velocidade de cerca de 90 km/h, com o respetivo sinal de mudança de direção à esquerda (vulgo pisca) acionado e as luzes de presença (“médios”) acionados que ia alternando com a posição de “máximos”;
k) Quando se preparava para ultrapassar o veículo VX bem como o TC, o condutor do AH é surpreendido pela mudança de faixa, da direita para a esquerda, da condutora do VX;
l) A condutora do VX efetuou a referida manobra de mudança de faixa sem dar qualquer sinal de que o iria fazer e sem se acautelar com a manobra de ultrapassagem que o condutor do AH se encontrava a fazer.
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2.2. Posto isto, e como referido, o recurso versa apenas sobre a decisão de direito, entendendo a Apelante que o Tribunal a quo se limita a dizer que a responsabilidade do condutor do veículo segurado na recorrente se deve ao facto de circular ao volante do AH a uma velocidade superior à legalmente permitida e, também, a circular com uma TAS superior à legalmente permitida; quando, na verdade, contrariamente àquilo que o Tribunal a quo defende, a condutora do VX violou, pelo menos, três regras de circulação estradal que, se tivessem sido cumpridas, teriam evitado a eclosão do sinistro dos autos.
Vejamos:
Depois de discorrer, de forma que não nos merece censura, sobre a responsabilidade civil extracontratual e os seus requisitos, a decisão recorrida refere, no que à culpa pela ocorrência do acidente diz respeito, que:
“(…) Cumprirá, então, antes de mais, verificar se concorrem in casu todos os pressupostos da responsabilidade civil, incluindo a culpa, caso em que será de afastar a aplicação do regime da responsabilidade civil pelo risco, e recorrer antes às regras da responsabilidade aquiliana.
i) Facto: consiste num ato voluntário ou numa ação, no sentido amplo de ato objetivamente controlável pela vontade humana (v. Ana Prata, ob. cit., p. 627), que na versão da autora se traduz no embate do veículo AH no veículo VX que, por sua vez, embateu no veículo TC, sua propriedade.
ii) Ilicitude: a ilicitude consiste no desrespeito por uma (ou mais) norma estradal, nomeadamente naquelas que regem os limites de velocidade e a manobra de ultrapassagem. Com efeito, as normas constantes do Código da Estrada são um exemplo perfeito de normas de proteção, cuja violação pode implicar responsabilidade civil. Existem para regular uma atividade potenciadora de elevados riscos, impondo regras firmes que visam evitar as consequências muitas vezes gravosas de uma atividade intrinsecamente perigosa.
Analisemos a apurada conduta de cada um dos três condutores intervenientes no sinistro.
Em primeiro lugar, a conduta do condutor do veículo da autora, de matrícula TC.
Tanto quanto se apurou, este seguia na faixa do meio, não tendo provado que fosse a ultrapassar algum outro veículo.
Contudo, também não se apurou que não fosse a ultrapassar um outro veículo, pelo que se ignora se, ao circular na hemifaixa do meio, em vez da faixa da direita, circulava em violação da norma que obriga a circular mais à direita.
Cabia às rés provar a culpa do condutor do veículo da autora, prova essa que não fizeram.
Apurou-se que circulava a uma velocidade na casa dos 80 km/h, pelo que claramente não transitava em excesso de velocidade.
Pelo que o Tribunal não encontra na condução do veículo TC nenhuma violação às regras do Código da Estrada, não se conseguindo imputar ao mesmo nenhuma ilicitude, culpa ou contribuição para o sinistro.
O que equivale a dizer que o Tribunal não vê fundamento para o responsabilizar, no todo ou em parte, pela eclosão do acidente.
Em segundo lugar, a condutora do veículo VX, o veículo da marca Mini.
À condutora do veículo VX incumbia, em primeiro lugar, verificar se a manobra de ultrapassagem que iniciou não causaria perigo ou embaraço para o trânsito (art. 35º nº 1 do Código da Estrada) e acionar as competentes luzes sinalizadoras (art. 21º nº 1 e 60º nº 2 al. b) do Código da Estrada).
Ora, da factualidade provada, não resultou demonstrado que a condutora BB tenha procedido a todas as cautelas necessárias e previstas no Código da Estrada para a ultrapassagem.
Mas também não se apurou que não o tenha feito, pelo que, o Tribunal ignora se esta condutora violou as normas estradais referidas.
Quanto à velocidade, apurou-se que seguia a, pelo menos, 90km/h, não se apurando com segurança que seguisse a velocidade superior.
Pelo que o Tribunal também não encontra na condução do veículo VX nenhuma violação às regras do Código da Estrada, não se conseguindo imputar à respetiva condutora nenhuma ilicitude, culpa ou contribuição para o sinistro.
O que equivale a dizer que o Tribunal não vê fundamento para a responsabilizar, no todo ou em parte, pela eclosão do acidente.
Em terceiro e último lugar, a conduta do condutor do veículo de matrícula AH (Volvo).
Relativamente à velocidade, apurou-se que seguia a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 100 km/h.
Aqui temos a primeira contra-ordenação, tendo o condutor CC violado as normas dos art. 24º nº 1, 27º nº 1, 35º nº 1 e 38º nº 1 do Código da Estrada.
Relativamente à sua restante condução, apurou-se conduzia com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 0,979g/l.
Aqui temos a segunda contra-ordenação, tendo o condutor CC violado a norma do art. 81º do Código da Estrada.
Na verdade, na ótica do Tribunal esta contraordenação afigura-se de extrema gravidade e continua a assolar as estradas portuguesas e, também na ótica do Tribunal, a ser causa de um número muito elevado de sinistros.
Por esse motivo, se cita de forma expressa o normativo.
Art. 81º
“1 - É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas.
2 - Considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico”.
Temos, pois, de forma inequívoca preenchido o pressuposto da ilicitude da conduta do condutor do veículo AH, ao violar as normas referidas.
iii) Culpa: A culpa do agente distingue-se da ilicitude na medida em que aquela é “virada para a conduta objetivamente considerada, enquanto negação de valores tutelados pelo direito; esta, olhando sobretudo para o lado subjetivo do facto jurídico” – Acórdão do STJ de 23-02-2012, proc.1674/07.7TVLSB.P1.S1, in www.dgsi.pt. Ou seja, trata-se da averiguação da falta de diligência, imputável ao agente, diligência essa que é aferida através do critério do homem médio, colocado na situação do agente em concreto, e as suas possibilidades perante o facto danoso (art. 487º nº 2 do Código Civil).
A culpa divide-se nas modalidades de mera culpa ou dolo; a primeira existe quando o agente não previu o resultado ilícito, ou, mesmo tendo previsto o mesmo, confia na sua não ocorrência. A segunda existe quando o agente prevê o resultado, aceita-o como possível, ou deseja alcançar o mesmo, e atua em conformidade.
Para aferir da existência de culpa, cumpre apreciar se o agente em concreto agiu da melhor forma, atendendo às circunstâncias do caso.
Face aos dados dos autos, acabados de analisar, temos que o Tribunal não encontra uma conduta culposa nos condutores dos veículos da autora nem do veículo VX.
Já o condutor do veículo AH não tomou as cautelas necessárias a uma condução segura e cuidadosa, não cuidando de verificar se poderia operar a manobra em segurança.
Conduzia sob o efeito do álcool, claramente não atentando à via, ao tráfego e às demais regras de conduta.
Pelo que não agiu com a diligência exigível ao bom pai de família, aqui colocado na situação do condutor concreto, situando-se a sua atuação pelo menos ao nível da negligência ou mera culpa.
Desta forma, encontra-se demonstrada a prática de um facto ilícito e culposo da sua parte.
Pelo que as normas aplicáveis são as da responsabilidade extracontratual pura e não a responsabilidade pelo risco.”.
Não podemos deixar de concordar com esta decisão, a qual se afigura correta perante a matéria de facto dada como provada.
Alega a recorrente que a condutora do veículo VX incorreu na prática de várias infrações, não tendo logrado afastar a presunção de culpa que impendia sobre a sua conduta, sendo a causa do acidente a ultrapassagem temerária dessa condutora.
Vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 487.º, nº 1, do Código Civil, é sobre o lesado que recai a prova da culpa, a qual, nos termos do nº 2, é apreciada de acordo com a diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias do caso.
É esta a regra geral, à falta de presunção legal de culpa (cfr. art. 350.º do CC).
Mas existem presunções para alem das presunções legais.
Nos termos do artigo 349.º do CC, presunções são ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, prevendo o artigo 351.º do mesmo Código que as presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal.
O art. 487.º, n.º 2, do Código Civil consagra o critério da culpa em abstrato, conforme à diligência de um homem normal, medianamente sagaz, prudente e cuidadoso, em face do condicionalismo próprio do caso concreto. O critério legal de apreciação da culpa é um critério abstrato, tendo em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do acidente de viação em causa, por referência a um condutor normal.
Parece-nos estar consolidado pela jurisprudência maioritária que, em matéria de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, deve atribuir-se a culpa na sua produção, por presunção judicial (art. 351.º, do CC) ao condutor que violou regras de direito estradal, desde que ele não logre demonstrar a existência de quaisquer circunstâncias anormais que determinaram tal facto.
Como se decidiu no acórdão do STJ de 20.11.2003, Proc. 03A3450, disponível em www.dgsi.pt., podemos dizer que “embora em matéria de responsabilidade civil extracontratual a culpa do autor da lesão, em princípio, não se presuma, tendo de ser provada pelo lesado (art. 487.º, nº 1, do Cód. Civil), a posição deste é frequentemente aliviada por intervir aqui, facilitando-lhe a tarefa, a chamada prova de primeira aparência (presunção simples): se esta prova aponta no sentido da culpa do lesante, passa a caber a este o ónus da contraprova. Para provar a culpa, basta assim que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, a tornem muito verosímil, cabendo ao lesante fazer a contraprova, no sentido de demonstrar que a atuação foi estranha à sua vontade ou que não foi determinante para o desencadeamento do facto danoso. Isto não está sequer em contradição com o disposto no art. 342.º do Cód. Civil, que consagra um critério de normalidade no que respeita à repartição do ónus da prova, no sentido de que aquele que invoca determinado direito tem de provar os factos que normalmente o integram, tendo a parte contrária de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos do direito.”.
Voltando ao caso em apreciação, e à alegação da recorrente no sentido de que a condutora do veículo VX incorreu na prática de várias infrações, não tendo logrado afastar a presunção de culpa que impendia sobre a sua conduta, o certo é que da matéria de facto provada (e que não foi impugnada) não resulta a prática de qualquer infração por parte da dita condutora.
Em concreto, no que para esta questão interessa, resultou provado que:
8. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas, o veículo da autora circulava na faixa do meio/central da faixa rodagem, quando foi embatido na traseira esquerda da sua viatura pelo veículo VX segurado pela 1ª ré, que estava a iniciar a sua ultrapassagem.
9. O veículo VX embateu no veículo da autora com o seu canto frontal esquerdo.
10. Esse embate foi provocado pelo embate do veículo AH-..-.. no veículo VX, que impulsionou este contra o veículo da autora.
11. O veículo AH-..-.. embateu no veículo VX com a sua lateral esquerda dianteira, no canto traseiro esquerdo deste.
12. O veículo AH-..-.. circulava na faixa mais à esquerda, a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 100 km/h.
13. O veículo da autora circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas a rondar os 80 km/h.
14. O veículo VX circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas situada entre os 90 km e a velocidade a que seguia o veículo AH.
15. Na sequência do embate referido em 8, o veículo da autora rodopiou e veio a imobilizar-se sensivelmente na zona da faixa central, virado para o sentido sul/norte em que seguia.
16. O veículo AH veio a imobilizar-se a cerca de 80 metros à frente, na berma.
17. O veículo VX veio a imobilizar-se na berma, de frente para o rail, perpendicular à via.
24. Em consequência de ter estado a ingerir bebidas alcoólicas, o condutor do veículo AH seguia de forma desatenta, em velocidade superior aos 100 km/h, sem atentar ao sinal vertical de limite de velocidade e ao tráfego que circulava na via.
Como referido, da matéria de facto provada (e que não foi impugnada) não resulta a prática de qualquer infração por parte da dita condutora.
Quando muito, constituiria infração às regras estradais o facto de a condutora do VX circular pela faixa central, em vez de o fazer pela faixa mais à direita. No entanto, o certo é que ficou provado que o veículo da autora também circulava pela faixa do meio e o VX estava a iniciar uma manobra de ultrapassagem a esse veículo, desconhecendo-se o motivo pelo qual circulavam pela faixa central.
Ainda assim, podendo presumir-se a culpa numa situação em que o condutor viola alguma regra estradal, a presunção de culpa pode ser ilidida, entendendo-se no caso que, constando do facto provado número 24, a verdadeira causa da ocorrência do acidente, se tem que ter por ilidida a culpa da condutora do VX.
Do circunstancialismo que ficou provado, relativamente à dinâmica do acidente, podemos concluir que foi o excesso de velocidade a que circulava o condutor do AH, e a sua falta de atenção ao trânsito que levou a eu embatesse no VX e este, por sua vez, fosse embater no veículo da autora.
Na falta de prova concreta sobre alguma violação relevante em termos de culpa pela ocorrência do acidente, que não por parte do condutor segurado da recorrente, nada há a apontar à sentença recorrida, a qual, assim, se deve manter, improcedendo a apelação.
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III- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo, consequentemente, a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas a cargo da recorrente (art. 527.º do CPC).
Porto, 2025-01-23
Manuela Machado
Álvaro Monteiro
José Manuel Correia
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/6bf45c5e8f6a20c780258c280050a388?OpenDocument
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1,740,009,600,000
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IMPROCEDENTE
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30416/22.5T8LSB.L1-6
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30416/22.5T8LSB.L1-6
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MARIA TERESA F. MASCARENHAS GARCIA
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I. O condomínio constitui um centro autónomo de imputação de efeitos jurídicos, razão pela qual o legislador o dotou de organicidade e, embora não lhe tenha atribuído personalidade jurídica (ao contrário do que acontece noutros países), admite que o mesmo possa ser parte em acções judiciais.
II. A concessão de personalidade judiciária ao condomínio não é lata e irrestrita: a medida da mesma coincide com as funções do administrador. Fora deste âmbito (dos poderes do administrador) o condomínio não tem personalidade judiciária, o que determina que - em tudo o que se situe fora daquele âmbito – os condóminos agirão em juízo em nome próprio, com a personalidade judiciária que a personalidade jurídica lhes confere.
III. O artigo 12.º, al. e), do CPC tem necessariamente de ser conjugado com os artigos 1436.º e 1437.º do CC, onde se regula sobre as funções e legitimidade do administrador.
IV. Os actos conservatórios previstos na al. g) do art.º 1436.º do CC, quer sejam de natureza material e/ou judicial, são os que nada resolvem em definitivo, que não comprometem o futuro, visando apenas manter uma coisa ou um direito numa determinada situação, isto é aqueles que são adequados a evitar a degradação ou destruição do conjunto de elementos que integram as partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal.
V. Quando a questão se centra na ausência de deliberação, estamos já no âmbito da capacidade judiciária e da falta de deliberação, tal como a mesma vem regulada no art.º 29.º do CPC, e não no campo da falta de personalidade judiciária.
VI. Numa acção judicial, a formulação do pedido é uma necessidade que resulta da consagração do princípio do dispositivo; mas a lei não se basta com a formulação do pedido, antes impondo que o mesmo seja formulado de modo claro e inteligível e que seja preciso e determinado – art.º 186.º do CPC.
VII. Por força do princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais, a lei processual não admite, por via de regra, a condenação condicional, isto é, aquela em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto.
VIII. À semelhança das situações de ineptidão da petição inicial, a formulação de pedidos condicionais, vagos e genéricos consubstancia uma excepção dilatória, geradora de absolvição da instância, sendo inquestionável, em face do artigo 577º do CPC (onde consta expressamente a referência a “entre outras”) o carácter exemplificativo das excepções ali tipificadas.
(Sumário elaborado pela relatora)
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[
"CONDOMÍNIO",
"CAPACIDADE JUDICIÁRIA",
"ADMINISTRADOR",
"LEGITIMIDADE",
"ACTOS DE CONSERVAÇÃO",
"CONDENAÇÃO CONDICIONAL",
"INEPTIDÃO"
] |
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:
CONDOMÍNIO DO PRÉDIO SITO NA …
,
LISBOA
intentou acção declarativa com processo comum contra
P, ATIVIDADES HOTELEIRAS LDA.,
M
e
H
,
MA
e
BANCO … S.A.
pedindo que:
a) Sejam os 1.º, 2.ºs e 4.º Réus condenados a usar a fração “C” para fins exclusivamente habitacionais, bem como, na sanção pecuniária compulsória, de 100,00€ (cem euros), por cada dia de atraso no cumprimento ou em situação de incumprimento deste dever;
b) sejam todos os Réus, solidariamente condenados a:
i. Custear os estudos que o Autor mandará elaborar, demonstrativos do impacto que a remoção das lajes, alteração dos vãos e reposição em diferente local, tiveram, ou podem vir a ter, na estabilidade e segurança de todo o prédio;
ii. Em função das conclusões técnicas obtidas, custear todas as obras necessárias para reconstituir uma situação idêntica à preexistente relativamente às remoções por si realizadas, com garantias de plena estabilidade para o prédio;
iii. Apresentar à Câmara Municipal de Lisboa os projectos necessários, tendo em vista a regularização formal do processo do edifício e reduzir, até onde for possível, o risco gerado pela ofensa às suas estruturas;
iv. Garantir, por meio de inscrição sobre as fracções B e C, na Conservatória do Registo Predial, sem limite de capital e como encargo em espécie, sem prazo determinado os riscos que, mesmo com a execução dos trabalhos que sejam recomendados pelos estudos a efetuar, sempre subsistirão;
v. Reembolsar todas as despesas suportadas, em resultado da sua conduta, em causa nestes autos, designadamente a título de honorários, encargos e taxas de justiça, custas judiciais e pareceres técnicos que se venham a apurar em sede de execução de sentença.
Alegou em síntese a Autora que:
- o prédio urbano sito na … n.ºs --, ---A, --B, --- C e--- D, descrito na Conservatória de Registo Predial de Lisboa sob o n.º ---/20090106, freguesia de ---, é um imóvel com mais de 50 anos, construído em betão, com lajes entre os pisos, envolvendo estrutura em ferro armado, com cerca de 30 metros de altura, 15,70 de largura e 20 metros de comprimento, alicerçado numa cave abaixo do nível do solo;
- a fracção A é composta por loja com entrada pelos n.ºs ---A e ---B, com cerca de 7 metros de frente para a ---, com uma divisão e sanitários no rés do chão e cave ampla na área imediatamente inferior;
- a fracção B é também composta por loja com entrada inicialmente pelos números ---C e ---D - e actualmente só por este – de aproximadamente 5 metros de frente para a ---, tornejando para a Travessa ---, m cerca de 20 metros, sendo composta de uma divisão e sanitários no rés do chão e cave ampla na área imediatamente inferior.
- a fracção C é composta pelo 1.º andar direito com destino a habitação;
- o prédio está alicerçado numa cabe cujo espaço é ocupado pela caixa dos elevadores e a restante parte dividida, no sentido perpendicular à ---, pelas fracções A e B;
- o piso térreo corresponde ao r/c, tendo dois níveis: a entrada e átrio do prédio, assim como a fracção A e parte da fracção B ao nível do passeio; e a restante parte da fracção B, e o acesso aos elevadores e escada do prédio, a cerca de um metro acima;
- todos os restantes pisos a partir do primeiro, estão separados por placas niveladas;
- no dia 29-01-2019 foi deliberado em Assembleia de Condóminos que “os proprietários das fracções que realizem obras de remodelação/beneficiação na sua fracção, são obrigados a informar, com pelo menos 15 dias de antecedência, a administração, bem como a entregar uma redacção de todos os trabalhos a ser executados, duração da obra e seguros de empreiteiro e subempreiteiro”, tendo nessa mesma assembleia sido votado por unanimidade a continuidade da empresa G.- Gestão de condomínios Lda., que exerce a administração do condomínio do prédio em questão;
- A 1.ª Ré é uma sociedade que explora o estabelecimento de pastelaria instalado no rés do chão e cave, correspondente à fracção B, por força de contrato de arrendamento celebrado com o 3.º Réu, sendo os 2.ºs Réus sócios gerentes daquela e também utentes habitacionais da fracção C;
- a referida fracção C é propriedade do 4.º Réu, tendo sido dado em locação financeira à 1.ª Ré;
- em data anterior a 2019 a 1.ª Ré, por decisão e sob gerência dos 2.ºs Réus, demoliu a placa existente entre a cave e o r/c da fracção B, na parte em que ela estava elevada em relação aquela que se situa na cota zero, com o objectivo de colocar todo o estabelecimento ao mesmo nível, nivelando o r/c na totalidade com o passeio da ---;
- o 3.º Réu, na qualidade de proprietário e condómino da Autora, nada disse ou comunicou à administração ou demais condóminos e, como proprietário e senhorio, não se opôs, nem obteve autorização para as mesmas, incluindo da Câmara Municipal;
- para o efeito cortou as amarrações de ferro e removeu o betão da estrutura construtiva do prédio, e, além disso, abriu uma porta para a praça ---, com cerca de 2 m de largura e modificou as escadas entre o r/c e a cave;
- em finais de Novembro de 2019 iniciaram-se obras nas fracção B e na fracção C, tendo a Administração do Condomínio sido para isso alertada pelos condóminos, uma vez que nada foi comunicado ou autorizado pela administração;
- no interior da fracção C foram demolidas a maioria das paredes interiores, tendo algumas sido substituídas por pladur, bem como foi executada uma abertura na laje do pavimento, passando a constituir vão aberto para a aplicação de escada na ligação entre as fracções B e C, o que implicou o corte das armaduras resistentes existentes na zona;
- assim como foram alteradas substancialmente duas casas de banho e reduzida a área da cozinha, bem como foram alterados os traçados de águas quentes e frias, esgoto e electricidade;
- em virtude das intervenções, a fracção C, de uso habitacional, passou a ter uma tipologia diferente, diversa do projecto aprovados e das telas finais do prédio existentes na C.M.L.;
- A administração do condomínio participou à polícia municipal mas, face à inércia dos órgãos responsáveis pela fiscalização pública, acabou por, através da representante legal da empresa que administra o condomínio, proceder ao embargo extrajudicial de obra nova, o qual ocorreu a 21-12-2019;
- nesta sequência, foi requerida a rectificação do embargo, o qual foi distribuído ao juízo local cível de Lisboa, juiz 22, correndo termos sob o n.º 28143/19.0T8LSB;
- por razões formais, foi negada a ratificação do embargo;
- as obras efectuadas e a utilização da fracção C para fim diverso do habitacional viola normas de segurança, põe em causa a sustentabilidade estrutural do prédio e não foram objecto de licenciamento ou aprovação camarária;
- a situação coloca em causa toda a estrutura do edifício, podendo originar uma ruptura na cadeia de distribuição de cargas e provocar o colapso do prédio.
Conclui assim pela ilicitude da conduta dos Réus consequente condenação dos mesmos nos pedidos formulados.
Devidamente citados
vieram os Réus contestar.
A 03-02-2023 veio o 3.º Réu MA apresentar a sua contestação
, na qual, impugnando os factos constantes da petição inicial alegou, em suma, o seguinte:
- foi informado, em meados de 2019, que a 1.ª Ré havia adquirido a fracção C e pretendia efectuar uma ligação entre a fracção B e aquela, não tendo sido informado dos detalhes da obra ou autorizado a mesma;
- nunca lhe foi dado conhecimento o de qualquer visita da Polícia Municipal nem foi contactado pela administração do condomínio dando conhecimento de qualquer preocupação com as obras em curso;
- não tem conhecimentos técnicos, confiou que a 1.ª Ré realizaria as obras com escrupuloso cumprimento das regras de segurança e obtenção de autorizações administrativas;
- apenas tomou conhecimento das obras concretamente efectuadas após as mesmas estarem concluídas e de imediato questionou a 1.ª Ré que lhe assegurou que as mesmas não colocavam em causa a segurança da loja ou do edifício;
- a perícia efectuada no âmbito do procedimento cautelar concluiu que as obras realizadas pouco provavelmente poderão acarretar prejuízo sério à estrutura do prédio e que muito dificilmente põem em causa a sua sustentabilidade estrutural;
Conclui assim pela improcedência da presente acção e sua consequente absolvição do pedido.
A 13-02-2023 veio o 4.º Réu Banco -- S.A. apresentar contestação
excepcionando a falta de capacidade judiciária e de poderes de representação da Autora, a sua ilegitimidade passiva, excepção dilatória inominada de ilegalidade de pedidos genéricos e impugnando os factos alegados por desconhecimento, inverdade, imprecisão ou deles não resultar a conclusão jurídica pretendida pelo Autor, alegando, em suma, o seguinte:
- não foi executou, mandou executar, foi informado ou deu autorização para a realização de qualquer obra na fracção C;
- apenas teve conhecimento das referidas obras com a citação para o procedimento cautelar melhor identificado na petição inicial;
- nunca foi interpelado ou questionado pelo Autor, ou qualquer outra entidade, sobre as obras em discussão nos autos;
- nunca foi questionado pela locatária acerca da alteração/modificação da afectação do imóvel, conforme o impunha o art.º 12.º do contrato de locação financeira celebrado com aquela;
- atento o teor do relatório pericial não foi apresentada evidência de que as obras alegadamente executadas na fracção C correspondam às alegadas pela Autora e tenham a extensão e impacto por esta atribuídos.
Conclui assim pela procedência das excepções dilatórias/peremptória invocadas e a consequente absolvição da instância/pedido, respectivamente, ou, caso assim não se entenda pela total improcedência da acção por não provada e falta de fundamento legal.
A 14-02-2023 vieram os 1.º e 2.ºs Réus apresentar contestação
, na qual excepcionaram a ilegitimidade da Autora para intentar a presente acção, e impugnaram a factualidade constante da petição inicial, alegando em suma que:
- toda a obra efectuada na fracção B foi objecto de licenciamento camarário;
- nas obras efectuadas na fracção C não houve qualquer intervenção em vigas ou pilares;
- o relatório do engenheiro da obra demonstra a falsidade das alegações da Autora, realçando a existência de um projecto de estabilidade prévio à obra, que deu cumprimento à legislação em vigor, estando a estabilidade calculada e assegurada;
- do mesmo modo concluiu o Relatório de inspecção ao local, que deixou claro que as obras, por si só, muito dificilmente põem em causa a sustentabilidade estrutural do prédio ou podem originar prejuízo sério à estrutura do edifício ou ruptura na cadeia de distribuição de cargas ou até colapso do imóvel;
- a ratio da proibição de obras que constituam inovações é a protecção daa segurança e estabilidade do edifício e, por arrastamento, a protecção da propriedade dos restantes condóminos;
- pelo que as obras efectuadas não podem ser consideradas inovações, não estando igualmente sujeitas a qualquer licenciamento camarário;
- a deliberação que obriga à comunicação de obras é uma norma de um regulamento de uso das partes comuns do edifício e inválida por não ter sido aprovada nos termos e condições previstos na lei.
Concluem assim pela totalmente improcedência do pedido do Autor.
Por despacho de 12-09-2023 convidou-se o Autor a responder às excepções invocadas em sede de contestação, a fim de agilizar os trabalhos a realizar em sede de audiência prévia
, o que o mesmo veio fazer por articulado apresentado a 03-10-2023, na qual pugna pela improcedência das mesmas, ou seja, o seu conhecimento relegado para final.
Designada data para Audiência Prévia realizou-se a mesma e,
na impossibilidade da conciliação entre as partes
, foi proferido despacho saneador no qual (i) conheceu a excepção de falta de capacidade da Autora, considerou a falta de personalidade e capacidade judiciária do Autor condomínio, (ii) assim como da excepção inominada de formulação ilegal de pedidos genéricos e, em consequência, absolveu as Rés da instância, nos termos do art.º 287.º, n.º 1, al. c) e), 576.º, n.º 2, 577.º, al. c) e 578.º, todos do CPC.
Inconformados com o despacho saneador que absolveu os Réus da instância,
veio o Autor Condomínio
do Prédio sito na --- dele interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação
.
Nas alegações apresentadas
pelo Autor foram formuladas as seguintes conclusões
:
1. O artigo 590º, nº 2, alínea a) do C.P.C. dispõe que “…2 - Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a:
a) Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; …”
2. O dever de o juiz providenciar pelo suprimento das exceções dilatórias constitui um poder vinculado, de forma a permitir que o processo possa prosseguir com regularidade e possibilitar uma decisão de mérito sobre a pretensão das partes; e a omissão de tal poder/dever, constitui nulidade processual nos termos do art.º 195.º do CPC., conforme decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19.06.2014.
3. Assim sendo, ao não ter sido notificado com o intuito de suprir tal irregularidade, nomeadamente, conforme requerido, para juntar aos autos deliberação com a autorização de todos os condóminos para intentar ação em conformidade, o despacho cometeu, por omissão, nulidade processual prevista no artigo 195º do C.P.C.
4. Mostram os autos que, o Tribunal a quo não providenciou pelo suprimento de tal exceção dilatória, tendo omitido sem mais tal ato. Não tendo sequer dado qualquer resposta ao requerido pelo Apelante.
5. O dever do juiz providenciar pelo suprimento das exceções dilatórias que detete, nos termos do art.º 590.º n.º 2 al a) nos termos do art.º 6.º n.º 2, não depende da posição das partes nos articulados quanto á existência daquelas, mas antes da necessidade de regularizar a instância, corrigindo as deficiências das partes, com vista ao essencial, ou seja, alcançar decisão de mérito.
6. Tal exceção é também passível de ser sanada, no âmbito do artigo 278º nº 2 e nº 3 do C.P.C.
7. Tendo o Tribunal a quo, omitido o dever de providenciar o suprimento da verificada exceção de falta de personalidade ou capacidade judiciária, ocorre indiscutivelmente uma nulidade processual (195.º do C.P.C).
8. Tal nulidade pode ser arguida em sede de recurso, por estar a coberto da decisão recorrida deve, pois, anular-se tal decisão determinando-se que o Tribunal de primeira instância providencie pelo suprimento das exceções dilatórias que detetar, convidando as partes a praticar os atos adequados para tanto, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 6.º do C.P.C.
9. O condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador, tem personalidade judiciária, conforme resulta da redação do artigo 12º, alínea e) do C.P.C.
10. Salvo o devido respeito, não se compreende a decisão de que não é o “Condomínio” que deve figurar como Autor nesta ação, porquanto, o próprio artigo 12.º, alínea e) do C.P.C, diz literalmente o contrário.
11. A presente ação insere-se no âmbito dos poderes do administrador, nomeadamente, na alínea g), do n.º 1, do artigo 1436.º do Código Civil que deverá ser objeto de uma interpretação extensiva, de acordo com o caráter orgânico da figura do Administrador, da sua posição na organização administrativa e do carácter autónomo da sua atividade.
12. Assim, é ao Condomínio que pertence a legitimidade para agir em juízo, no que toca a ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador.
13. A legitimidade conferida pelo artigo 1437.º do Código Civil ao administrador não exclui a legitimidade do próprio condomínio. Ele pode ser parte na acção, onde é representado pelo administrador.
14. A decisão em apreço confunde legitimidade processual com capacidade processual, na medida em que a questão sub judice concerne à representação do Condomínio.
15. Sendo o Administrador o órgão do Condomínio que tem a sua representação orgânica, está o Apelante representado ex necessário pelo seu administrador em exercício.
16. Além de que, a procuração forense foi outorgada pelo Administrador em exercício do Recorrente, à data da propositura da ação.
17. E bem assim, veio a Apelante em 19.03.2024 remeter via citius, requerimento com referência 38843146, no qual se juntou ata nº 82, onde veio indicar a nova administração de condomínio, agora em exercício.
18. É certo, não foi junta deliberação que autorizasse o poder de agir em juízo.
19. No entanto, não se vê a necessidade da existência de uma Assembleia de Condóminos que delibere a atribuição de poderes a advogado, quando, no exercício das funções de administrador, o Condomínio propõe ação, que, pela sua natureza, é de patrocínio judiciário obrigatório.
20. O Apelante tem legitimidade para interpor a presente ação, sem necessidade de uma deliberação de condóminos expressa, uma vez que invoca que as alterações introduzidas pelas obras levadas a cabo pelos Apelados, comprometem a segurança do edifício, estando, por isso, inserida nas funções de administrador.
21. Importa igualmente ter em atenção que em 13 de fevereiro de 2020, reuniu-se a Assembleia de Condóminos, na qual compareceu o subscritor como Advogado já constituído, que explicou a situação aos Condóminos, incluindo a existência do embargo, cuja apensação se requereu, tendo a Assembleia consensualizado a atuação da Administração, na constituição de Mandatário e no embargo extrajudicial, além de ter manifestado a necessidade de fazer intervir a Câmara Municipal de Lisboa, em paralelo com a ação judicial, como consta da Ata n.º 76, junta aos presentes autos no requerimento com referência 46693219, datado de 03.10.2023.
22. A menção em ata, assinada pelos condóminos presentes, constitui manifestação de vontade suficiente, da parte da Assembleia de Condóminos.
23. Nesse mesmo requerimento com referência 46693219, datado de 03.10.2023, veio o ora Apelante, indagar e requerer prazo para suprir tal irregularidade, uma vez que caso dúvidas ainda existissem, e se o Tribunal assim entendesse, ser necessário a introdução de ponto expresso na ordem de trabalhos e deliberações formais, o Apelante assim o faria.
24. Prazo esse, que nunca foi concedido ao Apelante, tendo o Tribunal a quo decidido sem mais.
25. O pedido de condenação formulado pelo Apelante na alínea a), no sentido de os Apelados usarem a fração autónoma para os fins exclusivamente habitacionais que o título constitutivo da propriedade horizontal institui, bem como, em sanção pecuniária compulsória não é ilegal e deve ser acolhido judicialmente.
26. A decisão segundo a qual utilizar a fração para o fim a que se destina é uma decorrência da lei, não cabendo ao Tribunal condenar a cumprir a lei, obrigação que se impõe a todos os cidadãos, deve ser revogada.
27. Se efetivamente um condómino está a violar a lei, o Tribunal tem o papel fulcral de a fazer cumprir.
28. Quanto ao pedido formulado na alínea a), o douto despacho saneador/sentença é insustentável.
29. Os pedidos devem ser claros e inteligíveis, coerentes com a causa de pedir e legalmente possíveis.
30. O Apelante sabe que foram feitas obras de rotura das lajes estruturais, das duas fracções dos Apelados, sem qualquer comunicação ao condomínio, ou seu Administrador, sem aprovação da Assembleia de Condóminos, nem da Câmara Municipal da área em que se situa o prédio, sem informação alguma, completamente à revelia e sem possibilidade de acesso ou observação do que foi feito, incluindo eventuais reforços ou substituições por vigas, vigotas, pilares ou outras que minimizem os efeitos da quebra das malhas de aço e ferro existentes.
31. Neste contexto, altamente limitados em termos de informação técnica, que sempre foi sonegada pelos Apelados, o Apelante condomínio, formula pedidos de condenação no custeio de estudos demonstrativos do impacto da remoção das lajes, alteração dos vãos e reposição em diferente local, tiveram, ou podem vir a ter na estabilidade e segurança de todo o prédio e em função das conclusões técnicas no custeio das obras necessárias a reconstruir uma situação idêntica à pré existente, o que é cristalino, possível, coerente com a causa de pedir, não se vendo onde está a ilegalidade.
32. Constituindo obrigação do condomínio manter a regularidade da construção na edilidade competente, não existe falta de clareza, ou obscuridade, ininteligibilidade, falta de coerência com a causa de pedir, ou ilegalidade no pedido formulado de apresentação à Câmara Municipal de Lisboa dos projetos necessários correspondentes às obras executadas e àquelas que eventualmente, possam vir a ser realizadas para reduzir o risco decorrente da ofensa às estruturas do prédio, tendo em vista a regularidade formal do processo municipal.
33. O pedido de garantia por meio de inscrição sobre as frações agressoras de inscrição predial, sem limite de capital, nem prazo, de responder pelos riscos que decorram, mesmo depois de executados trabalhos que sejam recomendados pelos estudos, acima referidos, é claro, inteligível, coerente com a causa de pedir, não resultando a sua ilegalidade de não ter capital, nem prazo, porquanto o risco gerado é, em si mesmo, insuscetível de ser quantitativa, qualitativa e temporalmente limitado.
34. O pedido de reembolso das despesas suportados pelo Apelante em resultado da conduta dos Apelados, designadamente, das obras ilícitas e ilegais, feitas à revelia, em causa nos autos, é claro, inteligível, coerente com a causa de pedir e absolutamente legal.
35. Mostram-se violados, além do mais os artigos 1436º e 1437º do Código Civil, 12º, 29º, 195º, 278º, 498º, 552º, 556º, 569º, 577º, 578º e 590º, todos do C.P.C.
Conclui assim pela procedência da presente apelação e consequente revogação do despacho saneador, convidando-se o Autor ao suprimento das excepções dilatórias.
O 4.º Réu/Recorrido Banco --- S.A. apresentou contra-alegações nas quais apresentou as seguintes
conclusões
:
A. Vem o Autor, ora Recorrente, interpor recurso da sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, que julgou procedente as exceções de falta de personalidade e capacidade judiciária do autor e bem assim da exceção inominada resultante da formulação ilegal de pedidos genéricos conclusivos e ilegais, e, em consequência, absolveu todos os réus da presente instância.
B. Salvo o devido respeito, o recurso interposto pelo Autor carece em absoluto de qualquer fundamento
C. No que concerne à falta da personalidade judiciária do condomínio, será de lembrar que o legislador, ciente de que o condomínio constitui um centro autónomo de imputação de efeitos jurídicos, dota-o de organicidade e, muito embora não lhe atribua personalidade jurídica, admite que ele pode ser parte nas ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador.
D. Assim decorre direta e imediatamente do artigo 12º alínea e) do Código de Processo Civil, que ficciona a personalidade judiciária do condomínio relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador.
E. A medida da personalidade judiciária do condomínio coincide, portanto, com a das funções do administrador – ou seja, as ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador devem ser intentadas por (ou contra o) condomínio.
F. Fora do âmbito dos poderes do administrador, o condomínio não tem personalidade judiciária e, portanto, os condóminos terão de agir em juízo em nome próprio.
G. Nos termos do disposto no artigo 1437.º, nº 1 do Código Civil, o administrador pode agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos quer contra terceiros, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia.
H. Ora, nos presentes autos está em causa a realização de obras que constituem inovações e alterações estruturais, sem que tenha sido obtida autorização da Assembleia de Condóminos para intentar a presente ação.
I. A questão da presente ação, extravasa por completo o âmbito das funções do administrador, não se enquadrando em nenhuma das previstas no artigo 1436º do Código Civil.
J. E mais, tal como confessado pelo autor, aqui recorrente, nomeadamente no ponto 18 das conclusões do presente recurso, não existe qualquer deliberação da Assembleia de Condóminos a autorizar o Administrador a intentar a presente ação.
K. Em conclusão, há efetivamente falta de personalidade do condomínio, na medida em que a presente ação não se insere no âmbito dos poderes do administrador, nem sequer por via da atribuição destes pela Assembleia de Condóminos.
L. Donde caberia aos condóminos agir em juízo em nome próprio, e não o autor condomínio.
M. Já no que concerne à suposta sanação da falta de personalidade judiciária do condomínio, contrariamente ao que o Recorrente alega, esta é insanável.
N. Isto porque, contrariamente ao que sucede em relação à falta de capacidade judiciária e à falta de legitimidade judiciária, a Lei não faz qualquer alusão à possibilidade de sanação da falta de sanação personalidade judiciária.
O. E é perfeitamente compreensiva a posição do legislador: a falta de personalidade judiciária não permite que haja qualquer suprimento, ela é irremovível.
P. Tal é igualmente a posição da doutrina, nomeadamente de Alberto dos Reis, de Antunes Varela e de Abrantes Geraldes, entre outros.
Q. Há, todavia, casos em que a falta pode ser suprida, como seja o caso previsto no artigo 14º do Código de Processo Civil relativo à falta de personalidade judiciária das sucursais, filiais, delegações ou representações, a qual pode ser sanada mediante a intervenção da administração principal e a ratificação ou repetição do processado.
R. No entanto, em lado algum no referido artigo é mencionado o condomínio.
S. Como muitíssimo bem concluiu o Meritíssimo Juiz “a quo”: “a personalidade judiciária constitui um pressuposto processual que, pela sua natureza, não é em regra susceptível de ser sanado.”
T. Mais concluiu que: “Efetivamente, não obstante o legislador ter previsto, a título excepcional, no art.º 14.º do Código de Processo Civil o suprimento da falta de personalidade judiciária das sucursais, agências, filiais, delegações ou representação, situações previstas no art.º 13.º, com a intervenção da administração principal e a ratificação ou repetição do processado, nada diz quanto ao condomínio.” (sublinhado nosso).
U. Pelo que a sentença recorrida é exemplar também quanto a este ponto, não merecendo, por isso, qualquer censura jurídica.
V. Por fim, o Recorrente vem alegar, singelamente, sem qualquer fundamentação diga-se, que os pedidos por si formulados na presente ação não são vagos, indeterminados e condicionais.
W. Também neste ponto, carece de qualquer razão o Recorrente, sendo que a sentença recorrida não merecer qualquer censura jurídica.
X. Ora, sendo o pedido o efeito jurídico que se pretende obter com a ação, este deve ser claro e inteligível, coerente com a causa de pedir e legalmente possível.
Y. Devendo para tal ser formulado com toda a precisão, sendo que esta precisão resulta da necessidade de criar a certeza jurídica que é um atributo da própria essência da decisão sendo também o elemento definidor do caso julgado.
Z. Daí que a Lei preveja os casos excecionais em que é permitido formular pedidos genéricos, mais precisamente no artigo 556.º do Código de Processo Civil, sendo esta enumeração taxativa.
AA. Os pedidos formulados pelo autor padecem de vícios que efetivamente determinam a impossibilidade prosseguimento dos autos, sendo que não preenchem os requisitos do pedido, sendo vagos, indeterminados e condicionais e, por isso, inadmissíveis.
BB. A fundamentação constante da sentença, e transcrita nestas contra-alegações, é exemplar não merecendo, portanto, qualquer censura jurídica.
CC. Pelo que, também quanto a este ponto, carece de qualquer fundamento a alegação do Recorrente, uma vez que é manifesto que os pedidos formulados são genéricos, indeterminados e condicionais, pelo muitíssimo bem andou o Meritíssimo Juiz “a quo” quando absolveu os réus da instância por verificação desta exceção dilatória atípica.
Conclui assim a 4.ª Ré/Recorrida pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.
Vieram os 1.º e 2.ºs Réus P Lda., M e H apresentar contra-alegações
, nas quais formulou as seguintes
conclusões
:
A. São as conclusões que se define o objecto do recurso e se identificam as questões que se querem colocar ao Tribunal Ad Quem, demonstrando onde o Tribunal recorrido decidiu de forma errada.
B. A primeira conclusão é que existiu uma nulidade processual porquanto o tribunal omitiu o dever de sanar um vício que entende a recorrente ser sanável.
C. Ora, não só o Tribunal entendeu que o vício em questão não é sanável, como se vício houvesse seria da sentença que teria omitido pronuncia sobre tal questão, o que não ocorreu.
D. Nulidades processuais não determinam a nulidade da sentença e delas reclamam-se não se recorre.
E. A actuação do administrador do condomínio fora dos poderes conferidos pelo art.º 1437.º do CPC em nome do condomínio gera situação de falta de personalidade judiciária e não é suscetível de sanação.
F. Os pedidos formulados em juízo são inadmissíveis porque vagos, indeterminados e condicionais.
*
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Questão a decidir
:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões dos recorrentes (arts. 5.º, 635.º n.º 3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim, saber se, no caso concreto:
- se verifica a falta de personalidade /capacidade judiciária do Autor Condomínio;
- Da susceptibilidade de sanação de eventual falta de personalidade e capacidade judiciária e da nulidade decorrente do incumprimento do disposto no art.º 590.º, n.º 2., al. a), do CPC;
- da excepção dilatória inominada de formulação de pedidos genéricos
*
II. Fundamentação:
Factos ou actos processuais referidos e datados no relatório que antecede.
*
III. O Direito:
a) Falta de personalidade judiciária do Condomínio
O despacho saneador proferido nos presentes autos entendeu estarmos perante uma falta de personalidade judiciária do condomínio, enquanto pressuposto processual, o qual, pela sua natureza, não é em regra susceptível de ser sanado.
E por essa razão não convidou o Autor a suprir a mesma.
Assim, a questão da falta de personalidade e da susceptibilidade de sanação impõem-se como prévia à questão da apreciação da nulidade processual por omissão de cumprimento do despacho pré-saneador previsto no art.º 590.º do CPC.
Na fundamentação do despacho saneador pode-se ler:
“Como refere o R. os art.º 12º e 13º do Código de Processo Civil conferem a entidades que não dispõem de personalidade e capacidade jurídica a possibilidade de litigarem em tribunal, abarcando, entre outras, a situação do condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador previstos no art.º 1437º do Código Civil.
Deste preceito resulta claro que o administrador da propriedade horizontal, na execução das funções que lhe pertencem ou quando munido de autorização da assembleia de condóminos – relativamente a assuntos que, exorbitando da sua competência, cabem, todavia, na competência desta assembleia – pode accionar terceiros ou qualquer dos condóminos, ou por eles ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício.
A propriedade horizontal tem como órgãos administrativos a assembleia de condóminos (órgão deliberativo) e o administrador (órgão executivo) a quem cabe a administração das partes comuns do edifício, conforme dispõe o artigo 1430.º do Código Civil.
O administrador é um dos órgãos do condomínio, investido nas funções executivas pela assembleia de condóminos. Cumpre-lhe, nomeadamente, realizar os actos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns e executar as deliberações da assembleia de condóminos (art.º 1436º, al.s f) e h), do Código Civil)
Nos termos do disposto no artigo 1437.º, nº 1 do Código Civil, o administrador pode agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos quer contra terceiros, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia.
Está em causa nos presentes autos a realização de obras que, alegadamente, constituem inovações e alterações estruturais, sem que tenha sido obtida autorização da Assembleia de Condóminos, visando a acção a defesa da propriedade comum.
Tal questão, está, indubitavelmente, para além da administração ordinária e não está, por isso, no âmbito das funções que pertencem ao administrador do condomínio, pertencendo à Assembleia dos condóminos a decisão sobre a oportunidade de instaurar ou não a acção judicial contra o(s) Condómino(s).
Efectivamente, não estamos perante uma situação cuja resolução se possa integrar nas funções ou poderes do administrador do condomínio, previstas no art.º 1436.º e 1437.º do C.Civil.
A instauração de uma acção judicial com as características da presente implica a ponderação de vários factores, desde a escolha do mandatário e respectivos honorários, ponderação das despesas judiciais a pagar, avaliação do interesse na acção, possibilidade de prévia negociação da reposição do espaço comum, etc.
Assim, afigura-se que o A., Condomínio representado pelo seu administrador, não podia tê-la instaurado sem autorização da Assembleia de todos os condóminos.
Como bem explica Sandra Passinhas [“A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal”, Almedina, 2ª edição, pág. 339], quando o art.º 1437º se refere a “legitimidade para agir em juízo” do administrador, não se refere a uma legitimidade processual - que consiste no interesse directo em demandar, é um pressuposto processual que só em concreto pode ser determinado – mas à legitimidade ad processam, ou seja, à capacidade processual.
Assim, a representação em juízo do condomínio, dentro das atribuições fixadas no art.º 1437ºcabe, inderrogavelmente, ao administrador. Fora do âmbito das suas funções, o administrador apenas tem poder para agir em Juízo quando autorizado pela assembleia.
Faltando nos autos a competente deliberação da assembleia de condóminos e não bastando o mero conhecimento da pendência ou da futura instauração da acção, há que concluir pela falta de capacidade judiciária do administrador.
Invoca o A. que caso o Tribunal considere necessária a deliberação do condomínio, fixará prazo para suprir este requisito (art.º 30º resposta).
Diz-nos o nº 1 do art.º 29º do Código de Processo Civil que “se a parte estiver devidamente representada, mas faltar alguma autorização ou deliberação exigida por lei, é designado o prazo dentro do qual o representante deve obter a respectiva autorização ou deliberação, suspendendo-se, entretanto, os termos da causa”.
Esta é uma questão de suprimento da incapacidade: a parte pode estar em juízo, mas não dispõe de autorização ou deliberação que devesse obter para exercer a sua representação.
Contudo, a personalidade judiciária constitui um pressuposto processual que, pela sua natureza, não é em regra susceptível de ser sanado.
Efectivamente, não obstante o legislador ter previsto, a título excepcional, no art.º 14.º do Código de Processo Civil o suprimento da falta de personalidade judiciária das sucursais, agências, filiais, delegações ou representação, situações previstas no art.º 13.º, com a intervenção da administração principal e a ratificação ou repetição do processado, nada diz quanto ao condomínio.
E, não o diz porquanto atribuição de personalidade judiciária ao condomínio é também excepcional encontrando-se prevista, apenas nos termos da al. e) do art.º 12º do CPC relativamente às acções que se inserem nas funções e poderes do administrador, o que não é manifestamente o caso.
Impõe-se, pois, concluir que a sanação da falta não é possível, o que determina a absolvição dos RR. da instância, nos termos do disposto no art.º 278.º n.º 1 al. c) do C.P.C.”
Nas suas alegações refere o recorrente que “Por isso, e porque a lei confere personalidade judiciária ao Condomínio e não ao Administrador, que é seu mero representante, é em nome do condomínio que as ações devem correr.
Questão diferente é a de saber se o Administrador tem capacidade para decidir, por si só, demandar, ou se carece de deliberação da Assembleia de Condóminos.
A alínea g), do n.º 1, do artigo 1436.º do CC dispõe o seguinte: “São funções do administrador: … g) Realizar os actos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns”.
Defende Sandra Passinhas que, a alínea g), do n.º 1, do artigo 1436.º do CC “deverá ser objeto de uma interpretação extensiva, de acordo com o caráter orgânico da figura do Administrador, da sua posição na organização administrativa e do carácter autónomo da sua atividade.”
Ora, parece que não fará sentido o administrador ver que o prédio está a ser afetado nas suas estruturas e virar as costas dizendo que não tem funções legalmente previstas para reagir. Dessa forma, convocará uma assembleia, que funcionará, na melhor das hipóteses, duas semanas depois, após o que poderá reagir.”
Senhores Desembargadores:
Nos tempos que correm, com a rapidez que acontecem os factos, interpretar a norma da alínea g) do nº1, do artigo 1436º do C.P.C., no sentido em que atos conservatórios são meramente formais, é equivalente a dizer que não cabe ao Tribunais condenar a cumprir a lei.
A Justiça, tem um papel social muito importante, ao qual tem vindo a escapar, em Portugal, escondendo-se atrás da lei, assumindo a primazia da interpretação literal e esquecendo que estas condutas se repercutem no comportamento social.
(…)
Dificilmente se compreende como poderia o administrador ter legitimidade para estar em juízo, a representar interesses do condomínio, sendo que o próprio condomínio não poderia, quando é certo que tenha capacidade judiciária, neste sentido, veja-se o transcrito no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19.04.2005:
“A..., em S. Martinho do Porto, demandou, na comarca de Alcobaça, B..., para que seja condenado na reconstituição natural da situação que existia antes das obras que ele efectuou no prédio, por alegadamente terem violado os direitos dos condóminos.
Na contestação, além do mais, foi arguida a ilegitimidade do autor. Houve resposta e, no saneador, o sr. juiz julgou procedente a excepção e absolveu o réu da instância.”
(…)
É certo, não foi junta deliberação que autorizasse o poder de agir em juízo.
No entanto, não se vê a necessidade da existência de uma Assembleia de Condóminos que delibere a atribuição de poderes a advogado, quando, no exercício das funções de administrador, o Condomínio propõe ação, que, pela sua natureza, é de patrocínio judiciário obrigatório.
Ora, como já vimos, o aqui, Apelante tem legitimidade para interpor a presente ação, sem necessidade de uma deliberação de condóminos expressa, uma vez que invoca que as alterações introduzidas pelas obras levadas a cabo pelos Apelados, comprometem a segurança do edifício, estando, por isso, inserida nas funções de administrador.
Importa igualmente ter em atenção que em 13 de fevereiro de 2020, reuniu-se a Assembleia de Condóminos, na qual compareceu o subscritor como Advogado já constituído, que explicou a situação aos Condóminos, incluindo a existência do embargo, cuja apensação se requereu, tendo a Assembleia consensualizado a atuação da Administração, na constituição de Mandatário e no embargo extrajudicial, além de ter manifestado a necessidade de fazer intervir a Câmara Municipal de Lisboa, em paralelo com a ação judicial, como consta da Ata n.º 76, junta aos presentes autos no requerimento com referência 46693219, datado de 03.10.2023.
Entende o Apelante que a menção em ata, assinada pelos condóminos presentes, constitui manifestação de vontade suficiente, da parte da Assembleia de Condóminos.”
Apreciando:
Da personalidade judiciária do condomínio
Dita o art.º 11.º, n.º 1 do CPC que a personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte num processo de natureza civil.
Conforme refere Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, II, AAFDL, 1987, pág. 18), a personalidade judiciária constitui “pressuposto dos restantes pressupostos processuais subjectivos”. Querendo com isto dizer-se que só se compreende a apreciação da capacidade judiciária, da legitimidade, do interesse em agir ou do patrocínio judiciário de alguém que, independentemente da personalidade jurídica, goze da prerrogativa de ser sujeito processual.
A personalidade judiciária acompanha a personalidade jurídica – art.º 11.º, n.º 2, do CPC – a qual, por seu turno consiste na susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações.
Se é correcta a afirmação de que aquele que tem personalidade jurídica tem necessariamente personalidade judiciária, já o inverso não é verdadeiro, na medida em que a lei confere personalidade judiciária a determinadas entidades carecidas de personalidade jurídica.
Exemplo da afirmação que acabámos de fazer é o teor dos arts. 12.º e 13.º do CPC.
A razão da extensão da personalidade judiciária a quem não tem personalidade jurídica está, nas palavras de Gonçalo Oliveira Magalhães
(“A personalidade judiciária do Condomínio e a sua representação em juízo”, in Revista Julgar, n.º 23, 2014
), no “compromisso entre o excessivo dogmatismo, conceptual e formal, e a necessidade de atender a realidades que decorrem da vida corrente e que ficariam a descoberto se não houvesse tal desvio, dificultando seriamente o exercício de determinados direitos de terceiros ou a tutela dos interesses centrados nessas entidades carecidas de personalidade jurídica. As excepções consagradas pelo legislador processual ao princípio da correspondência entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária representam um afloramento do carácter instrumental do processo civil”.
Entre essas excepções previstas no art.º 12.º do CPC está, na al. e), “o condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador”.
O art.º 1414.º do Código Civil, ao dizer que as fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal, consagra uma derrogação ao princípio
superficies solo cedit
, nos termos do qual um edifício incorporado no solo só pode ser objecto de um único direito de domínio — direito que abrange toda a construção, o solo em que esta assenta e os terrenos que lhe servem de logradouro. Na propriedade horizontal, os titulares das várias fracções ou unidades independentes — condóminos, na terminologia legal — são ainda comproprietários das partes do edifício que constituem a sua estrutura comum ou estão afectadas ao serviço daquelas fracções – é isso que resulta dos arts. 1420.º e 1421.º do CC.
As fracções independentes fazem parte de um edifício, na acepção do art.º 204.º, n.º 2 do Código Civil, de estrutura unitária, o que cria, necessariamente, especiais relações de interdependência entre os condóminos, quer no que respeita às partes comuns do edifício, quer mesmo no que respeita às fracções autónomas.
Assim, nas palavras de Henrique Mesquita (in, «A propriedade horizontal no Código Civil Português», Revista de Direito e Estudos Sociais, XXIII, p. 148) o condomínio é a figura definidora da situação em que uma coisa materialmente indivisa ou com estrutura unitária pertence a vários contitulares, mas tendo cada um deles direitos privativos ou exclusivos de natureza dominial sobre fracções determinadas. No fundo, o direito de propriedade sobre a parte exclusiva é combinado com o direito de compropriedade sobre as partes comuns. Daí nasce um direito real complexo, no sentido de que combina figuras preexistentes de direitos reais. É, no entanto, diferente do mero somatório dos esquemas da propriedade e da compropriedade; contendo o uma regulamentação própria do seu exercício, constitui
a se
um direito real.
Dissecando a regulação desta figura temos que o legislador:
- instituiu uma forma de organização do grupo constituído pelos condóminos (de modo a assegurar uma vontade própria e um sistema de gestão e funcionamento): assim, a administração das partes comuns e do edifício compete à assembleia de condóminos e a um administrador – art.º 1430.º, n.º 1, do CC.
- definiu que a assembleia é um órgão colegial composto por todos os condóminos, à qual cabe deliberar acerca da administração das partes comuns, através de um processo colegial de formação de vontade colectiva que reconduz as vontades individuais à vontade do próprio grupo (cf. Pinto Furtado, in “Deliberações dos Sócios”, Coimbra, Almedina, 1993, pág. 21);
- instituiu como órgão executivo, da administração das partes comuns do edifício e das deliberações da assembleia, o administrador que, desta forma tem a seu cargo o desempenho das funções próprias enumeradas no art.º 1436.º do CC, assim como as funções que forem delegadas pela assembleia.
Neste contexto, assente que o condomínio constitui um centro autónomo de imputação de efeitos jurídicos, o legislador dotou o mesmo de organicidade e, embora não lhe atribua personalidade jurídica (ao contrário do que acontece noutros países, de que é exemplo paradigmático a Colômbia através da sua Leo 675 de 03-08-2001), admite que a mesma possa ser parte em acções judiciais.
A concessão de personalidade judiciária ao condomínio não é lata e irrestrita. A medida da mesma coincide com as funções do administrador, isto é, as acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador devem ser intentadas por (ou contra) o condomínio
.
Fora deste âmbito dos poderes do administrador o condomínio não tem personalidade judiciária, o que determina que - em tudo o que se situe fora daquele âmbito – os condóminos agirão em juízo em nome próprio, com a personalidade judiciária que a personalidade jurídica lhes confere.
Ou seja, “No fundo, quando o condomínio assume o papel de parte, os condóminos assumem esse papel em simultâneo, mas sob a “máscara” do condomínio: não estão no processo, mas tudo se passa como se estivessem litigando do lado activo ou do lado passivo da instância. (...) O condomínio é a ‘capa’ processual dos condóminos, uma ‘capa’ que visa facilitar a identificação das partes, evitar que os condóminos, um por um, tenham de ser referidos na petição inicial ou na contestação” (cfr., Miguel Mesquita; “A personalidade judiciária do condomínio nas acções de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos - anotação ao Acórdão do TRL de 25.06.2009, 4838/07.0TBALM.L1-8”, in Cadernos de Direito Privado, nº. 35, Julho-Set. 2011, pp. 50-51).
Carecendo o condomínio de substrato físico, a sua representação em juízo é atribuída, pelo art.º 1437.º, n.º 1, do CC, ao administrador. E por essa mesma razão se vem entendendo que o art.º 1437.º do CC não trata de legitimidade processual - até porque esta consiste no interesse directo em demandar ou contradizer -, mas sim de legitimidade ad processum, isto é, de capacidade judiciária ou processual, que consiste na susceptibilidade de estar, por si, em juízo (neste sentido ver Sandra Passinhas, “A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, Coimbra: Almedina, 2000, pág. 329).
Essa representação do condomínio resulta não só do art.º 1437.º do CC, como resulta igualmente do art.º 26.º do CPC, que dispondo especificamente para as situações do art.º 12.º e 13.º do CPC, estatui a representação pelos administradores.
Dito isto, vejamos agora se o condomínio no caso concreto que nos ocupa tem personalidade judiciária.
A decisão recorrida entendeu que não, na medida em que a acção não se inseria nas funções e poderes do administrador e, como tal, absolveu os Réus da instância.
Como referimos supra, o condomínio tem personalidade judiciária nas acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador.
O mencionado artigo 12.º, al. e) do CPC tem necessariamente de ser conjugado com os artigos 1436.º e 1437.º do CC, onde se regula sobre as funções e legitimidade do administrador
.
Estes preceitos foram alterados pela Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro, que entrou em vigor a 10-04-2022, sendo por isso aplicáveis aos presentes autos.
Em particular, o n.º 1 do artigo 1437.º do CC estabelece que “O condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele.”, acrescentando o n.º 2 que “O administrador age em juízo no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos.”
Conforme salientam Ana Filipa Morais Antunes e Rodrigo Moreira (Comentário ao Código Civil – Direito das Coisas; Universidade Católica Editora; out. 2021, pp. 531-532), a respeito do artigo 1437.º do CC, “[o] normativo cumpre uma dupla função: por um lado, delimita indiretamente o âmbito da personalidade judiciária do condomínio; por outro lado, atribui ao administrador a representação judiciária do condomínio, em concretização do princípio enunciado no artigo 26.º do CPC, que reserva a representação das entidades que careçam de personalidade jurídica aos seus administradores (…).
Por conseguinte, nas ações judiciais em que a intervenção do administrador está legitimada, a parte processual continua a ser o condomínio. O administrador assume o papel de representante do condomínio em juízo, nos termos e com os limites reconhecidos pelo presente preceito (…).
O preceito constitui, assim, o título normativo habilitante da posição jurídica do administrador, que lhe é reconhecida para atuar os interesses do condomínio (…).
O n.º 1 autoriza o administrador a atuar, em representação do condomínio, em ação intentada contra qualquer dos condóminos, assim como contra terceiro, na execução das funções que lhe são reconhecidas – desde logo, as elencadas no artigo 1436.º (…). No âmbito destas ações (que tenham por objeto matérias compreendidas nas funções do administrador), não se pressupõe qualquer ato de autorização por parte da assembleia dos condóminos, e não se admite a sua interferência (designadamente, avocando a competência que é deferida, por lei, ao administrador) (…).”.
O que nos remete para o âmbito dos poderes do administrador – art.º 1436.º do CPC.
Dispõe o art.º 1436.º do CC:
1 - São funções do administrador, além de outras que lhe sejam atribuídas pela assembleia:
a) Convocar a assembleia dos condóminos;
b) Elaborar o orçamento das receitas e despesas relativas a cada ano;
c) Verificar a existência do seguro contra o risco de incêndio, propondo à assembleia o montante do capital seguro;
d) Cobrar as receitas e efectuar as despesas comuns;
e) Verificar a existência do fundo comum de reserva;
f) Exigir dos condóminos a sua quota-parte nas despesas aprovadas, incluindo os juros legais devidos e as sanções pecuniárias fixadas pelo regulamento do condomínio ou por deliberação da assembleia;
g) Realizar os
actos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns;
h) Regular o uso das coisas comuns e a prestação dos serviços de interesse comum;
i) Executar as deliberações da assembleia que não tenham sido objeto de impugnação, no prazo máximo de 15 dias úteis, ou no prazo que por aquela for fixado, salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada;
j) Representar o conjunto dos condóminos perante as autoridades administrativas.
l) Prestar contas à assembleia;
m) Assegurar a execução do regulamento e das disposições legais e administrativas relativas ao condomínio;
n) Guardar e manter todos os documentos que digam respeito ao condomínio.
o) Informar, por escrito ou por correio eletrónico, os condóminos sempre que o condomínio for citado ou notificado no âmbito de um processo judicial, processo arbitral, procedimento de injunção, procedimento contraordenacional ou procedimento administrativo;
p) Informar, pelo menos semestralmente e por escrito ou por correio eletrónico, os condóminos acerca dos desenvolvimentos de qualquer processo judicial, processo arbitral, procedimento de injunção, procedimento contraordenacional ou procedimento administrativo, salvo no que toca aos processos sujeitos a segredo de justiça ou a processos cuja informação deva, por outro motivo, ser mantida sob reserva;
q) Emitir, no prazo máximo de 10 dias, declaração de dívida do condómino, sempre que tal seja solicitado pelo mesmo, nomeadamente para efeitos de alienação da fração.
r) Intervir em todas as situações de urgência que o exijam, convocando de imediato assembleia extraordinária de condóminos para ratificação da sua atuação.
2 - Sempre que estiver em causa deliberação da assembleia de condóminos relativamente a obras de conservação extraordinária ou que constituam inovação, a realizar no edifício ou no conjunto de edifícios, o administrador está obrigado a apresentar pelo menos três orçamentos de diferentes proveniências para a execução das mesmas, desde que o regulamento de condomínio ou a assembleia de condóminos não disponha de forma diferente.
3 - O administrador de condomínio que não cumprir as funções que lhe são cometidas neste artigo, noutras disposições legais ou em deliberações da assembleia de condóminos é civilmente responsável pela sua omissão, sem prejuízo de eventual responsabilidade criminal, se aplicável.
A questão coloca-se, num primeiro momento, em saber se a presente acção se insere no âmbito da al. g) do supra referido artigo, como é entendimento do Autor/Apelante.
Se for esse o caso ultrapassada fica a questão da ausência de deliberação da Assembleia de Condóminos.
A al. g) do art.º 1436.º do CC contempla os actos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns.
Dúvidas não subsistem que a acção respeita a direitos relativos aos bens comuns. Isso mesmo o afirma o despacho recorrido quando afirma que “
Está em causa nos presentes autos a realização de obras que
, alegadamente, constituem inovações e alterações estruturais, sem que tenha sido obtida autorização da Assembleia de Condóminos,
visando a acção a defesa da propriedade comum
.”
Não obstante, entendeu a Mmª juiz a quo que “Tal questão, está, indubitavelmente, para além da administração ordinária e não está, por isso, no âmbito das funções que pertencem ao administrador do condomínio, pertencendo à Assembleia dos condóminos a decisão sobre a oportunidade de instaurar ou não a acção judicial contra o(s) Condómino(s).”
Ou seja, na decisão recorrido subscreveu-se o entendimento de que a propositura de uma acção, com os contornos da presente, não se traduzia num acto meramente conservatório de direitos relativos a bens comuns
, que a mesma ia para além dos poderes de administração ordinária e, como tal, estaria dependente da deliberação da Assembleia de Condóminos.
Conforme foi entendimento plasmado no
Ac. do STJ de 14-12-2017
, actos conservatórios são os que
“são praticados com o objetivo de evitar a deterioração ou a destruição dos bens e a perda dos direitos correspondentes. Para o conceito de «actos conservatórios» como «os adequados a evitar a degradação ou destruição do conjunto de elementos que integram as partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal, entendidas na acepção do art.º 1421.º do CC».
No mesmo sentido, Ana Filipa Morais Antunes e Rodrigo Moreira (in “comentário ao Código Civil – Direito das Coisas”, Universidade Católica Editora, Out. 2021, págs. 524 -525 ) refere que
“Deve entender-se que se encontram também abrangidos pela presente previsão os atos materiais que estejam relacionados instrumentalmente com estes bens, na linha da autorização enunciada pelo artigo 1427.º. É o que pode ser ilustrado com os seguintes atos: (i) reparação de paredes ou de sistemas de eletricidade; (ii) conservação de muros e de zonas de passagem.
De igual modo, devem incluir-se os atos conservatórios relativos aos próprios direitos sobre os bens comuns: assim, pode o administrador, v.g. (i) requerer uma providência cautelar de embargo de obra nova, quando esta for realizada em parte comum do edifício (cfr. artigos 397.º a 402.º do CPC); (ii) promover ou prevalecer-se da interrupção dos prazos de prescrição ou de usucapião, em benefício do condomínio”.
Como se refere igualmente no
Ac. da R.C. de 06-10-2015
, a propósito da então al. f) do art.º 1436.º do CC (actualmente alínea g) em virtude da alteração introduzida pela Lei 8/2022, de 10-01)
“Tal função respeita, em primeiro lugar, à conservação dos direitos sobre as partes comuns. Como salientam Aragão Seia, e Pires de Lima e Antunes Varela, entre os atos conservatórios referidos na alínea f), cabem, por ex., a instauração de providências cautelares relativamente às partes comuns (v. g., um embargo de obra nova realizada numa parte comum) e a interrupção de um prazo de prescrição ou de usucapião. Ou como escreve Henrique Mesquita, trata-se “de actos que nada resolvem em definitivo, que não comprometem o futuro e que apenas visam manter uma coisa ou um direito numa dada situação”.
(…)
Também Ana Sardinha e Francisco Cabral Metelo, englobam em tais atos conservatórios todos e quaisquer atos que visem assegurar ou preservar as partes comuns: atos de gestão que, eventual e independentemente, se sobreponham à própria vontade, individual, dos condóminos.”
Não desconhecemos a posição mais abrangente de Sandra Passinhas (referida pelo Autor/Apelante nas suas alegações) que defende que a norma da al. f) do art.º 1436º deve ser objeto de uma interpretação extensiva, de acordo com o carácter orgânico da figura do Administrador, da sua posição na organização administrativa e do carácter autónomo da sua atividade.
Partindo da ideia de que o Administrador tem poderes de gestão e representação processual em tudo o que não contenda com a propriedade ou a posse dos bens comuns (em que só agirá quando devidamente autorizado, nos termos do nº 3 do mesmo artigo), tem o mesmo poder-dever de realizar as medidas cautelares adequadas a evitar prejuízos na coisa comum, pode propor uma ação para obter o ressarcimento dos danos causados às partes comuns do edifício condominial, deve salvaguardar o edifício condominial de moléstias, perigos ou prejuízos causados por terceiros. Está legitimado a intentar uma ação respeitante à conservação das partes comuns do edifício apenas quando age ex re, devendo reconhecer-se-lhe, designadamente, o poder de exigir a eliminação dos defeitos, nos termos do art.º 1221º ex vi art.º 1225º, nº . A referida Autora dá mesmo o exemplo do Decreto-lei nº 106/96, de 31 de julho, que estabeleceu um regime específico de comparticipação e financiamento para a realização de obras de conservação e beneficiação pelos condóminos de edifícios antigos, segundo o qual o administrador representa o conjunto dos condóminos nos atos respeitantes à realização de obras nas partes comuns dos prédios (cf. respetivo art.º 11.º).
Não obstante, tem sido outra a posição defendida por outra doutrina e pela maioria da jurisprudência e que assenta na ideia de que os actos conservatórios
previstos na al. g) (anterior al. f) do art.º 1436.º do CC), de natureza material e judicial,
são os que nada resolvem em definitivo, que não comprometem o futuro, visando apenas manter uma coisa ou um direito numa determinada situação
. Para esta corrente, a interposição de uma ação judicial pelo Condomínio, representado pelo Administrador, contra, por exemplo, o construtor do edifício para correcção de defeitos de construção sempre depende da autorização/deliberação dos condóminos reunidos em assembleia ou de disposição regulamentar que a autorize.
Por
actos conservatórios deverão entender-se apenas aqueles que são adequados a evitar a degradação ou destruição do conjunto de elementos que integram as partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal.
Aliás, a comparação que Sandra Passinhas faz com os poderes do Administrador do condomínio no citado regime do Decreto-lei nº 106/96, de 31 de julho (art.º 11º) poderá ter mesmo uma leitura inversa, no sentido que, por não caber nos poderes de administração concedidos ao Administrador pela lei geral, houve necessidade de, especialmente, a lei lhe atribuir o poder de representar o conjunto dos condóminos nos termos do artigo 1436.º do Código Civil, para efeitos da prática dos atos referidos no referido diploma respeitantes à realização de obras nas partes comuns do prédio – neste sentido ver
Ac. R.P de 24-10-2019
.
Por isso mesmo subscrevemos o entendimento da maioria da jurisprudência – e que foi também o entendimento da decisão recorrida – de que a instauração desta concreta acção não cabe no âmbito dos actos (materiais ou judiciais) conservatórios, a que alude a actual al. g) do art.º 1436.º do CC.
A instauração de uma ação judicial com as caraterísticas da presente implica a ponderação de vários factores, desde a escolha do mandatário, passando pelos seus honorários e despesas judiciais a pagar, avaliação do interesse na ação relativamente à gravidade dos eventuais danos e aos custos da respectiva correcção, possibilidade de prévia negociação da reparação com a parte contrária.
Como assim,
entendemos que, por não tratar a presente acção da realização de actos conservatórios (dos direitos relativos aos bens comuns) o A. não podia tê-la instaurado sem autorização da Assembleia dos condóminos arts. 1436º, al. h) e 1437º, do CC).
Não estamos já no âmbito do embargo de obra nova, nem do procedimento cautelar de ratificação desse embargo, nem perante meros actos gestionários.
E propositura de uma acção com vista à reposição definitiva de uma situação das partes comuns – com a envergadura e latitude que é peticionada – extravasa o âmbito dos actos de “conservação”, pelo que, sem prejuízo de, em tese, a acção por ser intentada pelo condomínio, careceria de autorização do órgão deliberativo do mesmo a formar uma vontade colectiva nesse sentido.
Essa falta de deliberação remeter-nos-ia, em tese para o art.º 29.º do CPC, que dispõe que “Se a parte estiver devidamente representada, mas faltar alguma autorização ou deliberação exigida por lei, é designado o prazo dentro do qual o representante deve obter a respectiva autorização ou deliberação, suspendendo-se, entretanto, os termos da causa”.
A este respeito, afastando a aplicação desta concreta prerrogativa concedido pelo art.º 29.º do CPC, diz-se na sentença recorrida:
“Esta é uma questão de suprimento da incapacidade: a parte pode estar em juízo, mas não dispõe de autorização ou deliberação que devesse obter para exercer a sua representação. Contudo, a personalidade judiciária constitui um pressuposto processual que, pela sua natureza, não é em regra susceptível de ser sanado”.
Afigura-se-nos existir aqui alguma confusão e contradição – ou até mesmo um salto de raciocínio - na fundamentação da decisão recorrida.
Isto porque:
- decide-se pela falta de personalidade judiciária do condomínio;
- mas pressupõe-se ao longo de toda a fundamentação que o nó górdio se centra na falta de deliberação para intentar a presente acção;
- o que nos leva a questionar: se a Assembleia tivesse deliberado a instauração de uma acção com vista à defesa das partes comuns, o condomínio poderia estar em juízo, representado pelo Administrador, demandando condóminos e/ou terceiros? A decisão recorrida não faz esse juízo de prognose, mas tudo nos leva a crer que a resposta seria afirmativa, em face dos seguintes trechos: “Tal questão, está, indubitavelmente, para além da administração ordinária e não está, por isso, no âmbito das funções que pertencem ao administrador do condomínio, pertencendo à Assembleia dos condóminos a decisão sobre a oportunidade de instaurar ou não a acção judicial contra o(s) Condómino(s)”, “Assim, afigura-se que o A., Condomínio representado pelo seu administrador, não podia tê-la instaurado sem autorização da Assembleia de todos os condóminos.”, “Faltando nos autos a competente deliberação da assembleia de condóminos e não bastando o mero conhecimento da pendência ou da futura instauração da acção, há que concluir pela falta de capacidade judiciária do administrador.”
Ora, o condomínio tem personalidade judiciária e pode ser parte nas acções que se inserem nos poderes do administrador. Quais poderes? Em nosso entender os poderes próprios (de gestão e administração ordinária) e os poderes que lhe forem conferidos pela Assembleia (al. i) do n.º 1 do art.º 1436.º e 1437.º do CC).
Ora, se a Assembleia de Condóminos podia deliberar a instauração de uma acção com vista à defesa das partes comuns, podia o Administrador, em representação do condomínio executá-la, interpondo a competente acção, não se questionando – nessa concreta situação – a sua personalidade judiciária.
A questão está apenas na ausência e inexistência dessa deliberação.
E se a questão se centra na ausência de deliberação, estamos já no âmbito da capacidade judiciária e da falta de deliberação, tal como a mesma vem regulada no art.º 29.º do CPC, e não no campo da falta de personalidade judiciária.
Concluímos assim pela efectiva personalidade judiciária do condomínio, representado pelo Administrador, colocando-se assim a questão apenas e tão somente, no âmbito da capacidade.
b) Capacidade Judiciária e seu suprimento
Assente está:
(i) a personalidade judiciária do Condomínio para intentar a presente acção;
(ii) a necessidade de deliberação da Assembleia geral para propor uma acção de defesa das partes comuns;
(iii) a ausência dessa deliberação prévia à instauração da presente acção.
Entende o Autor/Apelado que tal deliberação é desnecessária
na medida em que “Importa igualmente ter em atenção que em 13 de fevereiro de 2020, reuniu-se a Assembleia de Condóminos, na qual compareceu o subscritor como Advogado já constituído, que explicou a situação aos Condóminos, incluindo a existência do embargo, cuja apensação se requereu, tendo a Assembleia consensualizado a atuação da Administração, na constituição de Mandatário e no embargo extrajudicial, além de ter manifestado a necessidade de fazer intervir a Câmara Municipal de Lisboa, em paralelo com a ação judicial, como consta da Ata n.º 76, junta aos presentes autos no requerimento com referência 46693219, datado de 03.10.2023.
Entende o Apelante que a menção em ata, assinada pelos condóminos presentes, constitui manifestação de vontade suficiente, da parte da Assembleia de Condóminos.”
Discordamos deste entendimento e interpretação que o Autor/apelante faz
.
Uma menção feita em acta
, de uma explicação ainda que efectuada por um advogado,
assinada por todos os condóminos presentes de forma alguma pode ser entendida
– de acordo com as regras da interpretação das declarações, constantes dos arts. 236.º e ss. do CC –
como uma deliberação, como uma expressão de vontade concludente de tomar posição sobre determinada conduta a adoptar, desde logo por não ter qualquer correspondência no texto da acta, nem mesmo de forma imperfeitamente expressa.
Deliberar é tomar uma resolução, decidir mediante exame ou discussão. E não ouvir uma explicação dada em assembleia e assinar a acta em que essa explicação foi dada, sem que se questionasse se se concordava ou não com ela.
O que nos leva a concluir que, de forma nenhuma o teor da supra referida acta poderia dispensar a deliberação da Assembleia de Condóminos, com expressão formal na respectiva acta.
Cumpriria aferir da bondade da decisão de absolvição das Rés da instância, sem se ter dado cumprimento ao disposto no art.º 29.º do CPC e art.º 590.º, n.º 2, al. a), do CPC.
A este respeito refere o Autor/Apelante nas suas alegações que “Nesse mesmo requerimento com referência 46693219, datado de 03.10.2023, veio o ora Apelante, indagar e requerer prazo para suprir tal irregularidade, uma vez que caso dúvidas ainda existissem, e se o Tribunal assim entende-se, ser necessário a introdução de ponto expresso na ordem de trabalhos e deliberações formais, o Apelante assim o faria.
Prazo esse, que nunca foi concedido ao Apelante.
Tendo o Tribunal a quo decidido sem mais.
Conforme repercute o artigo 590º, nº 2, alínea a) do C.P.C. “…2 - Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a:
a) Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; …”
É um facto que a Mmª Juiz a quo não o fez, e não o fez porque entendeu que estávamos perante a falta de pressuposto processual de personalidade judiciária e a mesma era insuprível, ao invés da falta de poderes de representação, prevista no art.º 29.º do CC.
Para o caso que aqui nos ocupa, haverá irregularidade de representação nos casos em que o administrador actue fora do âmbito das suas funções sem previamente ter sido autorizado pela assembleia de condóminos.
Isto porque os poderes de representação judiciária do administrador, como já referimos supra, não se restringem às matérias de gestão corrente, assegurando ainda o administrador a representação do condomínio em juízo quando é incumbido pela assembleia, órgão deliberativo, de agir judicialmente em assuntos respeitantes às partes comuns, mas que exorbitam a competência que lhe é própria.
É o exemplo da acção destinada a imputar, na esfera jurídica de terceiro, os danos causados em parte comum do edifício.
Em tal caso, os poderes de representação do administrador pressupõem uma deliberação da assembleia. E a falta dessa deliberação pode ser suprida nos termos do art.º 29.º do Código de Processo Civil.
Poder-se-ia pensar que o passo lógico seguinte, na decorrência de tudo o que se expôs, seria anular a decisão recorrida e ordenar a baixa dos autos à 1.ª instância para que se desse cumprimento ao disposto no art.º 29.º e 590.º, n.º 2, al. a) do CPC.
Não obstante, o art.º 130º do C.P.C., que proíbe a prática de atos inúteis, tem plena aplicação nesta sede de apreciação reapreciação da decisão recorrida e da utilidade que advirá do cumprimento do art.º 29.º do CPC e da concessão de prazo ao Condomínio para vir juntar a deliberação em falta, bem como ratificação do processado pelo Administrador em data anterior a essa deliberação.
A impugnação da matéria seja de facto seja de direito deve obedecer a um princípio de utilidade, na medida em que só importa considerar o que poder ser relevante.
Em sede recursiva pretende-se, através da modificação de decisão que conheceu da falta de personalidade e capacidade judiciárias do Autor/Apelado, que seja reapreciada a pretensão do recorrente, nomeadamente no sentido de os autos não verem antecipado o seu desfecho antes do julgamento de mérito do mesmo.
Pelo que, a consequência lógica do que se referiu supra e o cumprimento do art.º 29.º do CPC, estará sempre limitada pela circunstância de o Tribunal ter igualmente conhecido da excepção dilatória inominada de formulação de pedidos genéricos, no sentido da sua procedência, levando igualmente à absolvição da instância.
Tal decisão foi igualmente objecto de recurso, pelo que necessário se torna conhecer da mesma na medida em que se, de todo o modo, se confirmar a absolvição da instância, com este outro fundamento, nenhum sentido útil tem de ordenar-se o cumprimento do disposto no art.º 29.º do CPC.
Assim, urge apreciar de seguida a subsequente questão apreciada no despacho saneador recorrido e, igualmente, objecto de impugnação do presente recurso.
c) Da excepção dilatória inominada de formulação de pedidos genéricos
O Autor intentou a presente acção formulando os seguintes pedidos:
a) Serem os 1º, 2º e 3º RR. condenados a usar a fracção “C” para fins exclusivamente habitacionais, bem como, na sanção pecuniária compulsória de 100€ por cada dia de atraso no cumprimento ou em situação de incumprimento deste dever.
b) Todos os RR. solidariamente condenados a:
i) Custear os estudos que o A. mandará elaborar demonstrativos do impacto que a remoção das lajes, alteração dos vãos e reposição em diferente local, tiveram, ou podem vir a ter, na estabilidade e segurança de todo o prédio;
ii) Em função das conclusões técnicas obtidas, custear todas as obras necessárias para reconstruir uma situação idêntica à preexistente relativamente às remoções por si realizadas, com garantia de plena estabilidade do prédio;
iii) Apresentar à Câmara Municipal de Lisboa os projectos necessários, tendo em vista a regularização formal do processo do edifício e reduzir, até onde for possível, o risco de ofensa as suas estruturas;
iv) Garantir por meio de inscrição sobre as fracções B e C, na Conservatória do Registo predial, sem limite de capital e como encargo em espécie, sem prazo determinado os riscos que, mesmo com a execução dos trabalhos que sejam recomendados pelos estudos a efectuar, sempre subsistirão;
v) Reembolsar todas as despesas suportadas, em resultado da sua conduta, em causa nestes autos. Designadamente a título de honorários, encargos e taxas de justiça, custas judiciais e pareceres técnicos que se venham a apurar em sede de execução de sentença.
Apreciando a admissibilidade dos pedidos formulados, consta da fundamentação da decisão recorrida o seguinte:
“É nos articulados, enquanto peças processuais em que as partes expõem os fundamentos da acção e da defesa e formulam os pedidos correspondentes, que as partes definem as suas pretensões jurisdicionais - cfr. art.º 147º do Código de Processo Civil.
Para que o tribunal possa dirimir um concreto litígio submetido à sua apreciação, indispensável se torna que as partes fixem com precisão os termos exactos da controvérsia.
A Petição inicial, como articulado onde o demandante propõe a acção, deduzindo certa pretensão de tutela jurisdicional, com a menção do direito a tutelar e dos fundamentos respectivos, e que é levada ao conhecimento do R. é a base do processo. É aí que se formula o pedido e se invoca a causa de pedir, ou seja, o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido pelo A., isto é, no acto ou facto jurídico em que o A. se baseia para formular o seu pedido (art.º 5º, n.º 1 e 552º, n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil).
Nos termos do art.º 552º, n.º 1 do Código de Processo Civil na P.I. deve o autor:
a) (…)
e) Formular o pedido;(…)
O pedido é, conforme decorre do n.º 3 do art.º 498º do Código de Processo Civil o efeito jurídico que se pretende obter com a acção. É este que delimita o círculo dentro do qual o Tribunal tem de mover-se para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a decidir (cfr. Art.º 615º, n.º 1 al. e) do Código de Processo Civil).
Assim o pedido deve ser claro e inteligível; coerente com a causa de pedir; e legalmente possível.
Para que tal ocorra, o pedido deve ser formulado com toda a precisão, especificando nitidamente tanto o objecto jurídico da acção (o efeito que o A. pretende obter) como o seu objecto material.
A precisão do pedido resulta da necessidade de criar a certeza jurídica que é um atributo da própria essência da decisão sendo também o elemento definidor do caso julgado.
Daí que a lei estatua os casos excepcionais em que é permitido formular pedidos genéricos (cfr. Art.º 556º do CPC) referindo que a mesma só pode ocorrer quando o objecto mediato da acção seja uma universalidade de facto ou de direito; quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito de o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o art.º 569º do Código Civil, ou quando a fixação do quantitativo esteja dependente de prestação de contas ou de outro acto que deva ser praticado pelo Réu.
Atentando nos pedidos formulados nos autos, é manifesto que os mesmos padecem de vícios que determinam a impossibilidade de prosseguimento dos autos.
Efectivamente peticiona o A.
a) Ser os 1º, 2º e 3º RR. condenados a usar a fracção “C” para fins exclusivamente habitacionais, bem como, na sanção pecuniária compulsória de 100€ por cada dia de atraso no cumprimento ou em situação de incumprimento deste dever.
b) Todos os RR. solidariamente condenados a:
i. Custear os estudos que o A. mandará elaborar demonstrativos do impacto que a remoção das lajes, alteração dos vãos e reposição em diferente local, tiveram, ou podem vir a ter, na estabilidade e segurança de todo o prédio;
ii. Em função das conclusões técnicas obtidas, custear todas as obras necessárias para reconstruir uma situação idêntica à preexistente relativamente às remoções por si realizadas, com garantia de plena estabilidade do prédio;
iii. Apresentar à Câmara Municipal de Lisboa os projectos necessários, tendo em vista a regularização formal do processo do edifício e reduzir, até onde for possível, o risco de ofensa as suas estruturas;
iv. Garantir por meio de inscrição sobre as fracções B e C, na Conservatória do Registo predial, sem limite de capital e como encargo em espécie, sem prazo determinado os riscos que, mesmo com a execução dos trabalhos que sejam recomendados pelos estudos a efectuar, sempre subsistirão;
v. Reembolsar todas as despesas suportadas, em resultado da sua conduta, em causa nestes autos. Designadamente a título de honorários, encargos e taxas de justiça, custas judiciais e pareceres técnicos que se venham a apurar em sede de execução de sentença.
Ora, relativamente ao primeiro pedido, coloca-se desde logo a questão de saber se o mesmo é idóneo. O A. pretende a condenação dos RR. a usar a fracção “C” para fins exclusivamente habitacionais. O fim a que uma fracção autónoma é destinada constitui uma limitação ao exercício do direito de propriedade de cada condómino sobre a sua fracção, e encontra-se definido no título constitutivo da propriedade horizontal.
Assim, utilizar a fracção para o fim a que se destina é uma decorrência da lei, não cabendo ao Tribunal condenar a cumprir a lei, obrigação que se impõe a todos os cidadãos.
Acresce que, nos termos alegados pelo A., a referida fracção encontra-se ligada, por via das obras efectuadas, à loja sita no R/C do mesmo prédio. Logo, afigura-se que este pedido apenas faria sentido após o pedido de realização de obras de reposição da individualização das fracções, o que, em verdade, não é peticionado.
Relativamente aos pedidos formulados na alínea b), pontos i) e ii) os mesmos encontram-se formulados em termos absolutamente condicionais.
Pretende-se que os RR. sejam condenados a custear os estudos que o A. mandará elaborar demonstrativos do impacto que a remoção das lajes, alteração dos vãos e reposição em diferente local, tiveram, ou podem vir a ter, na estabilidade e segurança de todo o prédio.; e, em função das conclusões técnicas obtidas, custear todas as obras necessárias para reconstruir uma situação idêntica à preexistente relativamente às remoções por si realizadas, com garantia de plena estabilidade do prédio.
Nunca o tribunal poderá concluir nos termos peticionados, sob pena de nulidade da decisão. Não pode o tribunal condenar os RR. a custear um estudo que não se sabe quando e se o A. mandará elaborar, a quem e por que valor.
Acresce que, o tribunal não pode também condenar a efectuar obras apenas se o estudo concluir que as mesmas são necessárias.
Já o pedido formulado em b.iv) é, para além de condicional, um pedido indeterminado.
Pretende o A. que os RR. sejam condenados a “Garantir por meio de inscrição sobre as fracções B e C, na Conservatória do Registo predial, sem limite de capital e como encargo em espécie, sem prazo determinado os riscos que, mesmo com a execução dos trabalhos que sejam recomendados pelos estudos a efectuar, sempre subsistirão”. Ora, a procedência deste pedido estaria dependente da realização de um estudo, de esse estudo concluir pela existência de danos e necessidade de execução de trabalhos, de executados esses trabalhos subsistirem riscos de danos. Tudo isto são eventos futuros e incertos, que, logicamente, não podem ser garantidos por uma quantia incerta e por tempo indeterminado!
Conforme se refere no Ac STJ de 07.04.2011 (relator Lopes do rego) in www.dgsi.pt, a lei não admite a figura da condenação condicional. A sentença judicial em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto, ainda não ocorrido à data do encerramento da discussão da causa, não é possível.
Também o Acórdão de 15/10/2020 do TRG (relator António Boavida) que, pela clareza de exposição, seguimos de perto refere “Por um lado, o artigo 610º do CPC permite o julgamento no caso de inexigibilidade da obrigação no momento em que a acção é proposta, mas trata-se de uma possibilidade restrita, não ampla. O artigo versa somente sobre situações em que a obrigação é inexigível (por exemplo, por não se encontrar ainda vencida, não ter decorrido o prazo certo a que está sujeita, o prazo ser incerto e a fixar pelo tribunal) e não sobre casos em que está em causa a própria constituição da obrigação. Admite-se a condenação do réu no cumprimento de uma obrigação ainda não exigível, mas que o réu (v. nº 2 do art.º 610º) ou o tribunal (v. nº 1 do art.º 610º) reconhece existir. Já não é admissível a condenação do réu numa prestação que pode nunca vir a constituir-se ou em que o facto condicionante da sua constituição sempre exigiria ulterior verificação judicial. E é assim por imposição do artigo 610º, que restringe os casos em que é lícita a condenação do réu in futurum (apenas em situações de inexigibilidade da obrigação), e por força do princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais. Isto porque uma condenação condicional compromete a definitividade e certeza da composição de interesses realizada na acção, além de a tutela alcançada pelo demandante não ser dotada de efectividade; são decisões boomerang ou de “ida e volta”, que acabam por não solucionar definitivamente o litígio, que em maior ou menor grau subsiste entre as partes, tendendo a necessitar de ser resolvido através de nova acção.”
Donde se impõe concluir que estes pedidos, por condicionais, não são legalmente admissíveis.
No ponto b.iii) do pedido peticiona o A. a condenação dos RR. a apresentar Câmara Municipal de Lisboa os projectos necessários, tendo em vista a regularização formal do processo do edifício e reduzir, até onde for possível, o risco de ofensa as suas estruturas;
Ora o processo camarário é um procedimento administrativo a que os Tribunais civis são alheios, não cabendo a este tribunal apreciar a existência/inexistência/invalidade do processo camarário.
Afigura-se assim que os pedidos formulados não preenchem os requisitos do pedido, sendo vagos, indeterminados e condicionais e, por isso, inadmissíveis.
A lei não determina expressamente qual a consequência para a formulação ilegal de pedidos genéricos e condicionais, sendo diversas as soluções que tem vindo a ser apontadas pela doutrina e pela jurisprudência.
Assim, Castro Mendes considera que deve haver indeferimento liminar da PI por verificação de excepção dilatório atípica (DPC, III, 330), Anselmo de Castro entende que tal vicio determina o indeferimento liminar da petição por ineptidão (DPC, vol. II, p. 250).
A jurisprudência maioritária, com a qual tendemos a concordar, defende a absolvição da instância por verificação de uma excepção dilatória atípica (AC RP de 13/4/1978, CJ, tomo III, pág. 812 e Ac. STJ de 8/2/1994, CJSTJ, tomo I, pág. 95).”
Apreciando:
A noção de pedido encontra-se consagrada no art.º 581.º, n.º 3, do CPC e corresponde ao efeito jurídico que o autor pretende retirar da acção interposta, traduzindo-se, em concreto, na providência que aquele solicita ao Tribunal.
Segundo os ensinamentos de Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio da Nora (in Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 245)
o pedido é o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor
, sendo que nos mesmo sentido são os dizeres de Miguel Teixeira de Sousa no seu livro Introdução ao Processo Civil, pág. 23.
Trata-se de um elemento fundamental que emerge da circunstância de se ter colocado nas mãos dos interessados o accionamento dos mecanismos jurisdicionais e a escolha das providências que os invocados direitos garantem.
Daí resulta, conforme entendimento de Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, pág. 220), a
necessidade de indicação precisa do pedido, tendo em vista que o Réu tenha conhecimento do pedido contra ele formulado e respectivo fundamento e, consequentemente, esteja em condições de se defender capazmente
.
Interessa-nos essencialmente, para a decisão a tomar nos presentes autos, o pedido no seu significado de pretensão processual, isto é, meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor. Como ensina Anselmo de Castro (ob. supra citada) mais importante que a qualificação jurídica, deve atender-se ao efeito prático que se pretende alcançar, o que releva para determinar o conteúdo da decisão final.
A formulação do pedido – dentro do qual se vai desenvolver toda a lide e que circunscreve de forma impositiva o âmbito da decisão final – é uma necessidade que resulta da consagração do princípio do dispositivo. Com efeito, o art.º 3.º do CPC concretiza um dos pressupostos de intervenção jurisdicional na resolução de litígios de direito provado, e que depois é desenvolvido ao longo do CPC culminando com os arts. 5.º e 609.º do CPC, atinentes aos limites da actividade jurisdicional no plano da sentença.
Com efeito, o princípio do dispositivo assume especial importância ao nível do direito que se pretende titular. Tenhamos por exemplo do direito de propriedade: com base numa mesma situação de facto, e invocando o mesmo direito, o titular poderá escolher de entre várias providências aquela que julgue mais oportuna (reivindicação, simples apreciação, acção indemnizatória).
E o Tribunal é alheio a essa escolha/estratégia do autor, a qual depende única e exclusivamente da vontade do interessado, dentro dos diversos meios de actuação que o sistema pode legitimar.
Mas a lei não se basta com a formulação do pedido. A lei processual impõe que o pedido seja formulado de modo claro e inteligível e que seja preciso e determinado
– art.º 186.º do CPC (neste sentido ver António Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. 1, pág. 107).
E compreende-se que assim seja, por forma a assegurar à contraparte o exercício do direito de defesa na sua plenitude.
Assim e na senda do referido por António Abrantes Geraldes (ob. citada, pág. 108), sem prejuízo de outras características, podemos afirmar genericamente que o pedido deve reunir os seguintes requisitos:
a) Ser expressamente referido na petição inicial (existência);
b) Ser apresentado de forma clara e inteligível (inteligibilidade);
c) Ter um conteúdo determinado e determinável em fase de liquidação ou execução de sentença (determinação);
d) Ser coerente relativamente à causa de pedir ou pedidos cumulados (compatibilidade)
e) Ser lícito, isto é, representar uma forma de tutela de direitos ou interesses protegidos e admitidos pela ordem jurídica (licitude);
f) Ser viável, correspondendo ao corolário lógico dos factos alegados e correspondentes normas jurídicas (viabilidade);
g) Representar uma forma de actuação do autor caracterizada pela boa fé e cumprimento de deveres de probidade (probidade);
h) Representar uma forma de tutela de um direito ou de um interesse juridicamente relevante (juridicidade).
Dito isto, urge analisar os diversos pedidos formulados pelo Autor:
a) Serem os 1º, 2º e 3º RR. condenados a usar a fracção “C” para fins exclusivamente habitacionais, bem como, na sanção pecuniária compulsória de 100€ por cada dia de atraso no cumprimento ou em situação de incumprimento deste dever.
Concordamos com a decisão recorrida quando refere que “o fim a que uma fração se destina constitui uma limitação ao exercício do direito de propriedade de cada condómino sobre a sua fração, encontrando-se definido no título constitutivo da propriedade horizontal”.
Assim, condenar os Réu a utilizar a fração para fins exclusivamente habitacionais equivale a condená-los a cumprir a lei…. Ora, a lei impõe-se por si, não cabendo ao Tribunal condenar ninguém a cumprir aquilo que resulta da lei.
O Tribunal existe para dar resposta a situações em que a lei é violada. E nessa conformidade o pedido é deduzido e aferida a sua viabilidade.
Num caso como o dos autos, a lógica e a viabilidade, ditariam que o pedido formulado fosse “serem os Réus condenados a absterem-se de usar a fracção C para outros fins que não exclusivamente habitacionais e no pagamento de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento deste dever.”
Só que não foi esse o pedido formulado! E o pedido formulado pelo Autor não tem viabilidade não sendo a sentença o meio idóneo para condenar alguém a dar a uma fracção o uso que resulta da sua própria natureza.
O pedido há-de ser encarado e formulado como destinando-se a repor a legalidade de uma determinada situação concreta (desconforme ou ilícita) - prestação de non facere – e não de condenação ….
Pelo que partilhamos das mesmas reservas em relação ao pedido formulado sob a al. a) que o Tribunal a quo.
Poder-se-ia argumentar que estaríamos perante um pedido implícito. Mas entendemos que não e que a situação é exactamente a inversa! Implícito à condenação dos Réus a absterem-se de dar à fracção um uso distinto daquele a que está destinado (pedido omitido) é que está a condenação no cumprimento da lei (pedido expresso).
Sem prejuízo da desformalização do processo civil, e da aplicação de eventuais regras da hermenêutica, não poderá o Tribunal converter um pedido formulado na positiva, para um pedido na sua vertente negativa, sob pena de violação do art.º 3.º e 609.º do CPC, sendo certo que o Autor nunca pediu a condenação dos Réus a absterem-se de dar à fracção o uso que, hipoteticamente, estarão a dar e que não é será o definido no título constitutivo da propriedade horizontal.
Conforme se referiu no
Ac. do STJ de 22-03-2007
(Relator Sousa Peixoto, proc. 06S3961)
“O pedido constitui, pois, uma parte da petição absolutamente distinta da sua parte narrativa e há-de ser formulado em separado e de forma inequívoca. E compreende-se que assim seja, uma vez que a exposição das razões de facto e de direito não podem ser confundidas com o pedido. Com efeito, nada obsta a que o autor na parte narrativa da petição afirme ter direito a determinada importância e depois acabe por formular um pedido de quantia inferior àquela.
O recorrente entende que o pedido formulado na conclusão da petição inicial deve ser integrado com o que havia sido alegado na parte narrativa da petição, mas isso implicaria que o juiz procedesse a uma interpretação da vontade do autor, o que a estrutura formal da petição não consente, uma vez que dessa interpretação poderia resultar um pedido diferente daquele que o autor realmente quis, o que constituiria uma violação do princípio dispositivo (art.º 3.º, n.º 1, do CPC).”
Pelo que entendemos que o elemento literal do pedido formulado não comporta a interpretação com a formulação que, outro sim, o segmento do pedido deveria conter.
b)
Serem todos os RR. solidariamente condenados a:
i. Custear os estudos que o A. mandará elaborar demonstrativos do impacto que a remoção das lajes, alteração dos vãos e reposição em diferente local, tiveram, ou podem vir a ter, na estabilidade e segurança de todo o prédio;
ii. Em função das conclusões técnicas obtidas, custear todas as obras necessárias para reconstruir uma situação idêntica à preexistente relativamente às remoções por si realizadas, com garantia de plena estabilidade do prédio;
iii. Apresentar à Câmara Municipal de Lisboa os projectos necessários, tendo em vista a regularização formal do processo do edifício e reduzir, até onde for possível, o risco de ofensa as suas estruturas;
iv. Garantir por meio de inscrição sobre as fracções B e C, na Conservatória do Registo predial, sem limite de capital e como encargo em espécie, sem prazo determinado os riscos que, mesmo com a execução dos trabalhos que sejam recomendados pelos estudos a efectuar, sempre subsistirão;
v. Reembolsar todas as despesas suportadas, em resultado da sua conduta, em causa nestes autos. Designadamente a título de honorários, encargos e taxas de justiça, custas judiciais e pareceres técnicos que se venham a apurar em sede de execução de sentença.
Alegou a 4.ª Ré, em sede de contestação, que estaríamos perante a formulação de pedidos genéricos e que tal consubstanciaria uma excepção dilatória inominada, conducente à absolvição da instância.
Não nos diz a lei o que é um pedido genérico.
Limita-se a admitir a sua formulação apenas e tão só nos casos taxativamente referidos nas als. a) a c) do n.º 1 do art.º 556.º do CPC.
Segundo A. Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 3.º Coimbra Editora, 1946, p. 170), o pedido diz-se genérico quando é
indeterminado no seu quantitativo e como essa indeterminação implica iliquidez
, podendo-se considerar expressões equivalentes as de “pedido genérico” e “pedido ilíquido”. E no dizer de Anselmo de Castro (Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil coligidas por Abílio Neto, Livraria Almedina, 1970, Vol. I, p. 274)., o pedido genérico contrapõe-se ao pedido específico e vem a significar o mesmo que pedido ilíquido.
Entendemos por bem separar os diversos pedidos formulados nas várias alíneas.
- Alíneas b.i), b.ii) e b.iii) (
i. Custear os estudos que o A. mandará elaborar demonstrativos do impacto que a remoção das lajes, alteração dos vãos e reposição em diferente local, tiveram, ou podem vir a ter, na estabilidade e segurança de todo o prédio;
ii. Em função das conclusões técnicas obtidas, custear todas as obras necessárias para reconstruir uma situação idêntica à preexistente relativamente às remoções por si realizadas, com garantia de plena estabilidade do prédio;
iii. Apresentar à Câmara Municipal de Lisboa os projectos necessários, tendo em vista a regularização formal do processo do edifício e reduzir, até onde for possível, o risco de ofensa as suas estruturas;
Da formulação dos pedidos ressalta à evidencia o carácter condicional dos mesmos
(custear os estudos que a Autora MANDARÁ elaborar e em função desse estudo e do seu resultado serem os Réus condenados a custear as obras necessárias a repor a situação anterior). Todos eles (i, ii e iii) estão dependentes da ocorrência de um facto futuro e incerto: um estudo que a Autora mandará efectuar.
Atente-se na alegação do Autor em sede de petição inicial:
“98.º
Então, como reparar a situação criada?
99.º
Em primeiro lugar,
deverão os RR. custear os estudos que o A. mandará elaborar, demonstrativos do impacto que a remoção das lajes, alteração dos vãos e reposição em diferente local, tiveram, ou podem vir a ter, na estabilidade e segurança de todo o prédio
.
100.º
Em função das conclusões técnicas obtidas, deverão os RR. custear todas as obras necessárias para reconstituir uma situação idêntica à preexistente relativamente às remoções por si realizadas, com garantias de plena estabilidade para o prédio.”
101.º
Apresentando à Câmara Municipal de Lisboa os projetos necessários, a expensas dos RR.
102.º
Isto tendo em vista reduzir, até onde for possível, o risco gerado pela ofensa às
estruturas do edifício.”
Que estudo é esse? Não se sabe.
Que obras são essas? Também não se sabe…
Na medida em que:
(i) a Autora ainda não encomendou o estudo;
(ii) não se sabe se e quando o mandará elaborar;
(iii) a quem e
(iv) qual grandeza de valores inerentes ao custo desse estudo.
Por outro lado, qual o sentido de condenar os Réus a efectuarem as obras que esse hipotético estudo venha a fixar como necessárias, se ainda nem sabemos se esse estudo vai concluir pela necessidade das obras?
Qual o sentido de se condenarem os Réus a apresentar projectos à Câmara Municipal para realização de obras que não se sabem quais são, nem se terão se terão de ser efectuadas?
Nunca poderá por isso o Tribunal condenar os Réus a efectuarem obras, nem a apresentarem os respectivos projectos camarários, sem se saber se as/os mesmas(os) são ou não necessárias(os)!
Por força do princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais, a lei processual não admite, por via de regra, a condenação condicional, isto é, aquela em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto, ainda não ocorrido à data do encerramento da discussão, particularmente nos casos em que o facto condicionante requer ulterior verificação judicial.
Conforme se refere, com toda a pertinência para a situação dos autos, no
Ac. do STJ de 27-09-2012
(Relator Lopes do Rego, proc. 663/09.1TVLSB.L1.S1), a questão centra-se em saber em que medida será admissível que o autor/ credor “proponha acção de condenação tendo como objecto uma obrigação ainda não exigível ao devedor, nela obtendo decisão de mérito favorável, apesar de – nos momentos da propositura da causa e do encerramento da discussão – ainda não se ter verificado o termo ou ocorrido facto ou condição que tornaria tal obrigação vencida e exigível?
Como é sabido, tem sido doutrinariamente controversa a articulação dos regimes – aparentemente dissonantes – que constam do nº 2 do art.º 472º e do art.º 662º do CPC – condicionando o primeiro de tais preceitos legais a efectivação em juízo de obrigações referentes a prestações futuras à existência de um interesse específico do credor ( que pretende antecipar a efectivação em juízo do seu direito) traduzido uma particular necessidade de tutela no momento da exigibilidade ou vencimento da obrigação; e, pelo contrário, parecendo a segunda daquelas normas admitir, sem essa ressalva, a prolação de sentença condenatória relativamente a obrigações ainda não vencidas ou exigíveis.
Assim, uma parte substancial da doutrina ( Antunes Varela, Anselmo de Castro, Montalvão Machado), estribada na lição de Alberto dos Reis
, estabelece uma diferenciação do campo de aplicação daquelas duas normas em função do momento processual em que a inexigibilidade é detectada no processo
: o art.º 472º, nº2, vedaria a propositura de acções de condenação referentes a prestações futuras, em que a inexigibilidade actual é assumida pelo credor na petição inicial – condicionando a admissibilidade desta à invocação do referido interesse específico na obtenção de tutela jurídica futura ; pelo contrário, a norma que consta do art.º 662º aplicar-se-ia apenas na fase do julgamento, permitindo, por evidentes razões de economia processual, a condenação in futurum quando apenas se viesse a verificar, na fase do julgamento, que, afinal, a obrigação invocada como exigível pelo credor não estaria afinal ainda vencida, no momento mais recente que podia ser atendido pelo tribunal.
Pelo contrário, outra orientação doutrinária, sustentada nomeadamente por Castro Mendes e Lebre de Freitas, delimita o âmbito de aplicação das referidas normas processuais em função da diversidade intrínseca das situações materiais em litígio, reportando-se o art.º 472º a obrigações ainda não constituídas e o art.º 662º a obrigações já actualmente existentes, mas ainda não vencidas ou exigíveis.”
(…)
6. A figura da condenação in futurum e o exacto âmbito da sua admissibilidade envolve ponderação de vários interesses ou valores processuais relevantes:
(…)
- finalmente, há que ter em consideração a problemática da indispensável determinação do conteúdo da sentença judicial, colocando, nomeadamente,
limites à admissibilidade de condenações condicionais, expressadas em sentenças que reconhecem direitos sujeitos a uma verdadeira condição suspensiva, de conteúdo amplamente indeterminado, ao menos nos casos em que as possíveis dúvidas sobre a verificação ou não verificação da condição impliquem inevitavelmente uma nova e ulterior apreciação jurisdicional
. Ou seja: os direitos futuros e condicionais, a reconhecer jurisdicionalmente de forma antecipada, mesmo com base numa particular necessidade de tutela do credor, que careceria justificadamente de título executivo no momento em que tais relações se transformassem em actuais e exigíveis, não poderão traduzir-se numa condenação sujeita a um facto-condição de conteúdo amplamente indeterminado – e, portanto, susceptível de, com toda a probabilidade ocasionar um novo litígio entre as partes, a ser dirimido por nova intervenção do juiz. Como se afirma no Ac. de 7/4/11, proferido pelo STJ no P. 419/06.3TCFUN.L1.S1,
A lei processual não admite em regra, por força do princípio da determinabilidade do conteúdo das decisões judiciais, a condenação condicional, ou seja, a sentença judicial em que o reconhecimento do direito fica dependente da hipotética verificação de um facto futuro e incerto
, ainda não ocorrido à data do encerramento da discussão da causa – particularmente nos casos em que o facto condicionante sempre exigiria ulterior verificação judicial, prejudicando irremediavelmente a definitividade e certeza da composição de interesses realizada na acção e a efectividade da tutela alcançada pelo demandante.
Pelo contrário, admitimos que possa ser logo judicialmente reconhecido um direito sujeito a condição suspensiva quando esta se consubstanciar numa factualidade que, embora futura e eventual, seja susceptível de fácil e inequívoca demonstração, nomeadamente mediante prova documental – veja-se, por exemplo, o Ac. de 10/9/09, (de que fomos relator), proferido pelo STJ no P.374/09.8YFLSB , em que, aderindo à posição sustentada por A. Varela, se tem como admissível a sentença de condenação condicional, em termos paralelos aos previstos no art.º 662º, num caso em que a condição suspensiva se resumia à obtenção de licença de utilização de certo prédio, por o “facto condicionante» da plena disponibilidade substantiva da fracção em causa, ligado à estrita verificação pela Administração das condições regulamentares de emissão da licença de utilização, , não exigir qualquer ulterior verificação judicial, susceptível de prejudicar a certeza do direito e das situações jurídicas reconhecidas, não devendo, nessa medida, constituir obstáculo relevante à prolação de condenação «in futurum»
No caso dos autos, os pedidos formulados assentam no prognóstico de que os estudos a realizar determinarão o reconhecimento da posição assumida pela Autora quanto às intervenções efectuadas pela 1.ª Ré, no sentido de as mesmas afectarem a estrutura do prédio
.
Esse estudo não existe e ainda não foi pedido. Terá existência se e quando a Autora o solicitar.
Essa condicionalidade afeta a definitividade e certeza da composição de interesses realizada na ação e a efectividade da tutela alcançada pelo demandante ( neste sentido
Ac. do S.T.J de 27-09-2012
, proc. n.º 663/09.1TVLSB.L1.S1, Lopes do Rego).
Conforme se refere no
Ac. da Relação de Coimbra de 22-1-2015
(proc. 1331/12.2TVLSB.L1-8, Catarina Manso- disponível para consulta in
www.jurisprudência.pt
),
o juiz há de dizer o direito de uma forma real e manifesta, isto é, com exatidão e firmeza, de forma a trazer a quietude social preconizada por um Estado de Direito; e a permissividade de uma sentença condicional, tal e qual a entendemos, porque eivada de um estímulo a congeminar um buscado estado de incerteza, não pode obter refúgio numa legislação que se concebe deveras afastada desta desaconselhada peculiaridade
.
Segundo Antunes Varela e Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 1984, Coimbra editora, p. 665, nota 1), importa, porém, não confundir a sentença de condenação condicional, em que condicionado é o direito reconhecido na sentença, com as sentenças condicionais, em que a incerteza recai sobre o sentido da própria decisão e que, em princípio não são admitidas no nosso sistema.
Estes autores (ibidem, pp. 664/665) consideram admissível a sentença de condenação condicional nos casos em que a obrigação seja incerta nessa data ou em que sendo certa a obrigação, seja ainda incerta ou ilíquida a prestação.
Ora, não é manifestamente esse o caso dos presentes autos.
- Quanto ao pedido formulado em b.iv (
iv. Garantir por meio de inscrição sobre as fracções B e C, na Conservatória do Registo predial, sem limite de capital e como encargo em espécie, sem prazo determinado os riscos que, mesmo com a execução dos trabalhos que sejam recomendados pelos estudos a efectuar, sempre subsistirão)
Em sede de petição inicial alegou o Autor a este respeito que:
“106.º
Ou seja, os RR. têm de garantir os riscos que, mesmo com a execução dos trabalhos que sejam recomendados pelos estudos a efetuar, sempre subsistirão.
107.º
Como garantir, por um período indeterminado que há-de corresponder à restante vida física do edifício?
108.º
E qual o montante de capital a fixar, se fosse adotada uma solução por essa via?
109.º
O A. entende que a constituição de uma garantia de capital é inadequada, tanto mais que, se trata de um condomínio, com natureza e características jurídicas próprias, pouco vocacionadas para a gestão destes riscos.
110.º
Assim, ponderando diversas vertentes de abordagem da questão, entende que essa garantia deve ser inscrita sobre as frações B e C, na Conservatória do Registo Predial, sem limite de capital e como encargo em espécie, sem prazo determinado.”
Mais uma vez o pedido está condicionado aos estudos a efectuar, pelo que – nos termos em que é formulado – é não só condicional como ainda é vago e genérico na sua formulação.
Conforme é ensinamento de Oliveira Ascensão (in Direito Civil, Reais, 4ª Ed., p. 149), “Não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei;”.
Ora, não indica o Autor na sua petição qual a concreta figura através da qual pretende que se onere a propriedade sobre as fracções B e C, aludindo de forma genérica a “garantia” e “encargo em espécie”.
Pelo que, para além de condicional, o pedido formulado é vago e indeterminado, a menos que pretenda o Autor criar um direito real inominado o que, como se referiu supra, lhe está vedado.
Para além de que qualquer garantia constituída nos termos peticionados pelo Autor caracterizar-se-ia sempre como uma garantia genérica ou
omnibus
, carecida de elementos que permitissem inferir, com segurança, a origem, o prazo, os possíveis montantes.
Embora nos presentes autos a Autora pretenda uma garantia real, poderíamos sempre, por identidade de argumentos, fazer um paralelismo com a situação decidida no AUJ 4/2011, da nulidade da fiança por indeterminabilidade do objecto.
A pretensão do Autor iria no mesmo sentido, colocando o Tribunal na posição confrontar com a situação de ele próprio condenar os Réus na constituição de uma garantia/encargo indeterminado e indeterminável, no momento da prolação da sentença!
Dito isto, concordamos com a decisão recorrida quando afirma que os pedidos formulados pelo Autor “não preenchem os requisitos do pedido, sendo vagos, indeterminados e condicionais e, por isso, inadmissíveis.”
Com efeito, consubstanciam pretensões procedimentais absolutamente abstractas, que não são susceptíveis de tutela jurisdicional – que se pretende certa, exacta e firme
.
Em face de tal conclusão, coloca-se a questão de aferir da sorte de tais pedidos e do acerto da decisão que determinou a absolvição dos Réus da instância.
Impõe-se então concluir que os
pedidos não podem ser formulados de forma vaga, imprecisa e indeterminada, e nem de forma ininteligível; antes devem ser formulados de forma clara, determinada, congruente e coerente
e certa
, ainda que possam ser apresentados de forma alternativa (artigo 553º), subsidiária (artigo 554º), cumulativa (artigo 555º), genérica (artigo 556º) e em prestações vincendas (artigo 557º), nas circunstâncias legalmente previstas.
Nos casos em que tal não ocorre, e à semelhança das situações de ineptidão da petição inicial, expressamente prevista como exceção dilatória, estaremos também perante uma exceção dilatória, ainda que inominada
, sendo inquestionável, em face do artigo 577º do Código de Processo Civil (onde consta expressamente a referência a “entre outras”) a existência de exceções dilatórias inominadas.
Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, 1982, II, página 250) considera que quando se “formula indevidamente um pedido genérico, ainda aí a consequência deverá ser a absolvição da instância, pois não poderá o tribunal legalmente conceder o que o autor pede (a isso obsta, por definição, o art.º 471º) nem conceder coisa diversa (art.º 668º/1 al e)”; no sentido de a formulação ilegal de pedido genérico constituir excepção dilatória pronuncia-se também Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, II Volume, 1997, página 75 e ob. cit. Página 618) considerando que a “dedução de pedido genérico fora do condicionalismo legal reconduz-se a uma exceção dilatória inominada”.
In casu, analisando os pedidos formulados pela Autora, temos de concordar com o entendimento perfilhado pelo tribunal a quo, concluindo que se apresentam efetivamente formulados com um caráter inconcludente, indeterminado, vago, condicional e genérico.
Se acaso o tribunal julgasse os pedidos em causa procedentes, eles sofreriam de uma indeterminação e imprecisão tal que, qualquer eventual condenação dos Réus seria uma “caixa de pandora” de incertezas e inseguranças sobre o seu efectivo objecto, alcance e latitude da condenação.
Conforme já referimos o pedido deve ser indicado e formulado de forma a que o alcance da pretensão seja perfeitamente compreendido pelo juiz e pelo réu tendo em vista possibilitar verdadeiramente o exercício do contraditório, permita a definição dos contornos do direito no caso concreto e a prolação de uma decisão que seja definidora do conflito de interesses subjacente ao mesmo. A decisão judicial a proferir não poderá, em caso algum, ser imprecisa e/ou indeterminada, antes sendo necessário saber com exactidão o que o tribunal decidiu, para que os autores e os réus, e qualquer pessoa, possam saber sem dúvidas o que foi decidido e o que deve ser cumprido pelos réus no futuro.
Os pedidos em causa, da forma como se apresentam formulados, não permitem uma condenação nesses moldes, nem mesmo são susceptíveis de ser concretizados por liquidação, nos termos em que o art.º 556.º do CPC permite a dedução de pedidos genéricos.
Pelo que, consequentemente, a decisão proferida pelo tribunal a quo, que absolveu os Réus da instância não merece censura, devendo manter-se, improcedendo nesta parte o presente recurso.
d) Prejudicialidade entre a apreciação da questão de personalidade judiciária e excepção dilatória inominada de formulação de pedidos genéricos
A posição tomada pelo Tribunal quanto à inadmissibilidade da formulação genérica, condicional e inconcludente dos pedidos do Autor – e consequente manutenção da absolvição dos Réus da instância – determina que o Tribunal não extraia CONSEQUÊNCIAS JURIDICAS conclusões do diverso entendimento que teve quanto à falta de personalidade judiciária.
Pelo que, embora com fundamentação não totalmente coincidente, se mantém a decisão do Tribunal a quo que absolveu os Réus da instância.
*
IV. Decisão:
Por todo o exposto:
Acordam os Juízes na 6.ª secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o recurso de apelação apresentado pelo Autor, mantendo a decisão de absolvição da instância dos Réus, embora com fundamentação não totalmente coincidente.
Custas da Apelação pela Autora/Apelada (nos termos dos arts. 527.º, n.ºs e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2, do CPC).
Registe e notifique.
*
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2025
Maria Teresa F. Mascarenhas Garcia
Cláudia Barata
Anabela Calafate
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f58f2d4a63ad936b80258c3e0059db3c?OpenDocument
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1,736,899,200,000
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IMPROCEDENTE
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20408/22.0T8LSB.L1-4
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20408/22.0T8LSB.L1-4
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MARIA JOSÉ COSTA PINTO
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I – Quando se preveja que a reapreciação da prova pretendida pode vir a ser inútil porque, ainda que proceda a impugnação da matéria de facto nos termos requeridos, a decisão do recurso não deixará de ser a mesma, não deve conhecer-se desde logo a impugnação da decisão de facto e deve alterar-se a ordem lógica de apreciação das questões, apenas se reapreciando a decisão de facto, se tal vier a revelar-se necessário, após conhecer o direito.
II – A Lei do Orçamento de Estado (LOE) de 2021 sujeita os contratos de trabalho celebrados pelas entidades públicas empresariais ao disposto no decreto lei de execução orçamental, sob pena de nulidade (artigo 59.º).
III – A vigência dos decretos-lei de execução orçamental encontra-se limitada, em princípio, pela própria vigência do orçamento a cujas normas visa dar execução.
IV – No lapso temporal compreendido entre 1 de Janeiro e 28 de Junho de 2022 inexistia no nosso ordenamento jurídico o obstáculo das sucessivas leis orçamentais à contratação de trabalhadores por parte das entidade públicas empresariais na medida em que a remissão do artigo 59.º, n.º 2 da LOE de 2021 – então em vigor em duodécimos – para o Decreto-Lei de execução orçamental, era uma remissão sem objecto por inexistir, então, qualquer Decreto-Lei de execução orçamental em vigor ou cuja vigência houvesse sido prorrogada.
V – Iniciando-se a relação laboral em 10 de Janeiro de 2022, não havia à data fonte jurídica de onde decorresse a nulidade do contrato então firmado e que viria a ser considerado um contrato de trabalho sem termo à luz do regime jurídico do Código do Trabalho.
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[
"IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO",
"ACTO INÚTIL",
"ENTIDADE PÚBLICA EMPRESARIAL",
"CONTRATO DE TRABALHO",
"NULIDADE DO CONTRATO",
"ORÇAMENTO DO ESTADO",
"DECRETO-LEI DE EXECUÇÃO ORÇAMENTAL"
] |
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:
П
1. Relatório
1.1. AA, intentou a presente acção emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, contra OPART - Organismo de Produção Artística, E.P.E., formulando os seguintes pedidos:
A) seja declarada nula a estipulação do termo no contrato celebrado entre as partes com início de vigência em 12 de Novembro de 2021, declarando-se tal contrato como tendo sido celebrado sem termo, desde essa data;
B) seja declarado nulo, por ilícito, o despedimento do Autor;
C) se condene o Réu a reintegrar o trabalhador;
D) se condene o Réu a pagar ao Autor o montante correspondente a retribuição do período de 24 de Dezembro de 2021 a 9 de Janeiro de 2022, no montante de 779,40 €, acrescido de juros de mora até integral pagamento;
E) se condene o Réu a pagar ao Autor o montante correspondente a retribuição do período de 10 de Julho de 2022 até à data da efectiva integração, que se cifra nesta data em 2.605,00 €, acrescido de juros de mora até integral pagamento, deduzidos os montantes a que se refere o artigo 390.º, n.º 2, do Código do Trabalho;
Subsidiariamente,
F) seja declarada nula a estipulação do termo no contrato celebrado entre as partes com início de vigência em 10 de Julho de 2022, declarando-se tal contrato como tendo sido celebrado sem termo, desde essa data;
G) seja declarado nulo, por ilícito, o despedimento do Autor;
H) se condene o Réu a reintegrar o trabalhador;
I) se condene a Réu a pagar ao Autor o montante correspondente a retribuição do período de 10 de Julho de 2022 até à data da efectiva integração, acrescido de juros de mora até integral pagamento, deduzidos os montantes a que se refere o artigo 390.º, n.º 2, do Código do Trabalho.
Na contestação apresentada a R. veio defender-se invocando a nulidade do contrato por falta da autorização governamental exigida pelo Decreto-Lei n.° 84/2019, de 28 de Junho, diploma de execução orçamental para 2019 (artigo 157.º, n.º s 5, 10 e 12), aplicável em 2022.
Foi proferido despacho saneador, no qual se fixou o valor da acção em € 3.384,40, e dispensada a realização da audiência prévia, bem como a enunciação dos temas da prova e procedeu-se ao julgamento.
Foi após proferida sentença que terminou com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente, e, em consequência, decido:
a) Declarar o contrato celebrado entre as partes com início de vigência em 10 de Janeiro de 2022, como tendo sido celebrado sem termo, desde essa data, bem como declarado ilícito o despedimento do Autor ocorrido em 09 de Julho de 2022;
b) Condenar o réu a reintegrar o autor no seu posto de trabalho, com a categoria, antiguidade e retribuição que teria se não tivesse sido despedido;
c) Condenar o réu a pagar ao autor as retribuições que deixou de auferir desde 01.08.2022 até ao trânsito em julgado desta decisão, incluindo retribuição de férias, subsídios de férias e de Natal., acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde as datas dos respectivos vencimentos até integral e efectivo pagamento, descontadas das importâncias que o trabalhador tenha obtido com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento, designadamente o montante do subsídio de desemprego.
d) Absolver o reu do demais peticionado pelo autor.
Custas a cargo do autor e do réu (art.º 527º do C. P. Civil), na proporção de 5% para o autor e 95% para o réu.
Notifique, registe e comunique nos termos e para os efeitos do art.º 75º, nº 2 do Cód. Proc. Trabalho.
[…]»
1.2. A R., inconformada, interpôs recurso desta decisão, tendo formulado, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:
“1ª - Salvo melhor opinião, a contratação do Autor, ainda que destituída de uma cláusula de aposição de termo, não poderia vigorar por período superior a seis meses, devendo o contrato considerar-se nulo após esse período, por via das disposições orçamentais aplicáveis à relação entre as partes, tal como comunicado ao Autor aquando da cessação do respetivo contrato. Com efeito:
2ª - Nos termos do art. 157°, do Decreto-Lei n° 84/2019, de 28 de junho (Decreto-Lei de Execução Orçamental para 2019): (...)
3ª - Nos termos do art. 210°, do mesmo diploma, "O presente decreto-lei produz efeitos à data da entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado, salvo se disposto em contrário nos artigos antecedentes, e até à entrada em vigor do decreto-lei de execução orçamental para 2020."
4ª - Nos termos do art. 59°. da Lei n° 75-B/2020 (Orçamento de Estado para 2021): (...)
Nos termos do art. 58°, da Lei n° 151/2015, de 11 de setembro: (...)
5ª - Por sua vez, nos termos dos arts. 1° a 5° do Decreto-Lei n° 126-C/2021 (...)
6ª - Das normas transcritas, resulta assim a consideração de que, de 10 de janeiro a 9 de julho de 2022, se manteve em vigor a Lei do Orçamento de Estado para 2021, que no seu art. 59° sujeita as contratações de trabalhadores, por pessoas coletivas públicas - como é o caso da Ré - ao disposto do decreto-lei de execução orçamental.
7ª - Sendo que, nos termos do transcrito art. 58°, da Lei n° 151/2015, o Decreto-Lei de execução orçamental para 2019, manteve-se em vigor durante o mencionado período de 10 de janeiro a 9 de julho de 2022, por não ter entretanto sido aprovado novo Decreto-Lei de execução orçamental, para os orçamentos de estado subsequentes.
8ª - Sendo que só em 12 de agosto de 2022 veio a ser aprovado o Decreto-Lei de execução orçamental para o Orçamento de Estado de 2022 (D.L. n° 53/2022), o qual, por sua vez, estabelece o seguinte no respetivo art. 141°: (...)
9ª - Acontece que, como a Ré invocou na sua contestação, nunca ocorreu a autorização ou despacho favorável de qualquer membro do Governo, para a contratação do Autor por período superior a seis meses, pelo que os contratos celebrados entre as partes não podem considerar-se celebrados por tempo indeterminado.
10ª - Constituindo a Ré uma Entidade Pública Empresarial, nos termos do D.L. n° 160/2007, é de concluir, como se disse, que o contrato de trabalho celebrado entre as partes não poderia ter vigorado além do período em que foi executado, após o qual se deve considerar nulo.
11ª - A este respeito, considerou a douta sentença recorrida que:
"No caso presente não ocorre a nulidade invocada pela ré decorrente do regime transitório de execução orçamental aplicáveis à contratação de trabalhadores por pessoas colectivas de direito público, uma vez que não está apenas em causa a falta de cumprimento por parte da ré do procedimento relativo a falta de autorização dos membros do Governo previstos na lei, mas verifica-se que a ré procedeu a uma contratação laboral que violou a norma imperativa que previa a forma escrita como requisito de tal contratação, o que implica a nulidade do termo que havia sido proposto e a inevitável contratação por tempo determinado imposta pelo regime jurídico previsto no Código do Trabalho de forma imperativa."
12ª - Porém, tal entendimento, é refutado pela jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa, sendo que, conforme acórdão proferido pelo mesmo, em 22/06/2022, no processo n° 7379/20.6T8LSB.L1-4, disponível em
www.dgsi.pt
(negrito e sublinhado nosso):
"1.— Invocada, pelas trabalhadoras vinculadas no âmbito de contrato de utilização de trabalho temporário, a circunstância de o mesmo servir necessidades permanentes de serviço, compete ao utilizador a prova dos factos em que assentou a justificação de contratar sob tal regime.
2.— Não resultando do acervo fático tal prova, o contrato de utilização é nulo, considerando-se o trabalho prestado pelas trabalhadoras à utilizadora em regime de contrato de trabalho sem termo.
3.Sendo a utilizadora empresa pública que esteve, durante os anos 2017 a 2019 sujeita aos constrangimentos impostos pelas leis orçamentais, os contratos consideram-se nulos."
13ª - Mencionando-se ainda o seguinte nesse acórdão, nomeadamente em conformidade com as normas orçamentais acabadas de expor: "Donde, e conforme contraposto pela Apelada, também relativamente ao ano de 2019, a Recorrida se encontrava limitada na contratação. Reforça esta conclusão o facto, aliás provado, de, durante os anos 2017, 2018 e 2019, por falta de cabimento nas respetivas leis orçamentais e de execução, a R. não ter tido autorização da tutela para contratar diretamente novos trabalhadores. E, assim, a contratação operada nos anos 2017 a 2019, bem como os aditamentos aos contratos neste período temporal, são nulos, prevalecendo o regime introduzido pelos mencionados regimes legais sobre as normas do Código do Trabalho supra citadas."
14ª - Transpondo o mencionado entendimento para o caso em apreço nos presentes autos, e tendo em conta que a ora Ré se encontra sujeita às referidas normas orçamentais, salvo melhor opinião, nunca seria possível considerar ter-se formado um contrato de trabalho sem termo entre as partes.
15ª - Não existindo autorização governamental para a contratação do Autor por período superior àquele em que o contrato de trabalho foi executado, o mesmo não poderia vigorar após esse período, sendo assim improcedente a pretensão do mesmo.
16ª - No art. 54° da sua contestação, a ora Ré invocou que nunca ocorreu a autorização ou despacho favorável de qualquer membro do Governo, para a contratação do Autor, pela Ré, por período superior a seis meses
17ª - De acordo com o acima exposto, face à natureza jurídica da Ré, a validade da contratação do Autor, pela Ré, por período superior a seis meses ou nos termos peticionados nos presentes autos, sempre dependeria da existência da mencionada autorização.
18ª- Pelo que a procedência da pretensão do Autor dependeria da alegação desse facto.
19ª - Ainda assim, por cautela jurídica, impugna-se nesta sede a matéria dada como provada na douta sentença recorrida, nos seguintes termos:
20ª - Conforme resulta do depoimento prestado pela testemunha BB (minuto 5:00, até ao minuto 6:12:
Testemunha BB : Em termos práticos e no que diz respeito à contratação por tempo indeterminado, nós temos sempre que solicitar autorização à dupla tutela, solicitar autorização à cultura e solicitar autorização às finanças. Estas normas resultam do Orçamento Geral do Estado e têm constado nos diversos Orçamentos Gerais do Estado, portanto, só com essa autorização é que nós podemos celebrar contratos por tempo indeterminado. No que diz respeito à conversão de um contrato a termo por contrato a tempo indeterminado, também existem regras no Orçamento Geral do Estado que impedem essa conversão, tornam o contrato nulo, mas isso já é matéria de direito.
Mandatário da Ré: E o OPART, sabe se o OPART alguma vez solicitou autorização à tutela, ou se obteve autorização da tutela para que o Sr. AA passasse a ter um contrato, ou por tempo superior a seis meses ou por tempo indeterminado?
Testemunha BB : Que eu tenha conhecimento, não, mas, por tempo indeterminado não.."
21ª - Face ao exposto, deveria a douta sentença recorrida ter considerado provado o seguinte facto: "Nunca ocorreu a autorização ou despacho favorável de qualquer membro do Governo, para a contratação do Autor, pela Ré, por período superior a seis meses".
22ª- Face ao exposto, é de considerar que a douta sentença recorrida fez errada apreciação das normas orçamentais acima mencionadas, devendo ser revogada!”
1.3. Respondeu o A., sustentando a improcedência do recurso e tendo rematado as suas contra-alegações do seguinte modo:
“A) Por força do artigo 58.°, n.° 1, da Lei de Enquadramento Orçamental (Lei n.° 151/2015, de 11 de Setembro), a Lei do Orçamento de Estado para o ano de 2021 manteve-se em vigor durante o período relevante para a determinação do regime aplicável ao presente caso (de Janeiro a Julho de 2022);
B) Tal Lei do Orçamento de Estado para o ano de 2021, sujeita as contratações de trabalhadores, por pessoas colectivas públicas, entre as quais o Réu, ao disposto no decreto-lei de execução orçamental, sob pena de nulidade (artigo 58.°, n.° 2);
C) Ora, não tendo sido esse decreto-lei aprovado, não se deve entender aquela remissão como sendo feita para o decreto-lei de execução orçamental do ano de 2019;
D) Uma vez que, determinando o artigo 58.°, n.° 2, da Lei de Enquadramento Orçamental que “A prorrogação da vigência da lei do Orçamento do Estado abrange o respetivo articulado e os correspondentes mapas, bem como decretos-leis de execução orçamental”, se deve entender, a contrario, que a cessação da vigência da Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2019 determinou, igualmente, a cessação da vigência do respectivo decreto-lei de execução orçamental;
E) Não havendo, assim, base legal para entender que o Decreto-Lei de execução do orçamento de Estado de 2019 se manteve em vigor em 2022, em resultado da falta de aprovação de novo decreto-lei de execução orçamental;
F) Pelo que a remissão operada pelo artigo 58.°, n.° 2, da Lei do Orçamento do Estado de 2021, aplicável ao período em apreço, para o decreto-lei de execução orçamental não encontra concretização, por falta deste diploma;
G) Inexistindo, assim, fundamento legal para impedir a aplicação da norma do artigo 147.°, n.° 1, al. c), do Código do Trabalho;
H) Sendo, por este motivo, procedente a pretensão do Autor e não merecendo censura a decisão em crise;
I) Admitindo, por mera cautela de patrocínio, que o Decreto-Lei de Execução Orçamental do ano de 2019 viu a sua vigência prorrogada, por força do artigo 58.°, da Lei de Enquadramento Orçamental, impõe-se confrontar os efeitos dele retirados pelo Réu com a Constituição;
J) Com efeito, a Constituição da República Portuguesa estabelece, no seu artigo 165.°, n.° 1, al. b) que é da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República legislar sobre Direitos, Liberdades e Garantias;
K) E a matéria da segurança no emprego (cfr. artigo 53.°, CRP), que se integra nesse domínio, está essencialmente em causa quando se estabelecem normas que se entendam sobrepor-se àquelas do Código do Trabalho que regulam a aposição de termo ao contrato de trabalho e a consequência da sua não observância, conforme é o caso do artigo 147.°, n.° 1, al. c), do Código do Trabalho;
L) Dado que a eventual determinação que um vínculo laboral estabelecido de acordo com as regras laborais gerais, vê ameaçada a sua validade por factos totalmente alheios ao trabalhador, constitui uma séria perturbação do referido princípio da segurança no emprego;
M) Não obstante e conforme resulta do referido artigo 165.°, CRP, o Governo pode legislar sobre esta matéria desde que habilitado para tal pela Assembleia da República, por lei de autorização legislativa que defina o objecto, o sentido e a extensão da autorização, bem como a duração da autorização;
N) Regras estas que se aplicam às autorizações concedidas ao Governo na lei do Orçamento;
O) Ora, o Orçamento de Estado do ano de 2019, aprovado pela Lei n.° 71/2018, de 31 de Dezembro, não contempla nenhuma autorização legislativa ao Governo que o habilite a legislar sobre esta matéria de Direitos, Liberdades e Garantias;
P) Autorização que, aliás, o Decreto-Lei de execução orçamental do ano de 2019 não invoca;
Q) Pelo que, ainda que o Governo possa, no âmbito da sua competência legislativa, estabelecer normas que condicionem a contratação de trabalhadores por pessoas colectivas de direito público, não pode, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade orgânica, legislar no sentido de impedir a aplicação do regime em apreço do Código do Trabalho;
R) Isto é, o decreto-lei de execução orçamental não pode, sem expressa habilitação, derrogar o Código do Trabalho;
S) Assim, a interpretação das normas do artigo 157.°, do Decreto-Lei n.° 84/2019, de 28 de Junho, no sentido de que se sobrepõem à norma do artigo 147.°, n.° 1, al. c), do Código do Trabalho, na falta da necessária autorização legislativa para o efeito, constitui inconstitucionalidade orgânica;
T) Termos em que se deve considerar que, nesta matéria, rege a referida norma do Código do Trabalho, não merecendo, também por esta via, a decisão do Tribunal a quo qualquer censura;
U) Cumpre, ainda, avaliar da aplicabilidade do Decreto-Lei de execução orçamental do ano de 2022 (Decreto-Lei n.° 53/2022, de 12 de Agosto), que reitera as limitações à contratação de trabalhadores por parte do Réu, sujeitando-as a autorização do Governo, estabelecendo-se que a violação de tais normas determina a nulidade das contratações de trabalhadores e que o disposto no artigo em apreço prevalece sobre todas as disposições legais, gerais ou especiais, contrárias (cfr. artigo 141.°);
V) Ora, também quanto a estas normas, se dirá que a interpretação das normas do artigo 141.°, do Decreto-Lei n.° 53/2022, de 12 de Agosto, no sentido de que se sobrepõem à norma do artigo 147.°, n.° 1, al. c), do Código do Trabalho, incorre em inconstitucionalidade orgânica, por falta de alteração legislativa para o efeito, conforme se conclui supra, porquanto, tal autorização legislativa não ocorreu, não sendo, aliás, invocada no referido Decreto-Lei de execução orçamental;
W) Por seu lado, a norma em apreço, interpretada desta forma, estabelece uma restrição a Direitos, Liberdades e Garantias dos trabalhadores que, nos termos do artigo 18.°, n.° 3, da Constituição, não pode ter efeito retroactivo;
X) Tal restrição manifesta-se no facto de tal norma estabelecer uma derrogação das regras do Código do Trabalho que regem a contratação a termo, instituídas em benefício do princípio da segurança no emprego (artigo 53.°, CRP);
Y) Ora, tendo o Decreto-Lei n.° 53/2022 sido publicado em 12 de Agosto, a referida interpretação, restringindo os Direitos, Liberdades e Garantias dos trabalhadores, não pode aplicar-se a casos ocorridos antes da sua publicação, sob pena de violação do referido artigo 18.°, n.° 3, da Constituição;
Z) Tendo, também por este motivo, total cabimento a aplicação da norma do artigo 147.°, n.° 1, al. c), do Código do Trabalho, em conformidade com o que se decidiu na douta decisão ora em crise.”
1.4. O recurso foi admitido com efeito suspensivo, atenta a caução prestada.
1.5. Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto Parecer no sentido de que o recurso merece provimento.
Cumprido o contraditório, apenas a recorrente se pronunciou sobre o Parecer do Ministério Público, dele discordando.
Colhidos os vistos, e no âmbito da discussão da decisão final da apelação, prefigurou-se como perspectiva jurídica possível (cfr. o artigo 5.º, n.º 3 do CPC) a de considerar inaplicável ao período temporal em causa no recurso (de 10 de Janeiro a 9 de Julho de 2022) o Decreto-Lei n.° 84/2019, de 28 de Junho (decreto-lei de execução orçamental do OE de 2019), por se não compreender na prorrogação da LOE para 2021 [que teve lugar para o ano de 2022 em conformidade com o artigo 58.º da Lei n.º 151/2015, de 11 de Setembro e com o Decreto-Lei n.° 126-C/2021, de 31 de Dezembro].
Foram ouvidas as partes sobre esta perspectiva jurídica, previamente à prolação da decisão final da apelação nos termos prescritos no artigo 3.º do Código de Processo Civil, vindo ambas a pronunciar-se nos termos que antecedem: a recorrida no sentido de considerar aplicável ao período temporal em causa no recurso o decreto-lei de execução orçamental do OE de 2019 (Decreto-Lei n.° 84/2019, de 28 de Junho), como indicado em Circulares que identifica da Direcção Geral do Orçamento, e o recorrente no sentido da sua inaplicabilidade.
*
Uma vez realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
2. Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicável “
ex vi
” do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho –, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões essenciais que se colocam à apreciação deste tribunal consistem em saber:
1.ª – se a matéria de facto deverá alterar-se nos termos propugnados pela recorrente;
2.ª – se por força das leis do orçamento e de execução orçamental que a recorrente invoca, não poderia considerar-se firmado um contrato de trabalho sem termo entre as partes a partir de 10 de Janeiro de 2022;
3.ª – em caso negativo, se a norma do artigo 157.°, do Decreto-Lei n.° 84/2019, de 28 de Junho (Decreto-Lei de execução orçamental para o ano de 2019), interpretada no sentido de que se sobrepõe à norma do artigo 147.°, n.° 1, al. c), do Código do Trabalho, padece de inconstitucionalidade orgânica por falta de autorização legislativa, na medida em que estabelece uma restrição de direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores.
*
3. Fundamentação de facto
*
3.1. A apelante impugna a decisão de facto fixada na 1.ª instância defendendo que deve considerar-se provado o facto alegado no art. 54° da sua contestação, no qual invocou que nunca ocorreu a autorização ou despacho favorável de qualquer membro do Governo, para a contratação do Autor, pela Ré, por período superior a seis meses.
Alega, em suma, que face à sua natureza jurídica de entidade pública empresarial, a validade da contratação do Autor, por período superior a seis meses ou nos termos peticionados nos presentes autos, dependeria da existência da mencionada autorização.
Invoca o depoimento prestado pela testemunha BB que, na sua perspectiva, determina se considere provado que: "
Nunca ocorreu a autorização ou despacho favorável de qualquer membro do Governo, para a contratação do Autor, pela Ré, por período superior a seis meses
".
Mostram-se cumpridos, de modo suficiente, os ónus de impugnação prescritos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, aplicável “
ex vi
” do art. 1.º, n.º 2 al. a) do Código de Processo do Trabalho.
Todavia, há que ter presente que, como tem reconhecido a jurisprudência, a reapreciação da matéria de facto não constitui um fim em si mesma, mas um meio para atingir um determinado objetivo, que é a alteração da decisão da causa, pelo que não deve ter lugar quando constitua um acto absolutamente inútil, por contrariar os princípios da celeridade e da economia processuais de que é afloramento o artigo 130.º do Código de Processo Civil
[1]
.
Pelo que, a nosso ver, quando se preveja que a reapreciação pretendida pode vir a ser inútil – seja porque a decisão sobre a matéria de facto proferida pela primeira instância já permite sustentar a interpretação do direito aplicável ao caso, seja porque, ainda que proceda a impugnação da matéria de facto nos termos requeridos, a decisão do recurso não deixará de ser a mesma –,deve alterar-se a ordem lógica de apreciação das questões, apenas se reapreciando a decisão de facto se tal vier a revelar-se necessário.
Ou seja, apesar de a questão de facto dever preceder, em termos lógicos, a questão de direito, tendo em consideração que no caso em análise o facto que se pretende aditar pode revelar-se irrelevante para o desfecho do litígio – o que pode tornar espúria a apreciação da impugnação com reanálise da prova testemunhal produzida a este propósito – elencar-se-ão desde já os factos provados na 1.ª instância sem impugnação e conhecer-se-á da impugnação deduzida em sede factual, caso se revele necessário, após o conhecimento da questão de direito que dela não depende.
Prossigamos, pois.
*
3.2. Os factos materiais relevantes para a decisão da causa foram fixados pela sentença recorrida nos seguintes termos:
«[...]
1 - O Autor exerce a actividade profissional de técnico de som e de audiovisual.
2 - O Réu é uma Entidade Pública Empresarial e Organismo de Produção Artística, que integra o Teatro Nacional de São Carlos (Orquestra e Coro) e o Teatro Camões (Companhia Nacional de Bailado), criado pelo Decreto-Lei n.º 160/2007 de 27 de Abril e é dotado de autonomia administrativa, financeira e patrimonial.
3 - Em 12 de Novembro de 2021, o Autor e o Réu, celebraram um contrato de trabalho a termo certo, para o exercício das funções de técnico de som e audiovisual na Companhia Nacional de Bailado, que funciona no Teatro Camões, com a retribuição mensal ilíquida de 1.461,38 €, o qual vigorou entre 12 de Novembro de 2021 e 23 de Dezembro de 2021, conforme documento de fls. 12 e 13 dos autos, doc. 1 junto com a petição inicial, que se dá por integralmente reproduzido, no qual é invocando o regime da Lei n.º 4/2008, de 7 de Fevereiro, e dele constando como motivo justificativo da contratação a termo certo o seguinte: “O TRABALHADOR apresenta qualificações profissionais e a experiência necessária para reforçar, durante o período referido, a Direção Técnica CNB do EMPREGADOR, actividade de natureza técnico-artística de suporte às artes do espectáculo para a qual apresenta, em razão da especificidade dos ensaios e espectáculos das produções agendadas para o período compreendido entre 1. e 2. na Companhia Nacional de Bailado;”
4 - No início de Janeiro de 2022, o Autor foi contactado pelo Director de Recursos Humanos do Réu, CC , o qual propôs ao Autor um novo vínculo laboral por um período de seis meses, contacto este que veio a ser reiterado, em 6 de Janeiro de 2022, por mensagem de correio electrónico remetida pelo Director de Recursos Humanos, em nome do Réu, ao Autor, conforme documento de fls. 14 dos autos, doc. 2 junto com a petição inicial).
5 - Pela mesma mensagem, o Réu declarou que o instrumento do contrato de trabalho seria remetido ao Teatro Camões, para assinatura.
6 - O Autor viria a iniciar a sua actividade junto do Réu no referido dia 10 de Janeiro de 2022, sem que lhe tivesse sido entregue o instrumento do contrato de trabalho ou solicitada a sua assinatura, e, em consequência, sem que o Autor pudesse conhecer as concretas condições, que não resultassem da prática contratual, a que o mesmo estaria sujeito.
7 - O Autor solicitou, aliás, à Direcção de Recursos Humanos do Réu, em 13 de Janeiro de 2022, que lhe fosse remetido o contrato de trabalho (conforme se alcança da mensagem de correio electrónico cuja impressão consta doc. 3 junto com a petição inicial, a fls. 15v. dos autos), pedido que, até à data da propositura da presente acção, nunca foi satisfeito.
8 - O Autor foi, assim, prestando a sua actividade de técnico de som e de audiovisual, em contrapartida da qual auferiu do Réu a retribuição mensal de 1.474,53 € mensais, acrescida de um subsídio de refeição no montante diário de 5,05 €, e com um horário de trabalho de trinta e cinco horas semanais.
9 - Em 19 de Maio de 2022, o Autor foi contactado pela Direcção de Recursos Humanos do Réu, para assinatura de um novo contrato de trabalho que deveria vigorar a partir de 10 de Julho de 2022, sem que tenha sido mencionada data de termo.
10 - Em resposta a este contacto da Direcção de Recursos Humanos do Réu, o Autor transmitiu ao Réu que considerava o seu vínculo laboral como não estando sujeito a termo, por não ter sido reduzido a escrito, recusando a assinatura deste novo contrato de trabalho com início de vigência a 10 de Julho de 2022 e informando que se considerava vinculado por contrato de trabalho sem termo, desde 10 de Janeiro de 2022.
11 - No dia 24 de Maio de 2022, o Autor foi novamente contactado por uma funcionária da Direcção de Recursos Humanos do Réu, de nome EE, que lhe solicitou que assinasse o contrato de trabalho a termo com início em 10 de Janeiro de 2022, o que o Autor, pelos motivos supra referidos, recusou.
12 - Por carta datada de 29 de Junho de 2022, remetida pelo Réu ao Autor, aquele comunicou que o contrato de trabalho em vigor entre as partes cessaria a partir do dia 9 de Julho de 2022, conforme documento de fls. 18 dos autos, doc. 5 junto com a petição inicial, que se dá aqui por integralmente reproduzido, alegando, para esse efeito, a nulidade do vínculo, a qual, no entender do Réu, produziria efeitos apenas 10 dias depois daquela comunicação;
13 - Na referida comunicação de 29 de Junho de 2022 o Réu declara ter remetido ao Autor o contrato de trabalho com início em 10.01.2022, para assinatura, mas tal remessa não ocorreu, e apenas em 19 de Maio de 2022 o Autor veio a ser contatado pelo Réu para a assinatura do contrato, o que o mesmo recusou.
14 - Em 1 de Maio de 2022, o Chefe de Sector de Audiovisuais do Teatro Camões remeteu à Directora Técnica, DD, a mensagem de correio electrónico cujo conteúdo integral consta de fls. 19 dos autos, doc. 6 junto com a petição inicial, pela qual transmitiu que “para a equipa de som e audiovisuais poder corresponder com o solicitado é fundamental manter os três elementos da equipa”; e que “Relativamente aos espectáculos no Teatro Camões são cada vez mais habituais (quase sempre) os espectáculos onde são necessários três técnicos de som e audiovisuais”; e “no caso de música ao vivo são necessários três técnicos, um técnico na mesa de som e os outros dois para apoio no palco/fosse/teatro, uma vez que asseguramos o som,ovídeo da Direcção de cena e a intercomunicação entre todos os técnicos”; e “quanto a espectáculos com projecção de vídeo são sempre necessários três técnicos de som e audiovisuais, um na mesa de som, um na projeccão de vídeo e o terceiro no apoio ao palco”;
15 - Declara-se também na referida mensagem de correio electronico que sendo “habitual haver dois espectáculos em simultâneo, tano no Teatro Camões com espectáculo e apresentações/conferências durante a hora de jantar, o que torna a situação muito complicada porque implica trabalhar nove ou dez horas seguidas, por diversas vezes também acontecem espectáculos no Teatro Camões e espectáculos em digressão, o que implica a necessidade de três elementos da equipa de som e audiovisuais da CNB”; e que “uma vez que o técnico de som e audiovisuais AA correspondeu às expectativas técnicas e humanas, integrando-se por completo na equipa e na CNB, aconselho a manutenção do Técnico de Som e Audiovisuais AA”.
16 - A Ré celebrou com a sociedade Pontozurca, Unipessoal, Lda. um contrato de prestação de serviços pelo qual adjudicou a aquisição de serviços de técnico de som para acompanhamento da equipa de som da Companhia Nacional de Bailado durante os espectáculos a realizar no mês de 12 a 29 de Julho de 2022, bem como para acompanhamento da equipa de som do Teatro Nacional de São Carlos durante os espectáculos do Festival ao Largo 2022 a decorrer entre os dias 16 e 30 de Julho de 2022, tendo a referida sociedade Pontozurca, Unipessoal, Lda. no âmbito de tal contrato destacado o Autor para prestar à ora Ré o serviço de técnico de som adjudicado, o que ocorreu nos dias, horas e locais indicados como segue:
- 12/7/2022 - 9:00 às 13:00 e 14:00 às 17:00 no Teatro Camões
- 13/7/2022 - 9:00 às 13:00 e 14:00 às 17:00 no Teatro Camões
- 14/7/2022 - 9:00 às 13:00 e 14:00 às 17:00 no Teatro Camões
- 15/7/2022 - 9:00 às 13:00 e 14:00 às 17:00 no Teatro Camões
- 16/7/2022 - 14:00 às 16:30 e 17:30 às 21:00 no Teatro Camões
- 19/7/2022 - 15:00 às 19:00 e 20:00 às 23:00 no Teatro Camões,
- 20/7/2022 - 15:00 às 19:00 e 20:00 às 23:00 no Teatro Camões
- 21/7/2022 - 9:00 às 13:00 e 14:00 às 17:00 no Teatro Camões
- 23/7/2022 - 14:00 às 16:45 e 17:30 às 21:30 no Teatro Camões
- 24/7/2022 - 15:00 às 19:00 no largo em frente ao TNSC
- 25/7/2022 - 16:00 às 20:00 e 21:00 às 24:00 no largo em frente ao TNSC
- 26/7/2022 - 16:00 às 20:00 e 21:00 às 24:00 no largo em frente ao TNSC
- 27/7/2022 - 16:00 às 20:00 e 21:00 às 24:00 no largo em frente ao TNSC
- 28/7/2022 - 00:00 às 1:30 e 10:00 às 13:00 no largo em frente ao TNSC
- 22/8/2022 – 8:00 às 12:00 e 13:00 às 16:00 no Teatro Camões
- 23/8/2022 – 9:00 às 13:00 e 14:00 às 17:00 no Teatro Camões
- 24/8/2022 – 9:00 às 13:00 e 14:00 às 17:00 no Teatro Camões
- 25/8/2022 – 9:00 às 13:00 e 14:00 às 17:00 no Teatro Camões
- 26/8/2022 – 9:00 às 13:00 e 14:00 às 17:00 no Teatro Camões
- 29/8/2022 – 9:00 às 13:00 e 14:00 às 17:00 no Teatro Camões
- 30/8/2022 – 9:00 às 13:00 e 14:00 às 17:00 no Teatro Camões
- 31/8/2022 – 9:00 às 13:00 e 14:00 às 17:00 no Teatro Camões
*
4. Fundamentação de direito
*
4.1. É pacífico nos autos que o contrato de trabalho a termo celebrado entre as partes, vigente de 12 de Novembro de 2021 a 23 de Dezembro de 2021, é válido à luz da Lei n.º 4/2008, de 7 de Fevereiro, que aprovou o regime jurídico dos contratos de trabalho dos profissionais de espectáculos, regulando o contrato de trabalho especial entre uma pessoa que desenvolve uma actividade artística destinada a espectáculos públicos e a entidade produtora ou organizadora desses espectáculos, o que acarretou a improcedência dos pedidos deduzidos pelo A. a título principal sob as alíneas A), B), C), D) e E). Esta decisão transitou em julgado.
Não se mostra também impugnado em via de recurso que, à luz do regime jurídico estabelecido no Código do Trabalho, vg. no seu artigo 147.º, n.º 1, alínea c), o contrato de trabalho executado pelo recorrido ao serviço da recorrente a partir de 10 de Janeiro de 2022, por não ter sido reduzido a escrito, se deve considerar um contrato de trabalho sem termo.
O que a recorrente vem aduzir na apelação é que a contratação do recorrido, ainda que destituída de uma cláusula de aposição de termo, não poderia vigorar por período superior a seis meses, devendo o contrato considerar-se nulo, por via das disposições orçamentais e de execução orçamental aplicáveis à relação entre as partes – a Lei do Orçamento de Estado para 2021 (artigo 59.º, n.º 1, da Lei n.° 75-B/2020, de 31 de Dezembro), o Decreto-Lei de execução orçamental para o ano de 2019, que se manteve em vigor nos termos do disposto no artigo 58,°, n.° 1, da Lei n.° 151/2015, de 11 de Setembro, por não ter sido aprovado novo Decreto-Lei de execução orçamental, para os orçamentos de Estado subsequentes, e o Decreto-Lei de execução orçamental para o Orçamento de Estado de 2022 (Decreto-Lei n.° 53/2022) –, uma vez que a recorrente é uma entidade pública empresarial, tal como comunicado ao Autor na carta que lhe enviou com vista à cessação do respetivo contrato de trabalho em 9 de Julho de 2022, estado a constituição de vínculos de emprego por tempo indeterminado dependente de autorização do Governo, sob pena de nulidade.
O recorrido, por seu turno, defende que a cessação da vigência da Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2019 determinou, igualmente, a cessação da vigência do respectivo Decreto-Lei de execução orçamental, não havendo base legal para considerar que o Decreto-Lei de execução do orçamento de Estado de 2019 se manteve em vigor em 2022, ainda que não tenha sido aprovado novo Decreto-Lei de execução orçamental, pelo que as respectivas regras não têm aplicação e, em consequência, a remissão operada pelo artigo 58.º, n.º 2, da Lei do Orçamento do Estado de 2021, aplicável ao período em apreço, não encontra concretização. Defende ainda a inconstitucionalidade orgânica do artigo 157.º do Decreto-Lei n.° 84/2019, de 28 de Junho.
A sentença recorrida, a este propósito, após concluir pela conversão do contrato de trabalho em contrato de trabalho sem termo desde o dia 10 de Janeiro de 2022 e da sua cessação ilícita por acto unilateral da R. com efeitos a 9 de Julho do mesmo ano, com as consequências prescritas na lei laboral, afirmou o seguinte a propósito da nulidade agora em apreciação:
«[…]
No caso presente não ocorre a nulidade invocada pela ré decorrente do regime transitório de execução orçamental aplicáveis à contratação de trabalhadores por pessoas colectivas de direito público, uma vez que não está apenas em causa a falta de cumprimento por parte da ré do procedimento relativo a falta de autorização dos membros do Governo previstos na lei, mas verifica-se que a ré procedeu a uma contratação laboral que violou a norma imperativa que previa a forma escrita como requisito de tal contratação, o que implica a nulidade do termo que havia sido proposto e a inevitável contratação por tempo determinado imposta pelo regime jurídico previsto no Código do Trabalho de forma imperativa.
[…]»
Vejamos.
A R. OPART - Organismo de Produção Artística, E.P.E. é uma entidade pública empresarial, nos termos do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3.10, diploma que estabelece os princípios e regras aplicáveis ao sector público empresarial, incluindo as bases gerais do estatuto das empresas públicas, com vista a submeter a um mesmo regime as matérias nucleares referentes a todas as organizações empresariais directa ou indirectamente detidas por entidades públicas, de natureza administrativa ou empresarial.
Estabelece o artigo 14.º deste Decreto-Lei n.° 133/2013, sob a epígrafe “
regime jurídico geral
”, que: “
1. Sem prejuízo do disposto na legislação aplicável às empresas públicas regionais e locais, as empresas públicas regem-se pelo direito privado, com as especificidades decorrentes do presente decreto-lei, dos diplomas que precedam a sua criação ou constituição e dos respectivos estatutos
”. Por seu turno o artigo 17.º, n.º 1, do mesmo diploma prescreve que “[a]
os trabalhadores das empresas públicas aplica-se o regime jurídico do contrato de trabalho individual de trabalho
”.
O recorrido foi admitido ao serviço da R., após contacto do Director de Recursos Humanos desta, para exercer as suas funções de técnico de som e de audiovisual num horário de 35 horas semanais, mediante retribuição mensal acrescida de subsídio de alimentação (factos 4. a 8.), subsistindo o contrato de trabalho que assim se estabeleceu, sem que tenha chegado a ser subscrito documento que o titule, desde 10 de Janeiro de 2022 até 9 de Julho do mesmo ano (facto 12.).
Este contrato individual de trabalho é de natureza privada e mostra-se submetido ao regime do Código do Trabalho por força do artigo 17.º da lei reguladora da R..
Contudo, as entidades públicas empresariais, não obstante se rejam pelo direito privado, têm a sua atividade gestionária limitada por previsões normativas específicas aplicáveis às empresas do setor público empresarial, entre as quais as normas legais previstas nas Leis do Orçamento do Estado e nos Decretos de Execução Orçamental, as quais devem ser cumpridas, nomeadamente para efeitos de contratação de trabalhadores
[2]
.
A questão que se coloca na presente apelação traduz-se justamente em saber se as leis públicas que regem a actividade da recorrente constituem obstáculo a que se reconheça que, por virtude da conversão do contrato de trabalho celebrado entre as partes em 10 de Janeiro de 2022 em contrato de trabalho sem termo, em conformidade com o artigo 147.º do Código do Trabalho, este contrato se converteu num válido contrato de trabalho por tempo indeterminado.
Para tanto, há que recuar ao Orçamento de Estado para o ano de 2019.
As previsões normativas específicas que condicionavam a atividade da recorrente enquanto entidade pública empresarial durante o ano de 2019, encontravam-se desde logo no artigo 53.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro (Orçamento de Estado para 2019 - LOE) que previa, a respeito da contratação de trabalhadores por pessoas colectivas de direito público e empresas do sector público empresarial, que:
«1 - As pessoas coletivas públicas, ainda que dotadas de autonomia administrativa ou de independência estatutária, designadamente aquelas a que se referem o n.º 3 do artigo 48.º da Lei-Quadro dos Institutos Públicos, aprovada pela Lei n.º 3/2004, de 15 de janeiro, na sua redação atual, e o n.º 3 do artigo 3.º da Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto, na sua redação atual, apenas com exceção das referidas no n.º 4 do mesmo artigo, só podem proceder ao recrutamento de trabalhadores para a constituição de vínculos de emprego por tempo indeterminado ou a termo nos termos do disposto no decreto-lei de execução orçamental.
2 - As empresas do setor público empresarial só podem proceder ao recrutamento de trabalhadores para a constituição de vínculos de emprego por tempo indeterminado ou a termo nos termos do disposto no decreto-lei de execução orçamental.
3 – (…)
4 - (…)
5 - (…)
6 - As contratações de trabalhadores efetuadas em violação do disposto no presente artigo são nulas.»
De acordo com o artigo 54.º da mesma lei, “[e]
m 2019, as empresas do setor empresarial do Estado prosseguem uma política de ajustamento dos seus quadros de pessoal, adequando-os às efetivas necessidades de uma organização eficiente, só podendo ocorrer aumento do número de trabalhadores nos termos do disposto no decreto-lei de execução orçamental
”.
Segundo a LOE para 2019, o recrutamento de trabalhadores para a constituição de vínculos de emprego por tempo indeterminado por parte das empresas públicas empresariais só poderia, assim, ser feito nos termos do disposto no decreto-lei de execução orçamental.
O Decreto-Lei n.º 84/2019, de 28 de Junho, que veio estabelecer as normas de execução orçamental relativamente ao Orçamento do Estado para 2019 (DLEO de 2019), dispôs no seu artigo 157.º, relativo justamente à contratação de trabalhadores por pessoas colectivas de direito público e empresas do sector público empresarial, que:
«1 - As pessoas coletivas de direito público, ainda que dotadas de autonomia administrativa ou de independência estatutária, designadamente aquelas a que se refere o n.º 3 do artigo 3.º da Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto, na sua redação atual, e as empresas do setor público empresarial podem proceder à celebração de acordos de cedência de interesse público com trabalhadores de entidades abrangidas pelo âmbito de aplicação da LTFP e ao recrutamento de trabalhadores para a constituição de vínculos de emprego por tempo indeterminado, ou a termo, bem como para a conversão de contratos a termo em contratos por tempo indeterminado, no âmbito da autonomia de gestão, desde que expressamente autorizados no ato de aprovação do plano de atividades e orçamento.
2 –
(…)
3 -
(…)
4 -
(…)
5 - Nos casos não abrangidos pelos números anteriores, o membro do Governo responsável pela área das finanças, após despacho favorável do membro do Governo responsável pela respetiva área setorial, pode ainda autorizar, em situações excecionais devidamente sustentadas na análise custo-benefício efetuada pelas entidades, com fundamento na existência de relevante interesse público, ponderada a carência dos recursos humanos e a evolução global dos mesmos, o recrutamento de trabalhadores, desde que se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:
a) Os encargos decorrentes do recrutamento estejam incluídos na proposta de orçamento anual e plurianual, evidenciando o impacto no ano da contratação e no respetivo triénio, com identificação do montante remuneratório dos trabalhadores a contratar, tendo por referência a base da carreira profissional prevista em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho ou em regulamento interno, quando existam;
b) O recrutamento seja considerado imprescindível, tendo em vista a prossecução das atribuições e o cumprimento das obrigações de prestação de serviço público da respetiva entidade;
c) Seja impossível satisfazer as necessidades por recurso a pessoal que já se encontre colocado, à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, em situação de valorização profissional ou ao abrigo de outros instrumentos de mobilidade;
d) Cumprimento, atempado e integral, dos deveres de informação previstos na Lei n.º 57/2011, de 28 de novembro, na sua redação atual.
6 -
(…)
7 - Para efeitos da emissão da autorização prevista no n.º 5, as entidades enviam aos membros do Governo responsáveis pela respetiva área setorial os elementos comprovativos da verificação daqueles requisitos e da respetiva submissão, no Sistema de Recolha de Informação Económica e Financeira, ou, quando não disponham de acesso a este sistema, do envio à DGTF, em formato eletrónico, no caso das empresas do setor público empresarial, ou no SIGO, ou, quando não disponham de acesso a este sistema, do envio à DGAEP, em formato eletrónico, no caso das pessoas coletivas de direito público.
8 -
(…)
9 -
(…)
10 - O disposto no n.º 5 não se aplica ao recrutamento de trabalhadores para a constituição de vínculos de emprego com duração até seis meses, incluindo renovações, ao abrigo da Lei n.º 4/2008, de 7 de fevereiro, na sua redação atual, sendo a autorização da competência do respetivo órgão de direção ou administração, desde que verificados os requisitos previstos nas alíneas a), b) e d) do referido número.
11 -
(…)
12 - São nulas as contratações de trabalhadores efetuadas em violação do disposto nos números anteriores.
13 - O disposto no presente artigo prevalece sobre todas as disposições legais, gerais ou especiais, contrárias.»
Deste artigo 157.º do DLEO de 2019 decorre que as empresas do setor público empresarial apenas podem proceder ao recrutamento de trabalhadores para a constituição de vínculos de emprego por tempo indeterminado, ou a termo, bem como para a conversão de contratos a termo em contratos por tempo indeterminado, no âmbito da autonomia de gestão, desde que expressamente autorizados.
Nos termos do artigo 210.º do mesmo DLEO para o ano de 2019, o diploma
“produz efeitos à data da entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado, salvo se disposto em contrário nos artigos antecedentes, e até à entrada em vigor do decreto-lei de execução orçamental para 2020”
.
Uma vez que a LOE de 2019 entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2019 (artigo 351.º), é de considerar que o DLOE de 2019 tem a sua vigência reportada a essa data.
Não restando dúvidas de que nesse período – no ano de 2019 –, a contratação de trabalhadores pelas empresas públicas e entidades públicas empresariais do sector empresarial do Estado, isto é, a celebração de contratos de trabalho, quer por tempo indeterminado quer a termo, depende de autorização governamental e desde que estejam verificados, cumulativamente, determinados requisitos, sob pena de nulidade do próprio acto de contratação, sobrepondo-se este vício a todas as outras normas legais, o que, atenta a generalidade da previsão, abrange as normas que no Código do Trabalho enformam o regime jurídico do contrato individual de trabalho.
A Lei n.º 2/2020, de 31 de Março (que aprovou o Orçamento do Estado para 2020 e entrou em vigor em 1 de Abril de 2020 – artigo 430.º) veio dispor no seu artigo 50.º em termos similares ao artigo 53.º da LOE de 2019, o mesmo sucedendo com o artigo 59.º da Lei n° 75-B12020, de 31 de Dezembro (que aprovou o Orçamento de Estado para 2021 e entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2021 – artigo 445º) e com a Lei n.º 12/2022, de 27 de Junho (que aprovou o Orçamento de Estado para 2022 e entrou em vigor em 28 de Junho de 2022 – artigo 338.º).
Ou seja, no âmbito de todas estas leis orçamentais (LOE) o recrutamento de trabalhadores para a constituição de vínculos de emprego por tempo indeterminado por parte das empresas públicas empresariais só poderia ser feito nos termos do disposto no decreto-lei de execução orçamental, sob pena de nulidade.
Quanto aos decretos lei de execução orçamental (DLEO) para que remetem estas Leis de Orçamento de Estado (LEO), verifica-se que depois do DLEO de 2019 não foram publicados outros decretos lei de execução orçamental relativamente às subsequentes Leis do Orçamento de Estado, apenas sendo publicado em 12 de Agosto de 2022 o Decreto-Lei n.° 53/2022 a estabelecer as disposições necessárias à execução do Orçamento do Estado para o ano 2022, aprovado pela Lei n.º 12/2022, de 27 de Junho.
O decreto lei de execução orçamental de 2022 aprovado pelo Decreto-Lei n.° 53/2022 (DLEO de 2022) entrou em vigor em 28 de Junho de 2022, data da entrada em vigor da LOE de 2022 – artigo 167.º.
E estabeleceu no seu artigo 141.º, relativo à contratação de trabalhadores por pessoas coletivas de direito público e empresas do setor público empresarial, de modo similar ao artigo 157.º do DLEO de 2019, que:
«1 - As pessoas coletivas de direito público, ainda que dotadas de autonomia administrativa ou de independência estatutária, e as empresas do setor público empresarial podem proceder, no âmbito da respetiva autonomia de gestão, ao recrutamento de trabalhadores para a constituição de vínculos de emprego por tempo indeterminado, ou a termo, à conversão de contratos a termo em contratos por tempo indeterminado, bem como à celebração de acordos de cedência de interesse público com trabalhadores de entidades abrangidas pelo âmbito de aplicação da LTFP, desde que expressamente autorizados no ato de aprovação do plano de atividades e orçamento.
2 - A proposta de plano de atividades e orçamento deve ser acompanhada do mapa de pessoal da entidade, com a caracterização dos respetivos postos de trabalho, desagregados por carreira, categoria e área de especialidade, quando aplicável, evidenciando os postos previstos, ocupados e não ocupados.
3 - O recrutamento a que se refere o n.º 1 deve ser devidamente sustentado na análise custo-benefício integrada no plano de atividades e orçamento aprovado, devendo no momento do recrutamento, estar reunidos os seguintes requisitos, sendo o comprovativo dos mesmos submetido no Sistema de Recolha de Informação Económica e Financeira (SIRIEF):
a) A proposta de orçamento anual e plurianual ter incluídos os encargos decorrentes do recrutamento, evidenciando o impacto no ano da contratação e no respetivo triénio, com identificação do montante remuneratório dos trabalhadores a contratar, tendo por referência a base da respetiva carreira e categoria profissional prevista em instrumento de regulamentação coletiva de trabalho ou em regulamento interno, ou, quando não exista, a menor remuneração base que vinha sendo paga na empresa para o exercício da mesma categoria profissional, devendo esta assegurar a inexistência de práticas discriminatórias em matéria salarial;
b) Existência de dotação orçamental para despesas com pessoal;
c) O recrutamento seja considerado imprescindível, tendo em vista a prossecução das atribuições e o cumprimento das obrigações de prestação de serviço público da respetiva entidade;
d) Ser impossível satisfazer a necessidade de recrutamento identificada, por recurso a trabalhadores que, à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, já se encontrem colocados em situação de valorização profissional ou ao abrigo de outros instrumentos de mobilidade, salvo no caso de empresas do setor empresarial do Estado;
e) Cumprimento, atempado e integral, dos deveres de informação previstos na Lei n.º 104/2019, de 6 de novembro;
f) Cumprimento dos demais requisitos legais aplicáveis.
4 - Nos casos não abrangidos pelos números anteriores e em situações excecionais devidamente sustentadas na análise custo-benefício efetuada pelas entidades, com fundamento na existência de relevante interesse público, ponderada a carência dos recursos humanos e a evolução global dos mesmos, o membro do Governo responsável pela área das finanças, após despacho favorável do membro do Governo responsável pela respetiva área setorial, pode ainda autorizar o recrutamento de trabalhadores, desde que se verifiquem cumulativamente os requisitos previstos no número anterior e o plano de atividades e orçamento esteja aprovado ou a respetiva proposta tenha sido submetida, cumprindo as instruções para o efeito, na sua forma completa e corretamente instruída, tendo sido objeto de parecer favorável do órgão de fiscalização.
5 - O disposto no número anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, à celebração de acordos de cedência de interesse público com trabalhadores de entidades abrangidas pelo âmbito de aplicação da LTFP, ao abrigo dos quais devem ser celebrados, com a entidade cessionária, contratos de trabalho a termo resolutivo, no âmbito do Código do Trabalho aprovado em anexo à Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, na sua redação atual.
6 - Para efeitos da emissão da autorização prevista no n.º 4, as entidades enviam aos membros do Governo responsáveis pela respetiva área setorial os elementos comprovativos da verificação daqueles requisitos e da respetiva submissão, no SIRIEF, ou, quando não disponham de acesso a este sistema, do envio à DGTF, em formato eletrónico, no caso das empresas do setor empresarial do Estado, ou no SIGO, no caso das pessoas coletivas de direito público.
7 - Atentas as especificidades inerentes às entidades públicas empresariais integradas no SNS, adicionalmente à autonomia de gestão conferida pelo n.º 1, e sem prejuízo das disposições constantes do Estatuto do SNS, pode ser concedida uma autorização excecional de recrutamento, fixada globalmente e por grupo profissional, com desagregação por entidade e por área de especialidade, quando aplicável, por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da saúde, desde que, cumpridos os necessários requisitos legais, os encargos resultantes desses recrutamentos se encontrem previstos no orçamento aprovado de cada entidade, não sendo aplicável os n.os 4 e 5.
8 - O disposto no n.º 3 é igualmente aplicável aos recrutamentos previstos no n.º 3 do artigo 40.º da Lei do Orçamento do Estado.
9 - O disposto no n.º 4 não se aplica ao recrutamento de trabalhadores para a constituição de vínculos de emprego com duração até seis meses, incluindo renovações, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 105/2021, de 29 de novembro, sendo da competência do respetivo órgão de direção ou administração a respetiva autorização, bem como, em casos excecionais, a prorrogação daquele prazo por mais seis meses, desde que verificados os requisitos previstos nas alíneas a), b), c), e) e f) do n.º 3.
10 - O disposto nos números anteriores aplica-se ao setor empresarial local, com as devidas adaptações, nos termos do disposto na Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto, na sua redação atual.
11 - São nulas as contratações de trabalhadores efetuadas em violação do disposto nos números anteriores.
12 - O disposto no presente artigo prevalece sobre todas as disposições legais, gerais ou especiais, contrárias.
No que concerne ao período intermédio entre os decretos lei de execução orçamental de 2019 e 2022, em que não foram aprovados decretos lei de execução orçamental para os anos de 2020 e 2021, há ainda que atentar no que estabelece a Lei de Enquadramento Orçamental (LEO), aprovada pela Lei n.º 151/2015, de 11 de Setembro – com as alterações introduzidas pela Lei n.º 2/2018, de 29 de Janeiro, pela Lei n.º 37/2018, de 7 de Agosto, pela Lei n.º 41/2020, de 18 de Agosto e pela Lei n.º 10-B/2022, de 28 de Abril
[3]
, lei de valor reforçado.
É o seguinte o teor do artigo 58.º da Lei n.º 151/2015 (LEO):
«
Artigo 58.º
Regime transitório de execução orçamental
1 - A vigência da lei do Orçamento do Estado é prorrogada quando se verifique:
a) A rejeição da proposta de lei do Orçamento do Estado;
b) A tomada de posse do novo Governo, se esta tiver ocorrido entre 1 de julho e 30 de setembro;
c) A caducidade da proposta de lei do Orçamento do Estado em virtude da demissão do Governo proponente;
d) A não votação parlamentar da proposta de lei do Orçamento do Estado.
2 - A prorrogação da vigência da lei do Orçamento do Estado abrange o respetivo articulado e os correspondentes mapas, bem como decretos-leis de execução orçamental.
3 - A prorrogação da vigência da lei do Orçamento do Estado não abrange:
a) As autorizações legislativas contidas no seu articulado que, de acordo com a Constituição ou os termos em que foram concedidas, devam caducar no final do ano económico a que respeitava a lei;
b) A autorização para a cobrança das receitas cujos regimes se destinavam a vigorar apenas até ao final do ano económico a que respeitava aquela lei;
c) A autorização para a realização das despesas relativas a programas que devam extinguir-se até ao final do ano económico a que respeitava aquela lei.
4 - Durante o período transitório em que se mantiver a prorrogação de vigência da lei do Orçamento do Estado respeitante ao ano anterior, a execução mensal dos programas em curso não pode exceder o duodécimo da despesa total da missão de base orgânica, com exceção das despesas referentes a prestações sociais devidas a beneficiários do sistema de segurança social e das despesas com aplicações financeiras.
5 - Durante o período transitório em que se mantiver a prorrogação de vigência da lei do Orçamento do Estado respeitante ao ano anterior, o Governo pode:
a) Emitir dívida pública fundada, nos termos previstos na respetiva legislação;
b) Conceder empréstimos e realizar outras operações ativas de crédito, até ao limite de um duodécimo do montante máximo autorizado pela lei do Orçamento do Estado em cada mês em que a mesma vigore transitoriamente;
c) Conceder garantias pessoais, nos termos previstos na respetiva legislação.
6 - As operações de receita e de despesa executadas ao abrigo do regime transitório são imputadas às contas respeitantes ao novo ano económico iniciado em 1 de janeiro.
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os decretos-leis de execução das leis do Orçamento do Estado que entrem em vigor com atraso estabelecem os procedimentos a adotar.»
Já especificamente quanto ao ano de 2022, o Decreto-Lei n.° 126-C/2021, de 31 de Dezembro, veio regulamentar o regime transitório de execução orçamental previsto no artigo 58.º da Lei de Enquadramento Orçamental (LEO) com a prorrogação da vigência da LOE de 2021 (Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro) com efeitos a 1 de Janeiro de 2022 e até à entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para 2022.
Este Decreto-Lei n.° 126-C/2021, de 31 de Dezembro, tem o seguinte articulado:
«Artigo 1.º
Objeto
O presente decreto-lei regulamenta o regime transitório de execução orçamental previsto no artigo 58.º da Lei de Enquadramento Orçamental (LEO), aprovada em anexo à Lei n.º 151/2015, de 11 de setembro, na sua redação atual.
Artigo 2.º
Regime transitório de execução orçamental
1 - O orçamento transitório tem como referência as verbas fixadas nos mapas orçamentais que especificam as despesas, aprovados pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, na sua redação atual, ajustados das alterações orçamentais ocorridas durante a execução orçamental do ano de 2021 decorrentes de alterações orgânicas do Governo e da estrutura dos serviços.
2 - Durante a vigência do regime transitório, a execução do orçamento das despesas deve obedecer ao regime duodecimal, considerando a despesa total da missão de base orgânica, com exceção das despesas previstas no n.º 4 do artigo 58.º da LEO.
3 - O cumprimento do regime duodecimal concretiza-se através da fixação mensal dos fundos disponíveis previstos na Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro, na sua redação atual, e no Decreto-Lei n.º 127/2012, de 21 de junho, na sua redação atual.
4 - A Direção-Geral do Orçamento estabelece as orientações necessárias à execução do regime transitório de execução orçamental, incluindo as aplicáveis àquela Direção-Geral e às entidades coordenadoras dos programas orçamentais, sendo as mesmas divulgadas e publicitadas no seu sítio da Internet.
Artigo 3.º
Regime excecional de execução orçamental do Plano de Recuperação e Resiliência
O regime transitório de execução orçamental previsto no presente decreto-lei não prejudica o regime excecional de execução orçamental e de simplificação de procedimentos dos projetos aprovados no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência previsto no Decreto-Lei n.º 53-B/2021, de 23 de junho.
Artigo 4.º
Produção de efeitos
O presente decreto-lei produz efeitos a 1 de janeiro de 2022.
Artigo 5.º
Entrada em vigor e vigência
O presente decreto-lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação e vigora até à entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para 2022.»
À data da vinculação do recorrido – 10 de Janeiro de 2022 – estava em vigor a LOE de 2021 (Lei n.º 75-B/2020), por via desta prorrogação da sua vigência, e uma vez que a LOE de 2022 (Lei n.º 12/2022) apenas entrou em vigor em 28 de Junho de 2022.
Quanto a esta asserção, não há dissídio entre as partes.
Já no que concerne ao diploma de execução orçamental, alega a recorrente que o Decreto-Lei de execução orçamental para 2019 se manteve em vigor durante o período de 10 de Janeiro a 9 de Julho de 2022, nos termos do art. 58°, da Lei n° 151/2015, por não ter entretanto sido aprovado novo Decreto-Lei de execução orçamental, para os Orçamentos de Estado de 2020 e 2021, e, como acrescenta na resposta à notificação que lhe foi feita por iniciativa da ora relatora nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, porque nos termos do artigo 210.º do Decreto-Lei de execução orçamental para 2019, o mesmo produziria efeitos até à entrada em vigor do Decreto-Lei de execução orçamental para 2020, o que nunca chegou a acontecer pelo que o Decreto-Lei de execução orçamental para 2019 não deixou de vigorar, conforme entendimentos da Direcção Geral do Orçamento que também invoca.
E daqui conclui que o contrato de trabalho celebrado entre as partes não pode considerar-se por tempo indeterminado e deve improceder o pedido de reconhecimento de um contrato sem termo entre as partes.
O recorrido, aceitando que por força do artigo 58.º, n.º 1, da Lei n.º 151/2015, a LOE de 2021 se manteve em vigor no ano de 2022 no período relevante para a determinação do regime jurídico aplicável ao presente caso, alega por seu turno que o que artigo 58.º determina é a prorrogação da vigência da Lei do Orçamento de Estado, que abrange os decretos-lei de execução orçamental. E daí conclui,
a contrario
, que a cessação da vigência da Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2019 determinou, igualmente, a cessação da vigência do respectivo decreto-lei de execução orçamental, não havendo base legal para considerar que o decreto lei de execução orçamental de 2019 se manteve em vigor em 2022, ainda que não tenha sido aprovado um novo decreto lei de execução orçamental entretanto, pelo que não têm aplicação as regras do decreto lei de execução orçamental de 2019.
Entendemos que assiste razão ao recorrido.
Com efeito, quer a aprovação, quer a execução do Orçamento de Estado têm uma base anual, como decorre do disposto no artigo 106.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “[a]
lei do Orçamento é elaborada, organizada, votada e executada, anualmente, de acordo com a respectiva lei de enquadramento, que incluirá o regime atinente à elaboração e execução dos orçamentos dos fundos e serviços autónomos
”.
A aprovação do OE é competência da Assembleia da República [art. 161.º, alínea g) da CRP] e a aprovação do decreto-lei de execução orçamental é da competência do Governo, ao qual cabe definir em cada ano, e por referência à LOE que tiver sido aprovada, as condições normativas para a sua execução e as condições que concretizam as normas da LOE que necessitem da sua mediação para serem executadas. Segundo o artigo 53.º da Lei de Enquadramento Orçamental (Lei n.º 151/2015):
«
1 - O Governo define por decreto-lei as operações de execução orçamental da competência dos membros do Governo e dos dirigentes dos serviços sob sua direção ou tutela.
2 - Em cada ano, o Governo estabelece, por decreto-lei, as normas de execução do Orçamento do Estado, incluindo as relativas ao orçamento dos serviços e entidades dos subsetores da administração central e da segurança social respeitante ao ano em causa, sem prejuízo da aplicação imediata das normas da presente lei que sejam exequíveis por si mesmas.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, o Governo deve aprovar num único decreto-lei as normas de execução do Orçamento do Estado, incluindo as relativas ao orçamento dos serviços e entidades dos subsetores da administração central e da segurança social.
(…)
6 - O decreto-lei a que se referem os n.os 2 e 5 é aprovado até ao décimo quinto dia após a entrada em vigor da lei do Orçamento do Estado».
Deste enquadramento normativo resulta que a vigência do decreto-lei de execução orçamental se encontra limitada pela própria vigência do orçamento a cujas normas visa dar execução
[4]
.
Especificamente o decreto-lei de execução orçamental para 2019 (Decreto-Lei n.° 84/2019), indica logo no seu artigo 1.º que “
estabelece as disposições necessárias à execução do Orçamento do Estado para 2019, aprovado pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado)”
, e dispõe no seu artigo 210.º que “
produz efeitos à data da entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado salvo se disposto em contrário nos artigos antecedentes”
[5]
, e “
até à entrada em vigor do decreto-lei de execução orçamental para 2020
”.
Está, pois, claramente expresso o seu carácter anual, quer ao traçar o âmbito material do diploma por referência à execução da LOE de 2019, quer ao situar o início dos seus efeitos na entrada em vigor desta LOE de 2019, quer ao fazer coincidir o respectivo termo com a entrada em vigor do decreto-lei de execução orçamental para 2020, o que seria expectável que acontecesse no início do ano de 2020, em conformidade com o comando legislativo dirigido ao Governo pelo artigo 53.º, n.º 2, da LEO de, “
em cada ano
”, estabelecer por decreto-lei, as normas de execução do Orçamento do Estado.
Esta limitação temporal da vigência do Decreto-Lei n.° 84/2019 é conforme com o denominado princípio da anualidade orçamental que resulta do artigo 106.º da Constituição República Portuguesa (ao prescrever ser o orçamento “
anual
”) e se mostra também plasmado no artigo 14.º, n.ºs 1 e 2, da Lei do Enquadramento Orçamental
[6]
, com a única excepção de a vigência do Orçamento de um ano ser prorrogada no regime de duodécimos para o ano seguinte nos termos do artigo 58.º da Lei de Enquadramento Orçamental acima transcrito, prorrogando-se nestas circunstâncias também o DLEO a ele respeitante. Mas não foi isso o que aconteceu no ano de 2020 no que diz respeito à LOE de 2019, nem tal aconteceu em 2021 com a LOE de 2020, pois que em ambos os anos – 2020 e 2021 – foram aprovadas Leis de Orçamento de Estado (as Leis n.ºs 2/2020 e 25-B/2020, acima citadas).
A circunstância de não ter chegado a ser publicado um decreto-lei de execução orçamental para 2020 (em desconformidade com o que prescreve o artigo 53.º da LEO), não significa que o DLEO de 2019 se mantenha vigente
ad eternum
, em contramão com as assinaladas indicações legislativas que reconduzem a vigência de cada decreto-lei de execução orçamental à vigência da Lei de Orçamento de Estado que visa executar, e atento o âmbito material traçado no artigo 1.º do diploma, que se circunscreve às “
disposições necessárias à execução do Orçamento do Estado para 2019, aprovado pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado)”.
Não sofre dúvida que a LOE de 2021 (aprovada pela Lei n.º 25-B/2020) viu prorrogada a sua vigência para o ano económico de 2022 através do Decreto-Lei n.°126-C/2021, acima transcrito, e produziu efeitos até à entrada em vigor da LOE de 2022 (em 28 de Junho desse ano), por se ter verificado inicialmente a rejeição da proposta de LOE para 2022, situação prevista na alínea a), do n.º 1, do artigo 58.º da LEO – cfr. os artigos 2.º, 4.º e 5.º do Decreto-Lei n.°126-C/2021.
Mas esta prorrogação da vigência da LOE de 2021 para o ano de 2022 não autoriza, a nosso ver, a conclusão da recorrente de que o DLEO de 2019 tenha igualmente produzido efeitos naquele período de tempo com invocação do disposto no artigo 58.º, n.º 4 da LEO, ao menos no que concerne à matéria em análise nos presentes autos.
Na verdade, o artigo 58.º, n.º 4 da LEO (Lei n.º 151/2015), ao dispor que “[a]
prorrogação da vigência da lei do Orçamento do Estado abrange o respetivo articulado e os correspondentes mapas, bem como decretos-leis de execução orçamental”,
tem naturalmente em vista o articulado da LOE cuja vigência prorroga – no caso o OE de 2021 –, bem como os correspondentes mapas e decretos-leis de execução orçamental, nada autorizando que o intérprete recue tal abrangência a mapas e decretos-leis de execução orçamental relativos a anos anteriores, ainda que no ano em causa os mesmos não existissem.
A cessação da vigência da LOE de 2019 implicou a cessação da vigência (ou caducidade) do DLEO de 2019, inexistindo, a nosso ver, fundamento para se sustentar, sem um comando normativo expresso, que o DLEO de 2019 se mantinha em vigor no primeiro semestre de 2022, a par da Lei do Orçamento de Estado de 2021 que em tal período temporal viu prorrogada a sua vigência em conformidade com o artigo 58.º da LEO.
O que o artigo 58.º, n.º 4 da Lei de Enquadramento Orçamental determina é que a prorrogação da vigência da Lei do Orçamento de Estado “
abrange”
os respectivos articulado, mapas e decretos-lei de execução orçamental, pelo que à prorrogação da LOE de 2021 não pode conceder-se o alcance de implicar a prorrogação da vigência do DLEO relativo à LOE de 2019.
Como bem nota o recorrido, a cessação da vigência da Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2019 determinou, igualmente, a cessação da vigência do respectivo Decreto-Lei de execução orçamental. Salvo o devido respeito, não vislumbramos base legal para considerar que o Decreto-Lei de execução do orçamento de Estado de 2019 se manteve em vigor em 2022, ainda que não tenham sido, entretanto, aprovados novos decretos-lei de execução orçamental para os OE’s de 2020 e de 2021, já que tais vicissitudes que não podem contender com o tempo de vigência das leis.
Recorde-se que a referência que o DLEO de 2019 faz no respectivo artigo 210.º a que inicia os seus efeitos com a vigência da LOE de 2019 e os termina com o DLEO de 2020 (não com um qualquer decreto-lei de execução orçamental posterior, ainda que surgisse apenas muitos anos depois, mas com o relativo ao OE do ano imediatamente subsequente, que identifica por referência à numeração), é expressiva no sentido da sua relação umbilical com o OE de 2019. O que é conforme com o princípio da anualidade orçamental plasmado nos artigos 106.º da Lei Fundamental e 14.º da Lei de Enquadramento Orçamental e impede, salvo o devido respeito, a interpretação feita pela recorrente e pelas Circulares da Direcção Geral do Orçamento que a mesma cita
[7]
.
Assim, a nosso ver, não pode considerar-se que a prorrogação da vigência da LOE de 2021 nos termos do preceituado no artigo 58.º, n.º 4 da Lei de Enquadramento Orçamental seja susceptível de abranger, também, a prorrogação da vigência do DLEO de 2019, pelo que, não tendo aplicação as regras do DLEO de 2019, a remissão operada pelo artigo 59.º, n.º 2, da Lei do Orçamento do Estado de 2021 – esta sim aplicável ao período em apreço por força da prorrogação determinada pelo Decreto-Lei n.° 126-C/2021 –, não encontra concretização em qualquer diploma de execução orçamental.
Ou seja, no lapso temporal compreendido entre 1 de Janeiro e 28 de Junho de 2022 inexistia no nosso ordenamento jurídico o obstáculo das sucessivas leis orçamentais à contratação de trabalhadores por parte das entidade públicas empresariais, na medida em que a remissão do artigo 59.º, n.º 2 da LOE de 2021 – então em vigor em duodécimos – para o Decreto-Lei de execução orçamental, era uma remissão sem objecto.
E assim se conclui que à data do início do vínculo laboral que se estabeleceu entre as partes – em 10 de Janeiro de 2022 – não havia fonte jurídica de onde decorresse a nulidade do contrato então firmado e que viria a ser considerado um contrato de trabalho sem termo à luz do regime jurídico do Código do Trabalho.
Não se acompanha, pois, a recorrente quando a mesma afirma que, por via das disposições orçamentais aplicáveis à relação entre as partes e da ausência de autorização governamental, o contrato de trabalho não poderia vigorar por período superior a seis meses e se deve considerar nulo após esse período.
Cabe lembrar que as regras de execução orçamental até ao DLEO de 2019, ao cominarem com a nulidade a celebração de vínculos laborais não precedidos de autorização governamental, constituem um desvio ao regime jurídico emergente da lei geral do trabalho e uma restrição à autonomia contratual por razões de contenção orçamental, pelo que são de natureza excepcional.
O que não consente ao intérprete a procura de norma aplicável a casos análogos (por, de algum modo, entender que neste caso omisso procedem as razões justificativas da regulamentação de caso previsto na lei), muito menos lhe autorizando que resolva a situação segundo a norma que ele próprio criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema – cfr. os artigos 10.º e 11.º do Código Civil – ainda que à semelhança do prescrito em anteriores DLEO’s com uma vigência limitada no tempo e circunscrita às Leis do Orçamento de Estado dos anos a que se reportavam.
A entender-se que existe uma incompletude, é a própria lei (o artigo 11.º do CC) que exclui a viabilidade do recurso à via metodológica integradora em face da natureza excepcional da norma
[8]
.
Deve acrescentar-se que o facto de em 28 de Junho de 2022 ter entrado em vigor a LOE de 2022 e de o respectivo DLEO, que veio a ser publicado em 12 de Agosto desse ano (Decreto-Lei n.° 53/22), contemplar no seu artigo 141.º exigência de autorização governamental similar à contida no artigo 157.º do DLOE de 2019, cominando com a nulidade do vínculo a sua falta, não acarreta a impossibilidade de se considerar sem termo o contrato de trabalho em vigor entre as partes desde 10 de Janeiro desse ano.
Com efeito, a questão da nulidade em análise deve-se perspectivar com referência à data do início da relação laboral, pois é por reporte a essa data que se considera sem termo o contrato celebrado. Além disso, o DLEO para 2022, apesar de reportar a sua vigência a 28 de Junho de 2022, data da entrada em vigor da LOE de 2022 (veja-se o seu art. 167.º, n.º 1), foi publicado apenas em 12 de Agosto de 2022, não havendo forma de as partes conhecerem as suas normas antes dessa data e conformarem com as mesmas o seu comportamento.
Em suma, inexistindo em 10 de Janeiro de 2022 o invocado obstáculo das sucessivas leis orçamentais à contratação de trabalhadores por parte das entidade públicas empresariais, nada obsta à aplicação da norma do artigo 147.º, n.º 1, alínea c), do Código do Trabalho, ao contrato de trabalho que, a partir daquela data, se firmou entre as partes.
O que implica a procedência da pretensão do recorrido tal como decidido pelo tribunal
a quo
, cujos fundamentos com alicerce no regime jurídico do Código do Trabalho – para além da irrelevância do prescrito nas leis orçamentais – não foram postos em causa na apelação.
Não merece provimento o recurso.
*
4.2. Uma vez que se respondeu negativamente à questão colocada de saber se, por força das leis do orçamento e de execução orçamental que a recorrente invoca, não podia considerar-se firmado um contrato de trabalho sem termo entre as partes a partir de 10 de Janeiro de 2022, queda prejudicada a análise do pretendido aditamento à matéria de facto, por não contender com a decisão do recurso, que não deixará de ser a mesma.
Fica também prejudicada a análise da questão de saber se a norma do artigo 157.°, do DLEO para o ano de 2019, interpretada no sentido de que se sobrepõe à norma do artigo 147.°, n.° 1, al. c), do Código do Trabalho, padece de inconstitucionalidade orgânica por falta de autorização legislativa para o efeito.
Não se conhecerá, pois, destas questões – cfr. o artigo 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 663.º, n.º 2 do mesmo diploma legal e ambos
ex vi
do artigo 1.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo do Trabalho.
*
4.3. Atendendo ao princípio do decaimento, as custas do recurso interposto da sentença final (que genericamente englobam a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte) devem recair sobre a recorrente (artigo 527.º do Código de Processo Civil). Contudo, a recorrente pagou já a taxa de justiça com a apresentação das alegações e não há encargos a contar neste recurso que, para efeitos de custas processuais, configura um processo autónomo (artigo 1.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais), pelo que a condenação é restrita às custas de parte que haja.
*
5. Decisão
Em face do exposto:
5.1. não se conhece da impugnação de facto deduzida;
5.2. nega-se provimento à apelação e confirma-se a sentença da 1.ª instância.
Condena-se a recorrente nas custas de parte que haja.
Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, anexa-se o sumário do presente acórdão.
Lisboa, 15 de Janeiro de 2024
Maria José Costa Pinto
Alves Duarte
Paula Pott
_______________________________________________________
[1]
Entre muitos outros, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2024.04.12, Processo n.º 835/15.0T8LRA.C4.S1-A e de 2023.11.03, Processo n.º 835/15.0T8LRA.C4.S1, in
www.dgsi.pt
.
[2]
Vide neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22 de Junho de 2022, Processo 7379/20.6T8LSB.L1-4, in
www.dgsi.pt
. Não se analisa ainda, a este passo, a licitude da cominação nelas estabelecida para o incumprimento das suas prescrições.
[3]
A alteração da LEO resultante desta lei é convocável no caso
sub judice,
na medida em que a lei produz efeitos a 1 de Janeiro de 2022 (artigo 3.º), pelo que, ainda que se publicação posterior ao estabelecimento do vínculo contratual em análise, produz efeitos a data anterior ao mesmo.
[4]
Vide neste sentido Hugo Flores da Silva no seu artigo “
O regime excecional de execução orçamental e de simplificação de procedimentos dos projetos aprovados no âmbito do PRR
”, in Revista de Direito Administrativo, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa (AAFDL), Dez-2021, p. 57.
[5]
Reportados a casos específicos sem relevo para o caso
sub judice
.
[6]
Este artigo 14.º, sob a epígrafe “
Anualidade e plurianualidade
”, dispõe que: “
1 - O Orçamento do Estado e os orçamentos dos serviços e das entidades que integram o setor das administrações públicas são anuais. 2 - Os orçamentos dos serviços e das entidades que compõem os subsetores da administração entral e da segurança social integram os programas orçamentais e são enquadrados pela Lei das Grandes Opções em matéria de Planeamento e da Programação Orçamental Plurianual. 3 - O ano económico coincide com o ano civil. 4 - O disposto nos números anteriores não prejudica a possibilidade de existir um período complementar de execução orçamental, nos termos previstos no decreto-lei de execução orçamental.”
[7]
No sentido de que a extensão de efeitos de um decreto-lei de execução orçamental e a sua aplicação à execução de orçamentos de anos subsequentes não pode ser feita por via de circular administrativa, vide Hugo Flores da Silva, in ob. e loc. citados.
[8]
Vide João Baptista Machado, in
Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador,
(18 ª Reimpressão), Coimbra, 2010, pp. 192 e ss.
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/630a09a9b511eb3880258c1a003ff26e?OpenDocument
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1,754,352,000,000
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REJEITADO O RECURSO
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259/23.5T8VNG.P1
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259/23.5T8VNG.P1
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JUDITE PIRES
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I - A reprodução integral e ipsis verbis do alegado no corpo das alegações, mesmo que seguida da menção de “conclusões” não traduz a formulação de conclusões nos termos exigidos pelo n.º 1 do artigo 637.º do Código de Processo Civil.
II - Havendo esse procedimento de ser equiparado a ausência de conclusões, deverá ser logo rejeitado o recurso, sem lugar a prévio despacho de aperfeiçoamento, nos termos do artigo 641.º, n.º1, al. b) do CPC.
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[
"RECURSO",
"REPRODUÇÃO INTEGRAL DA MOTIVAÇÃO NAS CONCLUSÕES",
"REJEIÇÃO"
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Processo n.º 259/23.5T8VNG.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia – ...
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO.
AA, residente na Rua ... ..., intentou acção de condenação, sob a forma comum de processo, contra A..., GESTÃO E ASSESSORIA DE CARREIRAS DESPORTIVAS, LDA, com sede na Rua ..., ... ..., e BB, residente na Rua ..., B, r/c A, ... ..., pedindo:
a) Que se declare a inexistência do contrato de intermediação de carreira desportiva com data falsa de 7.02.2022;
b) Subsidiariamente, que seja declarada a nulidade do contrato de intermediação de carreira desportiva com data falsa de 7.02.2022 porque (i) configura fraude à lei e (ii) porque viola disposições de carácter imperativo;
c) Subsidiariamente, que seja declarada a resolução por justa causa do contrato de intermediação de carreira desportiva com data falsa de 7.02.2022 por violação das obrigações contratuais da primeira e do segundo Réu;
Para tanto alega, em síntese, que é jogador de futebol e que desde os seus 15 anos que CC, e posteriormente, a primeira Ré, lhe prestaram serviços de intermediação, aquisição de direitos de inscrição e representação, tendo sido celebrados desde o ano de 2011 diversos contratos de gestão de carreira profissional de futebol.
Mais alega que a primeira Ré é controlada de facto pelo CC, que toma todas as decisões de gerência, nomeadamente as relativas às negociações contratuais dos jogadores que aquela sociedade representa, nos termos que descreve.
Porém, ainda que o referido CC, pelas razões que descreve, não pudesse ser formalmente parte nesses contratos, era este que prestava e coordenava os serviços em causa.
Mais alega que entre si e os Réus foi celebrado, em 5.02.2020 um contrato de gestão de carreira profissional de futebol, com termo em 5.02.2022.
Porém, nesse mesmo dia, foi assinado o contrato que anexa à petição inicial como documento n.º 24, ao qual foi aposta a data de 7.02.2022, o que foi feito para contornar a proibição dos agentes desportivos se vincularem por mais de dois anos.
Alega que tal ocorreu por insistência do referido CC, como representante de facto da primeira Ré, para assegurar a intermediação do Autor por um período de quatro anos.
Subsidiariamente, alega que fruto da relação de amizade e confiança que mantinha com o CC lhe emprestou a quantia de €400.000, valor este que nunca lhe foi pago, pese embora as diversas insistências suas nesse sentido.
Mas sendo o CC o gerente de facto da primeira Ré e por forma a manter a representação do Autor, propôs-lhe aquele que adquirisse uma fração autónoma, que identifica, que a primeira Ré havia prometido comprar, sendo o respetivo preço pago por esta, com o que acabou o Autor por concordar, tendo ainda decidido adquirir, no mesmo empreendimento, uma outra fração autónoma, o que foi formalizado nos termos que descreve.
Porém, a primeira não cumpriu várias das prestações do pagamento do preço como se obrigou no contrato-promessa celebrado, tendo inclusivamente efectuado um reconhecimento de parte da dívida perante o Autor, no valor de €126.000,00, que igualmente incumpriu.
Para além disso, alega que agindo na errada convicção de que o contrato seria válido e mantendo uma relação de facto com o CC e os Réus, foi insistindo com o primeiro para que diligenciasse pela sua transferência do .... para outro clube, sem que deste recebesse qualquer proposta, o que levou a que ficasse sem clube entre Julho e Setembro de 2022, vindo mais tarde a ter conhecimento que as possibilidades de transferência surgidas eram totalmente prejudicadas pelos pedidos de comissões irrealistas do CC.
Mais alega que em Setembro de 2022 surgiu o interesse do ... em proceder à sua contratação, o que foi feito através de um empresário mandatado por este clube para o contratar.
Nessa sequência, contactou o CC para que este o acompanhasse na assinatura do contrato com tal clube desportivo, sendo que a comissão seria paga pelo clube, em condições a acertar com o empresário mandatado pelo clube, tendo ficado a final acordado que essa comissão seria dividida em partes iguais entre o empresário e a primeira Ré.
Mais alega que, porque as relações entre o Autor e o CC se deterioraram, acordou com este último que o contrato de representação desportiva terminaria por mútuo acordo logo que fosse assinado o contrato com o novo clube, mas instado para a formalizar, remeteu-se ao silêncio, não mais comunicando com o Autor.
Por fim, alega que foi em final de Outubro de 2022, quando contratou um advogado que teve conhecimento que a sua representação desportiva pelos Réus cessou em 6.02.2022, face à invalidade do contrato celebrado em 5.02.2020 ao qual foi aposta a data de 7.02.2022.
Regularmente citados, os Réus contestaram em 28.04.2023 para se defenderem por excepção e por impugnação, deduzindo ainda a primeira Ré pedido reconvencional, no qual peticionam:
a) A condenação do Autor no pagamento da comissão de 10% da sua remuneração, por correspondência ao contrato de trabalho celebrado com o ... Football Club;
b) Que seja declarada ilegítima e sem justa causa a resolução do contrato operada unilateralmente pelo Autor e, consequentemente, a condenação deste a liquidar a quantia de um milhão de euros à Primeira Ré, conforme cláusula 4.º do referido contrato, a título de cláusula penal;
c) A condenação do Autor a restituir a quantia de €126.000,00 à primeira Ré, a título de enriquecimento sem causa.
Por excepção, para invocarem a ilegitimidade passiva do segundo Réu porquanto a este não ter sido deduzido qualquer pedido, nem tão pouco conter a petição inicial causa de pedir.
Por impugnação, para alegarem que o CC é funcionário da primeira Ré sendo nessa qualidade que tem intervenção nas negociações relativas ao contrato de representação desportiva do Autor, sempre sob supervisão do segundo Réu, seu gerente,
Alegam ainda que aquele CC foi declarado insolvente, tendo o seu património sido apreendido e liquidado no âmbito desse processo, e tendo requerido a exoneração do passivo restante veio a mesma a ser-lhe concedida.
Mais alegam que o contrato de representação desportiva datado de 7.02.2022 tem a assinatura do Autor reconhecida presencialmente por advogado, que se deslocou a França para o efeito, defendendo a sua plena validade.
Para além disso, o Autor é uma pessoa informada, conhecendo com pormenor e detalhe a legislação desportiva, no que se incluem as suas proibições.
Alegam que foi o Autor que pediu à primeira Ré que o ajudasse na compra de um imóvel, com a quantia de €567.000,00, com a promessa de devolver esse valor na data da celebração da renovação do seu contrato ou na da celebração de um novo, negócio que seria nulo por exorbitar o objecto social da Ré.
Alegam que entre o Autor e o CC foi celebrado um contrato de mútuo e que aquele pretendeu ser garantido do pagamento de parte da quantia mutuada através do pagamento do sinal no contrato promessa compra e venda.
Mais alegam que a transferência para o ... Football Club se deveu aos esforços da primeira Ré, que com o clube negociou os termos do contrato, bastante vantajoso para o Autor.
Alegam que a primeira Ré teve a sua atividade condicionada com as reivindicações do Autor, que eram desajustadas ao seu nível desportivo, rejeitando as sucessivas propostas que lhe eram apresentadas.
Para suportar o pedido reconvencional deduzido, a primeira Ré alegou que no final da época 2021/2022 o Autor iria cessar o seu contrato de trabalho com o ..., tendo aquela iniciado contactos para a celebração de um novo contrato, nos termos que descreve, tendo sido devido ao seu empenho que o Autor celebrou com o ... Football Club um contrato de trabalho com a duração de duas épocas desportivas pelo valor total de 7 milhões de euros.
Mais alega que nos termos estabelecidos no contrato, é devida à primeira Ré o valor correspondente a 10% da sua remuneração, que o Autor se nega a liquidar.
Para além disso, antecipou-lhe a primeira Ré a quantia de €126.000,00, que lhe deverá ser restituído ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa.
E sendo o Autor a resolver o contrato, de forma ilícita, já que para tanto não dispõe de fundamentos, deverá o mesmo ser condenado no pagamento da cláusula penal contratualmente estabelecida de €1.000.000,00.
Replicou o Autor em 12.07.2023 para, no essencial reiterar que tenha havido, em 10.02.2022 qualquer reconhecimento presencial da sua assinatura.
Pronunciou-se sobre as excepções deduzidas, pugnando pela sua improcedência.
Requereu a redução da cláusula penal estabelecida, por ser manifestamente excessiva.
Invoca ainda a cumulação ilegal dos pedidos de pagamento de comissão e da cláusula penal por pretenderem os Réus, simultaneamente, o cumprimento do contrato, ao exigirem o pagamento da remuneração, e as consequências da sua resolução, ao pretenderem o pagamento da cláusula penal indemnizatória.
Na réplica, o Autor requereu a ampliação do pedido nos seguintes termos:
“
Subsidiariamente, se se entender que os Réus são credores do Autor, deve ser julgado procedente o novo pedido subsidiário de compensação dos supostos créditos dos Réus com os créditos do Autor sobre a 1.ª Ré e sobre o Senhor CC
”, que veio a ser admitida por despacho proferido em sede de audiência prévia.
Requereu, ainda, a intervenção principal provocada do Advogado Dr. DD, que procedeu ao reconhecimento presencial da assinatura do Autor, que foi indeferida por despacho proferido em 31.10.2023.
Realizou-se a audiência prévia, em 8.01.2024, e frustrada que ficou a conciliação das partes, foi fixado o valor da acção, proferido despacho saneador, apreciando-se a excepcionada ilegitimidade e concluindo-se pela sua improcedência, e absolvendo-se o Autor da instância reconvencional no que ao pedido deduzido sob a alínea c) respeita, admitindo-se no mais a reconvenção, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, sem que sofressem tais despachos qualquer reclamação.
Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“
Pelo exposto, decido:
a) Julgar a ação procedente e, em consequência, declaro nulo o contrato de intermediação de carreira desportiva, com data de 7.02.2022, com fundamento em fraude à lei;
b) Julgar a reconvenção improcedente e, em consequência, absolver o Autor/Reconvindo do pedido;
Custas da ação e da reconvenção a cargo dos Réus.
Registe e notifique
”.
Não se resignando os Réus com tal sentença, dela interpuseram recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
“a) O Autor ora Recorrido intentou a presente ação nos termos e fundamentos da petição inicial com referência citius 34380218, tendo a Ré, ora Recorrente apresentado contestação com reconvenção com referência citius 35500218, que aqui se deverão dar como integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais. O Autor apresentou ainda réplica com referência citius 36215029.
b) Atenta a factualidade que o tribunal ora recorrido decidiu dar como provada e como não provada (factos que aqui se deverão dar como integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais), foi proferida a seguinte decisão: “Pelo exposto, decido: a) Julgar a ação procedente e, em consequência, declaro nulo o contrato de intermediação de carreira desportiva, com data de 7.02.2022, com fundamento em fraude à lei; b) Julgar a reconvenção improcedente e, em consequência, absolver o Autor/Reconvindo do pedido; Custas da ação e da reconvenção a cargo dos Réus.”
c) Ora, não podemos concordar com a referida decisão, o que motivou a interposição do recurso ora apresentado com os seguintes fundamentos: 1) Impugnação da matéria de facto (factualidade indevidamente dada como provada e factualidade indevidamente dada como não provada); 2) Não impugnação do contrato de representação desportiva com reconhecimento de assinatura, com menções especiais presenciais junto pela Federação Portuguesa de Futebol – Prova Plena.
Vejamos em 1.º lugal quanto 1) Impugnação da matéria de facto (factualidade indevidamente dada como provada e factualidade indevidamente dada como não provada);
d) Atenta a prova produzida foram indevidamente dados como provados os seguintes factos: 2.º, 3.º, 7.º, 19.º, 20.º, 28.º, 35.º, 42.º, 43.º, 45.º, 46.º, 47.º, 50.º, 54.º, 59.º, 60.º, 69.º, 70.º, 71.º, 72.º, 73.º, 74.º, 75.º, 77.º, 79.º, 80.º, 81.º, 82.º, 86.º.
e) Atenta a prova produzida foram dados como não provados os seguintes factos que deveriam ter sido dados como provados: r), s), t), u), v), w), x) y), z), aa), bb), cc), dd), ee), ff), gg).
f) Refere desde já a Recorrente que foram dados como provados, e bem, na medida em que são dotados de relevância jurídica para a boa decisão de mérito os factos 87.º, 88.º, 89.º, 90.º, 91.º, 92.º.
g) Quanto aos factos 2.º, 3.º, 7.º, 19.º, 20.º, 28.º, 35.º, já foi mencionado que os mesmos, atenta a prova produzida foram indevidamente dados como provados, consta dos supra mencionados factos que CC era o administrador de facto da sociedade ora Ré e Recorrente, e em consequência, era quem alegadamente controlava de facto a referida sociedade. Tais factos são falsos, e resultam claramente da prova documental, nomeadamente, das certidões permanentes juntas aos presentes autos e cujo teor aqui se deverá dar como integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais). Assim, como não poderia deixar de ser, do teor das certidões permanentes resultaram como provada a seguinte factualidade 4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, pelo que, sob pena de os mencionados factos provados serem contraditórios terão que ser dada como não provada a factualidade 2.º, 3.º, 7.º, 19.º, 20.º, 28.º, 35.º dos factos provados.
h) No que à Recorrente A..., Gestão e Assessoria de Carreiras Desportivas, Lda., se refere, o seu capital social é detido da seguinte forma: - 90% - B..., Promoção imobiliária, Lda., (detida em partes iguais, nomeadamente 45% pela Senhora EE e 45% pelo Senhor BB (Segundo Réu e ora Recorrente), sendo a Senhora EE a gerente; -10 % - BB, sendo este o sócio gerente da ora Recorrente. - Do exposto, resulta que BB detém de forma direta e indireta 55% do capital social da ora Recorrente A..., Gestão e Assessoria de Carreiras Desportivas, Lda., sendo que, é ainda o respetivo gerente.
i) Tais conclusões resultam de forma clara do teor das certidões permanentes (prova documental que no entender da ora Recorrente faz prova plena (informação constante de certidão comercial não impugnada). Ora, acresce ainda, a prova produzida em sede de audiência de julgamento, nomeadamente a prova testemunhal produzida, e as próprias declarações de parte do legal representante da ora Recorrente A..., Gestão e Assessoria de Carreiras Desportivas, Lda., BB, declarações prestadas com verdade e coerência, pelo que deverão ser valoradas para a alteração da factualidade dada como provada e não provada.
Atente-se na prova testemunhal produzida:
Testemunha CC, inquirição dia 15 de março de 2024, com início às 10:44 e fim às 11:19, declaração prestada do minuto 15.10 ao minuto 15.33: “O meu patrão é o BB, é ele que gere a empresa, é ele que é o dono, eu faço os meus negócios, recebo as minhas comissões e sou muito feliz assim”
Testemunha CC, inquirição dia 15 de março de 2024, com início às 10:44 e fim às 11:19, declaração prestada do minuto 16.30 ao minuto 16.50: “Quero fazer os meus negócios, que é o que eu sei, não quero gerir empresas, essa é a questão pela qual eu hoje trabalho para a A...”
Testemunha FF, inquirição dia 15 de março de 2024, com início às 11:20 e fim às 11:35 declaração prestada do minuto 0.30 ao minuto 0.39: Questionado se conhecia a empresa ora Recorrente, respondeu: “é a empresa que eu trabalho”. Questionado se conhecia o Senhor BB respondeu: é o patrão”.
Declarações de parte de BB na qualidade de legal representante da sociedade ora Recorrente, declarações prestadas no dia 15 de março de 2024, com inicio às 11:53 e fim às 12:38, declaração prestada do minuto 1.09 a 1.50:
Questionado qual a relação de poderes entre as sociedades respondeu: “Eu sou o sócio-gerente da A... e faço a gestão a 100 % da A... e tenho metade da quota da B... e alguma participação na gestão, mas a gestão diária pela EE, mas ela não participa na A... de forma nenhuma”
Questionado qual a qualidade que o CC interveio nas negociações do AA respondeu: “Funcionário da empresa, comissionista”
j) Assim, e de acordo com a prova produzida, os factos provados 2.º, 3.º, 7.º, 19.º, 20.º, 28.º, 35 devem ser dados como não provados.
Mais,
k) Foram dados como provados os seguintes factos 42.º, 43.º, 45.º, 46.º, 47.º, 50.º, 86.º (refere-se à outorga de contratos de intermediação desportiva celebrados entre o ora Recorrido e a Recorrente), ora, tais factos foram, salvo o devido respeito por opinião contrária, indevidamente dados como provados, na medida em que não têm qualquer correspondência com a prova produzida, uma vez que têm como pressuposto a existência de uma omissão de pronuncia pelo tribunal ora recorrido (contrato assinado pelas partes, com reconhecimento presencial de assinaturas, junto aos presentes autos pela Federação Portuguesa de Futebol, contrato este que não foi impugnado, e que em seguida trataremos em pormenor).
l) Para que não restem dúvidas, no hiato temporal entre 2020 e 2024 foram assinados os seguintes contratos:
- Contrato de intermediação desportiva datado de 05/02/2020 (assinado com reconhecimento assinaturas presencial no dia 06/02/2020, assinado em três vias, uma via para o jogador, outra via para a empresa de intermediação e uma via para a Federação Portuguesa de Futebol).
- “Acordo de cavalheiros” datado de 07/02/2022, com teor igual ao contrato mencionado em 1), mas sem qualquer validade jurídica (não foi assinado com reconhecimento presencial de assinaturas, nem enviado para a Federação) – servia apenas como forma “moral” de fortalecer o vinculo entre as partes, demonstrativo da vontade e seriedade de manter a relação de trabalho entre jogador e empresa, relação de trabalho e amizade que se prolongava à mais de uma década (o Recorrido tinha uma cópia e a Recorrente outra cópia)- Que é o documento 24 junto com a petição inicial.
- Contrato de intermediação desportiva datado de 07/02/2022, assinado a 10/02/2022, em duas vias devidamente reconhecidas através de reconhecimento de assinatura com menções especiais presenciais no dia 14/02/2022, sendo que das mencionadas vias, uma via foi para o Recorrido (a única sem reconhecimento entregue na hora), uma via para a Recorrente (junto no documento 2 contestação) e uma via para a Federação Portuguesa de Futebol conforme requerimento com referência citius 38161924, datado de 15/02/2024.
m) Dúvidas não podem restar que o aludido contrato de intermediação desportiva datado de 07/02/2022, assinado a 10/02/2022, em três vias devidamente reconhecidas através de reconhecimento de assinatura com menções especiais presenciais no dia 14/02/2022, sendo que das mencionadas vias, uma via foi para o Recorrido, uma via para a Recorrente (junto no documento 2 contestação) e uma via para a Federação Portuguesa de Futebol conforme requerimento com referência citius 38161924, datado de 15/02/2024 não foi impugnado.
n) Demonstrativo do aqui alegado, em sede de motivação foi transcrita a prova produzida em sede de audiência de julgamento, transcrições que aqui se deverão dar como integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais, sendo que pra servir de fundamento às conclusões se transcreve a seguinte parte:
Depoimento de parte de BB na qualidade de legal representante da sociedade ora Recorrente, declarações prestadas no dia 14 de março de 2024, com início às 09:52 e fim às 11:44, depoimento prestada do minuto 40.52 ao minuto 43.10:
“(E para que dúvidas não restassem: )
Exma. Sra. Dra. Juiz: Olhe, este contrato, foi assinado, que o Senhor diz que foi assinado a 5 fevereiro de 2020, não é o mesmo que o Senhor, dois anos mais tarde e dois dias mais tarde ou melhor, até mais, são reconhecidas só as assinaturas?
BB: Nós assinamos novos contratos em ..., combinei com o Sr. AA, perto do hotel, no centro de ....
BB: Eu fui a ... para assinarmos novos contratos, reconhecidos pelo advogado, presencialmente.
Exma. Sra. Dra. Juiz: E onde é que assinaram estes contratos?
BB: Nós assinamos próximo do hotel que estávamos hospedados, no centro de ..., num restaurante café que é muito conhecido lá no centro, que até tem uma zona onde os carros passam.
Exma. Sra. Dra. Juiz: Mas foi no restaurante ou no hotel?
BB: Não, foi no restaurante café, na esplanada.
Exma. Sra. Dra. Juiz: A que horas seria?
BB: Final da tarde, não lhe consigo dizer as horas ao certo, não tenho noção, mas foi ao final do dia.
Exma. Sra. Dra. Juiz: Mas jantaram?
BB: Não não ele estava com pressa pediu para ser ali porque tem uma zona, é numa praça e tem sítio para passar os carros, não é mesmo centro centro, deu para parar o carro, assinamos e ele foi a vida dele. “
o) Salvo o devido respeito, grande parte da prova produzida em sede de audiência de julgamento versou sobre as condições e circunstâncias de outorga dos contratos de intermediação e representação desportiva, sendo claro que o contrato datado de 07 de fevereiro de 2022, assinado a 10 de fevereiro de 2022, e objeto de registo do reconhecimento de assinaturas no dia 14 de fevereiro de 2022 que a ora Recorrente juntou e que o contrato que a federação juntou (nas mesmas condições) foi assinado em ..., estando presentes no momento da outorga o Recorrido, o legal representante da Recorrente e o advogado, Dr. DD.
p) Em sede de audiência de julgamento, numa vã tentativa de se locupletar do pagamento que lhe irá certamente ser exigido, o Recorrido negou ter assinado o mencionado contrato, tendo parte da sua defesa se limitado a escrutinar os passos do legal representante em ... até ao momento da recolha das assinaturas dos supra mencionados contratos na presença de advogado. Tentou o Recorrido tentar justificar a impossibilidade de assinar tais contratos, porque supostamente havia ficado a treinar da parte de tarde no dia 10 de fevereiro de 2022, quando na verdade a testemunha GG o nega: “esta eu não tenho, pela indicação que esta aqui, tem individual 10/10-02 de fevereiro, é, portanto, no período da manhã (...)teve pós-treino e depois possivelmente almoçou no clube como todos os jogadores”. Alegou o Recorrido que ao fim do dia, fazia frio em ..., como tal era pouco credível que Recorrido, Legal representante da Recorrente e o Dr. DD se encontrassem rapidamente numa esplanada para outorga dos contratos, ora, tal argumento não pode colher, é do conhecimento comum que grande parte das esplanadas em frança, principalmente no centro das cidades, têm as suas esplanadas com focos de aquecimento, mas mesmo que não tivessem, a outorga de contratos cujo teor é sempre igual (pelo menos no que diz respeito a todos os contratos entre Recorrido e Recorrente ) não carece de uma longa análise, pelo que rapidamente o ora Recorrido assinava 3 (três) vias de contrato. - Aliás, se não fosse um procedimento comum, rápido, o Recorrido não teria vindo de carro, estacionado em frente à esplanada, com sinalização de paragem rápida, para assinar os contratos e logo seguir encetar marcha. Mais, tentou o Recorrido fundamentar que não conseguiria assinar os contratos numa esplanada em ..., porque é figura pública e notoriamente conhecida, ora, não sendo intenção de retirar qualquer prestigio ao Recorrido, a verdade é que tal como o próprio Recorrido alegou, em fevereiro, ao final da tarde, faz frio em ..., pelo que as ruas não teriam muita afluência e as pessoas confinavam-se a espaços aquecidos como esplanadas, sendo certo que a cultura do povo de França, em especifico de ... é distinta por exemplo de Portugal e de uma qualquer cidade com clube da “terra”.
GG, com prova testemunhal com início às 09:23 e fim às 10:26, declarações prestadas do minuto 5.30 a 5.59:
Questionado se o AA fosse a um restaurante em ..., este seria reconhecido, a testemunha respondeu da seguinte forma:
“Em ... seguramente, embora nós...a forma como as pessoas nos abordam em ... ou em frança em geral, tirando ... que é uma cidade verdadeiramente futebol, é um bocado mais recatada que a forma que nos vivemos aqui em Portugal. Ainda ontem estava com o Zé e as pessoas aqui em Portugal, como o Zé é internacional, as pessoas olham e vêm pedir fotografias.”.
Das declarações da testemunha, retira-se claramente que, não obstante o ora Recorrido ser pessoa conhecida em ..., as pessoas de ... mantêm comportamento discreto, não olha, não pedem fotografias, não intervêm.
q) Perante o exposto, os factos constantes nos artigos 42.º, 43.º, 45.º, 46.º, 47.º, 50.º, 86.º deverão ser dados como não provados.
r) Em consequência do supra exposto, dando-se como não provados os factos artigos 42.º, 43.º, 45.º, 46.º, 47.º, 50.º, 86 (na sua totalidade ou na forma como elaborados) deverão ser dados como provados os seguintes factos que foram indevidamente dados como não provados: r), s), t), u).
s) Quanto aos factos provados 54.º, 59.º, 60.º, foram estes indevidamente dados como provados (factos respeitantes ao mútuo celebrado entre CC e AA, bem como ao pagamento de parte do dinheiro em divida)
t) Foi dado como provado que “54) Sucede que, até hoje, Autor não obteve o pagamento da totalidade do referido montante”, montante este de 400.000,00 (quatrocentos mil euros) constante nos factos provados que antecedem. - Tal facto é falso. Aliás, correu termos sob o processo número ..., Juízo de Execução do Porto - ..., em que eram partes o Senhor CC (Embargante) e o Senhor AA (Embargado).
Nestes autos foi proferida a seguinte sentença que ora se anexa e que aqui se deverá dar como integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais: (Cfr. Doc.1)
“Decisão:
Pelo exposto, julgo os presentes embargos de executado parcialmente procedentes, determinando, em consequência, a redução da quantia exequenda para o montante de € 204.000,00 à qual acrescem juros de mora desde o dia 16.05.2022.
Absolvo o embargante do pedido de condenação como litigante de má fé.
Condeno o embargado como litigante de má fé em multa de 3 UC ́s e no pagamento de uma indemnização à parte contrária no valor de € 1000,00.
Custas na proporção do decaimento.
Valor – já fixado no saneador.”
u) A sentença supra mencionada foi proferida depois de encerrada a audiência de julgamento nos presentes autos. - Pelo exposto, deverá o documento junto ser admitido ao abrigo do disposto no artigo 425.º do Código de Processo Civil.
v) Perante o exposto, devem os factos provados 54.º, 59.º, 60.º, serem dados como não provados.
w) Quanto aos factos provados 69.º, 70.º, 71.º, 72.º, 73.º, 74.º, 75.º, 77.º, 79.º, 80.º, 81.º, 82.º, 86.º., foram indevidamente dados como provados, ou pelo menos não deveriam ter sido dados como provados na conceção apresentada, na medida em que não correspondem inteiramente à realidade dos factos que sucederam. (Os factos supra mencionados centram-se em especifico nas demandas da Recorrente em encontrar clube para o Recorrido jogar, pelo menos na época de 2022/2023 e 2023/2024. )
x) A mencionada factualidade dada como provada não demonstra o efetivo esforço da Recorrente em arranjar propostas que satisfizessem as exigências do Recorrido. Sendo certo que os factos provados mencionados em 69.º, 70.º, 71.º, 72.º, 73.º, 74.º, 75.º, 77.º, 79.º, 80.º, 81.º, 82.º, 86.º., se encontram em clara contradição com os factos provados mencionados em 88.º, 89.º, 90.º, 91.º, na medida em que ficou demonstrado que a Recorrente encetou negociações com vários clubes:
“90. Entre os vários clubes contactados destacam-se: ...; Celta de Vigo, Verona; Al Shabab; Lokomotiv Moscovo; Patinacus Olimpiacos; Torino; Juventus; FCPorto; Aston Ville; Maiorca.
91) A Primeira Ré realizou esforços para a celebração de um contrato vantajoso para o Autor;”
y) Sendo que os seus esforços não alcançaram uma proposta para o valor que o Recorrido pretendia, pelo facto do valor que o mesmo queria ser um valor irrealista e desfasado do seu real valor de mercado. Aliás, em sede de audiência de julgamento, foi produzida a seguinte prova testemunhal sobre os factos que ora se impugnam:
GG, com prova testemunhal no dia 15 de março de 2023, com início às 09:23 e fim às 10:26, declarações prestadas do minuto 23.24 ao minuto 24.19:
“ Ele falava, eu já tenho aqui duas ou três coisas, isto esta para andar, não sei quê, o certo é que o tempo perdia e as coisas acabavam por não andar, não sei se porque o que lhe era proposto não correspondia aquilo que eram às pretensões dele, porque eu acho que nós na altura elucidamos, atenção, que aquilo que são os valores que se estão a falar, oh AA tu não vais ter hipótese, esquece, não vás por aí calma, acho que estas a pedir demasiado. O teu mercado, é importante que assegures alguma coisa(...) que de facto ele dizia, não não, eu só vou se assinar por 5 milhões prémio de assinatura, e eu dizia oh pa mas isso nem o Ronaldo”
CC, com prova testemunhal no dia 15 de março de 2023, com início às 10:44 e fim às 11:19, declarações prestadas:
Questionado se a atividade da ifoot foi condicionada atentas as reivindicações do jogador, nomeadamente casas, automóveis, salários, remunerações desajustadas? Respondeu: Minuto 1.50 a Minuto 2.30
“Sim, foi muito difícil, a certa altura ele meteu a fasquia para a Europa nos 15 milhões de Euros, e para a Arábia nos 20. Nós tivemos diversas abordagens, muitas abordagens, logo em fevereiro tivemos o Celta de Vigo com 9 milhões NET o qual recusou, e depois até à situação do ... foram imensos os clubes que recusou.”
Minuto 2.45 ao minuto 3.04
“eu próprio estive com o Sr. Bruno, um colega de trabalho, na Arábia Saudita no Al Shabab inclusive em casa do presidente do Al Shabab, tivemos proposta de 15 milhões e ele recusou”.
Questionado se as propostas foram sendo transmitidas ao jogador, respondeu do minuto 3.28 a 3.30: “Sempre”
Questionado sobre qual a ultima proposta transmitida ao jogador respondeu do minuto 3.31 ao minuto 4.14: “15 milhões NET. Não aceitou porque queria 20. 4 anos, 15 milhões NET, 10 mil dólares por cada jogo, casa, 13 viagens avião e casa e 2 carros”
Minuto 4.50 ao minuto 5.02:
“ Antes do Shabab tinha chegado do Flamengo, 15 milhões NET 4 anos, ele disse que não queria o brasil.”
Questionado se é normal que o clube formalize uma proposta respondeu do minuto 6.00 ao minuto 6.40:
“Não, dificilmente o clube formaliza escrito, com receio de nos dar a nós e nós irmos a um clube dizer olhe já temos aqui um hoje, portanto vira um bocado feira, o clube ou é por telefone ou presencialmente.”
Minuto 10.50 ao minuto 10.59
“Eram abordagens constantes, só não podíamos chegar a valores que o jogador queria”
Minuto13.00 ao minuto 13.49
“Varias vezes que o chamei atenção, AA, não és tu que fazes o preço é o mercado que nos faz o preço, e ele não conseguiu entender isso”
Minuto 13.55 ao minuto 14.05
“comuniquei várias vezes que estávamos muito acima, (...) até porque eu sabia o que o mercado falava connosco todos os dias”.
z) Os factos dados como provados não são demonstrativos da prova produzida no que diz respeito aos esforços para alcançar um clube para o Recorrido, bem como as condições que o Recorrido impunha que dificultavam em muito o trabalho da Recorrente.
aa) Razão pela qual os factos provados 69.º, 70.º, 71.º, 72.º, 73.º, 74.º, 75.º, 77.º, 79.º, 80.º, 81.º, 82.º, 86.º., se encontram em clara contradição com os factos provados mencionados em 88.º, 89.º, 90.º, 91.º, na medida em que ficou demonstrado que a Recorrente encetou negociações com vários clubes, e os mencionados factos transpõe a versão de que o Recorrente enviava sucessivas mensagens pedindo soluções e propostas sem nunca dar como provado que as propostas só não se concretizavam pelas exigências do Recorrido, razão pela qual, salvo melhor entendimento, deverão ser reformulados os mencionados factos dados como provados 69.º, 70.º, 71.º, 72.º, 73.º, 74.º, 75.º, 77.º, 79.º, 80.º, 81.º, 82.º,, dando como provado efectivamente todo o circunstancialismo de meses de negociação para alcançar uma boa proposta para o Jogador ora Recorrido.
bb) Em consequência da alteração da factualidade dada como provada provados 69.º, 70.º, 71.º, 72.º, 73.º, 74.º, 75.º, 77.º, 79.º, 80.º, deverão ser dados como provados os seguintes factos indevidamente dados como não provados: x), y) z), aa), bb),
cc) E em especifico quanto ao contrato com o ... (artigo 77.º - facto indevidamente dado como provado), cumpre esclarecer: Não foi o Senhor HH que contactou o Recorrido, foi a Recorrente que contactou o Sr. HH. Da prova testemunhal produzida, ficou demonstrado que em janeiro de 2022 o ... já havia demonstrado interesse no ora Recorrido, sendo que os valores propostos eram muito inferiores ao valor que seria aceitável pelo Recorrido.
dd) Decorridos praticamente 9 (nove) meses de negociações, com exigências do Recorrido, o certo é que em que Setembro o Recorrido ainda não tinha Clube (e isto depois de ter propostas de 15 milhões de euros). Como a janela de transferências se encontrava a fechar, era cada vez mais difícil encaixar o Recorrido. Foi quando o Senhor CC, funcionário da Recorrente e agente responsável pela carreira do ora Recorrido teve conhecimento de um jogador da mesma posição do ora Recorrido, do ..., que se havia lesionado. Aproveitando tal oportunidade, o Senhor CC contactou o Sr. HH que era agente do Clube e encetou negociações, tendo efetivamente alcançado uma proposta para o Recorrido e assinado um contrato de 7 milhões NET, com prémio assinatura de 1,5 milhões.
ee) Foi a ora Recorrente que tratou de todas as negociações, que tratou de hospedar o Recorrido, que comprou as viagens de avião, que se deslocou ao ... para assinar o contrato.
ff) É absolutamente falso que a Recorrente tenha meramente acompanhado o Recorrido na assinatura do contrato com o ..., foi a Recorrente que teve um papel decisivo na contratação do Recorrido pelo ... alcançando um contrato milionário certamente bem distinto do seu eventual contrato com o ....
Prova testemunhal de CC, dia 15 de março de 2023, com início às 10:44 e fim às 11:19, declarações prestadas do minuto 7.00 ao minuto 7.35:
“ O Sr HH é um parceiro da empresa que é francês e como tal trabalha em frança, mas quem ofereceu o jogador fui eu, inclusive ele passou uma primeira abordagem de um valor que era um ano mais um em valores de dois milhões e meio, portanto, nem sequer estávamos nestes valores dos sete milhões”
Declarações de parte de BB com início a 11:53 e fim às 12:38, declarações prestadas do minuto 11.00 ao minuto 12.40:
“Dr. II: Recorda-se quem é que, nomeadamente da sua empresa, quem é que fez o primeiro contacto, em que circunstâncias é que este jogador, foram feitos contactos, que diligências é que os senhores fizeram, se é que fizeram alguma, para este jogador ir para o ...?
BB: Foi o CC, através do HH, numa fase inicial do mercado, e posteriormente quando surgiu uma oportunidade através de uma lesão de um jogador do ... que abriu uma vaga, é uma excepção, fora da janela de transferências, voltamos a atacar esta oportunidade, e sabíamos que esse agente tinha uma boa relação com o ... e através dele começamos a desenvolver, a proposta inicial tinha valores bem abaixo, nos fomos desenvolvendo.
Dr. II: Tem ideia da proposta inicial?
BB: Eles inicialmente só queria, visto que ele era um jogador de risco, com muitas lesões, só queriam contrato de um ano, com direito de opção, e ...
Dr. II: É verdade que a proposta, o contrato, as condições que foram assinadas em ... eram iguais há primeira proposta que os senhores negociaram?
BB: Completamente diferente, aliás ainda foi melhorado pelo CC à última da hora, ainda conseguimos subir o prémio de assinatura, julgo que 500 mil euros, ainda com seguimos fazer ali uma melhoria, mas em relação há primeira proposta era muito superior.
E para que dúvidas não restem, questionado sobre se o Recorrido sabia que teria que ser ele a pagar a comissão pelo negócio com o ..., respondeu da seguinte forma:
Dr. II: quando viajou, foi-lhe informado que era ele que tinha que fazer o pagamento, visto que neste caso não havia forma de sermos nós a pagar ao clube.
Dr. II: ele sabia disso?
Dr. II: Sim sabia perfeitamente.”
gg) Em consequência da alteração da factualidade dada como (indevidamente) provada (artigo 77.º), deverão ser dados como provados os factos indevidamente dados como não provados: dd), ee), ff), gg)
hh) Com a alteração da factualidade dada como provada e como não provada, a decisão proferida terá que ser revogada e substituída por outra que julgue a contestação com reconvenção apresentada procedente por provada e em consequência seja julgada a presente ação improcedente por não provada, absolvendo os Recorrentes de todo o peticionado.
ii) Ora, no presente caso é inadmissível a prova por testemunhas do alegado acordo simulatório sobre a data quando invocado pelo Autor alegado simulador (nº 2 do art. 394º CC).
jj) A prova que ocorreu uma simulação, ou seja, alegadamente assinaram numa data e consignaram em documento que teria sido noutra data para contornar uma imposição legal apenas seria possível por confissão, a prova documental e a prova pericial. O que não aconteceu.
kk) Afastada que estava a possibilidade de recurso a testemunhas e a presunções judiciais, como meios probatórios exclusivos da simulação, mais quando temos um documento autenticado e reconhecido. Perante um princípio de prova assim tão “Forte” não era legítimo ao tribunal admitir a prova testemunhal nos termos em que o fez nem dar como não provado que o mesmo foi assinado naquela data.
Não impugnação do contrato de representação desportiva com reconhecimento de assinatura, com menções especiais presenciais junto pela Federação Portuguesa de Futebol – Prova Plena.
ll) Damos por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais tudo o já referido quanto às circunstâncias da outorga dos contratos de representação desportiva, quer o do ano de 2020 quer os do ano de 2022.
mm) Reiteramos o já exposto, no hiato temporal entre 2020 e 2024 foram assinados os seguintes contratos:
1) Contrato de intermediação desportiva datado de 05/02/2020 (assinado com reconhecimento assinaturas presencial no dia 06/02/2020, assinado em três vias, uma via para o jogador, outra via para a empresa de intermediação e uma via para a Federação Portuguesa de Futebol).
2) “Acordo de cavalheiros” datado de 07/02/2022, com teor igual ao contrato mencionado em 1), mas sem qualquer validade jurídica (não foi assinado com reconhecimento presencial de assinaturas, nem enviado para a Federação) – servia apenas como forma “moral” de fortalecer o vinculo entre as partes, demonstrativo da vontade e seriedade de manter a relação de trabalho entre jogador e empresa, relação de trabalho e amizade que se prolongava à mais de uma década (o Recorrido tinha uma cópia e a Recorrente outra cópia)- Que é o documento 24 junto com a petição inicial.
3) Contrato de intermediação desportiva datado de 07/02/2022, assinado a 10/02/2022, em duas vias devidamente reconhecidas através de reconhecimento de assinatura com menções especiais presenciais no dia 14/02/2022, sendo que das mencionadas vias, uma via foi para o Recorrido (a única sem reconhecimento entregue na hora), uma via para a Recorrente (junto no documento 2 contestação) e uma via para a Federação Portuguesa de Futebol conforme requerimento com referência citius 38161924, datado de 15/02/2024.
nn) Dúvidas não podem restar que o aludido contrato de intermediação desportiva datado de 07/02/2022, assinado a 10/02/2022, em duas vias devidamente reconhecidas através de reconhecimento de assinatura com menções especiais presenciais no dia 14/02/2022, sendo que das mencionadas vias, uma via foi para o Recorrido, uma via para a Recorrente (junto no documento 2 contestação) e uma via para a Federação Portuguesa de Futebol conforme requerimento com referência citius 38161924, datado de 15/02/2024 não foi impugnado.
oo) A verdade é que tal contrato enviado para a Federação Portuguesa de Futebol conforme requerimento com referência citius 38161924, datado de 15/02/2024 não foi sequer valorado pelo tribunal ora recorrido.
pp) É entendimento do tribunal ora recorrido o que sucede nos presentes autos “ não é um contrato que, por si só, contenha um prazo de duração superior a dois anos ou onde se clausule a sua renovação automática, já que o contrato outorgado a 5.02.2020 cumpre estritamente as restrições em causa. Com a assinatura do segundo contrato, cujo início de vigência estava prevista para o terminus do primeiro, pretendeu-se uma vinculação das partes, logo a 5.02.2020, por um período de quatro anos, na medida em que terminando o primeiro, passaria de imediato a vigorar o segundo. Para tanto diligenciaram os Réus, para que na data prevista para o seu início de vigência, fosse a assinatura aparentemente reconhecida presencialmente, o que ocorreu aparentemente no dia 10 de fevereiro, mas sem a presença do Autor.”
qq) Salvo o devido respeito por opinião contrária, é absolutamente falso que a assinatura do aludido contrato tenha sido “aparentemente reconhecida presencialmente”.
rr) As circunstâncias de outorga dos contratos foram já minuciosamente explicadas, foi produzida prova documental (faturas de hotel, voos e viagem a ...) que a corrobore, ainda que, seja nosso entendimento que o reconhecimento presencial de assinaturas constitui prova plena, e ainda que não impugnado pelo Recorrido, e que este nenhuma diligência de prova fez para corroborar / provar que não tenha assinado o contrato de representação desportiva para o ano de 2022 em ....
ss) Pelo contrário, não fez qualquer prova de que não assinou o contrato (estando este sujeito a reconhecimento de assinaturas com menções especiais presenciais).
tt) Sendo que conforme já supra exposto, a ter existido simulação sobre a data, não poderá o simulador fazer prova da mesma com os meios de prova a que o Tribunal recorreu (prova testemunhal).
uu) Não pode, salvo o devido respeito por opinião contrária, o tribunal ora recorrido meramente alegar uma “aparência” no reconhecimento de assinaturas, quando a bem da verdade se encontra justificado nos autos a outorga de todos os contratos de representação desportiva, se encontra demonstrado que foram assinados em ... novos contratos de intermediação desportiva mediante advogado que posteriormente reconheceu as assinaturas do contrato enviado para a Federação Portuguesa de Futebol.
vv) Esta alegada “aparência” não existe e coloca em causa um dos atos profissionais do Advogado.
ww) Mais, o não reconhecimento não implica a nulidade do contrato. Este contrato era válido e foi registado.
xx) Autor e Ré aceitaram que o assinaram. Na versão da Ré na data nele aposta, na versão do Autor numa outra data tendo ele com a Ré acordado simular outra data.
yy) Estando o Autor vedado a recorrer à prova testemunhal nunca conseguiria com aprova produzida nos autos provar a alegada simulação.
zz) O reconhecimento de assinaturas por notário/advogado/ solicitador é um ato solene, formal, e essencial para garantir a validade e a segurança das negociações, tendo como princípio fundamental a garantia de que um documento foi assinado por uma pessoa específica.
aaa) O reconhecimento com menção especial presencial deve conter, para além do nome da pessoa e a forma como se verificou a identidade, a menção do documento exibido para confronto da assinatura e dos documentos exibidos para a verificação da qualidade e poderes para o acto (nomeadamente, bilhete de identidade ou equivalente, certidão do registo comercial, procuração ou outro que legalmente comprove a qualidade e poderes. – Tal como consta do reconhecimento do contrato junto pela federação.
bbb) Não poderá deixar de concluir, que o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos descritos faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor.
ccc) Neste sentido vejamos o artigo 374.º do Código Civil: “1. A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras. 2. Se a parte contra quem o documento é apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura, ou declarar que não sabe se são verdadeiras, não lhe sendo elas imputadas, incumbe à parte que apresentar o documento a prova da sua veracidade.”
ddd) E ainda o Artigo 375.º (Reconhecimento notarial): “1. Se estiverem reconhecidas presencialmente, nos termos das leis notariais, a letra e a assinatura do documento, ou só a assinatura, têm-se por verdadeiras. 2. Se a parte contra quem o documento é apresentado arguir a falsidade do reconhecimento presencial da letra e da assinatura, ou só da assinatura, a ela incumbe a prova dessa falsidade.” (negritos e sublinhados nossos)
eee) Salvo o devido respeito por opinião contrária, o Recorrido não impugnou o contrato junto pela Federação Portuguesa de futebol, tal contrato tinha as assinaturas reconhecidas presencialmente, pelo que se têm por verdadeira – fazem prova plena.
fff) Mais o mesmo foi cumprido pelas partes, conforme resulta da vasta prova produzida
ggg) Caso se entenda que este impugnou tal documento, o que se refere por mera cautela de patrocínio, desde já se refere que incumbe ao Recorrido prova da falsidade alegada, o que este em momento algum fez.
hhh) Não podendo neste caso socorrer-se de prova testemunhal para provar a simulação (alteração da data).
Nestes termos e nos melhores de direito que V.Exas doutamente suprirão, deverá o recurso ser admitido e julgado procedente por provado e em consequência ser revogada a sentença ora recorrida, substituindo-a por outra que julgue a ação improcedente e o pedido reconvencional procedente.
IV. Normas Violadas:
374.º e 375.º 394.º do Código Civil”.
O apelado apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação do decidido.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes se as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- se a matéria de facto foi incorrectamente apreciada;
- validade do contrato discutido nos autos.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Foram os seguintes os factos julgados
provados
em primeira instância:
1) A primeira Ré é uma sociedade comercial que tem por objeto a “intermediação, aquisição de direitos de inscrição e representação, gestão e assessoria de carreiras desportivas, mediação desportiva e comércio e representação de produtos e equipamentos desportivos” (cfr. documento n.º 1, anexo à petição inicial cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
2) A primeira Ré é uma sociedade controlada de facto por CC, que toma todas as decisões de gerência, nomeadamente, as decisões relativas às negociações contratuais dos jogadores que a primeira Ré representa;
3) O segundo Réu é um executor de ordens, uma vez que é através dele que o CC exerce um controlo de facto e material sobre a primeira Ré;
4) Aquando da sua constituição, em 2011, era gerente único da primeira Ré CC (cfr. documento n.º 1, anexo à petição inicial;
5) E eram sócios, a A..., SGPS, S.A., titular de uma quota de €100,00 e JJ, então mulher de CC, titular de uma quota de €4.900,00 (cfr. documento n.º 2 anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
6) O CC renunciou ao cargo de gerente único da primeira Ré a 5.06.2014 (cfr. documento n.º 3 anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
7) Sendo designados como gerentes da primeira Ré o segundo Réu, amigo próximo e pessoa de total confiança do CC, e JJ, então mulher do CC (cfr. documento n.º 4 anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
8) Fruto de uma restruturação do capital social da primeira Ré, desde 2019 que são seus sócios:
a) a B..., Promoção Imobiliária Lda., titular de uma quota de €4.500,00, e
b) O segundo Réu, titular de uma quota de €500,00 (cfr. documento n.º 5 anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
9) Também desde o ano de 2019, apenas o segundo Réu é gerente da primeira Ré, tendo JJ renunciado ao cargo de gerente (cfr. documento n.º 6, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
10) Aquando da sua constituição, em 2009, a B..., Promoção Imobiliária, Lda. tinha como sócios a A..., SGPS, S.A., titular de uma quota de €90.000,00 e JJ, titular de uma quota de €10.000,00 (cfr. documento n.º 7, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
11) E como gerente único JJ (cfr. teor do documento identificado no facto anterior);
12) No início de 2017, foi alterado o contrato de sociedade tendo-se fundido as duas anteriores quotas numa quota única, com o valor de €100.000,00, titulada pelo segundo Réu (cfr. documento n.º 8, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
13) A 12.04.2017, foi registada a renúncia de JJ ao cargo de gerente única da referida sociedade (cfr. documento n.º 9, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
14) Tendo sido designado como gerente único o segundo Réu (cfr. documento n.º 10, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
15) Posteriormente, por deliberação de 2.05.2017, foi o contrato de sociedade alterado e registada, em 18.05.2017, a nomeação, também como gerente, de EE, filha do CC (cfr. documento n.º 11, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
16) Na mesma data foi registada a renúncia do segundo Réu ao cargo de gerente da B..., Promoção Imobiliária, Lda. (cfr. documento n.º 12, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
17) No ano de 2018, foi registado o aumento do capital social da referida sociedade em €100.000,00, passando a um total de €200.000,00 (cfr. documento n.º 13, anexo à petição inicial);
18) Tendo atualmente como seus sócios o segundo Réu, titular de uma quota de €100.000,00 e EE, titular também de uma quota de €100.000,00, sendo esta a única gerente da B..., Promoção Imobiliária, Lda (cfr. documento n.º 13, anexo à petição inicial);
19) Que domina a primeira Ré, detendo 90% do respetivo capital social (€4.500,00 em €5.000,00) – cfr. documento n.º 1, anexo à petição inicial);
20) O referido CC mantém o controlo efetivo e de facto sobre a primeira Ré, através da B..., Promoção Imobiliária, Lda., sociedade que tem como gerente único a sua filha, EE;
21) A A..., SGPS, S.A., desde a sua constituição em 2008 e até à presente data, tem como administrador único CC (cfr. documento n.º 14, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
22) A A... e Assessoria de Carreiras Desportivas, Lda, tem como sócios a A..., SGPS, S.A., titular de uma quota de €49.900,00 e o CC, titular de uma quota de €100,00 (cfr. documento n.º 15, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido),
23) E tinha como gerente único CC (cfr. documento n.º 16, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
24) Porém, a 19.01.2011 foi registada a renúncia do supramencionado CC ao cargo de gerente único da referida sociedade (cfr. documento n.º 17, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido),
25) Sendo designada como gerente, JJ (cfr. documento n.º 18, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
26) Posteriormente, em 25.01.2012, foi registada a renúncia de JJ do cargo de gerente único (cfr. documento n.º 19 anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
27) Sendo designado novamente como gerente CC, que se mantém até à presente data (cfr. documento n.º 20, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
28) O referido CC controla a primeira Ré de facto e não de direito porque passou por dificuldades financeiras graves tendo procurado evitar que estas pudessem afetar as suas referidas empresas, nomeadamente, a primeira Ré.
29) O CC foi declarado insolvente no Processo: ..., Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia - ...;
30) A exoneração do passivo restante veio concedida por despacho proferido em 3.05.2022 no âmbito do processo identificado no facto anterior;
31) O Autor é jogador profissional de futebol que joga atualmente no Stade ... Football Club (o “...”), da Ligue 1 Francesa, sendo conhecido como AA;
32) O CC é agente de jogadores licenciado;
33) A partir do ano de 2010, altura em que o Autor tinha 15 anos e jogava no ... Sport Clube, o CC (e, posteriormente, a primeira Ré) por influência do pai do Autor, começou a prestar os seus serviços de intermediação, aquisição de direitos de inscrição e representação do Autor;
34) Nos termos da referida relação profissional, o Autor e a primeira Ré celebraram diversos contratos de gestão de carreira profissional de futebol ao longo dos últimos anos, nomeadamente desde o ano de 2011;
35) Em que o CC ficou sempre encarregue da representação e intermediação da carreira do Autor, ainda que pudesse não ser parte formalmente nos contratos de intermediação celebrados;
36) A primeira Ré, como representante do Autor, interveio, desde 2011, nas diversas contratações deste por clubes de futebol, nomeadamente:
- na transferência do Autor para o Valencia Club de Fútbol em 2011, em Espanha;
- na transferência do Autor para o Futebol Clube Paços de Ferreira em 2012;
- na transferência do Autor para o ... em 2013;
- na transferência do Autor para o ... em 2014;
- na transferência do Autor para o ... em 2016;
- na transferência do Autor para o .... em 2016, em França;
- na transferência do Autor para o .... em 2017, em França; e
- na transferência do Autor para o .... em 2018, em França.
37) Fruto das referidas contratações e transferências, a primeira Ré e o CC receberam dos respetivos clubes quantias não concretamente apuradas a título de comissões relacionadas com as referidas contratações do Autor;
38) Com o aprofundar da sua relação de representação, os serviços prestados pela primeira Ré e pelo CC extravasaram, por diversas vezes, o âmbito da relação profissional de mediação de carreira desportiva,
39) Tendo, inclusive, o Autor e o CC mantido uma longa relação de amizade;
40) A 5.02.2020, o Autor, a primeira Ré e o segundo Réu celebraram um contrato de gestão de carreira profissional de futebol, com termo a 05.02.2022 (cfr. documento n.º 23, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integramente reproduzido);
41) Sucede que aquando da assinatura do contrato referido no facto anterior, e no mesmo dia, foi também assinado o contrato que constitui o documento n.º 24, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
42) Nesse contrato, assinado a 5.02.2020, foi aposta a data de 7.02.2022;
43) Bem sabendo que o contrato não podia, em qualquer caso, exceder os dois anos de vigência, o CC, a primeira Ré e o segundo Réu pretenderam assegurar a intermediação do Autor por um período de quatro anos (de 2020 a 2024), apondo uma data falsa no contrato;
44) Bem sabendo igualmente que o contrato não podia conter cláusulas de renovação automática, o que frustrava o seu objetivo de assegurar a continuidade da intermediação financeira por quatro anos;
45) Pelo que decidiram o CC, a primeira Ré e o segundo Réu contornar estes obstáculos legais;
46) Sob a supervisão do Senhor CC, pessoa em quem o Autor confiava.
47) Tudo por forma a garantir para a primeira Ré e para o CC o auferimento de comissões de contratações e transferências que o Autor viesse a concretizar entre 2020 e 2024.
48) A 7.02.2022, o Autor não se encontrava em Portugal,
49) Mas sim na cidade de ..., uma vez que foi convocado para o jogo de futebol de 6.02.2022 contra o ...;
50) No início de 2022 ou no final de 2021 não existiram negociações prévias entre as partes;
51) O contrato a que foi aposta a data de 7.02.2022 tem o seguinte clausulado:
a) O Autor, o segundo Réu, este na qualidade de agente de jogadores, e a primeira Ré celebram um contrato de representação do Autor para “(…) negociações com vista à celebração e/ou renovação de contratos de trabalho desportivo”, conforme resulta da cláusula 1)1. do contrato
b) O Autor cede igualmente, em regime de exclusividade, a totalidade dos direitos de exploração comercial, em conjunto ou individualmente, da sua imagem de jogador profissional de futebol, podendo a primeira Ré ou quem aquela nomear, expor, reproduzir, lançar no comércio ou ceder a terceiros o retrato, nome, imagem e autógrafo daquele (cláusula 1)2.);
c) O prazo do contrato é de 24 meses, com início na data de assinatura (cláusula 1)3.);
d) O Autor obrigou-se a pagar uma “(…) comissão correspondente a 10% do salário bruto devido ao jogador, correspondente ao período de duração total do contrato (…)” (cláusula 2).
e) A rescisão unilateral ou denúncia do referido contrato, antes do termo do seu período inicial de validade, confere à parte não faltosa o direito da receber da outra uma indemnização de 1.000.000,00 € (um milhão de euros), a título de cláusula penal, valor este as partes consideram justo e adequado” (cláusula 4)4.);
f) As partes comprometeram-se a cumprir os estatutos, regulamentos, diretivas e decisões dos órgãos competentes da Federação Portuguesa de Futebol e da FIFA, bem como as disposições de direito laboral e outras disposições legais aplicáveis no território da federação, e ainda as leis internacionais e os tratados aplicáveis (cláusula 5);
52) Fruto da relação de amizade desenvolvida, o Autor emprestou, no ano de 2018, a quantia de €400.000,00 ao CC, para este fazer face a dificuldades económicas e financeiras que o mesmo atravessava;
53) O referido CC reconheceu, através da confissão de dívida autenticada a 15.05.2018, ser devedor daquele montante perante o Autor (cfr. documento n.º 22, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
54) Sucede que, até hoje, Autor não obteve o pagamento da totalidade do referido montante;
55) Em 1 de junho de 2020, foi assinado um acordo de revogação do contrato promessa de compra e venda celebrado entre a primeira Ré, na qualidade de promitente compradora e segunda outorgante, e a sociedade C..., Lda, na qualidade de promitente vendedora e primeira outorgante, que tinha por objeto a fração identificada pela letra “S” do prédio aí identificado (cfr. documento n.º 31, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
56) No referido acordo resulta expressamente da Cláusula Terceira que: “Com a assinatura do presente Acordo, a segunda outorgante declara e aceita expressamente que a quantia por si paga a título de sinal à primeira outorgante, no montante de 63.000€ (sessenta e três mil euros), fique na posse daquela primeira outorgante, que por sua vez, aceita e compromete-se a destinar tal valor para parte e por conta do preço relativo ao Contrato Promessa de Compra e Venda que irá outorgar nesta mesma data com AA, residente na Rua ... – ..., NIF ...82, titular do cartão de cidadão n.º ...68, válido até 11.05.2024” (cfr. teor do documento identificado no facto anterior);
57) Concomitantemente, a 1.06.2020, foi assinado um contrato promessa de compra e venda que teve por objeto uma fração do tipo T4, projetada pela união da fração identificada pela letra “S” e da fração identificada pela letra “N”, celebrado entre a C..., Lda, o Autor e a primeira Ré (cfr. documento n.º 32, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
58) Nos termos do referido contrato, a primeira Ré comprometeu-se perante o Autor a proceder ao pagamento à C... da parte do preço da nova fração que correspondia ao valor da fração “S” (cfr. teor do documento identificado no facto anterior);
59) Além do valor de €63.000,00 já pago à C... ao abrigo do contrato promessa celebrado a 19.09.2019 e então revogado através do acordo a que se alude no facto 55º, a primeira Ré comprometeu-se a pagar o valor de €567.000,00 (cfr. Considerando g) do documento identificado nos factos 57º e 58º;
60) Assim, nos termos da Cláusula segunda n.º 3, do referido contrato promessa de compra e venda, a primeira Ré, “(…) por força do vínculo contratual que mantém [com o Autor] (…), compromete-se perante este a proceder, na devida proporção do plano supra estabelecido, ao pagamento à primeira da quantia de euros: 567.000€.” (cfr. teor do documento identificado no facto 57º);
61) Para tal, foi definido um plano de pagamento descrito na Cláusula segunda, n.º 1, do contrato promessa de compra e venda:
i. o montante de €128.000,00 até ao dia 1.12.2020;
ii. o montante de €128.000,00 até ao dia 1.06.2021;
iii. o montante de €128.000,00 até ao dia 1.12.2021;
iv. a quantia de €768.000,00 paga no ato da outorga da escritura de compra e venda. (cfr. teor do documento identificado no facto 57º);
62) A primeira Ré incumpriu prestações a que estava obrigada, tendo efetuado um reconhecimento de parte da dívida perante o Autor, em 27.03.2022, no valor de €126.000,00 (cfr. documento n.º 33, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
63) O Autor, em maio de 2022, alertou o CC: “
Amigo tenta arranjar o dinheiro, são os 126 mil
(…)”; (cfr. documento n.º 34, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
64) Tendo respondido o CC que: “
Vou tentar arranjar máximo amigo
” (cfr. documento n.º 35, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
65) Em junho de 2022, o Autor instou novamente o CC para o pagamento da dívida da primeira Ré: “
CC vou precisar de receber algum dinheiro. Quanto consegues ter disponível até amanhã ou quarta de manhã?
” (cfr. documento n.º 35, anexo à petição inicial e documento n.º 21, anexo à contestação);
66) O CC assegurou que: “
Se fechar hoje amanhã já tens o dinheiro (…) Desculpa amigo vou fazer tudo para te resolver. (…) sabes que te vou pagar amigo não vou ficar a dever nada foi um momento difícil para mim
” (cfr. documento n.º 36, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
67) Por este e outros motivos, a relação entre o Autor e o CC deteriorou-se gravemente;
68) Em 18.10.2022, o Autor remeteu ao CC a seguinte mensagem: “
CC, esta confissão de dívida da parte da tua empresa e do BB, ainda não foi liquidada. Ainda temos outra confissão de dívida pendente em relação ao meu apartamento no Ar d’mar Residence. Como está escrito na confissão de dívida, o montante total deveria ter sido liquidado até junho 2022, coisa que não aconteceu. Mais uma vez peço para entrares em contacto comigo afim de podermos resolver esta situação a bem. Não gosto, nem quero levar isto por caminhos que não têm de ir. Tenho muito respeito pela nossa história, mesmo se não tens mostrado esse mesmo respeito por mim. Fico à espera do teu contacto. Um abraço
” (cfr. documento n.º 46, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
69) A 1.04.2022, o Autor pediu ao CC: “
Já estamos no mês de abril, tem de que começar a chegar para resolvermos o mais cedo possível… para dar tempo de organizar a minha vida, com as malas, casa e tudo (…) (…) temos de meter pressão (…) Este mês tem de estar resolvido. Ter propostas nas próximas 2 semanas
(…)» (cfr. documento n.º 38, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
70) No mês subsequente, o Autor insistiu junto do CC: “
CC então? O tempo está a passar. E eu não estou a gostar nada. Não há novidades nem nada. 5 meses que eu não te chateei, agora estamos no final da época, e não tenho nada concreto em cima da mesa, falaste do Celta que estava controlado, acredito que esteja mas não nos valores que eu quero.
” (cfr. documento n.º 39, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
71) Ainda em junho e nos meses seguintes de julho e agosto, tipicamente, a janela de transferências do futebol europeu, o Autor insistiu várias vezes junto do CC, conforme:
“Precisamos de mais propostas para poder decidir não quero ficar preso a uma só”
“Mas o problema é que não tenho nenhuma proposta. Zero. Dia 7 de julho. Desde agosto do ano passado. 11 meses é muito tempo”
“Quanto mais depressa melhor CC. Eu não tou bem. E as coisas não estão muito bem. CC a cada dia que passa isto fica cada vez pior. Tenho de estar a considerar tudo neste momento. Coisa que há 2 meses atrás nem olhava para elas. Clubes que não me interessam. Ser jogador livre e ainda me sujeitar a ir parar a um clube que seja pior do que o .... Não estou feliz. E preciso mesmo de me encontrar contigo, por isso se te sentires melhor, eu queria falar já hoje.”
(cfr. documentos n.ºs 40 a 42, anexos à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
72) Ademais, foi o Autor sempre insistindo junto do CC para saber de novidades relativamente à sua transferência/contratação;
73) O Autor é um jogador muito reconhecido em França, pelo que era incompreensível que o CC, a primeira Ré e o segundo Réu não lhe conseguissem arranjar um clube em julho e agosto, quando a época começa no final de junho.
74) No dia 01.09.2022, o Autor demonstrou o seu total desagrado e até desespero com a sua situação, junto do CC:
“Estamos em setembro CC, a minha carreira está a ser fodida por causa desta merda toda! Não fiz pré epóca, as equipas estão feitas, acabei a época sem estar a jogar ainda pra mais, vai haver campeonato do mundo e tu nem essa oportunidade me deste para lutar por um lugar na seleção. Estou tão desiludido que nem sei o que te dizer mais. Nem força tenho para estar chateado. Estás-me a fazer passar por uma merda pior do que passei com o Bielsa. Espero que tenhas noção disso.
Tu como agente tens de saber quando houveram boas propostas ou não, o meu trabalho é jogar apenas.”
(cfr. documento n.º 43, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
75) Não tendo obtido respostas por parte do CC, o Autor, nos dias seguintes, enviou-lhe várias mensagens:
“Boas CC. Há novidades? A continuar assim vou ter de deixar 1 salário aqui no hotel para pagar as noites.
É preciso meter pressão. Viaja para Londres ou para Espanha. Tens de ir ao clubes tu mesmo.
Há 1 ano à espera de uma coisinha de jeito e não tenho nada.
CC então? Novidades?
É preciso resolver. Amanhã é dia 5 de SETEMBRO. Não é nenhuma brincadeira.
Tu queres resolver, mas isto é a minha vida. São 3 meses sem receber nenhum salário. 3 meses a minha imagem a ir com o caralho. Tudo o que fiz até agora. Todo o suor.
Aturar aqueles gajos todos em França. Receber menos do que devia. Para chegar ao ponto de estar livre e tu agora deixares-me nesta situação. Não há desculpas. Tu és o meu agente. Não são os outros. Eu só tenho de me virar para ti CC. E até agora não tens nada. Amanhã eu vou começar a ligar para toda a gente que conheço. Para me ajudar. E vou para quem me arranjar alguma coisa de jeito. Não me interessa mais nada. É o meu contrato. É a minha vida. Tu podes ter muitos jogadores. Mas eu só tenho 1 carreira. Só vou ser jogador uma vez. E tenho mais 7/8 anos para ganhar dinheiro a sério no futebol. Eu tenho feito tudo, tudo para ter boas propostas. Bons clubes. Bom dinheiro. E neste momento não tenho nada. Por isso amanhã CC, eu vou começar a ligar. E não me importo de nada de comissões nem de nada. A situação que estou agora é vergonhosa. Podem dizer o que quiserem. Vergonhosa. Mais uma vez zero respostas.
Eu não vou conversar mais CC. Tive a mesma conversa contigo desde outubro do ano passado. Disseste sempre a mesma coisa. Estou a trabalhar. Estou a trabalhar. Sempre.
Eu preciso de 1 clube já CC, eu não estou a brincar. Eu estou a entrar em depressão total. Tu não sabes o que é isso. A minha carreira vai acabar num abrir e fechar de olhos.
CC, se não consegues dizes-me e eu vou arranjar alguém que me traga alguma coisa no espaço de 1 dia. O problema é que tu não me trazes nada. Estás a destruir a oportunidade da minha vida para ir ganhar dinheiro. Espero que tenhas essa noção. Acabei com a melhor época desde que sou profissional. Com 2 troféus. 1 deles sou eu que decido. Sempre a jogar. E tu não me consegues arranjar NADA
CC das duas uma, ou tu nunca tens nada e não falas com ninguém ou então falas mas nunca me ligas e tenho de estar eu sempre a ligar-te. Nunca dás novidades de nada.”
(cfr. documento n.º 44, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
76) O Autor esteve sem clube entre os meses de julho e setembro de 2022;
77) Já em setembro de 2022, surgiu o interesse do ... em contratar o Autor, nomeadamente através de um empresário de jogadores francês, o Senhor HH,;
78) O CC acompanhou o Autor na assinatura do contrato profissional com o ... com início a 21.09.2022 e com termo a 30.06.2024;
79) Aquando do referido no facto anterior, as relações entre o Autor, o CC e os Réus estavam altamente deterioradas, tendo em conta as elevadas dívidas daqueles ao Autor,
80) Convicto de que ainda manteria uma relação de representação com a primeira Ré e o segundo Réu, o Autor acordou com o CC que o respetivo contrato de representação terminaria por mútuo acordo, logo que o Autor assinasse por um novo clube.
81) Este acordo ficou espelhado em mensagens trocadas entre o Autor e o CC em setembro de 2022;
82) Passado um mês após a assinatura do contrato entre o Autor e o ..., o CC não comunicou mais com o Autor;
83) Em 18.10.2022, e de modo a dar cumprimento ao acordado entre as partes, o Autor instou o CC para:
“CC visto que não me respondes só te quero dizer que estou muito desiludido contigo, não consigo sequer perceber o porquê de isto estar a acontecer. Dito isto, acordamos os dois no teu escritório que iríamos fazer a rescisão do contrato de representação por mútuo acordo a partir do momento que eu assinasse por um clube.
(…) Depois disto tudo eu vou-te procurar, ligo-te e a partir da chamada que fizemos onde disseste que me ligavas para tratarmos da rescisão não me respondeste mais ou sequer deste noticias. Tudo isto para te dizer que gostava de guardar a relação que tínhamos, apesar de ser difícil depois de tudo isto, e que se não me enviares a rescisão por mútuo acordo do nosso contrato até ao final do mês vou ter de pedir ajuda a um advogado para me ajudar neste assunto. Um abraço”
(cfr. documento n.º 47, anexo à petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
84) O referido CC, em 19.10.2022, respondeu ao Autor nos seguintes termos:
Boa tarde
Antes demais esclarecer que a resposta não foi imediata, pois o teor das mensagens foi recebido com surpresa e grande desilusão.
Nunca me passou pela mente que depois de todo o nosso historial, de todas os esforços e resultados, a nossa relação pessoal e profissional chegasse a este ponto.
Não tenho disponibilidade mental para tratar diretamente desta situação, tal é a minha desilusão. No entanto, como é evidente, estou disponível para resolver esta situação de forma amigável. Agradecia contactasses o meu amigo/advogado Dr. II (...83). Está mandatado para chegar a um consenso que salvaguarde os interesses de ambas as partes e evite prejuízos financeiros e desgastes emocionais.
(cfr. documento n.º 21, anexo à contestação, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido);
85) A primeira Ré nunca recebeu do Autor um único cêntimo até à data da propositura da ação;
86) O contrato a que se alude no facto 41º foi registado junto da Federação Portuguesa de Futebol.
87) No final da época 2021/2022 o Autor iria cessar o seu vínculo laboral com o seu clube, ...,
88) A primeira Ré iniciou diversos contactos para este celebrar novo contrato de trabalho,
89) Para o efeito apresentou o jogador a clubes de futebol;
90) Entre os vários clubes contactados destacam-se:
• Galatasaray Spor Kulübü
• Celta de Vigo
• Verona
• Al Shabab
• Lokomotiv Moscovo
• Patinacus Olipiacos
• Torino
• Juventus
• FCPorto
• Aston Ville
• Maiorca
91) A primeira Ré realizou esforços para a celebração de um contrato vantajoso para o Autor;
92) O Autor teve propostas para celebrar contrato de trabalho com clubes, em número e de valor não concretamente determinados;
93) O Autor não ficou inteiramente satisfeito com o contrato celebrado com o ... Football Club, pelo qual iria auferir, em duas épocas desportivas, um salário de sete milhões de euros;
94) o Autor não é um jogador internacional com presença regular na seleção nacional,
III.2. E julgado
não provado
que:
a) Foi na sequência do divórcio de CC, que a sua mulher, JJ, deixou de ser sócia e/ou gerente da primeira Ré;
b) A assinatura do contrato a 5.02.2020 a que foi aposta a data de 7.02.2022 sucedeu por insistência do CC;
c) A prática “normal”, na assinatura de contratos de intermediação desportiva entre agentes nacionais e futebolistas que jogam fora de Portugal, é o recurso a um notário local para se realizar o reconhecimento de assinaturas.
d) O advogado francês que trabalha nas instalações do ... poderia facilmente fazer o reconhecimento das assinaturas;
e) 30 anos é a idade que normalmente corresponde ao pico de desempenho na carreira de futebolista profissional, em que, por isso, estes recebem as mais elevadas ofertas e propostas de clubes de futebol, com as correspondentes comissões para os seus agentes.
f) Tendo em conta a sua valorização como jogador, em 2022, o Autor não aceitaria exatamente as mesmas condições do seu contrato de representação que aceitara dois anos atrás, em 2020;
g) O Autor desconhecia quer a limitação da duração do contrato, quer a impossibilidade da sua renovação automática e suas consequências;
h) O Autor só tomou consciência da inexistência do contrato ou da sua nulidade devido à falta do reconhecimento de assinaturas e à data falsa, em setembro/outubro de 2022 quando consultou um advogado que o informou que desde 6.02.2022 que o Autor não tem qualquer contrato de representação com a primeira Ré e o segundo Réu,
i) Por forma a manter a representação do Autor, o CC propôs que o Autor adquirisse uma fração autónoma do prédio designado “... Residence” que a primeira Ré tinha prometido comprar em 2019 à C..., Lda. (a “C...”), sendo o respetivo preço pago pela primeira Ré.
j) O Autor veio a ter conhecimento mais tarde de que as possibilidades de transferências que foram surgindo eram totalmente prejudicadas pelos pedidos de comissões absolutamente irrealistas efetuadas pelo CC, que assim impediu essas transferências e até “queimou” o Autor no mercado;
k) Aquando do referido no facto 78º, ficou claramente acordado que o CC e os Réus intervinham na transferência, atuando por conta do ...,
l) Clube que lhes pagaria parte da comissão, em condições que acertariam aqueles com o empresário francês, o Senhor HH;
m) De facto, ficou acordado que essa comissão seria dividida pelo HH e pela primeira Ré, em iguais partes.
n) O CC tem exigido o pagamento dessa comissão ao HH.
o) A A... e Assessoria de Carreiras Desportivas, Lda e a A..., SGPS, S.A não têm qualquer atividade;
p) Todo o património de CC foi apreendido e liquidado no processo de Insolvência a que se alude no facto 29º;
q) O CC interveio nas negociações do contrato a que se alude no facto 41º como funcionário da primeira Ré, sempre com a supervisão do gerente BB.
r) Tal contrato foi assinado em França, em ..., na presença do advogado Dr. DD, que aí se deslocou com esse propósito, tal como combinado com o Autor e com a Primeira Ré.
s) Encontrando-se presentes na referida outorga o gerente da Primeira Ré, o Autor e o Dr. DD.
t) O Autor conhece, em pormenor e detalhe, a legislação desportiva.
u) Os contratos são iguais por serem contratos tipo realizados de acordo com a legislação em vigor e utilizados de forma a evitar qualquer incumprimento da referida lei.
v) O Autor pediu à primeira Ré que o ajudasse na compra de um imóvel, com a promessa de devolver tal montante na data da celebração da renovação do seu contrato ou a celebração de um novo. (cfr Doc.9 e 10);
w) O contrato promessa, por força do qual a Primeira Ré adiantou ao Autor os valores referidos, a pedido deste, e que seriam depois liquidados por acertos de contas entre o que tinha que pagar à primeira Ré, o que o CC iria receber da primeira Ré pela sua intervenção no negócio quando fosse celebrado um novo contrato de trabalho.
x) As propostas a que se alude no facto 92º tinham condições muito superiores aquela que veio a assinar com o ... Football Club;
y) As propostas encontradas pela primeira Ré ascendiam a largos milhões de euros que o Autor negou, recusou, sem sequer oferecer resposta motivada ou colocando sempre mais exigências financeiras;
z) A atividade da primeira Ré foi altamente condicionada pelo Autor, atentas as suas reivindicações, nomeadamente, automóveis de luxo, casas, salários e remunerações absolutamente desajustadas com o seu efetivo nível desportivo;
aa) O Autor colocou sempre elevadas exigências seja de salário, prémio de assinatura, como exigências de habitação, carros etc. Exigências que colocavam a sua contratação por um clube muito acima daquele que era o seu valor de mercado.
bb) Acontece que, os valores peticionados pelo Autor não tiveram acolhimento nos clubes potencialmente interessados, por considerarem serem desajustados ao valor desportivo do Autor.
cc) O Autor sempre condicionou o pagamento de qualquer comissão pela primeira Ré, pretendia que as comissões fossem repercutidas à empresa do pai deste.
dd) O descontentamento do Autor com o contrato celebrado com o ... devia-se aos valores contratados, pois, reivindicava o dobro do salário e benefícios
ee) Foi a Autora quem negociou com o ... Football Club os termos de um contrato bastante vantajoso para o Autor
ff) Foi devido a essa intervenção da Primeira Ré, que foi possível que o Autor celebrasse tal contrato;
gg) O Autor nega-se a liquidar o montante supra mencionado com fundamento na alegada rescisão do contrato de intermediação.
hh) A falta de presença do Autor na seleção nacional deve-se
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Reapreciação da matéria de facto.
Os recorrentes discordam da decisão proferida em primeira instância ao considerar provada a matéria constante dos pontos 2º, 3.º, 7.º, 19.º, 20.º, 28.º, 35.º, 42.º, 42.º, 45.º, 46.º, 47.º, 50.º, 54.º, 59.º, 60.º, 69.º, 70.º, 71.º, 72.º, 73.º, 74.º, 75.º, 77.º, 79.º, 80.º, 81.º, 82.º, 86.º, e não provada a elencada nas alíneas r), s), t), u), v), w), x), y), z), aa), bb), cc), dd), ee) ff) e gg).
1.1. Da admissibilidade do recurso quanto à impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Nas suas contra-alegações pugna o recorrido pela rejeição do recurso, com fundamento no disposto nos artigos 639.º, n.º 1 e 641.º, n.º 2, alínea b), ambos do Código de Processo Civil, sustentando, para tanto, que os recorrentes não formularam conclusões, limitando-se a repetir, num exercício de “Copy/Paste”, o constante do corpo das alegações.
Para fundamentar esta solução convoca jurisprudência vária, designadamente acórdãos desta Relação relatados pela aqui relatora.
Dispõe o n.º 1 do artigo 639.º do Código de Processo Civil: “
o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão
”.
De acordo com o preceito citado, as alegações de recurso distinguem-se em corpo das alegações e conclusões.
No primeiro, o recorrente expõe os fundamentos ou argumentos através dos quais procura convencer o tribunal de recurso da sua razão; nas segundas, sintetiza as concretas questões que pretende que o tribunal de recurso aprecie e o sentido com que as deverá decidir.
Esclarece, a propósito, o acórdão desta Relação, de 27.01.2020
[1]
: “...
como resulta do disposto no citado artigo 639º, n.º 1 do CPC, quando o apelante interpõe recurso de uma decisão jurisdicional passível de apelação fica automaticamente vinculado à observância de dois ónus, se pretender prosseguir com a impugnação de forma válida e regular.
O primeiro é o denominado ónus de alegação, no cumprimento do qual se espera que o apelante analise e critique a decisão recorrida, imputando as deficiências ou erros, sejam de facto e ou de direito, que, na sua perspectiva, enferma essa decisão, argumentando e postulando as razões em que se ancora para divergir em relação à decisão proferida.
O ónus de alegação cumpre-se, assim, através da exposição circunstanciada das razões de facto [incluindo, a eventual impugnação da decisão de facto proferida pelo tribunal recorrido] e de direito da divergência do apelante em face do julgado.
Trata-se, pois, de o recorrente explicitar, de forma mais ou menos desenvolvida, os motivos da sua impugnação da decisão, explicitando as razões por que entende que a decisão recorrida é errada ou injusta, através de argumentação sobre os factos, o resultado da prova, a interpretação e a aplicação do direito, para além de especificar o objectivo que visa alcançar com o recurso.
O segundo ónus, denominado de ónus de concisão ou de conclusão, traduz-se na necessidade de finalizar as alegações recursivas com a formulação sintética de conclusões, em que resuma ou condense os fundamentos pelos quais pretende que o tribunal ad quem modifique ou revogue a decisão proferida pelo tribunal a quo”.
Impõe, assim, a lei que o recorrente finde as alegações de recurso com as respectivas conclusões, onde, de forma sintética, identifique as questões que devam ser apreciadas pela instância de recurso e que sirvam de fundamento ao pedido de alteração, revogação ou de anulação da decisão.
Como explica o acórdão da Relação de Guimarães de 29.06.2017
[2]
, “
Concluir significa, ao cabo de um percurso analítico-argumentativo criteriosamente orientado e validado por um raciocínio lógico, extrair deste, em proposições sintéticas e resumidas, a essência dos fundamentos de uma tese.
A tese de um recorrente que se não conforma com certa decisão judicial há-de ser a da anulação, modificação ou revogação.
Os fundamentos hão-de assentar nas razões, factualmente sustentadas e juridicamente consequentes, substanciadoras da sua invalidade ou erro.
Para discorrer sobre estas, servem as alegações. Para expor aquelas, as conclusões”.
As conclusões destinam-se a sintetizar os argumentos do recurso, a identificar as questões a apreciar e as razões que servem de suporte à decisão pretendida. Delimitando as conclusões o objecto do recurso, é através delas que a parte contrária é alertada para as questões suscitadas pelo recorrente – assegurando-lhe, desta forma, a possibilidade de um efectivo exercício do contraditório – e o tribunal de recurso fica plenamente elucidado quanto às mesmas questões e os argumentos utilizados para fundamentar a decisão recursivamente reclamada, procurando-se assim evitar que alguns escapem na exposição das alegações, necessariamente mais extensa, mais pormenorizada, mais dialéctica, mais rica em aspectos instrumentais, secundários, puramente acessórios ou complementares.
Como destaca o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.07.2015
[3]
, “
A lei exige que o recorrente condense em conclusões os fundamentos da revogação, modificação ou anulação da decisão.
Rigorosamente, as conclusões devem corresponder aos fundamentos que justificam a alteração ou a anulação da decisão recorrida, traduzidos na enunciação de verdadeiras questões de direito (ou de facto), sem que jamais se possam confundir com os argumentos de ordem jurisprudencial ou doutrinário apresentados no sector da motivação.
As conclusões exercem a importante função de delimitação do objecto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do art. 635º, nº 3, devendo corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do Tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo. Incluindo, na parte final, aquilo que o recorrente efectivamente pretende obter (revogação, anulação ou modificação da decisão recorrida), as conclusões das alegações devem respeitar na sua essência cada uma das als. do nº 2, integrando-se as respostas a tais premissas essenciais no encadeamento lógico da decisão pretendida”.
O papel relevante das conclusões foi indiscutivelmente reconhecido pelo legislador que no artigo 637.º, n.º 2 do Código de Processo Civil determina que o “
requerimento do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas
conclusões
deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade [...]
”, equiparando, em termos de efeitos jurídicos, a falta de alegação do recorrente e a ausência de conclusões nessa alegação, sancionando com o indeferimento do recurso qualquer uma dessas situações – artigo 641.º, n.º 2, b) do referido diploma legal. E ainda que as conclusões se mostrem formuladas, quando estas se revelem deficientes, obscuras ou complexas, ou não contenham as especificações exigidas pelo n.º 2 do artigo 639.º, impõe o n.º 3 deste último normativo a adopção de alguma das soluções paliativas aí contempladas, mediante convite do relator ao recorrente para que supra as patologias que afectam as conclusões, no prazo de cinco dias, sob pena de não conhecer do recurso na parte afectada.
Com a reforma introduzida em 2007 ao Código de Processo Civil, findou a possibilidade da falta de conclusões poder ser suprida mediante convite dirigido ao recorrente para proceder à sua formulação. O convite ao aperfeiçoamento só é consentido para as hipóteses hoje expressamente previstas no artigo 639.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, exigindo-se que, pelo menos, exista arremedo de conclusões, por muito incipiente que haja sido a sua formulação.
Em situação em que era aplicável a pretérita lei processual civil, mas cujos fundamentos não se mostram invalidados pela entrada em vigo da lei actual, defendia o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 21-01-2014
[4]
: “...,
no regime processual aplicável, são passíveis de aperfeiçoamento as conclusões deficientes, obscuras, complexas ou incompletas;
mas não é suprível a sua omissão pura e simples
(cfr. art. 685.º-A, n.º 3, CPC)”.
As alegações apresentadas pelos recorrentes findam com proposições que os mesmos designam por “
conclusões
”.
Contudo, elas não são mais do que a reprodução, praticamente fiel e integral, do texto que constitui o corpo das alegações, condensando numa só alínea o que no corpo das alegações expõem em diversos números, e omitindo parte da transcrição de depoimentos de testemunhas e algumas, sempre escassas e irrelevantes, passagens da exposição das motivações, numa indisfarçável tentativa de lhe conferir alguma distinção. Vã tentativa, pois que o texto das denominadas “conclusões” mais não é que do que reprodução
copy/paste
da exposição das motivações expressas no corpo das alegações, apenas com alguns cortes estrategicamente aplicados para lhe dar a aparência de que não constitui a repetição integral das mesmas.
Pese embora o entendimento benevolente seguido por jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça quanto ao não cumprimento escrupuloso das exigências formais impostas pelo artigo 639.º do Código de Processo Civil, preconizando a lei expressamente como solução para a não formulação de conclusões a rejeição do recurso, sem possibilidade de medidas paliativas, a violação deliberada, e, como no caso, despudorada, de regras processuais que se traduzem na mera repetição do exposto no corpo das alegações, ainda que o recorrente pretenda conferir-lhes aparente roupagem de conclusões, através da numeração das proposições anteriormente enunciadas, não deve ser tratada com maior benevolência do que a falta
tout court
de conclusões, sob pena de violação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade ao recusar a falhas desculpáveis a mesma solução permissiva que se aceita afinal para falhas deliberadas e conscientes.
Do acórdão da Relação de Coimbra de 14.03.2017
[5]
, pode, com efeito, retirar-se: “
a apresentação de “conclusões”, mediante a reprodução, pura e simples, do que é exposto na motivação – ainda que, em termos práticos o resultado seja o mesmo, por em ambos os casos faltar a tal síntese exigida por lei –, afigura-se uma atitude
ainda mais censurável do que a apresentação de alegações de recurso
, em que a parte, por esquecimento ou ignorância da lei,
as omite
. Neste caso haveria maior justificação para um convite ao aperfeiçoamento
[...]
– convite que, de qualquer modo, a lei rejeita – do que aqueles casos em que a parte, conhecendo o ónus que sobre si impende, numa atitude deliberada e consciente, negligentemente e em desrespeito de norma expressa, se abstém de efetuar a resenha dos fundamentos do seu recurso, limitando-se a reproduzir o teor do corpo das suas alegações sob o título de “conclusões” (confiando em que a parte contrária e o tribunal de recurso não se apercebam de que se trata de uma pura repetição do anteriormente alegado), entendendo-se que, em tal caso, não se justifica uma atitude complacente do tribunal no sentido de lhe dar uma oportunidade de apresentar verdadeiras conclusões”.
Como dá conta o citado acórdão do STJ de 21.01.2014, “...
é evidente que os [...] princípios da cooperação e do acesso ao Direito não podem ser invocados para - sem mais - neutralizar normas processuais de natureza especial e imperativa, nem outros princípios também estruturantes do (sub)sistema jurídico-processual, nomeadamente, os princípios da preclusão e da autorresponsabilidade das partes.
Como (no tocante ao primeiro deste princípios e ainda ao da boa fé processual) já decidiu este Supremo Tribunal, “[o]s princípios da cooperação e da boa fé processual não se podem sobrepor […] ao princípio da auto responsabilização das partes, o qual impõe que os interessados conduzam o processo assumindo eles próprios os riscos daí advenientes, devendo deduzir os competentes meios para fazer valer os seus direitos na altura própria, sob pena de serem eles a sofrer as consequências da sua inactividade, e ao princípio da preclusão, do qual resulta que os actos a praticar pelas partes o tenham de ser na altura própria, isto é nas fases processuais legalmente definidas”.
Com efeito:
Todo o direito consubstancia um sistema de normas de conduta suscetíveis de serem feitas respeitar. Consistindo o processo jurisdicional num conjunto não arbitrário de atos jurídicos que é ordenado em função de determinados fins, inere ao direito processual a definição das consequências resultantes da prática de atos não admitidos pela lei, ou da omissão de atos e formalidades que a lei prescreva, numa lógica precisamente assente, em larga medida, na autorresponsabilidade das partes e, conexamente, num sistema de ónus, cominações e preclusões.
O acesso ao direito e à tutela judicial efetiva processa-se num quadro de regras processuais, regras sem as quais, aliás, não seria possível corresponder aos imperativos de celeridade, igualdade das partes e equidade que – entre outros valores - enformam a disciplina jus-constitucional desta matéria (art. 20.º, CRP)”.
Retornando à situação concreta que se vem analisando, ter-se-á de concluir que os recorrentes, limitando-se a transpor, de forma praticamente integral, o texto do corpo das alegações, depois de lhe introduzir uma numeração, e aditando a expressão “conclusões”, na verdade não formularam conclusões, pelo menos do ponto de vista substancial.
Secundando o que se deixou escrito no acórdão da Relação de Guimarães de 29.06.2017
[6]
, “
não pode ficcionar-se que o copy past do corpo das alegações para um capítulo sugestivamente intitulado conclusões representa uma tentativa frustrada de cumprir o ónus de síntese, merecedora de convite a correcção e aperfeiçoamento, mediante um exercício de aparente interpretação generosa da lei preconizado como hábil e tolerante, inspirado em razões de oportunidade não contempladas na respectiva letra e contrárias ao pensamento legislativo, com apelo a um poder de criar normas que, por princípio, não cabe aos tribunais (cfr. ponto IV do sumário do Ac. STJ, de 13-11-2014, processo 415/12.1TBVV-A.E1.S1).
Tal método conduz ao nada. E o nada não é perfeito nem imperfeito. É nada. Por isso, não corrigível.
Contornar esta evidência, é atentar contra o claro desígnio do legislador, normativamente plasmado no regime de recursos e, entre outros, nos artigos 637º a 639º e 641º, do CPC, de regular, com disciplina e rigor, o exercício do inerente direito, impondo consequências preclusivas fatais compreensivelmente justificadas pelo acesso ao tribunal superior e com patrocínio obrigatório presumivelmente apto e responsável pelo seu cumprimento”.
Também o já mencionado acórdão da Relação de Coimbra de 14.03.2017 sufraga o incontornável entendimento de que “
a repetição, nas conclusões, do que é dito na motivação, traduz-se em falta de conclusões, pois é igual a nada, repetir o que se disse antes na motivação.
E, em nosso entender, não cabe ao tribunal dar a mão a quem, sabendo da obrigação legal de apresentar conclusões, não se deu, sequer, ao trabalho de
tentar
sintetizar os fundamentos do seu recurso, optando pelo tal “copy/paste”: o convite ao aperfeiçoamento existe atualmente, tão só, e só aí encontra a sua razão de ser, naquelas situações em que parte, de facto, tentou efetuar uma síntese do que por si foi dito na motivação, mas em que a falta de clareza ou de outro vício que afete a sua compreensibilidade, justifica o tal convite à sua correção, num ponto ou noutro, ou até na sua totalidade. Se não há lugar a qualquer operação de síntese, ainda que mínima ou com deficiências, não será o facto de o apelante a apelidar de “conclusões” que atribui tal natureza à reprodução do por si alegado na motivação.
A ausência de conclusões – enquanto indicação sintética das questões colocadas pelo recorrente – leva a que o recurso não possa ser conhecido por falta de objeto, de um circunstancialismo prejudicial a qualquer julgamento de mérito
[...]
”
[7]
.
Como se escreveu no acórdão da Relação de Guimarães de 24.01.2019
[8]
, “
Em boa verdade, o recurso a este expediente de copy paste, para duplicar as alegações como se fosse para concluir, revela um uso abusivo dos meios automáticos de processamento de texto e conduz à inexistência material de conclusões, pois se, sob este título, apenas se derrama (…) o teor da parte analítica e argumentativa, o que de facto se oferece ao tribunal de recurso é uma fraude” [...], com o que se não pode pactuar por, desde logo, criar entraves, acrescidos esforços, custos, dificuldades e prejuízos para a celeridade processual e, consequentemente, para a realização da justiça, que se impõe que seja exercida em prazo razoável, o que se não compagina com atuações como a dos autos. A reprodução integral do anteriormente alegado no corpo das alegações, ainda que apelidada pela apelante de conclusões, não pode ser considerada para efeito do cumprimento do dever de apresentação das conclusões do recurso, nem podem ser consideradas deficientes (motivação insuficiente, contraditória, incongruente ou mesmo excessiva), obscuras ou complexas, equivalendo, ao invés, à ausência de conclusões, o que sempre dará lugar à rejeição do recurso [...]”.
E mais recentemente, defende o acórdão desta Relação de 10.07.2024
[9]
:
“I - Em consonância com o regime plasmado na lei adjetiva, as conclusões das alegações correspondem às ilações ou deduções lógicas terminais de um raciocínio argumentativo, propositivo e persuasivo, em que o alegante procura demonstrar a consistência das razões que invoca contra a decisão recorrida.
II - Porque são o resultado e não o desenvolvimento do raciocínio alegatório, as conclusões têm, pois, necessária e legalmente de ser curtas, claras e objetivas.
III - Daí que a reprodução praticamente integral e ipsis verbis do anteriormente alegado no corpo das alegações, ainda que apelidada de “conclusões” pela apelante, não pode ser considerada para efeito de válido cumprimento do dever de apresentação das conclusões recursivas.
IV - Tal comportamento processual, equivalendo à ausência de conclusões, dará lugar ao não conhecimento do recurso de acordo com o que se dispõe no artigo 641º, nº 2 al. b) do Código de Processo Civil, não cabendo convite ao aperfeiçoamento no sentido de lograr suprir a inobservância desse ónus”.
Considerando, no caso aqui em apreço, que as alegações apresentadas pelos recorrentes não contêm conclusões, na concepção exigida pelo n.º 1 do artigo 639.º do Código de Processo Civil, tal constitui fundamento para a rejeição do recurso por eles interposto, ao abrigo do disposto no artigo 641.º, n.º 2, b) do mesmo diploma legal
[10]
.
Não ignoramos a posição que, distinta da solução que aqui se defende, se consolidou no Supremo Tribunal de Justiça.
Entendemos, todavia, que limitando-se os recorrentes a repetir a motivação das alegações, não está em causa a qualidade das conclusões, que poderia sustentar um convite ao aperfeiçoamento, mas a falta das próprias conclusões, omissão que não pode ser remediada por aquela via.
Continuamos, assim, a alinhar com a jurisprudência das Relações que entende que a mera repetição das alegações não tem a virtualidade de as transformar em “conclusões” apenas pelo facto de o recorrer lhes atribuir tal designação, não podendo ser aperfeiçoado o que não existe
[11]
, sob pena de se estar a legitimar uma conduta processual que corresponde a um flagrante incumprimento do ónus de concluir, legalmente exigido, e que a lei faz recair sobre o recorrente.
*
Síntese conclusiva:
……………………………………..
……………………………………..
……………………………………..
*
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em rejeitar o recurso interposto pelos recorrentes A..., GESTÃO E ASSESSORIA DE CARREIRAS DESPORTIVAS, LDA. e BB.
Custas: pelos recorrentes.
Notifique.
Porto, 8.05.2025
Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.
Judite Pires
Paulo Duarte Mesquita Teixeira
João Venade
_______________________________
[1]
Processo n.º 2817/18.0T8PNF.P1,
www.dgsi.pt
.
[2]
Processo n.º 413/15.3T8VRL.G1,
www.dgsi.pt
.
[3]
Processo 818/07.3TBAMD.L1.S1,
www.dgsi.pt
.
[4]
Processo 689/08.2TTFAR.E1.S1,
www.dgsi.pt
.
[5]
Processo n.º 6322/11.8TBLRA-A.C2,
www.dgsi.pt
.
[6]
Processo n.º 413/15.3T8VRL.G1,
www.dgsi.pt
.
[7]
No mesmo sentido, cfr. ainda acórdãos da mesma Relação de 10.11.2015, processo n.º 158/11.3TBSJP.C1, de 14.03.2019, processo n.º 314/17.0GAPTL.G1, de 4.04.2019, processo n.º 3652/17.9T8VCT.G1, de 24.01.2019, processo n.º 3113/17.6T8VCT.G1; da Relação do Porto, de 9.11.2017, processo n.º 14204/16.0T8PRT-A.P1, de 8.03.2018, processo n.º 1822/16.6T8AGD-A.P1, de 23.04.2018, processo n.º 6818/14.0YIPRT.P1, de 7.12.2018, processo n.º 1821/18.3T8PRD-B.P1; da Relação de Coimbra, de 10.11.2015, processo n.º 158/11.3TBSJP.C1, de 14.03.2017, processo n.º 6322/11.8TBLRA-A.C2; da Relação de Lisboa de 15.02.2013, processo n.º 827/09.3PDAMD.L1-5, de 21.02.2013 (ambas decisões singulares), 07.12.2016, processo n.º 141/14.7T8SXL.L1-2; da Relação de Évora, de 4.03.2010 (decisão sumária), processo n.º 385/04.0EAFAR.E1, de 21.12.2017, processo n.º 1301/17.4T8STR.E1, todos em
www.dgsi.pt
.
[8]
Processo n.º 3113/17.6T8VCT.G1,
www.dgsi.pt
.
[9]
Processo n.º 527/21.0T8MCN.P1,
www.dgsi.pt
.
[10]
Como adverte o Acórdão n.º 462/2016, do Tribunal Constitucional - Diário da República n.º 197/2016, Série II de 2016-10-13 -, “
o convite ao aperfeiçoamento de deficiências formais não pode ser instrumentalizado pelo respectivo destinatário, de forma a permitir-lhe, de modo enviesado, obter um novo prazo para, reformulando substancialmente a pretensão ou impugnação que optou por deduzir, obter um prazo processual adicional para alterar o objecto do pedido ou impugnação deduzida, só então cumprindo os ónus que a lei de processo justificadamente coloca a seu cargo
”.
[11]
Cfr. ainda acórdãos desta Relação de 9.11.2020, processo 18625/18.6T8PRT.P1; de 24.09.2020, processo 1842/19.9T8VNG-B.P1; de 30.04.2020, processo 429/12.1TBVFR-B.P1; da Relação de Guimarães de 27.02.2020, processo 756/14.3TBPTL.G1; de 11.06.2019, processo 314/17.0GAPTL.G1; de 24.01.2019, processo 3113/17.6T8VCT.G1; da Relação de Évora de 22.03.2018, processo 738/03.0TBSTR.E1; de 29.09.2016, processo 1358/15.2T8VFX.E1; da Relação de Lisboa de 7.12.2026, processo 141/14.7T8SXL.L1-2, todos em
www.dgsi.pt
.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/79fcc93dd906fe1d80258c910045e870?OpenDocument
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1,759,795,200,000
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APELAÇÃO IMPROCEDENTE
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110/23.6T8BGC.G1
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110/23.6T8BGC.G1
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CONCEIÇÃO SAMPAIO
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I – A atividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de fatores, que têm a ver com as razões de ciência, as garantias de imparcialidade, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as coincidências e contradições, ademais de os conjugar com os demais elementos objetivos.
II - O depoimento do condutor interveniente no acidente é um meio de prova de natureza testemunhal e por isso sujeito à livre apreciação do julgador, que deve avaliá-lo em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição em termos de coerência e consistência, espontaneidade e sinceridade e com a convicção que dele resultar.
III – Se o acidente não emerge de qualquer ação ilícita imputável ao condutor do veículo seguro que o torne incurso na previsão do artigo 483.º, nº1º do Código Civil, não impende sobre a seguradora a obrigação de ressarcir os danos invocados, não lhe podendo ser assacada qualquer responsabilidade.
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[
"PROVA TESTEMUNHAL",
"LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA"
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
I - RELATÓRIO
AA e BB, intentaram contra COMPANHIA DE SEGUROS EMP01... e FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, a presente ação, pedindo seja a R. Companhia de Seguros EMP01... condenada a pagar aos A.A., a título de danos patrimoniais e não patrimoniais e como danos próprios na qualidade de herdeiros, a quantia total de 405.000,00€, subsidiariamente seja o R. Fundo de Garantia Automóvel condenado a pagar aos AA. a quantia de 405.000,00€; condenados quer a 1.º R. quer a 2.º R nas custas, procuradoria e tudo mais que for de lei e ainda, nos juros calculados à taxa legal em vigor, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
Alegam os autores para tanto e em síntese serem únicos e universais herdeiros de CC falecido no dia 13.06.2021 em consequência de um acidente de viação provocado por um segurado da primeira ré e subsidiariamente, por condutor desconhecido, cuja responsabilidade recairá sobre o FGA.
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Citados os Réus, ambos contestaram invocando que o acidente se deveu única e exclusivamente ao de cujus, que se despistou sozinho, saindo da estrada e caindo numa ravina do lado direito atento o seu sentido de marcha, concluindo pela sua absolvição.
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Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo os Réus do pedido.
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Inconformados com a sentença vieram os Autores interpor recurso terminando com as seguintes conclusões:
[…]
9. No entendimento do Tribunal, decisivo para o desfecho do processo, foi o depoimento do condutor do ligeiro LC, DD, entendendo nós que ao depoimento desta testemunha não deve ser dada a credibilidade que o Tribunal efetivamente deu, porquanto se trata do depoimento de alguém que se comporta como parte interessada, já que, soubemos mais tarde, no local do acidente e no mesmo dia foi interrogado, percebeu que era suspeito do crime de homicídio e, mais tarde, foi constituído arguido, o que faz com que tenha todo o interesse em não contribuir para a sua própria condenação, não lhe sendo exigível que em julgamento alterasse o seu prévio depoimento, o que, infelizmente está de acordo com a regras da experiência comum neste tipo de acidentes.
10. A ser assim, face a um acidente em que naquelas circunstâncias (condutor morto, lugar ermo), várias são as vezes em que os condutores responsáveis pelos acidentes assim procedem, convencidos que estão de que não existem quaisquer provas. Impunha-se que o Tribunal fosse, mais cuidadoso, mais abrangente na sua apreciação e tivesse feito uma análise verdadeiramente critica das provas e circunstâncias, o que manifestamente e com o devido respeito por opinião contrária, não aconteceu.
11. Isto é, quanto ao facto verdadeiramente provocador do acidente e, por isso, o facto decisivo (o LC circulava fora de mão), tal e qual se lê no texto da decisão, o Tribunal baseou-se apenas no depoimento do tal condutor do LC, DD (e filha deste, que é a mesma coisa em termos de interesse direto).
12. Ao invés, entendeu o tribunal que as testemunhas que apresentamos como presenciais merecem reservas no comprometimento com a verdade, além do mais porque e continuando o Tribunal, são as únicas que sustentam a tese dos AA., como se se tratasse de uma questão de quantidade de testemunhas e não de qualidade de depoimentos, sendo certo que, conforme se evidenciou nos fundamentos do presente, os argumentos utilizados para evidenciar essa falta de crédito, na verdade e como ficou sobejamente demonstrado, não se verificam.
13. Quanto às contradições, em 16 dos factos provados, resulta que, aquando da interceção do XN com o ligeiro LC, este último foi obrigado a parar e encostar-se à sua direita.
14. Desde logo uma primeira contradição, porventura de menor importância, mas que é bem demonstrativa da falta de rigor: não é possível parar e depois encostar, antes o contrário – encostar e parar.
15. Mas a verdadeira contradição existe se pensarmos que, atendendo à largura da via, devidamente documentada nos autos e da hemi-faixa de rodagem, era impossível o ligeiro, no momento em que se depara com o trator, encostar à sua direita e negar-se que não circulava pela hemi-faixa contrária.
16. Se circulasse na sua hemi-faixa de rodagem, não só não precisava de se encostar à direita, como não tinha espaço para o fazer, atendendo à largura dessa hemi-faixa e à inexistência de berma, o que significa que o veículo ligeiro circulava, na verdade, pelo meio da estrada, obrigando assim o trator a desviar-se para a berma.
17. Este facto, dado como provado, resulta do depoimento do próprio condutor do ligeiro. Foi ele quem declarou que se encostou à direita e, dizemos nós, que só se poderia ter encostado à direita porque vinha circulando invadindo a hemi-faixa contrária.
18. Assim, não é possível em 16 dar como provado que, devido ao trator o LC, teve de se encostar à direita e parar e, ao mesmo tempo, dar como não provado o constante do item a) e z) dos factos não provados.
19. Esta contradição, só por si, obrigava a que no facto provado 16 fosse acrescentado “pois circula invadindo a hemi-faixa contrária” retirando a palavra “obrigado” e o a) dos não provados fosse dado como provado.
20. A este respeito da largura da via, a testemunha Guarda EE, que escreveu o auto e desenhou o croqui, dá-nos uma ajuda imprescindível, quando ouvido no dia 02/10/24 declara que a faixa de rodagem é de linha a linha, sendo, portanto, no local do acidente de 4,20m, mais declarando que desse lado descendente direito não existe berma, existindo barreira logo junto ao alcatrão.
21. Se atendermos que qualquer veículo ligeiro tem em média, pelo menos, 1,80m de largura, a que acrescem 30 cm para ambos os retrovisores, temos que a largura de 2,10m é a largura da hemi-faixa de rodagem onde circulava o ligeiro LC, pelo que, se no momento em que vai cruzar com o trator fosse nessa hemi-faixa de rodagem, não precisava, como afirma o próprio condutor, nem era possível, encostar-se (mais) à direita, porque na verdade não existe esse espaço.
22. Igual entendimento se retira dos documentos n.º 3 e 4 juntos com a petição, onde se vê o monte em cima do alcatrão, não existindo qualquer barreira e, percebendo-se que quem circula desse lado, não consegue fazê-lo normalmente sem invadir a faixa de rodagem contrária.
23. Isto quanto às contradições. Quanto ao demais, errada interpretação, vejamos as concretas provas que ditam resultado diferente do dado como assente:
24. A existência de erva alta do lado direito a subir e onde o trator deixou rastos, factos alegados pelos AA., deu o Tribunal como provados, já não assim quanto ao facto da erva ser espessa e o piso aí estar molhado, factos no nosso entendimento determinante para impedir que o trator voltasse ao alcatrão, já que a erva não deixava virar as rodas da frente e o piso molhado, impossibilitava a aderência e fez com que o trator fosse a escorregar, precipitando-se pela barreira.
25. Prova bastante existe no sentido em que choveu (aguaceiros naquele dia, o piso na berma (não no alcatrão) estava molhado e a erva era espessa). No entanto, refere o Tribunal que só as testemunhas FF e GG confirmaram este facto e nós atrevemo-nos a dizer que todas confirmaram este facto – piso molhado e erva espessa.
26. O Guarda HH, que acompanhou o colega EE no momento do acidente, ouvido no dia 02/10/2024 às 11:12 h, refere textualmente que o piso da estrada (leia-se alcatrão) estava seco, mas notava-se as ervas um bocado húmidas. Repare-se que estamos no Verão, tempo quente, aguaceiros, o que faz com que o alcatrão rapidamente fique seco, mas o chão onde estão as ervas continua molhado por baixo, que foi o que aconteceu.
27. O Guarda EE, questionado no mesmo dia, mas pelas 10h23, não teve dúvidas, quando interrogado sobre isto, esclareceu que o colega HH lhe tinha dito que as ervas estavam húmidas.
28. Mas, até o próprio DD, condutor do Ligeiro e quem, na ótica do Tribunal recorrido, merece toda a credibilidade, disse que, no local do acidente, “apareceram umas senhoras de galochas”, sabendo todos nós e por experiência que, quem anda no campo durante o verão, só usa galochas se a terra estiver molhada.
29. Portanto, não foram apenas duas testemunhas que confirmaram o piso molhado (da berma direita ascendente molhado), antes todas fizeram essa confirmação.
30. A testemunha GG relatou minuciosamente o que viu, explicou onde estava e porque estava, foi claro em afirmar que o veículo ligeiro circulava pelo meio da estrada, numa curva sem visibilidade e, por esse motivo, o trator dá uma guinada para a direita, entra na berma molhada e, porque não consegue corrigir a trajetória devido à erva e ao piso molhado, acaba por se despistar.
31. Sobre o motivo de o trator não ter parado no espaço em que, após guinar para a direita, também a testemunha FF explicou corretamente o motivo, mais referindo que, apesar de estar bastante desviado, não vendo o risco contínuo, viu o trator dar uma forte guinada para a direita para se desviar do veículo ligeiro, mais acrescentando que se não fosse a forma como este circulava, pelo meio da estrada, o trator não se despistava.
32. Ambos confirmaram e explicaram aquilo que as fotografias documentos n.º 3 e 4 juntas com a pi bem evidenciam: no local onde circulava o ligeiro, sentido descendente do lado direito, mesmo em frente ao sítio onde se despistou o trator, a curva não tem visibilidade, não existe berma, a estrada é muito apertada e no fundo da barreira em rocha que praticamente toca no alcatrão, existe uma saliência para a estrada, que obriga os condutores a invadir a faixa de rodagem contrária, nomeadamente quando essa saliência está coberta de monte como era o caso.
33. Não esquecer que a testemunha DD afirmou que viu no local um tal II, que é exatamente o pai da testemunha GG. E que este, DD, disse que parou junto de si um veículo ligeiro marca ..., sendo que a mesma testemunha também afirmou ter falado no local com o condutor deste ... e que o Guarda EE confirmou ter visto no local o seu colega polícia, a testemunha FF.
34. Resulta assim evidente que, das concretas provas e numa análise profunda, circunstancial e crítica, a decisão deveria ter sido pela procedência da ação e urge, por isso, alterar os factos provados e não provados conforme o exposto.
35. Este entendimento resulta ainda das regras da experiência e do normal do acontecer: o falecido era da aldeia onde se deu o acidente, manobrador de máquinas com grande experiência, passava ali, pelo menos, duas vezes ao dia e, por isso, conhecedor profundo da estrada, está a subir, conduz sem álcool, velocidade na casa dos 20 Km/hora, pois essa é a velocidade normal para um trator e então a questão que se coloca é a seguinte: o que de facto aconteceu para o trator sair para a berma e não ter voltado ao alcatrão?
36. A este propósito, bem respondeu o Guarda HH quando perguntado se é normal um trator despistar-se na estrada, ao que ao mesmo respondeu negativamente, não tendo conhecimento de qualquer despiste de um trator na estrada.
37. Analisar um acidente com trator é um exercício muito específico, cheio de particularidade, pois este tipo de veículo tem uma condução e comportamento bastante diferente de um automóvel, pelo que faz todo o sentido a tese de que se o mesmo entrar com as rodas de um lado em terra batida com erva e chão molhados, dificilmente volta ao alcatrão.
38. Dúvidas não nos restam que o trator sai do alcatrão para se desviar do ligeiro, que circulava invadindo a faixa de rodagem contrária, aparece rápido porque a curva não tem visibilidade.
39. Devemos, assim, concluir:
- O facto 6 dado como provado deve ter a seguinte redação: “Nas circunstâncias de momento e lugar referidas em 4.º, o piso do alcatrão estava seco, mas a berma direita ascendente e piso do mesmo lado estava molhado e com erva espessa.”
- O facto 7 dado como provado deve ter a seguinte redação: “a via não apresenta obstáculos, no entanto, no local do acidente, na parte inferior da barreira do lado descendente, existe uma saliência coberta de monte que obriga os condutores que aí circulam a invadir a hemi-faixa contrária”.
- No 16 dos factos provados, deve ser retirada a palavra “foi obrigado” ou dar-se como não provado.
- O facto a, b, c, d, f, g, h, i, j, k, l, e n, devem ser dados como provados.
40. E concluir-se pela procedência da ação, calculando-se os necessários danos sofridos pelos AA. e demais direitos destes, o que se requer.
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A Ré EMP01... apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação e manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
As questões decidendas a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:
– Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- Do mérito da sentença.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. Os factos
3.2.1. Factos Provados
Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:
1. CC faleceu no dia 13.06.2021, no estado de casado com a primeira autora, AA.
2. O segundo autor, BB, é filho da primeira autora e de CC.
3. CC deixou como únicos e universais herdeiros os autores.
4. No dia 13.06.2021, entre as 20:00h e 20:30h, na estrada municipal ...10, entre o km 0,2 e 0,5, Freguesia ..., Concelho ..., ocorreu um sinistro de viação.
5. A estrada, no sentido ascendente, faz uma curva para a esquerda, sendo que o meio do angulo da curva não é visível para quem vem no sentido descendente ou ascendente, o que faz com que os veículos que se cruzam sensivelmente ao meio da curva e só naquele momento é que se avistam.
6. Nas circunstâncias de momento e lugar referidas em 4., o tempo estava bom e o piso seco,
7. A via não apresentava obstáculos, 8. E a visibilidade no local era boa,
9. A berma direita da estrada no local referido em 4., tinha erva com altura de 50/60 cm.
10. Foi interveniente no sinistro de viação apontado em 4. CC, que conduzia o veículo trator agrícola, matrícula ..-..-XN.
11. Tal veículo trator agrícola, matrícula ..-..-XN, tinha, à data referida em 4., a sua responsabilidade por danos causados por sinistro a terceiros transferida para a EMP01..., nos termos da apólice com o nº ...62.
12. No local e à hora indicada em 4., CC, conduzia o trator XN no sentido ascendente, em direção à aldeia das ....
13. O trator XN tinha apostas as guardas/arcos de proteção do condutor.
14. No local e à hora indicada em 4., o veiculo matricula ..-LC-.., conduzido por DD, circulava na direção ... – ..., em sentido descendente.
15. O veículo ..-LC-.. conduzia a uma velocidade adaptada à via e às suas características.
16. Aquando da interceção do XN e do LC este último foi obrigado a parar e encostar-se à sua direita, atento o seu sentido de marcha.
17. Após, o tractor XN, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referidas em 4 e em 12. prosseguiu, volvendo à sua direita, atento o seu sentido de marcha, rompendo ribanceira abaixo, pois CC não conseguiu imobilizá-lo na berma, em espaço livre e visível à sua frente.
18. Entre o momento da incursão do trator na berma direita da estrada e a da sua morte, JJ sofreu angústia e sentiu a percepção da morte.
19. O condutor do LC parou e telefonou para o 112 e bombeiros a fim de ser o condutor do trator socorrido.
20. Entre o período compreendido entre 21.12.2013 e 24.12.2023 o veículo ..-LC-.. tinha transferido, pela apólice n.º ...84, a responsabilidade pelos danos causados a terceiros para a companhia de seguros EMP01....
21. KK passava no local referido em 4., conduzindo, pelo menos 2 vezes ao dia, dado residir em ....
22. Exercia a sua profissão de forma cuidadosa, experiente e zelosa, 23. Não apresentava álcool no sangue no momento do sinistro.
24. Aos fins de semana e feriados o falecido dedicava-se à agricultura, plantando e colhendo produtos que consumiam em casa, nomeadamente castanhas.
25. Em 13.6.2021, CC tinha 58 anos,
26. Era motorista profissional, na empresa EMP02..., onde trabalhava há mais de 10 anos.
27. CC auferia, mensalmente, um salário base no valor de 650 euros, a que acrescia o valor das horas extraordinárias, acaso as realizasse,
28. Era um homem trabalhador, 29. Alegre,
30. Preocupado com a mulher e o filho, 31. Bem-disposto,
32. Sociável e
33. Estimado no meio onde vivia e pelos colegas.
34. Os autores tinham uma enorme estima, apreço, carinho, amizade e amor por CC.
35. A morte de CC constitui para os autores uma perda irreparável. 36. Os autores sentiram-se e sentem-se psicologicamente abalados,
37. Deprimidos, 38. Tristes.
39. O autor, filho de CC, tinha 20 anos em 13.6.2021.
40. A autora recebeu do IPSS, a título de subsidio por morte de CC, a quantia de 1.316,43 euros.
41. A autora recebe, desde 1.6.2021, do IPSS uma pensão de sobrevivência, no valor mensal de 281,27 euros.
42. A autora tinha, em 13.6.2021, 46 anos.
43. O sinistro em questão nestes autos deu origem ao inquérito com nº 61/21.9GAVNH, onde foram investigados factos suscetíveis, em abstracto de configurar a prática de um crime de homicídio por negligencia, p.e p. pelo artigo 137.º do Código Penal, o qual foi encerrado mediante prolação de despacho de arquivamento.
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3.1.2. Factos Não Provados
Inversamente, foram dados como não provadas os factos alegados:
a) Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referidas em 4 e 12 dos factos provados o trator com matrícula ..-..-XN deparou-se com o veículo ligeiro de passageiros, com a matriculo ..-LC-.., a ocupar parte da sua hemi-faixa de rodagem.
b) E nessa sequência, para evitar a colisão, o trator com matrícula ..-..-XN guinou para a direita ingressando pela ribanceira abaixo.
c) Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referidas em 4 e 10 dos factos provados o trator com matrícula ..-..-XN deparou-se com um veículo não identificado a ocupar parte da sua hemi-faixa de rodagem.
d) E nessa sequência, para evitar a colisão, guinou para a direita ingressando pela ribanceira abaixo.
e) Tal ribanceira tinha cerca de 2/3 metros de altura.
f) A faixa de rodagem no local da estrada referido em 4 e 10 dos factos provados mede 4,20m de largura.
g) Os condutores que circulam no sentido descendente (...), no local em causa, têm tendência para saírem fora da sua hemi-faixa de rodagem, pois ao meio da curva para a esquerda, no sentido ascendente, do lado direito, o talude, na base, apresenta um elemento rochoso e saliente que provoca nos condutores o reflexo de dele se desviarem e guinarem para a esquerda.
h) Os condutores que circulam no sentido descendente (...), atenta a largura da sua hemi-faixa rapidamente passam a circular, em parte na hemi-faixa contrária, ocupando-a.
i) No dia 13.6.2021 choveu, sob a forma de aguaceiro.
j) A erva na berma da estrada (referida em 9. dos factos provados) era espessa e encontrava-se molhada.
k) O referido no ponto precedente contribuiu para diminuir a aderência dos pneus do trator ao piso e impediu o seu condutor de colocar o veículo novamente no asfalto.
l) O tractor agrícola XN seguia a uma velocidade adequada para o local.
m) O tractor agrícola XN encontrava-se em perfeito estado de funcionamento,
n) Circulava, naquele momento, no máximo a 20 km/hora, dentro da sua hemi-faixa de rodagem e respeitando as demais regras estadais.
o) Os autores levam uma vida diária de sofrimento,
p) O falecimento de CC retirou aos autores a vontade de trabalhar, divertir, alimentar e demais prazeres da vida,
q) Os autores dependiam de CC para viver em termos económicos,
r) Ambos os autores estão sem emprego. s) CC teve morte imediata.
t) CC retirava do cultivo de castanheiros um montante anual que rondava os 2.000/2.500 kg e que vendia, um rendimento anual não inferior a 3.000,00€.
u) CC trataria da sua agricultura até aos seus 70 anos de idade, auferindo nesse âmbito da qual auferiria o valor de 36.000,00€.
v) Auferia mensalmente, a título de vencimento, uma quantia líquida não inferior a 1.000 euros.
w) O valor da reforma mensal de velhice de KK seria de 600 euros.
x) KK era um homem robusto.
y) CC pautava a sua condução na estrada em questão pelo facilitismo e desatenção.
z) Quando o veículo ..-LC-.. descrevia uma curva à sua direita surge-lhe o trator XN a velocidade superior a 40 Km/hora e em descontrolo total.
aa) A curva referida em 5. dos factos provados fica a 500 metros da aldeia de ....
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3.2. O Direito
3.2.1. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto
Os Recorrentes consideram que houve erro na apreciação da prova quanto aos factos provados n.ºs 6, 7 e 16 que deveriam ter sido julgados como não provados (ou provados com outra redação) e, quanto aos factos não provados sob as alienas a), b), c), d), f), g) , h), i), f) , k) , l) , n) e z), que deveriam considerar-se como provados.
Consideram ainda ser contraditório dar por provado o facto provado 16 com o não provado em a) e o não provado em z).
Fundamentam a sua impugnação sustentando que deve ser desvalorizado o depoimento do condutor do veículo LC, porque parte interessada, e ao invés do que considerou o tribunal deve dar-se prevalência ao depoimento das testemunhas GG e FF.
Apreciemos.
Os factos que vêm impugnados respeitam à dinâmica do acidente.
Começam os impugnantes por evidenciar contradição no facto provado 16º e não provado a). Referem quanto ao primeiro que não é possível “parar” e “encostar-se à direita”, sendo que possível será o contrário: encostar-se à direita e parar. Daqui decorre que se, no momento em que os veículos se cruzam, o LC tem de se encostar à direita da via, é porque não circulava no lado direito dessa via e assim forçoso será concluir que só se encostou à direita porque seguia pelo meio da estrada.
Ressalvado o devido respeito, a circunstância de se encostar à direita não permite sem mais a conclusão de que seguia pelo meio da estrada. Nem o cálculo efetuado tendo por base a largura da estrada (de 4,20 m, sendo de 2,10 a hemi-faixa), e a largura do veículo LC (aproximadamente de 1,80) autoriza essa conclusão.
Donde, quanto a estes factos não há contradição.
Insurgem-se depois quanto aos factos referentes ao tempo, se o piso estava seco, se existia erva espessa e húmida na berma da estrada e se isso afetou a aderência do trator – factos provados em 6.º e não provados em i), j) e k).
Fundamentam que sendo verdade que o guarda HH, que fez a ocorrência do acidente, disse que o piso estava seco, também é certo que referiu que quando andou a ajudar a tirar as medidas, ao “deitar as mãos às ervas notava-se que estavam um bocado húmidas”.
Tal corresponde ao declarado pela testemunha, mas isso não quer dizer, como pretendem os autores, que a berma direita ascendente e piso do mesmo lado estava molhado e com erva espessa, pois o que resultou com segurança foi tão só que o tempo estava bom e o piso, leia-se estrada, estava seco. Não deixa de se salientar que neste ponto, o guarda EE, que tomou conta da ocorrência, declarou não se recordar de as ervas estarem húmidas.
Quanto à configuração da via, admitindo os impugnantes que no momento a via não apresentava obstáculos, pretendem, no entanto, que se consigne que no local do acidente, na parte inferior da barreira do lado descendente, existe uma saliência coberta de monte que obriga os condutores que aí circulam a invadir a hemi-faixa contrária.
Nenhum meio de prova permite tal ilação, nada havendo que permita concluir pela existência de uma saliência
que obriga os condutores a invadir a hemi-faixa contrária.
Improcede, assim, a pretendida alteração.
Quanto à dinâmica do acidente, propriamente dita.
A pretensão dos autores vai no sentido de ser relevado o depoimento das testemunhas GG e FF e desconsiderado o depoimento das testemunhas DD, condutor do LC e LL, sua filha.
Quanto às testemunhas GG e FF, que em suma afirmaram terem presenciado o acidente o qual se deveu ao facto de o condutor do ligeiro ter invadido a hemifaixa de rodagem do condutor do trator, o que está em causa é aferir da credibilidade do seu testemunho.
Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre eles num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão.
Exista ou não univocidade no teor dos depoimentos das testemunhas, os motivos pelos quais se lhes confere credibilidade têm subjacente elementos de racionalidade e experiência comum, avaliando-se a consistência do depoimento pela compatibilidade com a demais prova relevante e numa base de verosimilhança.
Por isso, a atividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de fatores, que têm a ver com as razões de ciência, as garantias de imparcialidade, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as coincidências e contradições, ademais de os conjugar com os demais elementos objetivos.
Compreende-se, em razão disso, que a lei disponha que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. Certo, no entanto, que a livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjetiva, mas apreciação que se realiza de acordo com critérios lógicos e objetivos, que determina dessa forma uma convicção racional e, portanto, objetivável e motivável.
Neste sentido, o depoimento das testemunhas GG e FF não pode ser relevado por uma razão fundamental. Afirmam encontrar-se no local e ter presenciado o acidente, quando não foram vistos por ninguém. É absolutamente inverosímil que um acidente desta magnitude e gravidade não impelisse estas testemunhas, que tão bem conheciam o condutor do trator, para junto dos intervenientes, desde logo para se inteirarem do seu estado de saúde e eventual prestação de socorro.
A justificação avançada sobre o motivo pelo qual os militares da GNR não viram a testemunha GG, assente no
conhecimento geral que, num caso destes, o local é vedado e não é permitida a permanência de ninguém, ordem que é mantida pela G.N.R.,
obviamente não pode colher, pois que, isso sim é do conhecimento geral, a preocupação da GNR nestes casos é identificar testemunhas presenciais do acidente.
A mesma estranheza, inultrapassável, quanto à testemunha FF.
Esta testemunha referiu que no local onde se encontrava via perfeitamente o trator, que reconheceu ser do CC porque este tinha acabado de lhe entregar uma cisterna e seguia na estrada em direção às ..., e afirma que “à distância que estou não consigo ver a marcação da estrada, mas vejo perfeitamente que o trator se desvia do carro e se não fosse o carro não havia acidente”.
Todavia, admite que quando chegou ao local já lá estava a GNR e o INEM, e, não obstante ser policia e pessoa próxima do condutor do trator, não informou as autoridades que havia presenciado o acidente. Só após o funeral, contou à mulher do falecido CC que tinha visto o acidente. Explica que no momento do acidente não se apresentou porque estavam lá as autoridades e que nestas circunstâncias considera preferível não intervir.
Como está bom de ver, e a testemunha não tem como ignorar, não era a sua intervenção como profissional que se exigia, antes como cidadão, com responsabilidade acrescida, que impunha que declarasse, no momento, ter presenciado o acidente.
De notar, que apesar destas testemunhas serem amigos do falecido e afirmarem estarem próximos do local e terem presenciado o mesmo, foi o condutor do LC a telefonar para as autoridades e para linha de emergência médica.
Daí que, do mesmo modo que o tribunal recorrido, não nos convencemos da veracidade do depoimento destas testemunhas.
Sufragamos o que na sentença a este propósito se expressou: «
Veja-se, desde logo, que são testemunhas que se predispõem à colaboração com a justiça em momento já avançado da investigação no inquérito 61/21.9GAVNH (e no qual a aqui autora declara que apenas apresentará testemunhas dos factos depois de saber o resultado da autopsia – cfr. despacho de arquivamento junto aos autos). Embora expressem ter estado no local, ninguém as viu e nem elas próprias se deram a ver, nem mesmo transmitiram aos militares ali presentes que tinham visto o sinistro e, por isso, podiam esclarecer o que havia sucedido. Tal omissão é particularmente espantosa no caso da testemunha FF, atenta a sua actividade profissional de policia de segurança pública
».
Evidencia-se que não está em causa avaliar qualquer estratégia processual ou o uso do arquivamento do inquérito como prova indiciária, antes e tão só, avaliar a credibilidade das testemunhas como impõe uma análise séria e critica das provas.
Por outro lado, não há motivo algum para que seja desvalorizado o depoimento das testemunhas DD, condutor do LC e LL, sua filha.
O argumento de que são partes interessadas, já que se trata do condutor do veículo interveniente e da sua filha, não pode colher.
Em primeiro lugar porque se estaria a fazer um pré-juízo quanto ao seu valor probatório. Estar-se-ia a desvalorizar o seu depoimento partindo do pressuposto de que elas se limitarão a confirmar a versão da seguradora, e dada a eminência de o condutor ser constituído arguido.
A demonstração de que o depoimento do condutor como testemunha, abstratamente considerado, não é um ato inútil para a decisão que ao juiz cabe proferir no processo radica, desde logo, na consagração legal do condutor como testemunha.
Circunstância diferente é a valoração do depoimento em face das especificidades concretas.
O depoimento do condutor interveniente no acidente é um meio de prova de natureza testemunhal e por isso sujeito à livre apreciação do julgador, que deve avaliá-lo em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição em termos de coerência e consistência, espontaneidade e sinceridade e com a convicção que delas resultou.
Depois de proceder à audição do depoimento de DD, condutor do veículo ..-LC-.., convencemo-nos da credibilidade e fiabilidade do por si declarado.
Esta testemunha referiu, em síntese, que seguia na estrada no sentido descendente (... – ...) e que aquando da interceção com o trator agrícola foi obrigado a parar e encostar-se à direita, após o que o trator prosseguiu e voltou à sua direita, atento o seu sentido de marcha, rompendo ribanceira abaixo, pois o seu condutor não conseguiu imobilizá-lo na berma.
Este depoimento foi corroborado pelo depoimento da testemunha LL, filha do condutor do LC e que seguia no veículo como passageira no banco traseiro.
Estas testemunhas depuseram de forma fluída, espontânea, objetiva e os seus depoimentos apresentaram-se coerentes em si e entre si.
De notar que a testemunha LL (enfermeira de profissão) se dirigiu até ao local onde o trator ficou imobilizado após o acidente, verificando o estado do condutor, tendo afirmado de forma perentória, que no local não se encontravam as testemunhas GG e FF, do que ficamos convencidos.
De toda a prova produzida, para além da já analisada, também a prova documental, consubstanciada nos fotogramas, participação crime e relatório técnico de inspeção ao local elaborado pelo NICAV e ainda o que foi declarado pelos militares da GNR HH e EE, conclui-se pela indemonstração da versão do acidente nos termos descritos pelos autores.
Resulta do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida no que se refere à factualidade impugnada, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido.
Termos em que, nesta parte, improcede a apelação.
*
3.2.2. Do mérito da sentença
O direito que os autores pretendem fazer valer através da presente ação inscreve-se no domínio da responsabilidade civil aquiliana que radica em quatro pressupostos essenciais: o facto ilícito, o nexo de imputação subjetiva, o dano e o nexo de causalidade.
Analisando a dinâmica do acidente, para em conformidade valorar juridicamente a ação dos respetivos intervenientes de molde a apurar o seu grau de contribuição ou responsabilidade na produção do mesmo, impõe-se considerar que apenas se apurou que o trator XN ao cruzar-se com o veículo LC a meio de uma curva, saiu da estrada e resvalou pela ribanceira, na sequência de uma viragem à direita, não sendo imputável esta ação ou efeito a qualquer conduta do condutor do veículo LC.
Com efeito, não se surpreende na atuação do condutor do veículo LC qualquer infração ou violação do dever de cuidado que o façam contribuir para a produção do acidente de forma culposa.
Por outro lado, também não contribuiu para a eclosão do sinistro o risco próprio do veículo.
Este concurso com o risco, está no caso afastado.
Na verdade, a medida do risco causado com a circulação rodoviária de certa viatura deve fixar-se em função da sua vocação ou aptidão para, em caso de colisão, provocar danos acrescidos no outro interveniente no sinistro. Tratando-se de um veículo ligeiro é até menor a sua capacidade de infligir danos relevantes no outro condutor que conduzia um trator agrícola.
Em suma, porque o acidente não emerge de qualquer ação ilícita imputável ao condutor do veículo LC que o torne incurso na previsão do artigo 483.º, nº1º do Código Civil, não impende sobre ré seguradora a obrigação de ressarcir os danos invocados pelos autores, não lhe podendo ser assacada qualquer responsabilidade.
Pelo exposto, impõe-se concluir pela improcedência dos fundamentos de recurso deduzidos pelos apelantes e pela consequente improcedência da presente apelação, com a confirmação da sentença recorrida.
*
IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Guimarães, 10 de Julho de 2025
Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes
2º Adj. - Des. Paula Ribas
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TRG
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https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/01788f2fb35b5e5880258cc900551d4b?OpenDocument
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1,747,180,800,000
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PROVIDO O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
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9/22.3GEVNG.P1
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9/22.3GEVNG.P1
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JOSÉ QUARESMA
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I - Por efeito do art.º 303.º do C.P.P., se dos atos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou no RAI, o Juiz comunica tal alteração para exercício do contraditório. No caso da alteração substancial, não podendo ser considerados esses novos factos sob pena de nulidade (art.º 309.º do C.P.P.), a sua estimação apenas se torna viável para efeitos de denúncia se, em si mesmos, forem autonomizáveis.
II - Na exposição dos factos a constar do despacho de pronúncia não se exclui que, no decurso da fase de instrução e até por ação da defesa, os factos originariamente constantes da acusação e do RAI se completem, pormenorizem ou se degradem em termos de riqueza de pormenor e individualização, ação que, nem sempre, defluirá na constatação da existência de crime diverso – pois podemos falar no mesmo pedaço de vida – ou numa alteração (não substancial) de factos, podendo, inclusivamente e numa terceira via, a plasticidade que a realidade comporta acomodar alterações de pormenor que não impliquem prejuízo para o arguido, ou a necessidade de mobilização do regime previsto no art.º 303.º do C.P.P..
III – Tendo a instrução sido requerida pelo arguido invocando a sua inimputabilidade por anomalia psíquica, resultando a sua confirmação indiciária da atividade processual por si gerada, para efeitos do estatuído no art.º 303.º, n.º 1 do C.P.P., não se pode falar, sequer, com propriedade, de uma alteração (não substancial) dos factos descritos no RAI, podendo a questão da inimputabilidade passar a integrar o despacho de pronúncia.
IV - Ainda assim, quanto à questão da perigosidade – não referida pelo arguido – a afirmação da sua existência, na sequência do apurado em instrução, também não configurará uma alteração substancial dos factos, porque não enquadrável na al. f) do n.º 1 do art.º 1º do C.P.P., sendo, pois, por exclusão, uma alteração não substancial, sendo que a definição do quadro de imputação jurídico criminal não se mostra alterado, apenas se modificando, do evento não resultando, nem a imputação de crime diverso, nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis importando, nesta parte (a da perigosidade), que o arguido se possa pronunciar, para efeitos do disposto no art.º 303.º, n.º 1 do C.P.P., prosseguindo os autos sem a determinada remessa ao Ministério Público para “reconfiguração” da acusação.
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[
"INIMPUTABILIDADE",
"DESPACHO DE PRONÚNCIA",
"ALTERAÇÃO DOS FACTOS CONSTANTES DA ACUSAÇÃO"
] |
Processo:
9/22.3GEVNG.P1
Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I.
I.1
Nos autos de instrução n.º 9/22.3GEVNG, que correu termos no Juízo de Instrução Criminal do Porto – Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em 20.05.2024 foi proferida decisão instrutória que concluiu pela não pronúncia do arguido AA pelos crimes por que vinha acusado, determinando, ainda, a devolução dos autos ao Ministério Público para - atenta a apontada inimputabilidade do arguido - proceder conforme entendesse por conveniente.
*
I.2
Não se conformando com o decidido veio o
Ministério Público
interpor o recurso ora em apreciação (Ref.ª 39146460) referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve:
1 - A alteração substancial dos factos, em sede de instrução, não pode ser tomada em conta pelo Tribunal de Instrução, para efeito de pronúncia.
2 - A alteração substancial dos factos verifica-se quando se verifique uma agravação dos limites máximos das penas aplicáveis ou quando importe crime diverso.
3 - O conceito de crime diverso inclui, não só a alteração factual que importa uma tipificação distinta, mas também as situações em que a tipificação é a mesma.
4 - Na definição do crime diverso, há-de atender-se aos sub-critérios do bem jurídico distinto, valoração social diferente, imagem social diferente e sério comprometimento da estratégia de defesa do arguido.
5 - A alteração factual resultante da verificação, em sede de Instrução, da inimputabilidade perigosa do arguido, não pode ser qualificada por substancial, por não incluir o conceito de crime diverso, nem pressupor, no caso, agravamento das molduras máximas aplicáveis.
6 - Não constituindo essa alteração, uma alteração substancial, pode o MMº Juiz de Instrução pronunciar o arguido, removendo os factos atinentes à imputabilidade e fazendo acrescentar os factos atinentes à inimputabilidade perigosa.
7 - Na impossibilidade de ter em conta factos que pressuponham uma alteração substancial e não sendo esses novos factos autonomizáveis, não pode o MMº Juiz de Instrução, devolver os mesmos ao MºPº para prolação de nova acusação, sob pena de tal constituir despacho de aperfeiçoamento, devendo antes proferir despacho de pronúncia – caso ela se mostre possível, mesmo sem os factos novos – ou de não pronúncia.
Nestes termos, farão V. Exas. Justiça.
*
I.3
Neste Tribunal o Digno Procurador-Geral Adjunto teve vista nos autos, tendo emitido parecer (Ref.ª 18625827) aderindo à argumentação recursória expressa em primeira instância e concluindo pelo provimento do recurso.
*
Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., tendo o arguido AA vindo arguir irregularidade, por omissão, em primeira instância, da notificação da admissão do recurso prevista no art.º 411.º, n.º 6 do C.P.P..
*
Detetada a omissão, foi suprida a irregularidade, não tendo o arguido oferecido resposta, nos termos do art.º 413.º do C.P.P..
*
Neste Tribunal
ad quem
o Digno Procurador-Geral Adjunto manteve o parecer anteriormente apresentado (Ref.ª 19240899) e o arguido, notificado nos termos e para os efeitos previstos no art.º 417.º, n.º 2, do C.P.P., desta feita, nada disse.
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
*
II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, dos vícios da decisão a que se alude no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. (cfr. art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, als. a) a c) do C.P.P. e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19.10).
Assim, atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências do seu eventual provimento e influência preclusiva:
a) Da existência de alteração substancial dos factos
b) Das consequências, no decidido, da inimputabilidade do arguido.
*
III.
Apreciando.
III.1
Por facilidade de exposição, retenha-se o teor do despacho recorrido:
(…)
DECISÃO INSTRUTÓRIA
O tribunal é competente.
Não existem nulidades ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito
*
Nos presentes autos, o Ministério Público proferiu, a fls. 226 a 2298, despacho de acusação, imputando ao arguido
AA
a prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo artigo 191.º, do Código Penal, e de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal.
*
Por seu lado, a assistente BB deduziu acusação particular contra o Arguido, a fls. 256/258, imputando-lhe a prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º do Código Penal.
*
Inconformado com as acusações deduzidas, o Arguido requereu a abertura de instrução, requerendo a sua não pronúncia, sustentando, em síntese, a sua inimputabilidade por anomalia psíquica.
*
Admitida a instrução, procedeu-se à tomada de declarações à Exma. Sra. Perita subscritora da perícia psiquiátrica efectuada ao arguido e ao debate instrutório, com observância do devido formalismo legal.
*
Assim sendo, cumpre agora proferir decisão, nos termos do art. 307.º do CPP.
*
A prolação de despacho de pronúncia depende da existência de indícios suficientes, obtidos através do inquérito e da instrução, de se terem verificado pressupostos exigidos para aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, nos termos do art. 308.º, n.º1, do CPP. Os indícios são suficientes quando deles resultar uma possibilidade razoável (não se exige uma certeza) de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou medida de segurança, conforme resulta dos arts. 283.º, n.º 2, e 308.º, n.º 2, do CPP, sendo certo, de qualquer modo, que a decisão instrutória não pode pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação ou no requerimento para abertura de instrução, nos termos dos arts. 1º, al. f), 303.º e 309.º do CPP.
*
Em relação ao enquadramento jurídico e à qualificação jurídica dos factos descritos nas acusações deduzida nos autos cremos nada haver a referir de relevante, sendo certo coloca em causa tal qualificação.
*
Quanto aos factos e à suficiência da sua indiciação cremos, igualmente, que pouco ou nada há referir, uma vez que a prova recolhida no decurso da fase de inquérito é idónea a sustentar as acusações deduzidas e os factos nelas alegados.
*
-
Da inimputabilidade do arguido
.
Nos termos do artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal, «é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.».
A imputabilidade pode definir-se como a capacidade de culpa por parte do agente, expressada na base da existência no indivíduo de um conjunto de requisitos psicológicos e normativos que permitam a imputação subjectiva de um acto ilícito, por dispor das condições mentais adequadas à censura pessoal decorrente da actuação contra o Direito, pese embora compreendesse a ilicitude do seu comportamento e pudesse ter actuado de acordo com esta compreensão.
Assim, no enquadramento legal referido e em contraponto, a inimputabilidade traduz uma incapacidade de culpa, dependente de dois elementos fundamentais e cumulativos, um biológico e outro psicológico: quanto ao elemento biológico, exige-se a verificação de uma anomalia psíquica por parte do agente, o que, além do mais, implica o recurso à qualificação médica das doenças do foro psiquiátrico que integram aquele conceito; quanto ao elemento psicológico, exige-se a comprovação de que a anomalia psíquica provocou no agente a incapacidade para compreender a ilicitude do seu acto ou para actuar conforme essa mesma compreensão.
Revertendo ao caso dos autos, importa, por um lado, verificar o preenchimento do elemento biológico referido.
Conforme resulta da perícia psiquiátrica de fls. 202, o arguido apresentava à data da prática dos factos um quadro de défice cognitivo e alterações comportamentais sequelar a TCE.
As consequências de tal quadro mostram-se igualmente descritas no referido relatório, salientando-se o não domínio por parte do Arguido dos seus efeitos – irritabilidade e impulsividade.
Deste modo, e como também se refere no aludido relatório, o quadro de défice cognitivo e alterações comportamentais sequelar a TCE registado ao Arguido integram o conceito de anomalia psíquica grave.
Verifica-se, pois, no caso, preenchido o elemento biológico da inimputabilidade.
Quanto ao preenchimento do elemento psicológico, resulta indiciado que o Arguido, no momento da prática do facto, ainda que capaz de avaliar a ilicitude dos seus actos, estava incapaz de se autodeterminar e controlar a sua acção (o que resulta das características e efeitos da doença de que padece) – cfr. relatório pericial e esclarecimentos da Sra. Perita nesta fase da instrução.
Por conseguinte, apesar de ter capacidade de avaliação da ilicitude dos seus actos, indicia-se suficientemente que o Arguido, quando adoptou a conduta em causa nos autos, estava incapaz de se determinar de acordo com aquela avaliação.
Destarte, a situação do Arguido enquadra-se na previsão do n.º 1 do artigo 20.º do Código Penal, devendo ser declarado inimputável.
*
-
Da perigosidade
.
Dispõe o artigo 1.º, n.º 2, do Código Penal, que a medida de segurança só pode ser aplicada a estados de perigosidade cujos pressupostos estejam fixados em lei anterior ao do seu preenchimento, sendo certo que, nos termos do artigo 40.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, a aplicação de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, apenas podendo ser aplicadas se forem proporcionais à gravidade do facto e à perigosidade do agente.
Por sua vez, dispõe o artigo 91.º, n.º 1, do Código Penal, que «quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável...é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.».
A aplicação da medida de segurança de internamento de inimputáveis exige a verificação cumulativa de dois pressupostos: a prática de um facto ilícito típico e a perigosidade do agente, no sentido em que a sua anomalia psíquica e a gravidade do facto praticado indiciem a probabilidade de que o agente venha a cometer factos idênticos.
Ora, no caso dos autos, conforme supra referido, o Arguido praticou factos tipificados como crimes pela lei penal, crimes esses puníveis com penas de prisão, pelo menos entre 3 meses e 3 anos – cfr. artigos 191.º e 212.º, ambos do Código Penal.
Quanto ao segundo pressuposto, importa ter presente que a perigosidade não é um estado permanente e imutável, inscrito irremediavelmente e constantemente na personalidade do indivíduo. Ela varia em função de múltiplos factores, internos e externos, que podem agir isoladamente ou de forma interligada. A perigosidade traduz-se, em síntese, no fundado receio de que o Arguido venha a cometer outros factos da mesma espécie, o que se avalia, conforme decorre expressamente do artigo 91.º, n.º 1, do Código Penal, pela existência de dois factores cumulativos: a verificação da anomalia psíquica e a gravidade do facto praticado. Quanto à anomalia psíquica e a gravidade dos factos, estes pressupostos, por si só, estão preenchidos, atento o supra exposto, sendo de a realçar apenas a gravidade dos factos, desde logo pela conduta do Arguido atentar contra a propriedade de uma vizinha e ser potenciadora de condutas mais graves ainda.
Acresce que, no caso da doença de que o Arguido padece, com especial relevância para as manifestações evidenciadas anteriormente, inclusive com a prática dos factos sob apreciação, resulta um fundado receio de que volte a cometer factos da mesma espécie, independentemente de, se respeitado o tratamento adequado, como parece estar a suceder nos tempos mais recentes, os riscos de reincidência se desvanecerem (conforme se extrai das declarações da Sra. Perita).
Concretizando, importa ter presente que a doença do arguido (que o determinou à prática dos factos ilícitos em causa) se mantém e persistirá no futuro, sem que exista perspectivas de cura. Assim, a prognose de reincidência é real, o que obsta à verificação da cessação objectiva da perigosidade.
Por outro lado, estando em causa a perigosidade subjectiva, impõe-se projectar a personalidade do Arguido no horizonte temporal futuro e ajuizar sobre a eventualidade de essa personalidade, associada à doença, poder, com razoabilidade, vir a estar na origem da prática de novos factos ilícitos idênticos.
Para esta tarefa de perscrutação do futuro é fundamental a análise do referido no relatório pericial, em que expressamente se afirma a perigosidade do Arguido, se não estiver eficazmente medicado.
Acresce que, das declarações da mulher do Arguido, recolhidas nesta fase da instrução, extrai-se que tem de se esta a controlar a toma da medicação, sob pena de o Arguido poder não a fazer correcta e atempadamente.
Ora, em face do exposto, havendo a certeza de que o Arguido já foi perigoso (que se evidenciou na prática dos ilícitos dos autos) e, bem assim, que a doença que o determinou a ser perigoso ainda se mantém, existe necessariamente o fundado receio de que volte a reincidir, para mais quando conjugado com o demais apurado nos autos e atrás referido.
No caso, a circunstância de o cumprimento da terapêutica adequada eliminar os riscos de reincidência e o facto de, no presente, o Arguido estar, aparentemente, a cumprir com aquela, não significa que a perigosidade não exista, nem que essa circunstância funcione como limite de perigosidade, para mais quando se verifica que o Arguido necessita de terceiros para cabal cumprimento do tratamento.
Assim sendo, conclui-se pela perigosidade do arguido e, consequentemente, pela probabilidade razoável de ao mesmo vir a ser aplicada uma medida de segurança, em sede de julgamento.
*
No entanto, uma vez que a pronúncia do Arguido como inimputável perigoso implicaria necessariamente uma alteração substancial dos factos descritos na acusação (com a tradução factual não só da inimputabilidade, como da perigosidade do Arguido), com a consequente nulidade da decisão instrutória, nos termos do artigo 309.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, impõe-se ao Tribunal que profira despacho de não pronúncia, remetendo os autos para inquérito, a fim de o Ministério Público proceder conforme entenda conveniente, em face da inimputabilidade do arguido.
*
->
Decisão.
Nestes termos, sem necessidade de ulteriores considerações e tendo em atenção tudo quanto acabo de deixar dito,
decido
:
a)
Não pronunciar
o arguido
AA
pelos crimes por que vinha acusado.
b) Após trânsito,
devolver
os autos ao Ministério Público, nos termos supra referidos.
*
(…)
*
III.2
Das finalidades da instrução
A decisão instrutória, no sentido da pronúncia, depende da existência de
indícios suficientes
, obtidos por via do inquérito e da instrução, que preencham os pressupostos de que depende a aplicação, ao arguido, de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. art.º 308.º, n.º. 1 do C.P.P.).
Os indícios são suficientes, na perspetiva do normativo invocado, quando, em face dos mesmos, seja, em termos de prognose, muito provável a futura condenação do arguido, sendo então esta, necessariamente, mais provável que a sua absolvição (cfr. art.º 283.º, n.º 1
ex vi
do art.º 308.º, n.º. 2, ambos do C.P.P.)[Vd. José Mouraz Lopes,
Garantia Judiciária no Processo Penal – Do Juiz e da Instrução
, Coimbra, 2000, pág. 68 v. e ss.].
A concretização do que sejam “indícios suficientes” assume fulcral importância nos ulteriores desenvolvimentos e metodologia empregues na apreciação do processado em fase de instrução. Assim, referia-se Cavaleiro Ferreira aos indícios, por aproximação às presunções naturais civis, nos seguintes termos: -
“A prova indiciária é prova indirecta. Os factos probatórios indiciários são os que permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos por meio de raciocínio em regras da experiência comum, ou da ciência, ou da técnica”
[
Curso de Processo Penal
, vol. II, pág. 237.].
A instrução não é, contudo, constituída apenas por prova indiciária. Como refere Germano Marques da Silva [
Do Processo Penal...
, pág. 347.], o indício é um meio de prova e todas as provas são indícios
“enquanto são causas, ou consequências morais ou materiais, recordações e sinais do crime”
. É neste sentido e segundo este autor que se deve interpretar o disposto no art.º 308.º do C.P.P..
Chama-se também a atenção para o facto de, nesta fase preliminar do processo, não se visar
“alcançar a demonstração da realidade dos factos”
[João de Castro Mendes,
Do Conceito de Prova em Processo Civil
, citado por Germano Marques da Silva,
op. e loc. cit
.], mas, apenas, sinais de que o crime se verificou, praticado por determinado arguido. Como conclui Germano Marques da Silva [
Op. e loc. cit.
],
“As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento”
.
Interpretando o exposto, na fase preliminar que é a instrução, não se pretende uma espécie de “julgamento antecipado”, nem um juízo de certeza moral e de verdade que é pressuposto da condenação, mas, tão só, a verificação de existência de indícios de que determinado crime se verificou e que existe uma probabilidade séria, aferida pela positiva e objetivamente, de que o mesmo foi praticado por um ou mais arguidos, e assim se apreciando a decisão do Ministério Público de acusar (ou, na inversa, de arquivamento). Nessa verificação deverá, no entanto, o julgador interpretar criticamente e no seu prudente arbítrio os indícios recolhidos em sede de inquérito e de instrução.
Em qualquer dos casos essa verificação da suficiência de indícios não implica a apreciação do mérito da acusação, no mesmo sentido em que tal ocorre na audiência de julgamento, mas apenas se julga da verificação dos pressupostos de que depende a abertura da fase de julgamento, evitando os efeitos da submissão do arguido a julgamento ante uma acusação cuja verosimilhança e sustento não permite perspetivar o seu sucesso.
*
III.3
Da alteração dos factos
Retendo o constante de III.2, da análise da decisão proferida e posta em crise – ainda que não haja, naquela, factos expressamente tidos por indiciados ou não indiciados – alcança-se que nunca esteve em causa a consistência indiciária da(s) acusação(ões) deduzida(s), ou a qualificação jurídica a dispensar a tais factos, mas, tão só, a questão da imputabilidade do arguido.
No caso e realizado o obrigatório debate, a decisão posta em crise concluiu pela inimputabilidade e pela perigosidade do arguido (o que o recorrente não contesta) afirmando, no entanto, que, tendo sido o arguido acusado como imputável, verifica-se, no caso e por força do decidido, uma alteração substancial dos factos que a decisão instrutória não pode integrar, face ao estatuído no art.º 303.º, n.º 3, do C.P.P., reenviando os autos ao Ministério Público.
Vejamos, pois.
Perante a imputação de determinados factos com relevância criminal, carece o arguido de conhecê-los (bem como a qualificação jurídica proposta) por forma a organizar convenientemente a sua defesa, na certeza de que não será surpreendido com a imputação de factos distintos.
Em síntese e como referem Teresa Beleza e Frederico Costa Pinto [Direito Processual Penal I, Objeto do processo, liberdade de qualificação jurídica e caso julgado (texto introdutório), F.D.L. 2001, pág. 17]
“(…) A estabilidade, identidade, indivisibilidade e consunção do objeto do processo são condições essenciais para garantir o direito de defesa, o princípio da acusação e a estrutura acusatória do processo penal. Desses aspetos depende ainda a efetivação do contraditório, o respeito pelo caso julgado e a aferição da litispendência, bem como o respeito pela proibição da dupla condenação pelo mesmo crime. (…)”
.
Reafirmando-se a ideia de que, definido o objeto do processo, o Tribunal não deve, em regra, poder considerar quaisquer outros factos ou circunstâncias que possam fazer perigar a defesa que o arguido estruturou, esta mesma manifestação do princípio do acusatório não se transmuta numa completa impossibilidade de alteração do objeto do processo. Na verdade, a conformação prática dessa garantia pode envolver, em contraponto, razões ponderosas de eficácia do processo penal, de descoberta da verdade e, até, de estabilização da paz do arguido perturbada com a sujeição a procedimento de natureza criminal e, eventualmente, a um estatuto coativo limitador (com natural interesse na finalização do procedimento) que potenciem e venham a permitir a modificabilidade daquele objeto que, assim, não se constitui numa realidade imutável. As garantias de defesa não se esboroam se o pedaço de vida sujeito a julgamento (ou instrução) puder sofrer adaptações, desde que se processem no seio de um processo justo e equitativo que garanta um efetivo direito ao contraditório, na concretização das variações que da apontada plasticidade possam advir e que, a final, se proíba o
ne bis in idem
.
Decompondo e exemplificando.
Se, por princípio, é desejável que os factos que delimitam o objeto do processo, no caso plasmados no despacho de acusação, se mantenham nuclearmente inalterados e, a final, provados ou não provados de acordo com a prova produzida e prontos para a subsunção ao Direito, nem sempre tal é possível ou sequer desejável.
Por um lado, não sendo o nosso sistema processual penal de estrutura acusatória pura, embora com caraterísticas de subsidiariedade, vigora também intrassistematicamente o princípio da investigação ou da verdade material, com concretizações nos art.ºs 154.º, n.º 1, 164.º, n.º 2, 174.º, n.º 3, 288.º, 289.º, n.º 1, 290.º, n.º 1, 340.º, 348.º, n.º 5 e 354.º do C.P.P., nos termos do qual o Tribunal (ainda que sob a égide do objeto do processo e vinculado tematicamente) investiga o facto sujeito a julgamento (ou instrução) ou elementos conexos relevantes, independentemente dos contributos da acusação ou da defesa e na dita prossecução da verdade material. Nesta medida e com este fito, os factos efetivamente apurados podem diferir daqueles que, com virtudes estáticas, constavam da peça processual delimitadora do objeto do processo.
Por outro lado ainda e sendo a recolha de informação indiciária - e sua qualificação como violadora de normas merecedoras de tutela jurídico-penal, enformada na delimitação do objeto do processo – coligida em fases preliminares do processo, mediante a produção de prova que terá de ser reproduzida e valorada em audiência, não raras vezes, por ação do processo de degradação da memória própria dos processos mnemónicos, pela recusa legítima em depor, pela indisponibilidade, em audiência, de determinado meio de prova ou por ação do princípio do contraditório pleno que vigora naquela fase, o processo de relato e reconstrução da verdade, a afirmação do efetivamente acontecido, pode não reproduzir,
ipsis verbis
, o que constava da acusação ou equivalente e, assim sendo, esta realidade inevitável não pode constituir escolho ou regra inultrapassável que, no limite, paralise a eficácia do processo penal, os interesses públicos que prossegue ou a consecução de uma efetiva descoberta da verdade.
Os factos desconformes à lei penal que, no relato do pedaço de vida, irão subsumir-se aos elementos típicos podem, no decurso do processo, sofrer alteração, quer por não demonstração parcial ou total, quer por ação contraditória, quer pela aquisição de novos conhecimentos não disponíveis (por inépcia ou sem culpa) nas fases preliminares que, a final, irão defluir numa realidade reconstruída do sucedido, com a eventual emergência de novos factos não constantes da acusação. Não sendo nada de raro ou novo, a própria lei acomoda a possibilidade (ou impossibilidade) desses novos factos poderem ser considerados pelo Tribunal, tematicamente vinculado como vimos, e agregados na sentença. Essa nova realidade ou o alcance da diferença (por referência ao que configurava o objeto do processo), pode constituir alteração substancial (art.º 1.º, al. f) do C.P.P.), seguindo o regime do art.º 359.º do C.P.P., ou, por exclusão, não substancial, neste caso com observância do estatuído no art.º 358.º, n.ºs 1 e 2 do C.P.P.
Mesmo quando não haja qualquer alteração factual, não sendo a qualificação jurídica dos factos vinculativa para o Tribunal de julgamento, mas entendendo-se que aquela constitui um dos tópicos para a organização e estruturação da defesa, aplicar-se-á o regime da alteração não substancial no caso de alteração daquela qualificação, conforme expressamente prevê o n.º 3 do art.º 358.º do C.P.P..
As considerações expendidas são também válidas para a fase específica da instrução. Também aqui, por efeito do art.º 303.º do C.P.P., se dos atos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou no RAI, o Juiz comunica tal alteração para exercício do contraditório. No caso da alteração substancial, não podendo ser considerados esses novos factos sob pena de nulidade (art.º 309.º do C.P.P.), a sua estimação apenas se torna viável para efeitos de denúncia se, em si mesmos, forem autonomizáveis.
Aqui chegados entramos, ainda que forma perfunctória, na temática da identidade do facto para - considerado o que a montante constava da acusação e o que, a jusante, resultou da fase instrutória - poder aferir da existência de uma alteração e da sua
substancialidade
. Assim e consoante a posição que se adote sobre a identidade do objeto do processo, a sua eventual transformação poderá assumir um valor distinto na equação.
Dependendo do sufrágio da tese naturalística, (com expoente na doutrina nacional personificado pelo Prof. Cavaleiro Ferreira), da corrente normativista, (defendida, entre outros, pelo Prof. Eduardo Correia) ou da corrente da valoração social do comportamento, da imagem social deste, (maioritária e aqui sufragada, com expressão doutrinária no Prof. Figueiredo Dias, o facto é componente de um determinado pedaço de vida que corporiza o objeto do processo), o resultado é diverso, sendo que, à luz deste último critério, a identidade ou diversidade do crime é aferida de acordo com valoração social daquele evento.
Ainda assim e aqui chegados, além das variáveis assinaladas, importa reter que na exposição dos factos a constar da pronúncia, não se exclui que, no decurso desta fase e até por ação da defesa, os factos originariamente constantes da acusação e do RAI se completem, pormenorizem ou se degradem em termos de riqueza de pormenor e individualização, ação que, nem sempre, defluirá na constatação da existência de crime diverso – pois podemos falar no mesmo pedaço de vida – ou numa alteração (não substancial) de factos, podendo, inclusivamente e numa terceira via, a plasticidade que a realidade comporta acomodar alterações de pormenor que não impliquem prejuízo para o arguido, ou a necessidade de mobilização do regime previsto no art.º 303.º do C.P.P.. A resposta pode, efetivamente, ser casuística.
No caso vertente a instrução foi requerida pelo arguido precisamente invocando a sua inimputabilidade por anomalia psíquica, i.e., a questão da sua (in)imputabilidade e consequente irresponsabilidade penal foi suscitada pelo próprio arguido e a sua afirmação resulta de atividade processual da sua iniciativa e responsabilidade.
Nesta medida e para efeitos do estatuído no art.º 303.º, n.º 1 do C.P.P., não se pode falar, sequer, com propriedade, de uma alteração (não substancial) dos factos descritos no RAI, podendo, por isso, passar a integrar o despacho de pronúncia.
Ainda assim, quanto à questão da perigosidade – ali não referida – a afirmação da sua existência, na sequência do apurado em instrução, também não configurará, salvo o devido respeito, uma alteração substancial dos factos, porque não enquadrável na al. f) do n.º 1 do art.º 1º do C.P.P., sendo, pois, por exclusão, uma alteração não substancial (a alteração não substancial de factos define-se por exclusão de partes sendo, portanto, aquela que não tiver por efeito
a imputação, ao arguido, de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis
e em que subsista a relevância para a decisão da causa).
Efetivamente, a definição do quadro de imputação jurídico criminal não se mostra alterado, apenas se modifica, do evento não resultando, nem a imputação de crime diverso, nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Assim sendo e não se tratando de alteração substancial, pelo menos quanto à questão da perigosidade, o arguido tem direito a pronunciar-se sobre o facto, para efeitos do disposto no art.º 303.º, n.º 1 do C.P.P..
Destarte, coerentemente ao afirmado, a decisão recorrida não pode manter-se.
Se há indícios, se o arguido é inimputável e se for perigoso (conclusão a que eventualmente se chegará após o exercício do contraditório), o arguido terá de ser pronunciado, com o acrescento dos necessários factos pelo Mma. JIC, não podendo concluir-se, como se concluiu, pela remessa dos autos ao Ministério Público.
*
*
IV.
Decisão:
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso do Ministério Público e, em consequência, decidem revogar o despacho recorrido, substituindo-o por outro que ordene o cumprimento do disposto no art.º 303.º, n.º 1 do C.P.P. quanto à questão da perigosidade, proferindo, a final, novo despacho de pronúncia ou não pronúncia.
*
Sem tributação.
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Porto, 14 de maio de 2025
José Quaresma
Raúl Esteves
Maria Joana Grácio
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/d618939a3edc422e80258c9f003549e1?OpenDocument
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1,747,872,000,000
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IMPROCEDENTE
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2693/23.1T8OER-A.L1-6
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2693/23.1T8OER-A.L1-6
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ANABELA CALAFATE
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I – Tendo ficado deserta a instância na acção executiva anterior, o novo prazo de prescrição começou a correr logo após a citação da apelada naquela acção, conforme prevê o nº 2 do art.º 327º do CC.
II – O prazo de 5 anos de prescrição não impede o exercício do direito de crédito, sendo certo que o mais plausível é que as instituições de crédito não tenham interesse em deixar arrastar a situação de incumprimento.
III - Os princípios constitucionais invocados pela apelante não são afrontados pela interpretação da lei ordinária, concretamente o art.º 310º al e) do CC acolhida no AUJ nº 6/2022.
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[
"DESERÇÃO DA INSTÂNCIA",
"PRESCRIÇÃO"
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Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório
Por apenso à execução instaurada em 06/07/2023 por ATTICUS – STC, SA contra AA e BB, veio esta deduzir embargos de executado, alegando, em síntese:
- o direito de crédito da exequente já prescreveu pelo decurso do prazo de 3 anos pois o título executivo é uma livrança com data de 30/06/2003;
- também já prescreveu o direito de crédito da exequente emergente do contrato de crédito datado de 16/01/2002, com incumprimento, vencimento e exigibilidade desde 16/07/2022, pelo decurso de mais de 5 anos.
*
A exequente contestou, concluindo pela improcedência da excepção de prescrição e para o caso de assim não ser decidido, pela condenação da embargante a restituir o capital mutuado e, para o caso de assim não ser decidido, pela condenação da embargante a restituir o veículo nos termos do art.º 303º nº 3 do Código Civil.
*
Em 11/12/2024 foi proferido saneador com este dispositivo:
«Pelo exposto, julgam-se procedentes os embargos, e declara-se extinta a execução relativamente à embargante.»
*
Inconformada, apelou a exequente, terminando a alegação com estas conclusões:
«A. O título executivo apresenta-se como requisito essencial da ação executiva e constitui instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda, isto é, documento suscetível de, por si próprio, revelar com um mínimo aceitável de segurança, a existência do crédito em que assenta a formulação da pretensão exequenda.
B. A Apelante aquando da propositura da ação, não se limitou a invocar a existência do seu direito de crédito, tendo antes alegado no requerimento executivo de forma contextualizada e circunstancial os factos constitutivos da relação cambiária subjacente.
C. De facto, são descritos no requerimento executivo os intervenientes no contrato, o tipo de contrato, o incumprimento ocorrido e interpelação efetuada, os esforços desenvolvidos e que vieram a culminar na apresentação do requerimento executivo.
D. É este o regime legal consagrado no artigo 703.º, n.º 1, alínea c) do CPC, no qual a Apelante se apoiou para intentar a presente ação executiva, pelo que a exceção de prescrição invocada pelo Embargante (Executada) não poderá proceder.
E. Razão pela qual a Apelante não teria de requerer ao Douto Tribunal
a quo
a alteração da causa de pedir.
F. A Sentença recorrida foi proferida sem que o Tribunal
a quo
observasse previamente uma formalidade de cumprimento obrigatório,
in casu
, a convocação da audiência prévia a fim de assegurar o contraditório (artigo 591.º, n.º 1, alínea b) do C.P.C.
G. Nem tampouco as partes foram notificadas pelo Tribunal
a quo
, informando-as da sua intenção em prescindir da audiência prévia e assegurando-lhes o direito ao contraditório, fundamentando uma eventual exigência de realização de audiência prévia.
H. A lei é clara ao afirmar que nestes casos o juiz não goza de tal discricionariedade, devendo assegurar o exercício do direito ao contraditório quanto às exceções dilatórias e ao mérito da causa.
I. Tanto mais que a Apelante alegou no seu articulado contestação factos relevantes que obstam ao conhecimento do mérito da ação, por via da exceção perentória de prescrição, obrigando à produção de prova em audiência de julgamento.
J. Esta omissão do Tribunal
a quo
de não convocação das partes para audiência prévia consubstancia “uma nulidade traduzida na omissão de um ato que a lei prescreve” (art.º 195.º, n.º 1, do C.P.C.).
K. Ao fazê-lo, com desconsideração da sua função de apreciação e de pronúncia (artigo 615.º n.º 1, alínea d) do CPC) sobre uma questão essencial, aliás a única tomada em conta na sentença final, a exceção perentória extintiva de prescrição da dívida, conduziu-o a uma errada e incompleta fundamentação de facto e de direito (artigo 615.º, n.º 1 alínea b) do CPC).
L. Tal comportamento configura uma nulidade por omissão legal de um ato que a lei prescreve como obrigatório (art.º 195.º, n.º 1, do C.P.C.), e, em último termo, violador do direito constitucional do direito à jurisdição (artigo 20.º da CRP).
M. Face à lei adjetiva vigente, é unânime o entendimento na doutrina e na jurisprudência de que o momento determinante para aferir do início do prazo de prescrição é a data em que ocorreu o vencimento obrigação.
N. Assim, não poderia o tribunal, para efeitos de início da contagem do prazo de prescrição, aplicar o regime previsto na L.U.L.L., 77º e 70º, ainda que extinta a obrigação cambiária incorporada no título cambiário pelo decurso do prazo de prescrição, este pode continuar a valer como título executivo.
O. Aliás resulta do próprio Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/10/2019 indica que a reforma processual de 2013 suprimiu a regra da genérica exequibilidade dos documentos particulares (que antes constava do art.º 46.º/1/c)); mas, quanto à ressalva/exceção estabelecida – possibilidade dos títulos de crédito poderem ser títulos executivos como quirógrafos – permanece válido o entendimento jurisprudencial/doutrinal antes firmado (em relação ao anterior art.º 46.º/1/c)).
P. Assim, o exequente tem o ónus de alegação no requerimento executivo dos factos constitutivos da relação subjacente; deve estar-se no domínio das relações imediatas; o negócio subjacente não pode ser solene; e, havendo oposição, o ónus da prova da existência da relação subjacente fica a cargo do exequente.”
Q. Deste modo, quanto à não conhecimento pelo tribunal
a quo
do circunstancialismo fáctico de apenas sobrestar parte do capital mutuado como remanescente em dívida à data da resolução do contrato, e de este exigir a aplicação legal do prazo geral de prescrição de 20 (artigo 309.º), anos à obrigação subjacente, verifica-se a ausência inequívoca de apreciação e de pronúncia (artigo 615.º n.º 1, alínea d) do CPC) sobre uma questão essencial que permitiria conhecer e concluir pela inexistência de qualquer exceção perentória extintiva de prescrição da dívida, repercutindo-se esta omissão na fundamentação errada e incompleta (artigo 615.º, n.º 1 alínea b) do CPC), de facto e de direito, aduzida pelo tribunal
a quo
.
R. A Apelante invocou expressamente na sua contestação a inconstitucionalidade da norma com base daquela interpretação.
S. No entanto, mais uma vez, o tribunal
a quo
não emitiu qualquer apreciação ou pronúncia sobre a pertinência deste fundamento que, perante a hipótese de aplicação do prazo quinquenal ao capital, assume determinante importância, colocando em causa uma interpretação que, além de ilegal, é também inconstitucional
T. O contrato aqui em apreço é um contrato de financiamento para compra de equipamento informático, celebrado entre as partes, que se traduz exatamente num empréstimo de dinheiro, um contrato que pressupõe uma obrigação global, cujo pagamento se encontra escalonado no tempo que se traduz numa obrigação única para o Embargante, correspondente ao capital mutuado e aos respetivos juros remuneratórios;
U. Portanto trata-se de um único contrato, celebrado com a Embargante, em que existe uma dívida previamente fixada, dívida esta que irá ser paga parcialmente, fraccionadamente, em diversas prestações previamente estipuladas.
V. As prestações fracionadas transmutaram-se numa única obrigação sujeita ao prazo prescricional ordinário, ou seja, foram destruídas pelo vencimento antecipado, ficando o capital sujeito ao prazo ordinário de 20 anos.
W. Não se enquadrando o capital no prazo de prescrição da alínea e), do art.º 310º C.C, nem na L.U.L.L., 77º e 70º.
X. Aplicar ao presente contrato o prazo quinquenal com os pressupostos que o AUJ do STJ emitido em 30-06-2022 – processo n.º 1736/19.8T8AGD-B.P1.S1 é inconstitucional, porquanto viola além do princípio da segurança jurídica, violando até basilares princípios constitucionais previstos nos art.º 2º, 12º, nº 2, 18º, nºs 1, 2 e 3 todos da Constituição da República Portuguesa.
Y. De facto, por muito respeito que mereça a fundamentação jurídica do referido Acórdão para aplicar artigo 310.º alínea e) do C.C., o mesmo não pode ser generalizado a todos os processos que apresentem a mesma questão de direito omitindo a especificidade da causa, dado que parte de um estudo originariamente
delineado para as situações de insolvência, e da preocupação do legislador em regular os casos em que um devedor acumulou inúmeros valores (prestações) em dívida, de tal modo que a sua concentração, acrescida de juros e outros encargos agrave a posição de fragilidade em que aquele se encontra.
Z. Se assim não for entendido, isto representaria uma clara desproteção do credor que nem sequer vê o valor do capital mutuado e já vencido passível de ressarcimento constituído, tal facto, uma desproporcional aplicação do direito do devedor em detrimento do credor o que ataca o princípio da segurança jurídica, violando até basilares princípios constitucionais previstos nos art.º 2º, 12º, nº 2, 18º, nºs 1, 2 e 3 todos da Constituição da República Portuguesa.
AA. A aplicação imediata da uniformização de uma nova corrente de pensamento e aplicação jurídica dos prazos de prescrição aos contratos de mútuo, quirógrafos e demais títulos executivos sem uma disposição transitória que gradue temporalmente essa aplicação é uma medida desproporcional que afeta o princípio constitucional da Proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2.º da Constituição.
BB. Apesar de aqui a Embargada não ter intentado esta nova ação executiva dentro do prazo prescricional da relação cartular, prevista no artigo 70.º da LULL, a Embargada intentou dentro do prazo prescricional dos 20 anos, bastando à Exequente alegar os factos constitutivos da relação subjacente, seja no título cambiário ou, na ausência deste, no próprio requerimento executivo, como se verifica no caso concreto.
CC. Sendo excessiva, inadequada e desnecessária face ao princípio já consagrado no art.º 310.º, n.º 1 al. d) C.C. e a proteção que o mesmo dá aos devedores, isto considerando a fundamentação implícita no Ac. Uniformizador de Jurisprudência.
DD. Enferma para tal de inconstitucionalidade a norma presente no artigo 310º, alínea a e) do CPC, por violação dos princípios constitucionais, da proporcionalidade, segurança jurídica e proteção jurídica, assim como de igualdade de armas num Estado de Direito.»
*
Não há contra- alegação.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, pelo que as questões a decidir são:
- da alegada nulidade processual por ter sido proferida decisão final sem realização de audiência prévia
- se a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia
- se deve improceder a excepção de prescrição
*
III – Fundamentação
1. A 1ª instância proferiu despacho nestes termos:
«Tendo em conta as regras dos artigos 732º/2, 593º/1, 591º/d) e 595º/1 do CPC dispensa-se a realização de audiência prévia.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia – e não há nulidades que invalidem todo o processado.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (por habilitaçao dos sucessores do primitivo executado) e estão devidamente representadas - fixando-se o valor da causa em 14.535,49€.».
O valor fixado à causa não é impugnado pela apelante.
O art.º 732º nº 2 do CPC (Código de Processo Civil) estatui:
«Se forem recebidos os embargos, o exequente é notificado para contestar, dentro do prazo de 20 dias, seguindo-se, sem mais articulados, os termos do processo comum declarativo.»
No que respeita à audiência prévia, o processo comum declarativo contém disciplina específica para as acções de valor não superior a metade da alçada da Relação, estabelecendo no art.º 597º:
«Nas ações de valor não superior a metade da alçada da Relação, findos os articulados, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 590.º, o juiz, consoante a necessidade e a adequação do ato ao fim do processo:
a) Assegura o exercício do contraditório quanto a exceções não debatidas nos articulados;
b) Convoca audiência prévia;
c) Profere despacho saneador, nos termos do no n.º 1 do artigo 595.º;
d) Determina, após audição das partes, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
e) Profere o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º;
f) Profere despacho destinado a programar os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas;
g) Designa logo dia para a audiência final, observando o disposto no artigo 151.º.»
O nº 1 do art.º 44º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei 62/2013 de 26/08) dispõe:
«Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5 000,00.»
Como o valor da causa não é superior a metade da alçada da Relação, cabia ao juiz ponderar sobre a necessidade de convocar audiência prévia, não tendo aplicação o nº 1 do art.º 593º do CPC.
Pelo exposto, improcede a arguição de nulidade processual com fundamento na violação do disposto nos art.º 195º nº 1 e 591º nº 1 al. b) do CPC.
*
2. Se a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia nos termos do art.º 615º nº 1 al. d) do CPC
2.1. A fundamentação exposta pela 1ª instância é esta:
«A embargante excepciona a prescrição da obrigação cambiária, por terem decorrido mais de três anos (L.U.L.L. 70º) desde o seu vencimento (11-VII-03).
Respondeu a exequente que foi instaurada execução pela ‘Credibom S.F.A.C.’ (29736/03.2YXLSB) – tendo a embargante sido citada em 8-XI-04 (data em que se interrompeu a contagem).
Interrompida a contagem em 8-XI-04 (CC 323º/1), o novo prazo de três anos reiniciar-se-ia com o trânsito em julgado da decisão de extinção da execução (CC 326º/1 e 327º/1); no entanto, da certidão entretanto junta verifica-se que a execução foi julgada deserta em 17-V-10 – valendo assim a regra do nº 2 do artigo 327º do Código Civil: “o novo prazo prescricional começa a correr logo após o acto interruptivo.”.
Reiniciado em 8-XI-04, o prazo de três anos foi completado em 8-XI-07 – pelo que, quando a embargante foi citada para a presente execução, há muito que se encontrava esgotado; assiste, assim, à embargante, o direito de recusar o cumprimento (CC 304º/1).
A embargada alega que a livrança, mesmo prescrita, pode valer como quirógrafo (CPC 703º/1c)) – mas não foi assim que foi apresentada na presente execução, e não pode ser agora considerada esta “alteração da causa de pedir”.».
*
2.1.1. Sustenta a apelante:
- no requerimento executivo apoiou-se no regime legal consagrado no art.º 703º nº 1 al. c) do CPC, pois alegou os factos constitutivos da relação subjacente,
- ao não conhecer desses factos, a 1ª instância omitiu pronúncia sobre questão essencial que lhe permitiria concluir pela improcedência da excepção de prescrição.
Vejamos.
O art.º 703º do CPC estabelece, na parte que ora interessa:
«À execução apenas podem servir de base:
(…)
c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
(…)»
*
No requerimento executivo lê-se:
«Finalidade da Execução: Pagamento de Quantia Certa - Letras, livranças e cheques [Execuções] Título Executivo: Livrança
Factos:
1 - A Credibom – Instituição Financeira de Crédito, S.A em 17/10/2007, por alteração ao pacto social, mudou-se a firma social de Credibom – Instituição Financeira de Crédito, S.A. para Banco Credibom, S.A.
2- Por Contrato de Cessão de Créditos assinado no dia 18 de Maio de 2012, em Lisboa, o Banco Credibom, S.A., cedeu à sociedade Prime Credit 3, S.A.R.L., ora Requerente, os créditos que detinha sobre os ora Executados, incluindo capital, juros, indemnizações e quaisquer outras obrigações pecuniárias, conforme Documento N.º 1 e N.º 2 que ora se junta.
3. Cessão essa notificada aos Executados nos termos do artigo 583.º, n.º 1 do Código Civil, conforme Documento N.º 3.
4. Posteriormente, em 16 de março de 2021, foi celebrado um contrato de cessão de créditos, entre PRIME CREDIT 3, S.A.R.L, na qualidade de cedente e, ATTICUS – STC, S.A., na qualidade de cessionária, - conforme Documento N.º 4
5. Contrato pelo qual foram transmitidos os créditos e as garantias que a cedente detinha sobre os Executados, conforme Documento N.º 5 tendo sido esta cessão essa notificada ao Executado, nos termos do artigo 583.º, n.º 1 do Código Civil – conforme Documento Nº 6
6. A Cedente primária, no âmbito da sua actividade, celebrou com os ora Executados, o contrato, ao qual foi atribuído o n.º ... conforme Documento N.º 7
7. O referido contrato, tinha como objecto, um empréstimo.
8. Ora, apesar de devidamente interpelados para regularizar a dívida em que incorreram, pelo não pagamento do montante total em incumprimento, os ora Executados não efectuaram, até à presente data, qualquer pagamento. Nem prestaram qualquer justificação, situação que motivou a resolução do contrato e o preenchimento da livrança, conforme Documento N.º 8 e N.º 9.
9- Uma vez que, até à presente data, os ora Executados não pagaram qualquer quantia, são devidos juros de mora, calculados sobre o capital 7,673.62 €, à taxa legal de 4%, desde a data de vencimento da livrança (11-07-2003) até à presente data (03-07-2023), acrescido de despesas advindas da interposição da presente acção.
10– Os documentos juntos preenchem os requisitos destas disposições legais pelo que lhes deve ser reconhecida a natureza de títulos executivos.
11 – A dívida é certa, líquida e exigível.
Junta: 9 (nove) Documentos e Procuração»
*
Com o requerimento executivo foi junto o documento intitulado «Contrato de crédito» em que na página da frente figuram como concedente do crédito «Credibom – Sociedade Financeira para Aquisições a Crédito», como vendedora Basílio & Cruz Automóveis Lda, como consumidor AA e como 2ª titular BB, estando as assinaturas destes junto da data «16/01/2002»; na rubrica «Descrição do Bem e Condições de Financiamento» consta que é concedido o crédito de 6.635,29 € para aquisição do veículo Volkswagen Golf III Vanant matrícula 05-60-Ep, que as prestações para pagamento do empréstimo são 60, no valor de 180,70 € cada, no valor total de 10.842 €, vencendo-se a 1ª prestação em 16/02/2002 e as restantes no dia 16; mais consta a taxa nominal e TAEG.
No verso desse documento estão as «Condições Gerais do Contrato de Crédito», lendo-se na 11 sob a epígrafe «Convenção de Preenchimento»:
«O(s) Consumidor(es) e o(s) Avalista(s) autorizam expressamente a Credibom a preencher qualquer livrança por si subscrita e não integralmente preenchida, designadamente no que se refere à data de vencimento, ao local de pagamento e aos seus valores, até ao limite das responsabilidades assumidas pelo(s) Consumidor(es) perante a Credibom, acrescido de todos e quaisquer encargos com a selagem dos títulos.»
*
O documento 8 junto com o requerimento executivo é a carta datada de 30/06/2003 que CREDIBOM, SFAC, SA enviou ao mutuário AA, em que se lê, designadamente:
«Assunto: Preenchimento de livrança do Contrato de Crédito nº (…)
Exmo Senhor
Vimos por este meio informar que o contrato acima referido de que v. Exa é titular, foi denunciado por falta de pagamento. Desta forma, e de acordo com as cláusulas contratuais, é agora exigido o pagamento da totalidade do valor do contrato, incluindo este o montante das prestações em atraso e o montante do capital em dívida até ao final do prazo do empréstimo, acrescido de despesas extrajudiciais incorridas até à data desta carta.
(…)»
*
Na petição inicial dos embargos de executado vem alegado, designadamente:
«4º
A presente execução tem por título executivo uma Livrança nº ... datada de 30/06/2003 a qual tinha sido assinada previamente pelos Mutuários e aqui executados.
5º
A questão da prescrição do direito cartular prende-se directamente com o artigo 70.º da Lei Uniforme de Letras e Livranças (doravante LULL), onde se dispõe: “Todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento”
6º
Donde se conclui que o Direito da Exequente encontra-se prescrito á muito tempo – prescrição que aqui expressamente se invoca.
7º
Ainda que tal livrança tenha sido emitida para garantir um contrato de crédito igualmente é um facto que as prestações fixadas no contrato de mútuo para reembolso do capital mutuado, juros remuneratórios e encargos como é o caso do Contrato de Crédito nº ..., datado de 16/01/2002, encontram-se sujeitas ao prazo de prescrição de cinco anos consagrado no artigo 310.º alínea e) do Código Civil.
8º
O prazo de prescrição conta-se a partir do vencimento da prestação respectiva, independentemente de esse vencimento ocorrer no momento programado ou de forma antecipada, que no caso concreto computa-se a partir da entrada em incumprimento, que no caso ocorreu em 16 de Julho de 2002, aquando do pagamento da 5ª prestação que já não ocorreu por ter ocorrido o óbito do Primeiro Executado em 29/06/2002, assim artigo 307º do Código Civil.
9º
Ora o prazo de prescrição nesse caso é de cinco anos é igualmente aplicável aos juros de mora.»
*
Na contestação vem alegado, designadamente:
«II – DO CONTRATO – RELAÇÃO SUBJACENTE
22. Em 16/01/2002, a Embargante, na qualidade de mutuária, e Embargada celebraram um contrato de crédito n.º ..., destinado a financiar a aquisição de um automóvel de passageiros usado, marca e modelo Volkswagen Golf III Variant, matrícula ..-..-EP, a adquirir na loja “Basílio & Cruz C Automóveis, Lda, pelo montante de € 6.635,29 (seis mil, seiscentos e trinta e cinco euros e vinte e nove cêntimos), cfr. Doc. 2 que se junta e se dá por integralmente reproduzido.
(…)
24. Como garantia de cumprimento do referido contrato, a Embargante e o Executado subscreveram uma livrança com o n.º ..., sendo que em 30/06/2003 face ao incumprimento e resolução preencheu a mesma pelo valor de € 7.673,62 (sete mil, seiscentos e setenta e três euros e sessenta e dois cêntimos), e a qual se venceu em 11/07/2003, cfr. Doc. 4 que se junta e se dá por integralmente reproduzido.
25. Embargante e Embargada acordaram que o valor do empréstimo seria liquidado em 60 prestações mensais e sucessivas, no valor de € 180,70 (cento e oitenta euros e setenta cêntimos), com vencimento da primeira prestação no dia 16/02/2002, e as restantes em igual dos meses subsequentes.
26. Prestações mensais essas que foram desde logo pré-definidas.
27. Assim como, o bem objeto do contrato – um automóvel de passageiros usado, marca e modelo Volkswagen Golf III Variant, matrícula ..-..-EP foi efetivamente adquirido cfr. Doc. 5 que se junta e se dá por integralmente reproduzido.
(…)
24. Como garantia de cumprimento do referido contrato, a Embargante e o Executado subscreveram uma livrança com o n.º ..., sendo que em 30/06/2003 face ao incumprimento e resolução preencheu a mesma pelo valor de € 7.673,62 (sete mil, seiscentos e setenta e três euros e sessenta e dois cêntimos), e a qual se venceu em 11/07/2003, cfr. Doc. 4 que se junta e se dá por integralmente reproduzido.
(…)»
Portanto:
- logo no requerimento executivo foram alegados os factos referentes à relação subjacente à obrigação cartular;
- na petição inicial de embargos de executado foi invocada a prescrição do direito de crédito quanto à obrigação cartular, e
- também foi invocada a prescrição do direito de crédito quanto às obrigações fixadas na relação subjacente
Decorre do exposto que não tem razão a 1ª instância ao entender que a exequente pretende «alteração da causa de pedir».
Mas o não conhecimento da questão da improcedência da excepção de prescrição do direito de crédito sustentado na relação subjacente por aplicação do prazo previsto no Código Civil não é causa de nulidade da decisão por omissão de pronúncia, pois foi a consequência necessária daquele entendimento a 1ª instância.
Improcede a arguição de nulidade da decisão com esse fundamento.
*
2.1.2. Sustenta a apelante que a decisão recorrida não se pronunciou sobre a questão invocada na contestação da inconstitucionalidade da alínea e) do art.º 310º do Código Civil quando interpretado no sentido de que deve ser aplicada ao capital nos contratos de crédito, por violação dos princípios da proporcionalidade, da igualdade de armas e direito a tutela jurisdicional efectiva.
Na contestação vem alegado:
- a mutuante comunicou aos executados que considerava a dívida totalmente vencida pela falta de pagamento e sem efeito o plano prestacional acordado,
- pelo que após o vencimento, os valores em dívida voltaram a assumir a sua natureza de capital e de juros, ficando o capital sujeito ao prazo de prescrição ordinário de 20 anos e os juros ao de 5 anos;
- a aplicação do prazo de prescrição de 5 anos no caso concreto representaria uma clara desprotecção do credor que nem sequer veria o valor do capital mutuado e já vencido passível de ressarcimento, e uma protecção excessiva do devedor, violando os princípios constitucionais previstos nos art.º 2º, 12º nº 2, 18º nº 1, 2 e 3 e 62º nº 1, todos da Constituição da República Portuguesa.
Porém, a decisão da 1ª instância não aplicou o prazo de prescrição previsto no Código Civil, mas sim o prazo previsto quanto à obrigação cambiária na LULL (Lei Uniforme sobre Letras e Livranças). Por isso, o conhecimento da questão da inconstitucionalidade ficou prejudicado, improcedendo necessariamente a arguição de nulidade por omissão de pronúncia (cfr art.º 608º nº 2 – 1ª parte do CPC).
*
3. Se deve improceder a excepção de prescrição
3.1. Esta execução foi instaurada em 06/07/2023 e a ora apelada foi citada em 27/10/2023.
Na decisão recorrida vêm dados como assentes os seguintes factos:
a) A mutuante Credibom S.F.A.C. já tinha instaurado execução contra os mutuários AA e BB que correu termos no 6º Juízo Cível – 2ª Secção de Lisboa, como P. 29736/03.2YXLSB,
b) tendo a executada BB sido citada em 08/11/2004;
c) essa execução foi julgada deserta em 17/05/2010.
Na contestação, vem alegado que o prazo de prescrição é de 20 anos e foi interrompido em 10/11/2004 com a citação da executada no Proc. 29736/03.2YXLSB nos termos do art.º 323º nº 1 do CC, pelo que só haveria prescrição em 10/11/2024.
Na decisão recorrida entendeu-se que o prazo de prescrição começou a correr logo após o acto interruptivo pois aquela execução foi julgada extinta por deserção, por valer a regra do nº 2 do art.º 327º do CC.
Prevê-se no Código Civil:
Art.º 323º
«1. A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.
2. Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.
(…)»
Art.º 326º
«1. A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do acto interruptivo, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo seguinte.
2. A nova prescrição está sujeita ao prazo da prescrição primitiva, salvo o disposto no artigo 311.º»
Art.º 327º
«1. Se a interrupção resultar de citação, notificação ou acto equiparado, ou de compromisso arbitral, o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que puser termo ao processo.
2. Quando, porém, se verifique a desistência ou a absolvição da instância, ou esta seja considerada deserta, ou fique sem efeito o compromisso arbitral, o novo prazo prescricional começa a correr logo após o acto interruptivo.
(…)».
Portanto, como a instância ficou deserta na acção executiva anterior, o novo prazo de prescrição começou a correr logo após a citação da apelada efectuada em 08/11/2004, conforme prevê o nº 2 do art.º 327º do CC.
*
3.2. Cumpre agora qual o prazo de prescrição a considerar
A data de vencimento que consta na livrança é «20030711».
O art.º 70º da LULL – aplicável às livranças «
ex vi
» do art.º 77º - estabelece, na parte que ora interessa:
«Todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento.
(…)»
Se a execução se fundasse apenas na relação cartular, seria inevitável concluir, como a 1ª instância, que o prazo de prescrição de 3 anos estava há muito esgotado na data em que foi instaurada.
Porém, como já dissemos, a execução funda-se também na relação subjacente alegada no requerimento executivo, sendo neste caso a livrança mero quirógrafo.
*
Na petição inicial de embargos de executado vem alegado:
«7º
Ainda que tal livrança tenha sido emitida para garantir um contrato de crédito iguamente é um facto que as prestações fixadas no contrato de mútuo para reembolso do capital mutuado, juros remuneratórios e encargos como é o caso do Contrato de Crédito nº ..., datado de 16/01/2002, encontram-se sujeitas ao prazo de prescrição de cinco anos consagrado no artigo 310.º alínea e) do Código Civil.
8º
O prazo de prescrição conta-se a partir do vencimento da prestação respectiva, independentemente e esse vencimento ocorrer no momento programado ou de forma antecipada, que no caso concreto computa-se a partir da entrada em incumprimento, que no caso ocorreu em 16 de Julho de 2002, aquando do pagamento da 5ª prestação que já não ocorreu por ter ocorrido o óbito do Primeiro Executado em 29/06/2002, assim artigo 307º do Código Civil»
*
Na contestação vem alegado:
«64. Com o reiterado incumprimento do plano prestacional acordado pelos Executados, a mutuante foi obrigada a resolver o contrato de crédito e a reclamar dos Executados a totalidade do capital em dívida, dos juros vencidos e despesas.»
«71. A mutuante, comunicou por escrito aos executados e ora Embargante que a dívida estava considerada totalmente vencida pela falta de pagamento, e sem efeito o plano prestacional acordado, deixando assim os Embargantes de beneficiarem dos prazos de vencimentos acordados previamente para cada uma das prestações mensais.
72. O contrato celebrado entre as partes traduz-se exatamente num empréstimo de dinheiro, um contrato que pressupõe uma obrigação global, cujo pagamento se encontra escalonado no tempo.
73. Ou seja, traduz uma obrigação única para os devedores embargantes, correspondente ao capital mutuado e aos respetivos juros remuneratórios; Portanto trata-se de um único contrato, celebrado com os Embargantes, em que existe uma dívida previamente fixada, dívida esta que irá ser paga parcialmente, fracionadamente, em diversas prestações previamente estipuladas.
74. Daí resultando, que as prestações fracionadas transmutaram-se numa única obrigação sujeita ao prazo prescricional ordinário, ou seja, foram destruídas pelo vencimento antecipado.
75. Ora, após o vencimento, os valores em divida voltam a assumir em pleno a sua natureza original de capital e de juros, ficando o capital sujeito ao prazo ordinário de 20 anos e os juros ao de cinco anos.
76. Aliás, o devedor nunca será penalizado em mais de cinco anos de juros! Pelo que, desde já assume a aqui Embargante que acresce razão aos Embargantes quando alegam a prescrição destes nos termos do art.º 310º, al. d) do C. Civil.
77. Nesse sentido, o Ac. Tribunal Relação do Porto de 24/01/2022, processo n.º 22815/19.6T8PRT-A.P1 (…)
78. Pelo que, a alegação de que tal aplicação do prazo quinquenal seria motivado para evitar que o crédito fosse excessivamente oneroso para o pagamento a cargo do devedor, não pode proceder»
Na apelação vem alegado:
«38. Complementarmente, e em abono desta sua posição em não ver aplicado o prazo de prescrição de 5 anos, a Embargada defendeu que a partir da data de resolução/vencimento antecipado, deixaram de existir juros remuneratórios, típicos das prestações periódicas ou quotas de amortização, que sequer remanesciam neste caso porquanto só estava em divida o capital, porque convencionados para a vigência dos contratos, passando a aplicar-se daí em diante apenas os juros moratórios legais previstos para o capital.
39. Assim, impor-se-ia ao capital vencido a aplicação do prazo de prescrição de 20 anos nos termos do art.º 309.º do C.C.»
Concluindo a apelante em U, V e W:
«U. Portanto trata-se de um único contrato, celebrado com a Embargante, em que existe uma dívida previamente fixada, dívida esta que irá ser paga parcialmente, fraccionadamente, em diversas prestações previamente estipuladas.
V. As prestações fracionadas transmutaram-se numa única obrigação sujeita ao prazo prescricional ordinário, ou seja, foram destruídas pelo vencimento antecipado, ficando o capital sujeito ao prazo ordinário de 20 anos.
W. Não se enquadrando o capital no prazo de prescrição da alínea e), do art.º 310º C.C, nem na L.U.L.L., 77º e 70º.»
Portanto, no recurso vem a apelante contrariar o que alegou na contestação e o que consta na carta de resolução, dizendo agora que a partir da data de resolução/vencimento antecipado deixaram de existir juros remuneratórios, estando só em dívida o capital.
Aliás, nas condições gerais do contrato invocadas na carta de resolução lê-se:
«14. – Antecipação de vencimento.
A Credibom poderá considerar antecipadamente vencidas toas as prestações emergentes do Contrato e exigir o cumprimento imediato, caso ocorra o não cumprimento de qualquer obrigação.
(…)
15 – Penalização por incumprimento
O não cumprimento de qualquer das obrigações de natureza pecuniária assumidas no Contrato implicará a obrigatoriedade do seu pagamento e de todas as prestações vincendas (…)»
Ora, o art.º 573º do CPC estatui:
«1 - Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado.
2 - Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.»
Portanto, a quantia exequenda integra as quotas de amortização do capital pagáveis com os juros.
Importa por isso, lembrar que o art.º 310º do Código Civil prevê:
«Prescrevem no prazo de cinco anos:
(…)
d) Os juros convencionais ou legais, ainda que ilíquidos, e os dividendos das sociedades;
e) As quotas de amortização do capital pagáveis com os juros;
(…)»
Ora, o Supremo Tribunal de Justiça fixou a seguinte Uniformização de Jurisprudência pelo AUJ nº 6/2022 (de 30/06/2022,
in
DR I, de 22/09/2022):
«I - No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação. II - Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.»
Significa que à luz do AUJ e do art.º 310º al e) do Código Civil o prazo de prescrição a considerar é o de 5 anos, que já tinha decorrido quando foi instaurada esta nova execução.
*
3.3. Se a excepção de prescrição deve improceder por ser inconstitucional a alínea e) do art.º 310º do Código Civil quando interpretada no sentido de que deve ser aplicada ao capital nos contratos de crédito, por violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade, da igualdade de armas e direito a tutela jurisdicional efectiva.
Invoca a apelante os art.º 2º, 12º nº 2, 18º nº 1, 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa, que estabelecem:
Art.º 2º
«A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.»
Art.º 12º
«1. Todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição.
2. As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza.»
Art.º 18º
«1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.»
Alega a apelante:
«Não comportando o capital qualquer tipo de juros, o desrespeito pela aplicação do prazo de prescrição geral de 20 anos representaria uma clara desproteção do credor (…)». Mas, como já ficou esclarecido em 3.2. a quantia exequenda integra os juros remuneratórios que compõem as prestações.
Argumenta a apelante que «a aplicação cega» daquele AUJ desprotege as instituições que concedem crédito e que em caso de incumprimento ficam «impedidas de reaver até o capital que emprestaram». Porém, o prazo de 5 anos de prescrição não impede o exercício do direito de crédito, sendo certo que o mais plausível é que as instituições de crédito não tenham interesse em deixar arrastar a situação de incumprimento. E na verdade, no mesmo ano em que enviou a carta de resolução do contrato, a Credibom SFAC instaurou a execução (Proc. 29756/03.2YXLSB) que depois foi extinta por deserção da instância.
Além disso, a apelante nem sequer é a mutuante e decorre do requerimento de 10/10/2023 e dos documentos juntos ao requerimento executivo que só adquiriu o crédito exequendo em 16/03/2021 por compra à anterior cessionária. Ora, decorridos tantos anos sobre a carta de resolução só de si se pode queixar a apelante por ter adquirido um crédito cuja cobrança não foi obtida em execução que tinha sido extinta por deserção da instância no ano de 2010, sem se assegurar de que não corria o risco de se defrontar com a sua prescrição.
Concluindo, no caso concreto é manifesto que os princípios constitucionais invocados pela apelante não são afrontados pela interpretação da lei ordinária, concretamente o art.º 310º al e) do CC acolhida no AUJ nº 6/2022.
Improcede, pois, também este fundamento do recurso.
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IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação.
Custas pela apelante.
Lisboa, 22 de Maio de 2025
Anabela Calafate
Adeodato Brotas
Vera Antunes
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/1925c47021b6224180258c96004929af?OpenDocument
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1,747,872,000,000
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REVOGADA A SENTENÇA
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1478/23.0T8VFR.P2
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1478/23.0T8VFR.P2
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PAULO DUARTE TEIXEIRA
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I - O principio da livre apreciação da prova não permite que se comprove uma factualidade sem qualquer meio de prova produzido nos autos.
II - As circunstâncias exteriores ao processo que deram origem a determinada tramitação não podem condicionar o juízo probatório se, afinal, ficaram indemonstradas.
III - O instituto do maior acompanhado consagra um novo paradigma, que rompe com o modelo monista anterior e que assenta na consagração de flexibilidade visando o apoio e benefício da pessoa.
IV - No âmbito do mesmo se uma maior com 88 anos, analfabeta e com um défice cognitivo ligeiro não consegue de forma autónoma levantar dinheiro e gerir a sua vida financeira corrente necessita de uma medida protectora.
V - Se parte relevante do auxílio à mesma tem sido prestado por uma vizinha não se pode considerar que as necessidades de apoio estejam acauteladas através de deveres gerais de assistência, pois, não existe qualquer relação de parentesco.
VI - A limitação dos direitos deve ser a menor possível, na medida do estritamente necessário na situação concreta.
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[
"MAIOR ACOMPANHADO",
"DECRETAMENTO DE MEDIDA",
"PRESSUPOSTOS"
] |
Processo: 1478/23.0T8VFR.P2
Sumário:
………………………………
………………………………
………………………………
I
–
RELATÓRIO
AA, id a fls. 2,
intentou a presente ação de acompanhamento de maior de
BB
,
pedindo o acompanhamento da Requerida, pela sua neta CC, sobretudo nas decisões que digam respeito aos seus atos da vida de gestão dos seus bens, nomeando-se como acompanhante a sua neta CC.
Alegou, em suma, que a Requerida nasceu no dia 6 de setembro de 1936, vivia com o seu marido, tendo ficado viúva no dia 19 de janeiro de 2023; a Requerente e sua irmã CC são as únicas familiares diretas da Requerida, para além de seu pai e genro; o marido da beneficiária era quem fazia a gestão do dinheiro de ambos, das contas bancárias, bem como de todas as obrigações fiscais, pagamentos de água e eletricidade; era ainda o marido da Requerida que fazia todos os movimentos financeiros, entregando à Requerida os montantes necessários para a compra dos bens alimentares; a Requerida não sabe ler, nem escrever, apenas assina o seu nome; não sabe utilizar o cartão multibanco e utiliza o telemóvel com muita dificuldade; a Requerida, devido à sua idade, embora perfeitamente autónoma, tem já alguns lapsos de memória próprios da idade; devido aos condicionamentos já referidos e porque não tinha o controle financeiro da sua vida, não tem a verdadeira noção do valor do dinheiro; após a morte do marido tem sido a sua neta CC quem lhe presta auxílio e acompanhamento; a Requerida confessou à sua neta CC, ter pedido a terceiros para efetuar levantamentos da sua conta, a quem entregou o cartão multibanco e os códigos respetivos, não tendo a noção da gravidade da sua conduta; não sabendo qual o montante levantado e não conseguindo explicar, porque verdadeiramente se esqueceu, onde gastou cerca de € 300,00 em dois ou três dias; os recursos financeiros da Requerida, são limitados, recebe neste momento uma reforma de cerca de € 400,00 mensais, estando ainda a aguardar a pensão de sobrevivência que lhe será atribuída pelo óbito do marido; as suas netas têm justo e fundado receio que, devido às suas limitações, próprias da idade e também pelo facto de não saber ler, nem escrever e nunca ter tido o controle da sua vida financeira, seja vítima de burlas ou deixe de cumprir com as suas obrigações fiscais, de pagamentos de água e eletricidade; mais têm justo e fundado receio de que contraia dívidas ou pratique atos de disposição de alguns dos seus bens, sem que tenha a verdadeira noção dos atos praticados; apesar de ter capacidade para residir sozinha, porque assim o deseja, a Requerida não tem capacidade para controlar a sua vida financeira.
A beneficiária foi citada para contestar a ação; verificando-se a hipótese prevista nos artºs 895º, nº 2 (beneficiária se encontrar impossibilitada de receber a citação), e 896º, nº 2 (na falta de resposta), do Código de Processo Civil, citou-se o Ministério Público, o qual apresentou contestação.
A beneficiária foi ouvida e sujeita a exame pericial, tendo o Perito Médico, no seu relatório concluído “
1 – A examinada é portadora de DÉFICE COGNITIVO LIGEIRO, com alterações cognitivas pouco relevantes e que não atingem grave e globalmente as suas funções psíquicas. 2 – Constata-se assim que não existe à data do exame médico uma limitação grave da faculdade de discernimento da Examinanda. 3 – À luz dos conhecimentos médicos atuais, pode melhorar, com a continuação dos tratamentos médicos e também com a melhoria dos apoios sociais, familiares e também dos serviços de apoio comunitários se e quando necessário; pode também piorar, se tiver algum agravamento dos seus problemas de saúde, nomeadamente problemas cardio-vasculares e também da doença oncológica, e também com o processo de envelhecimento. 5 – A deficiência constatada não limita séria e permanentemente as capacidades da Examinanda, mas impede-a de gerir a sua pessoa e bens de forma autónoma, muito provavelmente desde que enviuvou e passou a viver sozinha, tendo necessidade de ser apoiada nas atividades de vida diárias, nas compras, pagamentos, no recurso aos serviços de saúde e nos tratamentos, nomeadamente medicação que tem de lhe ser devidamente preparada e também nas decisões de gestão patrimonial de maior responsabilidade, tendo em conta os dados disponíveis e a situação clínica à data do exame médico. 6 – Sendo seu desejo regressar a sua casa, não parecendo que isso seja impeditivo de manter o apoio próximo da sua neta, pode atualmente essa situação significar uma melhoria efetiva da sua satisfação pessoal e qualidade de vida, sem prejuízo da efetivação do acompanhamento. 7 – Nestes termos entende o perito que a Examinada é uma maior condicionada no exercício dos seus direitos pessoais e de celebrar negócios da vida corrente por razoes de saúde, sendo indispensável que o Tribunal lhe atribua uma acompanhante, parecendo a sua neta CC ser quem reúne as condições para o desempenho das funções de acompanhamento conforme a vontade claramente expressa pela Examinanda e também pelas suas netas, que a apoie na administração dos bens pessoais e patrimoniais de maior relevância, que a apoie nas atividades simples da vida diária e na utilização de recursos da comunidade, nomeadamente nos cuidados de saúde; sugere-se a revisão periódica do acompanhamento no prazo de 4 anos, dadas as alterações possíveis no seu estado de saúde, pelas doenças e idade
”.
Com Vista nos autos, o Ministério Público
promoveu que se julgue a ação improcedente, por não se mostrarem verificados os pressupostos do acompanhamento de maior, cfr. artigo 138.º, do Código Civil.
Cumprido o contraditório quanto à posição do Ministério Público, a Requerente pugnou pelo decretamento de acompanhamento da Requerida.
Foi proferida decisão nos termos da qual a acção foi julgada totalmente improcedente.
Inconformada veio a requerente interpor recurso o qual foi admitido de apelação, a subir nos próprios autos e imediatamente, e com efeito meramente devolutivo, nos termos conjugados dos artºs 644º, nº 1, al. a), 645º, nº 1, al. a), 647º, nº 1, todos do referido diploma legal.
Por acórdão deste tribunal foi determinada ao abrigo do art. 662º, nº2, b) e c) do CPC a inquirição da testemunha arrolada pela requerente, a realizar pela mesma titular que inquiriu as restantes, com a consequente anulação da sentença proferida.
Foi realizada essa inquirição com a duração e 5 minutos (acta de 7.1.25) e depois proferida a mesma decisão.
Inconformado, de novo, veio a requerente AA interpor recurso o qual foi admitido nos mesmos termos do anterior.
*
2.1. A apelante apresentou as seguintes conclusões cujo restante teor se dá por reproduzido:
1- Como da errada fixação da factualidade provada e não provada resulta prejuízo para a Requerida e decorre da apreciação da matéria de facto uma incorrecta valoração da prova produzida, há necessidade da sua reapreciação, constando dos autos elementos de prova que servem de base à decisão sobre os factos da matéria de facto em causa.
2- A Requerida não sabe ler, nem escrever, apenas assina o seu nome, não sabe utilizar o cartão multibanco e utiliza o telemóvel com muita dificuldade.
3- Têm as suas netas justo e fundado receio que, devido às suas limitações, próprias da idade e também pelo facto de não saber ler, nem escrever e nunca ter tido o controle da sua vida financeira, seja vítima de burlas ou deixe de cumprir com as suas obrigações fiscais, de pagamentos de àgua e electricidade.
4- Mais têm ainda justo e fundado receio de que contraia dívidas ou pratique actos de disposição de alguns dos seus bens, sem que tenha a verdadeira noção dos actos praticados.
5- – Motivo porque entendem, que apesar de ter capacidade para residir sozinha, porque assim o deseja, não tem capacidade para controlar a sua vida financeira.
6- Foi a Requerida submetida a exame pericial, por determinação do Tribunal “a quo”, que conclui o seguinte: Diz o Relatório Médico no Ponto 5: “A deficiência constatada não limita séria e permanentemente as capacidades da examinada, mas impede-a de gerir a sua pessoa e bens de forma autónoma..”.
7- Mais refere o Perito, no Ponto 7 do seu Relatório Pericial, “Nestes termos entende o Perito que a examinada é uma maior condicionada no exercício dos seus direitos pessoais e de celebrar negócios da vida corrente, por razões de saúde, sendo indispensável que o Tribunal lhe atribua uma acompanhante, parecendo a sua a neta CC, ser quem reune as condições para o desempenho das funções de acompanhamento, conforme vontade expressa pela examinada e também pelas netas, que a apoiam na administração dos seus bens pessoais e patrimoniais de maior relevância que a apoiam nas actividades simples da vida diária e na utilização de recursos da comunidade, nomeadamente cuidados de saúde,".
8- Esta foi a conclusão do Relatório Pericial, indicado pelo Tribunal para realizar a perícia, o mesmo Tribunal, que do mesmo relatório apenas retirou o que justificava a decisão proferida, ignorando de forma ostensiva a conclusão do mesmo, que de forma clara e inequívoca considerou a Requerida uma “maior condicionada no exercício dos seus direitos”.
9- O Tribunal “a quo” não teve em consideração a vontade expressa da Requerida e fez tábua rasa do Realtório Pericial a que a mesma foi submetida.
10- Foi a Requerida questionada por diversas vezes pela Meretíssima Juíz, se pretendia ter acompanhamento e quem pretendia que fosse esse acompanhante, tendo a mesma reiterado que pretendia ter acompanhamento e que pretendia que fosse a sua neta CC a dar esse acompanhamento.
11- Questionada pela Meretíssima Juíz: Minuto 2.38m – Quem faz a gestão do seu dinheiro é a sua neta, a que está aí consigo? A CC? Resposta da requerida: Minuto 2.45m – É a minha neta CC
12- Questionada pela Meretíssima Juíz: Minuto 2.51m – E gostaria que continuasse a fazer a gestão do seu dinheiro? Resposta da requerida: Minuto 3.03m – Sim
13- Questionada pela Meretíssima Juíz: Minuto 17.31m – D. BB se o Tribunal entender que tem necessidade de alguém tratar dos seus assuntos, de ter acompanhamento, gostaria que fosse a sua neta CC, a AA, este casal? Quem gostaria? Resposta da requerida: Minuto 17.49m – Pode ser a minha neta CC, não tenho nada contra ela.
14- Questionada novamente pela Meretíssima Juíz: Minuto 17.53m – Qual o seu desejo se precisar de ter acompanhamento, para pagamentos, de qualquer apoio, quer dizer, se precisar de apoio para tratar de algumas coisas? Resposta da requerida: Minuto 18.58m – Não senhora, não me importava nada que fosse a minha neta CC, até estou de acordo que fosse a CC.
15- A ora recorrente, de tudo informou o Tribunal “a quo”, inclusive do facto de com o desaparecimento da Requerida sua Avó, não ter sido possível fazer a prova de vida junto da Segurança Social Francesa, motivo pelo qual, desde Janeiro de 2024, a requerida deixou de receber a reforma da Segurança Social Francesa, tendo até à data um prejuízo de mais de 3.800€, dinheiro necessário para o sustento da Requerida, que por total desconhecimento e negação completa, da requerida, vem enfraquecendo os seus recursos financeiros e o seu sustento.
16- Não se pode por isso conformar a ora recorrente, com a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, não se conforma com o que pode vir a acontecer com a Requerida, sua avó, que está a delapidar o seu património, património necessário para a sua sobrevivência com a dignidade que merece!
17- Não sabe a ora recorrente, onde reside a Requerida, que está impedida do convívio com a família, nomeadamente as suas netas a quem criou e que apenas entendem o comportamento da requerida pelo avançar da idade, pois não consideram normal no comportamento da avó que perdeu a sua única filha, à pouco menos de 4 anos, o seu marido há menos de 3 anos e esteja afastada da única família que lhe resta as netas que criou e os bisnetos.
18- Em caso de dúvida, deveria o Tribunal ordenar nova perícia médica, para assim decidir na posse de todas os factos e aí sim proferir uma decisão que defendesse os interesses da requerida.
19- A decisão proferida, pelo Tribunal “a quo”, salvo o devido respeito por opinião contrária, não defende os interesses da Requerida BB, não a protege nem defende.
20- A ora recorrente vem assim pugnar pela alteração da decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, considerando fundamental e necessário, em face do Relatório Pericial realizado a pedido do Tribunal e a vontade claramente expressa pela Requerida a determinação do Acompanhamento de Maior de BB, para melhor defesa dos seus interesses.
*
2.2. O MP respondeu, conforme consta das suas alegações, cujo restante teor se dá por reproduzido, concluindo que:
Perante a pretensão única da recorrente de ver alterada pelo Tribunal ad quem a decisão recorrida através da reapreciação da matéria de facto, é assim, por tudo o supracitado, posição do Ministério Público de que a sentença recorrida deverá manter-se na sua totalidade, não merecendo qualquer reparo e tendo decidido a matéria de facto de forma correta. Não é de aplicar qualquer tipo de medida de acompanhamento pelo não preenchimento dos vários pressupostos legais exigidos, sendo que com os deveres de assistência prestados, o bem-estar de BB está acautelado.
*
3
–
Questões
a
decidir
1. Apreciar o recurso sobre a matéria de facto
2. Face ao mesmo apreciar se a medida de acompanhamento deve ou não ser decretada e se assim for em que termos.
*
4. Do recurso sobre a matéria de facto
O principio da livre apreciação da prova consiste num poder dever que visa permitir a adequação do juízo probatório à realidade processual objectiva, racional e socialmente motivável.
Não é, pois, um espaço de arbitrariedade na qual o tribunal opta pela realidade conforme à sua posição subjectiva e individual.
Essa liberdade não se pode, pois, confundir com pura subjectividade, já que uma mera convicção sem apoio em elementos sérios, objectivos e socialmente razoáveis assume a natureza de uma crença e não de uma conclusão probatória que se quer objectiva, racional e fundada.
Ora, neste caso a tramitação processual demonstra sérios problemas que não apenas continuaram ao longo de todo o processo, como parecem ter condicionado de forma evidente o juízo probatório.
Conforme já se referiu nestes autos, numa promoção, sem a junção aos autos de qualquer elemento documental o Digno MP informou que se encontra instaurado um processo crime por “rapto”
[1]
. A “vitima” foi inquirida nestes autos e afinal esclareceu que quis residir na sua casa e da primeira vez deslocou-se num táxi e, da segunda, foi levada no carro do seu cunhado.
Logo tal realidade grave e ponderosa parece ter sido completamente indemonstrada sem que, note-se, tenha sido junta aos autos o despacho final de qualquer um desses inquéritos. Este tribunal optou, além do mais, por determinar a inquirição da testemunha ignorada para que, além do mais, possibilitar a junção aos autos dos elementos desse inquérito. Mas note-se que nessa matéria o MP, mais uma vez, nada disse ou informou.
*
2. Dos concretos meios de prova
Consta dos autos um exame pericial que possuiu várias conclusões, nomeadamente que padece de uma deficiência cognitiva ligeira que “a impede de gerir a sua pessoa e bens de forma autónoma”. Ora, não apenas esse exame pericial foi ignorado pela decisão recorrida (apesar de constar do relatório e do primeiro acórdão) como, no último acto de produção de prova, a testemunha Sr. DD foi confrontada com uma única parte do mesmo que, pelos vistos foi apreendido como concluindo (apenas) que se trata de uma deficiência ligeira. Ou seja, o tribunal a quo e o MP fizeram tábua rasa das restantes conclusões, nas quais expressamente se afirma que “
é indispensável que o tribunal lhe atribua uma acompanhante” (nosso sublinhado).
Os restantes documentos fortalecem esse juízo pericial: da certidão de nascimento resulta ainda que a Sra. BB tem já 88 anos (nasceu em ../../1936), sofreu várias doenças graves (um avc no último ano conforme documentação clínica junta).
Esta admite até que é analfabeta e não consegue sequer distinguir as notas, nem levantar dinheiro no multibanco.
Da produção de prova teremos de notar que as duas testemunhas inquiridas oficiosamente (casal vizinho da Sra. BB e que a ajudam diariamente) fortalecem essa conclusão já que dizem que esta não consegue levantar dinheiro no multibanco sem a sua ajuda.
Depois, o Sr. DD (testemunha constante do ról e cuja inquirição foi inicialmente ignorada) confirma que a Sra. BB não é capaz de gerir o seu dinheiro seja pela sua idade, seja porque é analfabeta, seja porque no decurso da sua vida nunca efectuou essa actividade. Mais referiu aliás que devido à omissão da prova de vida terá perdido a “sua pensão de frança” (facto omitido dos factos provados).
Por último, a Sra. BB, nas suas declarações complementares afirma: “quer ficar na sua casa e gostaria que alguém vivesse com ela, sendo que admite de forma clara precisar de ajuda para levantar dinheiro”
[2]
.
É, pois, evidente que o juízo probatório, desrespeitou a prova constante dos autos, ignorou um relatório médico legal e fez tábua rasa do próprio depoimento da Sra. BB.
Terá, pois, de proceder o recurso da matéria de facto nos termos que infra constam dos factos provados que incluem factos não postos em causa pelo apelante e outros constantes das suas alegações
*
5. Motivação de facto
1. BB,
nasceu no dia 6 de setembro de 1936 e tem o estado civil de viúva.
2.. Tem duas netas AA que reside em França e CC.
3. A neta CC vive com o seu marido e filha na freguesia ..., concelho de Ovar.
4. São as netas que prestam apoio à beneficiária, mas pela proximidade é a sua neta CC que lhe presta mais apoio, sobretudo desde que ficou viúva.
5. Por duas vezes a Sra. BB abandonou a residência da sua neta para viver na sua casa, local onde (na data da sua inquirição) residia sozinha com o apoio de um casal vizinho para as suas necessidades diárias.
6. O marido da beneficiária faleceu no dia 19 de janeiro de 2023.
7. Era o marido da beneficiária quem fazia a gestão dos dinheiros, assumindo os pagamentos e também as compras, a beneficiária conseguia cumprir as tarefas domésticas, acompanhando também o marido nas compras.
8. A beneficiária tem antecedentes patológicos, controlados farmacologicamente, Hipertensão Arterial e Dislipidémia.
9. A beneficiária não sabe ler, mas sabe assinar o nome.
10. A beneficiária demostrou vontade que a sua neta CC continuasse a apoiá-la mas compras, nos pagamentos, e também nas consultas e tratamentos.
11. Dá-se por integralmente reproduzido o exame psiquiátrico médico legal, cujas conclusões são:
12. O actual estado de saúde não atinge grave e globalmente as suas funções psíquicas mas impede -a de gerir a sua pessoa e bens de forma autónoma tendo necessidade de ser apoiada nas atividades de vida diárias, nas compras, pagamentos, no recurso aos serviços de saúde e nos tratamentos.
13. A beneficiária (só com a presença no terminal) de uma vizinha EE faz levantamentos monetários
14. A sua neta CC é quem
faz os pagamentos (de água, luz) da beneficiária.
15. Durante a sua inquirição a Sra BB admitiu que precisava de ajuda na sua vida quotidiana, em especial em assuntos monetários e verbalizou que a pessoa indicada para o fazer seria a sua neta requerente dos autos.
16. Manifestou ainda vontade de residir na sua casa.
17- A Sra. BB pode auferir uma pensão da Segurança Social Francesa, para cujo recebimento é necessário fazer “prova de vida” que esta não efectuou”, pelo que deixou de a receber desde Janeiro de 2024, tendo até à data um prejuízo indeterminado mas correspondente a esse valor mensal.
*
*
D)
Fundamentação
de
Direito
1. Enquadramento geral
A personalidade jurídica é inerente à capacidade jurídica ou capacidade de gozo de direitos, a qual consiste na aptidão para ser titular de relações jurídicas -art. 67º do C.Civil.
A de capacidade de exercício de direitos, ou capacidade de agir é distinta.
Nas palavras de
Mota
Pinto
[3]
,
“A
capacidade
de
exercício
ou
capacidade
de
agir
é
a
idoneidade
para
actuar
juridicamente,
exercendo
direitos
ou
cumprindo
deveres,
adquirindo
direitos
ou
assumindo
obrigações,
por
acto
próprio
e
exclusivo
ou
mediante
um
representante
ou
procurador(...)”.
No caso de faltar ao sujeito esta aptidão para atuar pessoal e autonomamente, sem necessidade de ser substituído na prática dos atos referentes à sua esfera jurídica, estamos perante uma situação de incapacidade de exercício de direitos.
Ora, a Lei nº 49/2018, de 14 de Agosto instituiu o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação.
A consagração deste regime, orientado para a tutela dos indivíduos com capacidade diminuída e inspirado na experiência de ordens jurídicas culturalmente próximas, visou corresponder a instrumentos internacionais vinculantes para o Estado Português, como a Convenção das Nações Unidas de 30 de Março de 2007 sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência ou a Convenção de Haia de 2000, relativa à Proteção Internacional de Adultos
[4]
. –
A Convenção das Nações Unidas de 30 de Março de 2007 sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, principal ponto de partida do regime, tem como objetivo
“promover,
proteger
e
garantir
o
pleno
e
igual
gozo
de
todos
os
direitos
humanos
e
liberdades
fundamentais
por
todas
as
pessoas
com
deficiência
e
promover
o
respeito
pela
sua
dignidade
inerente”,
privilegiando, como princípios gerais, entre outros:
- O respeito pela dignidade inerente, autonomia individual, incluindo a liberdade de fazerem as suas próprias escolhas, e independência das pessoas;
- Não discriminação;
- Participação e inclusão plena e efetiva na sociedade;
- O respeito pela diferença e aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e humanidade - art. 1º, nº 1 e 3º da Convenção.
O instituto do maior acompanhado consagra, pois, um novo paradigma, que rompe com o modelo monista anterior e que assenta na consagração de flexibilidade, procurando “uma harmonia com a diversidade e singularidade da necessidade pessoal do beneficiário, fundado no “reconhecimento de que as diferentes situações de incapacidade, com graus diferenciados de dependência, carecem de respostas e de apoios distintos”
[5]
.
Como salienta, entre vários, o Ac da RP de nº 4285/18.8T8MTS.P1 (Neto de Moura) “
A profunda alteração introduzida no nosso ordenamento jurídico pela Lei n.º 49/2018, de 14/08, em vigor desde 10.02.2019, que instituiu o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil, pautou-se pela proteção do “interesse do incapaz” como “interesse determinante
”.
Porque, como refere António Pinto Monteiro
[6]
era urgente consagrar medidas que pudessem auxiliar as pessoas com deficiência, mantendo estas a sua capacidade de exercício de direitos, “proteger sem incapacitar”, e que o novo regime constitui uma louvável mudança de paradigma, deixando a pessoa deficiente de ser vista como mero alvo de políticas assistencialistas e paternalistas, para se reforçar a sua qualidade de sujeito de direitos.
Por isso, a actual solução legal portuguesa consiste num regime flexível que abandonou o tudo ou nada no decretamento da medida de acompanhamento, norteado por uma ideia de subsidiariedade das limitações impostas ao acompanhado, impondo a restrição dos direitos, liberdades e garantias, na medida do estritamente necessário.
Nesse sentido, o acompanhamento, deve preservar o conteúdo dos direitos pessoais do acompanhado e a liberdade de regência de negócios da vida corrente, estabelecendo as medidas que se apresentem como menos restritivas do direito de decisão do acompanhado na condução da sua vida tanto pessoal como patrimonial, salvaguardando todos os direitos, liberdades e deveres que a capacidade natural do beneficiário proporcionar.
[7]
O instituto do acompanhamento de maior é, por isso, norteado pelos princípios de:
a) proporcionalidade,
b) subsidiariedade,
c) necessidade,
d) flexibilidade
e) e fiscalização.
Por outro lado, conforme determina o art. 12º, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o acompanhamento
visa o apoio
e não a substituição do maior acompanhado na formação e exteriorização da sua vontade, pondo em relevo a sua dignidade e procurando, tanto quanto possível, preservar a sua autodeterminação e o reconhecimento da sua igualdade perante a lei.
[8]
2. Dos requisitos de aplicação da medida.
O art. 140º, nº 1, do C.Civil, dispõe que “
O
acompanhamento
do
maior
visa
assegurar
o
seu
bem-estar,
a
sua recuperação,
o
pleno
exercício
de
todos
os
seus
direitos
e
o
cumprimento
dos
seus
deveres,
salvo
as
exceções
legais
ou
determinadas
por
sentença
”.
Essa norma conjugada com o art. 138º, do CC define os pressupostos para que uma pessoa beneficie de medidas acompanhamento.
Dispõe o art. 138º, do C. Civil: “
O
maior
impossibilitado,
por
razões
de
saúde,
deficiência,
ou
pelo
seu
comportamento,
de
exercer,
plena,
pessoal
e
conscientemente,
os
seus
direitos
ou
de,
nos
mesmos
termos,
cumprir
os
seus
deveres,
beneficia
das
medidas
de
acompanhamento
previstas
neste
Código
”.
Ou seja, não existe já, como estava estabelecido no regime anterior, a necessidade de ocorrer uma impossibilidade grave de exercício total mas sim que a sua situação evidencia a necessidade de decretamento da medida de acompanhamento entendida como uma medida de apoio.
[9]
Por causa disso, actualmente, o juízo de necessidade quanto ao estabelecimento de medidas de acompanhamento deve fundamentar-se
[10]
:
a) num constrangimento do indivíduo, seja por saúde, deficiência ou comportamento (causa ou elemento subjetivo);
b) que lhe determine uma redução de esclarecimento e autodomínio para o exercício de direitos ou cumprimento de deveres (consequência ou elemento objetivo),
No que respeita às causas ou elementos subjetivos, o legislador optou por uma formulação ampla, capaz de abarcar as mais diversas situações que possam determinar incapacidade natural para o beneficiário.
Sendo certo que “
Por saúde devem entender-se os casos em que o indivíduo adquira uma debilidade, mormente por idade ou doença, resultante do enfraquecimento da sua normal autonomia, incluindo as patologias físicas ou psíquicas que não possam considerar-se deficiência, bem como eventos traumáticos (AVC, coma, etc
.)”
[11]
.
Nos termos do art. 2º, da Lei nº 38/2004, de 18 de Agosto, a pessoa portadora de deficiência é definida como “
aquela
que,
por
motivo
de
perda
ou
anomalia,
congénita
ou
adquirida,
de
funções
ou
de
estruturas
do
corpo,
incluindo
as
funções
psicológicas,
apresente
dificuldades
específicas
suscetíveis
de,
em
conjugação
com
os
fatores
do
meio,
lhe
limitar
ou
dificultar
a
atividade
e
a
participação
em
condições
de
igualdade
com
as
demais
pessoas
”.
Cumpre notar que “
a lei não obriga a que a causa da impossibilidade seja duradoura, habitual ou permanente, mas tão-só que condicione o beneficiário de tal modo que o impossibilite de cuidar dos seus interesses e de corresponder aos seus deveres, ou de adquirir direitos e assumir obrigações, pese embora seja de exigir uma determinada constância
[12]
.
O acompanhamento pode surgir assim como salvaguarda da pessoa que padeça de qualquer perturbação que diminua ou a prive da capacidade de, na sua plenitude, de modo autónomo corresponder ao exercício de direitos ou ao cumprimento dos seus deveres.
*
3. Da aplicação ao caso concreto
Das prudentes conclusões do relatório pericial psiquiátrico realizado nos autos parece evidente, que a Sra. FF necessita de protecção e ajuda. Basta dizer que esta não consegue, sem a ajuda de uma vizinha, levantar dinheiro, pagar as suas compras correntes, ler uma carta, pagar uma conta, etc.
Logo, é evidente que esta necessita de ajuda para o normal funcionamento da sua vida corrente, não apenas devido à sua idade (fará 89 anos em Setembro), como ao seu estado de sáude, como à sua própria condição pessoal e cultural (é analfabeta).
Pretender-se, pois, que o actual estado deve ser mantido, porque tudo está bem é ignorar o próprio apelo da beneficiária que diz saber que gostava de ter e sabe precisar de ajuda.
Ora, se esta ajuda está a ser de facto prestado em especial por um casal de vizinhos (inquiridos oficiosamente como testemunhas) é, por certo, mais benéfico para a protecção da interessada que essa intervenção seja objecto de uma formalização judicial que permite o seu posterior controle através da fiscalização e prestação de contas.
Quanto à proporcionalidade teremos de notar que a medida requerida diz respeito, apenas à gestão patrimonial da requerida pelo que se situa no âmbito mínimo da intervenção.
4. Da subsidiariedade
Neste campo é necessário que as carências protetivas do beneficiário não estejam suficientemente acauteladas através de deveres gerais, como é o caso das relações de parentesco – auxílio e assistência, à luz do art. 1874º, do C. Civil – e de casamento – cooperação e assistência, de acordo com os art. 1672º, 1674º e 1675º do C.Civil.
É, portanto necessário avaliar se o objetivo do acompanhamento se mostra garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam, de acordo com o limite de supletividade consagrado no art. 140º, nº 2, do Código Civil.
Ora, neste campo, teremos de discordar frontalmente da decisão recorrida.
Desde logo, a beneficiária não se alimenta sem compras e não realiza estas sem a ajuda da sua vizinha. Basta dizer que estes admitem serem eles quem a “ajuda” a fazer levantamentos e compras correntes que esta não consegue fazer autonomamente. Logo, pelo menos nesta dimensão é evidente que algum apoio é necessário.
Depois, dessa mesma realidade resulta que afinal o apoio familiar não resultou e torna necessária uma intervenção institucional. Basta dizer que não apenas a omissão de intervenção já prejudicou patrimonialmente a interessada (com a não realização da prova de vida necessária para receber uma pensão), como afinal, é a própria pessoa que na óptica do mesmo tribunal presta esses cuidados que veio afirmar que:
a) “a avó aqui Requerida confessou à sua neta CC, ter pedido a terceiros para efectuar levantamentos da sua conta, a quem entregou o cartão multibanco e os códigos respectivos”.
b) “porque entendem, que apesar de ter capacidade para residir sozinha, porque assim o deseja, não tem capacidade para controlar a sua vida financeira”.
Essa posição é aceite e foi transmitida pela beneficiária, sendo reforçada pelo relatório pericial. Quanto a esta questão teremos de notar que é a própria que afirma que está a ser auxiliada diariamente por vizinhos, o qual note-se não são parentes ou familiares nos termos do art. 140º, nº2, do CC.
Ou seja, quando se defende neste caso que “a medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam” (art. 140º, nº2, do CC), omite-se que afinal quem acompanha a beneficiária nos seus actos patrimoniais do dia a dia, incluindo o levantamento de dinheiro é uma sua vizinha e não as netas ou familiares.
E, tanto basta, para que uma medida seja decretada, pela simples razão que o acompanhante terá de prestar contas da sua actividade e poderia até ficar sujeito à fiscalização do concelho de família. Logo, existe uma necessidade efectiva, acrescida de uma necessidade de fiscalização dos actos de gestão ainda que corrente.
5. Da fixação do regime
Nos termos legais existem apenas duas consequências imperativas decorrentes do acompanhamento de maior: a designação de, pelo menos, um acompanhante (art 143º, do C. Civil) e a sujeição de atos de disposição de bens imóveis a autorização judicial prévia e específica (art. 145, nº 3, do C. Civil).
Em tudo o resto, o âmbito do acompanhamento será definido à luz do circunstancialismo apresentado ao Tribunal, limitando-se ao necessário - art. 145º, nº 1, do C. Civil - e preservando tanta autonomia do acompanhado quanto a sua capacidade de facto lhe permita.
*
Quanto ao acompanhante a única familiar próxima residente nas proximidades é a requerente, sendo que esta foi a pessoa designada pela beneficiária.
Logo, nos termos do art. 143º, nº1 e 2, do CC será essa a pessoa designada.
*
Quanto às medidas
Foi formulado o seguinte pedido:
“a decretação do acompanhamento da R. pela sua neta CC, sobretudo nas decisões que digam respeito aos seus actos da vida civil gestão dos seus bens sobretudo nas decisões que digam respeito aos seus dos seus bens”.
Face à dimensão (ligeira) dos problemas pessoais e de saúde da beneficiária é evidente que deve ser essa a única medida a adoptar.
Desde logo, porque se deve privilegiar o apoio na tomada de decisão, em detrimento da substituição do acompanhado pelo acompanhante na exteriorização da sua vontade, circunstância que não só se harmoniza com a consagração da sua independência mas que igualmente propende para a respetiva estimulação, responsabilização e reabilitação
[13]
.
Podemos, portanto optar por modelos de acompanhamento que vão desde o mero apoio ou assistência até medidas de efetiva substituição.
Para esse efeito, estatui o art. 145º, nº 2, do Código Civil:
“
Em
função
de
cada
caso
e
independentemente
do
que
haja
sido
pedido,
o
tribunal
pode
cometer
ao
acompanhante
algum
ou
alguns
dos
regimes
seguintes:
a)
Exercício
das
responsabilidades
parentais
ou
dos
meios
de
as
suprir,
conforme
as
circunstâncias;
b)
Representação
geral
ou
representação
especial
com
indicação
expressa,
neste
caso,
das
categorias
de
atos
para
que
seja
necessária;
c)
Administração
total
ou
parcial
de
bens;
d)
Autorização
prévia
para
a
prática
de
determinados
atos
ou
categorias
de
atos;
e)
Intervenções
de
outro
tipo,
devidamente
explicitadas
.”
In casu é evidente que a Sra. FF está apta a escolher o seu local de residência (e frisou várias vezes que queria viver na sua casa), e que a mesma tem ainda capacidade para gerir os seus negócios do dia a dia desde que seja auxiliada no levantamento de dinheiro.
Dispõe nesta matéria o art. 147º, do Código Civil que:
“1
-
O
exercício
pelo
acompanhado
de
direitos
pessoais
e
a
celebração
de
negócios
da
vida
corrente
são
livres,
salvo
disposição
da
lei
ou
decisão
judicial
em
contrário.
2
-
São
pessoais,
entre
outros,
os
direitos
de
casar
ou
de
constituir
situações
de
união,
de
procriar,
de
perfilhar
ou
de
adotar,
de
cuidar
e
de
educar
os
filhos
ou
os
adotados,
de
escolher
profissão,
de
se
deslocar
no
país
ou
no
estrangeiro,
de
fixar
domicílio
e
residência,
de
estabelecer
relações
com
quem
entender
e
de
testar
”.
Logo a medida será limitada apenas à gestão patrimonial já que
: “a regra geral é de reconhecer a capacidade da pessoa humana para exercer de forma livre os seus direitos pessoais (Art. 147.º n.º 2 do C.C.), sendo as restrições ou limitações ao seu exercício a exceção, que sempre deverá ser bem fundamentada
”
[14]
.
*
Nos termos do artigo 900º do Código de Processo Civil na decisão final o juiz fixa, sempre que possível, a data a partir da qual se iniciou a necessidade de acompanhamento.
In casu não há elementos (tendo em conta o teor do relatório pericial que não fixou qualquer data e usa a expressão provavelmente) pelo que se fixa a mesma na data em que foi elaborado o relatório pericial.
Por fim, face ao actual estado de saúde da beneficiária é evidente que esta pode livre e capazmente optar pelo local da sua habitação bem como usar os seus poderes de testar, bem como de gerir as suas aquisições correntes do dia-a-dia.
*
*
6. Deliberação
Pelo exposto, este tribunal colectivo, julga a presente apelação procedente por provada e, por via disso, revogando a decisão recorrida:
1. Declara a Sra. AA, beneficiária de medida de acompanhamento, sujeita ao regime da Administração parcial de bens (cfr. Art.s 138.º e 145.º, n.º 2, al. c), 1.ª parte, do C.C.), incluindo bens móveis, imóveis e recebimento das suas pensões.
2. Designa a Sra CC acompanhante da beneficiária.
3. Os poderes de Administração incluem a totalidade dos bens, exceptuando as aquisições necessárias à sua vida corrente que esta realizará autonomamente após recebimento de uma quantia monetária, adequada para esse fim, a entregar mensalmente pela acompanhante. Os actos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica.
4. Atribuiu ao acompanhante poderes de representação geral da beneficiária, que segue o regime da tutela, com as necessárias adaptações por força da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14/8, designadamente os poderes para receber pensões e/ou subsídios e geridos em benefício e de acordo com as necessidades da beneficiária.
5. Consigna que a acompanhante no exercício da sua função, deverá privilegiar o bem-estar da acompanhada, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação, devendo manter um contacto permanente com aquela, visitando-a, no mínimo, uma vez por mês.
6. Dispensa a nomeação de Conselho de Família (cfr. Art. 900.º n.º 2 do C.P.C.).
7. Consigna que, para os efeitos do disposto no Art. 2189.º, al. b) do C.C., a beneficiária é capaz de testar, mas não de alienar, doar ou onerar.
8. Consignar que a beneficiária, salvo agravamento do seu estado de saúde pode optar por continuar a residir na sua casa ou habitar com a acompanhante ou outra pessoa.
9. Consigna que não existe notícia de que a beneficiária tenha outorgado testamento vital e/ou procuração para cuidados de saúde (cfr. Art. 900.º, n.º 3 do C.P.C. e Art.s 4.º al. b), 14.º n.º 3 e 16.º da Lei n.º 25/2012, de 16/7).
10. Fixa em quatro anos o prazo de revisão da medida aplicada, nos termos e para os efeitos previstos no Art. 155.º do C.C..
11. Fixa o inicio da incapacidade para doar e alienar bens de qualquer natureza desde a data da realização do exame pericial (10.11.23).
Sem custas – art. 4º, nº 2, h), do Regulamento das Custas Processuais.
Após trânsito deverá o tribunal recorrido: comunicar à Conservatória do Registo Civil competente - art. 153º nº 2 do Código de Processo Civil e 1920º-B do Código Civil e publicitar a decisão por anúncios em sítio oficial – art. 893º, nº 2, do C.P.Civil.
*
*
Porto, 22.5.2025
Paulo Duarte Teixeira
Álvaro Monteiro
João Venade
___________
[1]
Promoção de 9.1.24 com o seguinte teor: “Compulsados os autos de inquérito 361/23.3GCVFR e 235/23.8GCOVR (e que se encontram a ser seguidos por estes autos) verifica-se que as circunstâncias de vida da beneficiária se alteraram drasticamente, estando esta agora em forte litígio com a sua neta, a qual é a aqui requerente e indicada para exercer o cargo de acompanhante. Nesses inquéritos são efectuadas acusações graves à aqui requerente, e são levantadas muitas questões sobre o modo como a mesma gere os assuntos.” da beneficiária, inclusive os monetários (importa) “saber se face à instauração de dois processos crime uma vez sobre a pessoa indicada para cargo de acompanhante recaem fortes suspeitas de não ser a pessoa mais adequada para o efeito”. E note-se que a mesma entidade afinal admite (não nas suas alegações mas nessa promoção de 9.1.24 que “Do relatório pericial resulta que a beneficiária apresenta um défice cognitivo ligeiro, que a condiciona na gestão da sua vida, em especial nas questões burocráticas e relacionadas com os rendimentos e património”.
[2]
Note-se por exemplo que no seu depoimento complementar diz que marca o código no multibanco, mas que é a amiga/vizinha que lhe indica o montante.
[3]
in Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág. 214.
[4]
António Meneses Cordeiro, Da situação jurídica do maior acompanhado. Estudo de políticas legislativas relativo a um novo regime das denominadas incapacidades dos maiores, in Revista de Direito Civil, Ano III (2018), 3, pág. 505 e segs..
[5]
cfr. Presidência do Conselho de Ministros, Exposição de motivos da Lei nº 49/2018, de 14 de Agosto, pg. 2
[6]
O novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado, CEJ, Coleção Formação Contínua, fevereiro de 2019,
págs. 29
[7]
considerando n) da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência supra referida.
[8]
Joaquim Correia Gomes, Constitucionalismo, Deficiência Mental e Discapacidade: Um Apelo aos Direitos, em Julgar nº 29, pág. 135, 140 e 141.
[9]
E não sanção, como decorre do sentido literal da norma (beneficia).
[10]
António Pinto Monteiro, Das Incapacidades ao Maior Acompanhado – Breve apresentação da Lei nº 49/2018, em O Novo Regime do Maior Acompanhado, pág. 34).
[11]
Ob cit.
[12]
Mafalda Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados – Primeiras notas depois da aprovação da Lei nº 49/2018, de 14 de Agosto, pág. 53 e 54.
[13]
António Pinto Monteiro, ob. cit., p. 36
[14]
Ac da RL de 4.2.20, nº 3974/17.9T8FNC.L1-7 (Carlos Oliveira).
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/29d2e728058af3d180258c9800455350?OpenDocument
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1,759,795,200,000
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IMPROCEDENTE. CONFIRMADA A SENTENÇA.
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2813/19.0T8PNF.P1
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2813/19.0T8PNF.P1
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GERMANA FERREIRA LOPES
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I – «Nos termos do artigo 18.º, n.º 1, 2ª parte, da Lei n.º 98/2009, para que o acidente de trabalho a ele se subsuma, é necessário: a) que sobre as entidades referidas no nº 1 recaia o dever de observar determina(s) norma(s) de segurança e que a(s) não haja observado; b) o nexo causal entre essa conduta (ato ou omissão) e o acidente».
II – Se da violação culposa das regras de segurança pelo empregador resultou um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, conforme Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2024, publicado no DR 1.ª Série, de 13-05-2024, pode afirmar-se o nexo de causalidade entre essa violação e a ocorrência do acidente, devendo o acidente – e as suas consequências – ser imputado ao empregador de harmonia com o preceituado no artigo 18.º, n.º 1, da LAT.
III – Nos termos do artigo 18.º, n.º 1, da LAT, a responsabilidade da Ré empregadora abrange a indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelo trabalhador, nos termos gerais.
IV - Os danos não patrimoniais são comummente definidos como prejuízos insuscetíveis de avaliação pecuniária – como sejam dores físicas e morais, a integridade física, a saúde, a reputação, os prejuízos estéticos, etc -, sendo que a indemnização prevista no artigo 496.º do Código Civil assume a natureza de uma compensação com que se visa, através da atribuição de uma prestação pecuniária, atenuar de alguma forma o desgosto, a dor, o sofrimento suportado e/ou a suportar pelo lesado, proporcionando-lhe a possibilidade de angariar um acréscimo de bem-estar capaz de compensá-lo pelos desgostos, as dores ou o sofrimento suportados ou que haja de suportar.
V - A indemnização por danos não patrimoniais deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico, tendo em conta as concretas circunstâncias do caso.
[Sumário elaborado pela sua relatora nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil (cfr. artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho)]
|
[
"VIOLAÇÃO CULPOSA DE REGRAS DE SEGURANÇA",
"RESPONSABILIDADE DA EMPREGADORA",
"INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS"
] |
Apelação/Processo nº 2813/19.0T8PNF.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo do Trabalho de Penafiel - ...
Relatora: Germana Ferreira Lopes
1º Adjunto: António Luís Carvalhão
2º Adjunto: Rui Manuel Barata Penha
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
Não se tendo alcançado acordo na respetiva fase conciliatória,
AA
(Sinistrado/Autor) apresentou petição inicial para dar início à fase contenciosa deste processo para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho (artigo 117.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo do Trabalho) contra
A... Unipessoal, Lda.
(Ré entidade empregadora)
e B...-Companhia de Seguros, SA.
(Ré seguradora)
,
peticionando o seguinte:
- Seja a Ré entidade empregadora declarada culpada pelo acidente dos autos e como tal condenada a responder pelo agravamento da pensão anual do Autor e a pagar-lhe a quantia de €100.000,00 pelos danos não patrimoniais por ele sofridos em consequência do sinistro;
- A condenação de ambas as Rés a pagar ao Autor pensão anual, vitalícia e atualizável de € 10.059,40, sendo € 8.941,69 (neste montante já incluídos 10% por o Autor ter a esposa a seu cargo) da responsabilidade objetiva da Ré Seguradora – a prestar mensalmente, até ao 3º dia de cada mês e no domicílio do Autor, devida a partir de 8 de outubro de 2019, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão, bem como o subsídio de férias e de Natal, cada um igualmente, no valor de 1/14 da pensão anual, a pagar nos meses de junho e novembro de cada ano;
- A condenação da Ré seguradora a pagar ao Autor o subsídio de elevada incapacidade permanente de € 5.752,03;
- Bem como uma prestação mensal e atualizável de € 352,50 para auxílio de 3ª pessoa de que o Autor carece, pelo menos, 6 horas por dia;
- Mais € 85,00 de reembolso de despesas feitas pelo Autor com deslocações obrigatórias a este Tribunal e ao GML-Porto;
- E, ainda, ajudas/despesas hospitalares medicamentosas e técnicas que venham a ser postuladas, como decorrência do acidente, designadamente as necessárias adaptações – acesso à habitação com corrimão, barra no WC para apoio no banho, tapete antiderrapante, etc;
- A condenação das Rés a pagar juros de mora relativamente aos montantes das prestações em dívida, desde 8-10-2019 e em relação aos danos morais e agravamento da pensão desde a citação da Ré empregadora.
Alegou para tanto, e acompanhando de perto a síntese feita pelo Tribunal recorrido, que: sofreu um acidente de trabalho em 10-01-2019, quando se encontrava a fragmentar uma massa rochosa de granito usando, para o efeito, uma carga explosiva fornecida pela Ré entidade empregadora; tal carga, inopinadamente, explodiu quando a calcava, causando-lhe queimaduras na face e em ambos os braços e mãos, e lesões nos dentes, olhos e pernas; em consequência ficou a afetado de IPA, a padecer de sequelas e deformidades que lhe causam dores e danos não patrimoniais, estar dependente de ajuda e terceira pessoa e de ajudas técnicas e medicamentosas; a Ré entidade empregadora não tem licença para deter, nem usar explosivos, sendo que nunca deu formação ao Autor sobre tal matéria.
O Instituto de Segurança Social, IP deduziu contra ambas as Rés pedido de reembolso de € 2.394,96 de subsídio de doença pago ao Autor.
Citada, a Ré seguradora apresentou contestação, onde, acompanhando-se mais uma vez a síntese do Tribunal
a quo,
aceitando tudo quanto o Autor alega à exceção do tempo de ajudas de que o Autor necessita, que apenas aceitou por 4 horas diárias, pugnou pela responsabilização da Ré entidade empregadora, pedindo, a final, que seja declarado o seu direito de regresso sobre ela, por todas as prestações já efetuadas e a efetuar.
Citada, a Ré entidade empregadora apresentou contestação, na qual impugnou a matéria relativa à sua responsabilidade alegada pelo Autor, concluindo no sentido da respetiva absolvição do pedido.
O Autor e a Ré seguradora apresentaram resposta.
Foi proferido despacho saneador, após o que foram consignados os factos assentes, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.
Foi determinada a abertura de apenso de incapacidade [apenso com a letra A], no qual, depois de realizado exame por junta médica, se decidiu fixar o grau de incapacidade “
em 100% IPA”
e a “
data da alta em 07 de outubro de 2019”.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, que concluiu com o seguinte dispositivo (que se transcreve):
“Pelos fundamentos expostos, julgo parcialmente procedente a presente ação para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho e, em consequência:
I. Declaro que o autor AA se encontra, em virtude do acidente de trabalho objeto deste processo e que ocorreu por via da violação das regras de segurança no trabalho por parte da ré “A... Unipessoal, Lda., Lda.”, afetado de incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, desde 07/10/2019;
II. Condeno a ré “Companhia de Seguros B..., S.A.”, sempre sem prejuízo do direito de regresso sobre a ré “A... Unipessoal, Lda., Lda.”, a pagar ao autor:
a. Pensão anual e vitalícia de € 8 941,69 (oito mil, novecentos e quarenta e um euros e sessenta e nove cêntimos), devida desde 08/10/2019, a ser paga nos termos do artigo 72.º do RJAT, podendo descontar nas pensões em dívida as quantias já pagas a título de pensão provisória;
b. A quantia de € 5 752,03 (cinco mil, setecentos e cinquenta e dois euros e três cêntimos), a título de subsídio por situações de elevada incapacidade permanente, nos termos do artigo 67.º, n.º 2, do RJAT, devida desde 08/10/2019;
c. A quantia mensal de € 352,50 (trezentos e cinquenta e dois euros e cinquenta cêntimos), a título de prestação suplementar para ajuda de terceira pessoa quatro horas por dia, nos termos dos artigos 53.º e 54.º do RJAT, devida desde 08/10/2019;
d. A quantia de € 85 (oitenta e cinco euros), a título de despesas com deslocações obrigatórias, devida desde 19/09/2022;
e. As ajudas técnicas, médicas e medicamentosas de que necessita, considerando a matéria de facto provada;
f. A reembolsar o ISS da quantia de € 2 394,96 (dois mil, trezentos e noventa e quatro euros e noventa e seis cêntimos), devida desde a citação;
III. Condeno a ré “A... Unipessoal, Lda., Lda.” a pagar ao autor:
a. A pensão anual e vitalícia a que alude a al. a) do n.º 4 do artigo 18.º do RJAT, no valor de € 10 059,40, devida desde 08/10/2019, a ser paga nos termos do artigo 72.º do RJAT;
b. A quantia de € 100 000 (cem mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, devida desde a data da presente sentença;
IV. Tudo acrescido de juros de mora desde o vencimento;
V. Absolvo as rés do mais peticionado.
Custas, na proporção das respetivas responsabilidades, a cargo das rés - artigo 527º, n.º 1, do CPC.
Valor: O que resultar da aplicação à pensão (total) estabelecida da taxa constante das tabelas práticas para o cálculo do respetivo capital da remição, acrescida das demais prestações com expressão pecuniária – Art. 120º, n.os 1 e 2, do CPT.
Registe e notifique.”.
Não se conformando com a sentença proferida, a Ré entidade empregadora,
apresentou recurso de apelação
, tendo formulado as seguintes
CONCLUSÕES
(que se transcrevem
[1]
):
(...)
Terminou pugnando pela procedência do recurso e revogação da decisão recorrida, substituindo-se por acórdão que absolva a Ré entidade empregadora de pagar ao Autor a pensão anual e vitalícia a que alude a alínea a) do n.º 4 do artigo 18.º do Regime Jurídico de Acidentes de trabalho, no valor de € 10.059,40 e da quantia de € 100.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Não foi apresentada resposta.
Foi proferido despacho a determinar a subida do recurso de apelação, imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
O Exmº Srº Procurador-Geral-Adjunto junto deste Tribunal de recurso emitiu o parecer a que alude o artigo 87º, nº 3, do CPT, pronunciando-se como se segue (transcrição):
«[…]
2. Impugna a Recorrente a decisão da matéria de facto bem como a subsequente decisão de direito.
2.1. Em relação à matéria de facto, entende a Recorrente que foram mal julgados, erradamente dados como provados, os factos constantes das alíneas Y) e Z), dos factos demonstrados por produção de prova, do seguinte teor:
Y) A carga explosiva que causou o acidente referido no ponto D), foi fornecida pela ré empregadora ao autor para levar a cabo a tarefa aí descrita;
Z) A carga explosiva que causou o acidente referido no ponto D), foi introduzida pelo autor num furo que previamente havia aberto, com martelo pneumático, na massa rochosa que fraturava.
Diz que impunham decisão diversa da recorrida em virtude dos meios probatórios que são os depoimentos das testemunhas BB, CC e DD que se encontram gravadas e que permitiram ao Tribunal a quo, formar errada convicção e que permitiu a condenação.
Na douta sentença recorrida, na Motivação da decisão de facto referiu-se que se deram “como provados os pontos Y) e Z), com base na análise da prova documental junta aos autos, conjugada com os depoimentos de BB, CC e DD, que se mostraram todos sinceros e credíveis nas respostas dadas, respondendo com desassombro e em termos que causaram forte impressão subjetiva no Tribunal.”
Ou seja, com base nos depoimentos das mesmas testemunhas referidas pela Recorrente, mais “a prova documental junta aos autos”.
Não indica a recorrente “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
Parecendo que pretende que se não dessem como provados estes factos.
2.2. Porém, entende-se que não haverá duvidas de que ocorreu um rebentamento, uma explosão; desde logo porque a GNR assim o diz, porque os Bombeiros o referem também, como o referem as testemunhas inquiridas e a gravidade dos ferimentos, lesões e sequelas que do acidente resultaram assim o confirmam.
Além disso refere uma testemunha que o recorrido/sinistrado, tinha dois “fulminantes” no bolso da roupa que usava, o que tudo indicia para isso.
Depois deu-se como provado que a Recorrente/ré empregadora não tem licença para deter nem usar explosivos – w) – e que “a ré empregadora nunca deu formação ao autor sobre o uso de explosivos – X.
Isto é estava a realizar uma tarefa e a usar equipamentos e instrumentos ou meios para os quais não estava licenciada e o sinistrado não tinha também licença nem formação para o manuseamento e utilização.
Como é sabido a detenção e uso de explosivos tem de ser autorizada pela PSP e os operadores, trabalhadores autorizados a manusear e utilizar explosivos, tem também de ter Autorização e formação adequada para o efeito, o que, aparentemente não acontecia neste caso.
E, como parece obvio, tudo o que se passa na empresa tem de ser do conhecimento do empregador e por si determinado e autorizado (não podia ser iniciativa do sinistrado/recorrido).
2
.3. A apreciação e valoração destes meios de prova está sujeita à livre apreciação do juiz que aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – 607º, 5, do CPC.
E neste caso, para além dos factos apurados pelos Bombeiros e GNR, a douta sentença recurso refere que os depoimentos das testemunhas ouvidas e indicadas agora como meios de prova para alterar a decisão, se mostraram todos sinceros e credíveis nas respostas dadas, respondendo com desassombro e em termos que causaram forte impressão subjetiva no Tribunal, não deixando dúvidas sobre estes factos.
Sendo, na verdade a questão principal, cremos não haver duvidas quanto aos factos dados como provados nos pontos Y e Z, dos factos provados, que, salvo sempre melhor opinião, deverão manter-se como factos provados.
3. Atenta esta matéria de facto dada como provada entende-se que não merece reparo a douta sentença recorrida.
As quantias em que a Recorrente foi condenada resultam da lei.
E a indemnização arbitrada por danos não patrimoniais mostra-se justa equilibrada e proporcional, se atentarmos na gravidade dos factos praticados, a ilicitude dos mesmos e nas graves consequências que daí advieram, pelo que se entende que a douta sentença recorridas não merece censura, devendo, antes, ser confirmada.
4. Pelo que, ressalvando sempre diferente e melhor opinião, se emite parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.».
Procedeu-se a exame preliminar, sendo que por despacho da Relatora refª citius 18215517, foi determinado que os autos baixassem à 1.ª instância para ser concretizado o valor da causa, o que foi feito, tendo sido fixado o valor de € 247 917,24 – cfr. despacho refª citius 97030038.
Foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência.
***
II – Questões a resolver
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação apresentada, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado e das que se não encontrem prejudicadas pela solução dada a outras [artigos 635.º, n.º 4, 637.º n.º 2, 1ª parte, 639.º, n.ºs 1 e 2, 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil
[2]
, aplicáveis por força do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho
[3]
].
Assim, são as seguintes as questões a decidir:
(1) Impugnação da decisão da matéria de facto;
(2) Saber se a sentença recorrida errou na aplicação da matéria de direito:
- ao julgar verificados os pressupostos da afirmação da responsabilidade agravada da Ré entidade empregadora, ora Recorrente, nos termos e para efeitos do artigo 18.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro;
- ao condenar a Recorrente na indemnização por danos não patrimoniais.
***
III – FUNDAMENTAÇÃO
1) Decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância
A decisão da matéria de facto proferida na 1ª instância é a seguinte (transcrição):
“Factos assentes por acordo:
A) O A nasceu a ../../1970;
B) Em 08/06/2009, entre o autor e a ré A... Unipessoal, Lda., Lda., foi celebrado um contrato de trabalho, mercê do qual, aquele se obrigou a exercer, para esta, sob as ordens, direção e fiscalização da mesma, a sua profissão de pedreiro de 1ª, - no âmbito de obras de construção civil (execução de muros em pedra, etc.), atividade a que, com fins lucrativos, a mesma ré se devotava e dedica;
C) Em janeiro de 2019 a retribuição anual do autor cifrava-se em €620,00 x 14, de salário base, e € 125,40 x 11, de subsídio de alimentação, no total anual de € 10.059,40, estando a responsabilidade por acidentes emergentes de acidentes de trabalho transferida para a ré seguradora, por tal montante;
D) O autor era – e é – casado com EE no regime da comunhão de adquiridos, sendo que esta, com quem o autor vive, dependia e depende do vencimento do autor;
E) Pelas 10h00 do dia 10/01/2019, o autor foi vítima dum acidente de trabalho quando, cumprindo ordens do gerente da empregadora A... Unipessoal, Lda. - sr. FF - se encontrava a fragmentar uma massa rochosa de granito, para obtenção de pedra, para a construção, nas proximidades, dum muro de contenção de terras, em ..., - ocorrido uma explosão, com projeção de chama e fragmentos graníticos em várias direções, que atingiram fortemente, o autor e, mais levemente, seu colega de trabalho GG, que andava um pouco mais afastado a operar com uma retroescavadora;
F) O autor foi mantido em coma induzido durante trinta dias;
G) Sofreu fratura frontal esquerda desalinhada - com TCE - Traumatismo crânioencefálico;
H) Foi submetido a uma primeira cirurgia para tentar a correção daquela fartura frontal;
I) E a uma segunda cirurgia (à mesma zona) foi para colocação de "shunt" ventrículo-peritoneal;
J) E a uma terceira cirurgia, para cranioplastia;
K) Fez, durante meses, tratamento de Fisioterapia e Reabilitação no CRN-Norte;
L) Sofreu queimaduras na face, mão, antebraço esquerdo;
M) Ficou com os dentes abalados e um deles partido;
N) Ficou com defeito cutâneo na pálpebra esquerda (que encerra);
O) Tem andado, há meses, a fazer em Matosinhos, terapia da fala, por ter ficado com afasia;
P) Ficou com paralisia da mão direita e a claudicar da perna direita;
Q) Ficou com cicatrizes e deformidade na metade esquerda da região frontal e pálpebra esquerda (que encerra) e com pintas azuladas dispersas pela face, região frontal e no antebraço e mão esquerdos;
R) Ficou dependente de 3ª pessoa para o auxiliar a tomar banho, partir comida sólida, ajudar a subir e descer escadas e acompanhar mesmo em piso plano, pois que a perna direita claudica na marcha;
S) Ficou com 100% IPA, e teve alta em 07/10/2019;
T) A ré seguradora tem pago a todos as despesas hospitalares, medicamentosas, de fisioterapia, reabilitação e a outras entidades, e também tem pago ao A. € 574,83/mês e € 243,76 à esposa, desde outubro de 2019;
U) O Instituto da Segurança Social, IP pagou ao autor, a título de subsídio de doença, o montante de € 2.394,96 (dois mil trezentos e noventa e quatro euros e noventa e seis cêntimos), no período decorrido de 10/01/2019 a 20/07/2019;
V) O A despendeu com deslocações obrigatórias ao Tribunal e ao GML o montante de € 85,00.
W) A ré empregadora não tem licença para deter nem usar explosivos;
X) A ré empregadora nunca deu formação ao autor sobre o uso de explosivos;
Factos demonstrados por produção de prova:
Y) A carga explosiva que causou o acidente referido no ponto D), foi fornecida pela ré empregadora ao autor para levar a cabo a tarefa aí descrita;
Z) A carga explosiva que causou o acidente referido no ponto D), foi introduzida pelo autor num furo que previamente havia aberto, com martelo pneumático, na massa rochosa que fraturava;
AA) O autor tem necessidade de ser acompanhado em consultas de urologia, oftalmologia, neurocirurgia, medicina física e de reabilitação, psiquiatria e, eventualmente, apoio psicológico, de acordo com a indicação da psiquiatria;
BB)O autor tem necessidade de realizar tratamentos de terapia da fala, reabilitação cognitiva e medicina dentária;
CC) O autor tem necessidade de tomar a medicação que seja indicada nas consultas referidas em AA);
DD) O autor necessita de apoio de terceira pessoa, para as atividades da vida diária, pelo período de quatro horas por dia;
EE) O autor sofreu dores, com quantum doloris valorável no grau seis, numa escala de um a sete;
FF) O autor é portador de dano estético, estático e dinâmico, valorável no grau seis, numa escala de um a sete;
GG) O autor ficou com dificuldades cognitivas, e dificuldades em articular palavras, tornando-se difícil fazer-se entender e compreender o que se lhe diz;
HH) O autor, durante meses, não pôde mastigar, nem tratar os dentes, que, abalados com o acidente, e um partido, lhe causavam dores;
II) O autor precisa de adaptações na sua casa, no acesso à habitação e WC;
JJ) O autor e mulher não têm outro rendimento para além da pensão provisória que auferem por via do acidente dos autos.
Da discussão da causa não resultaram provados os seguintes factos:
1) Que a explosão tenha sido provocada por um rastilho;
2) Que a carga explosiva tivesse vindo oculta no maciço granítico que o autor fraturava;
3) Que a parte craniana operada e dotada de "shunt" esteja fragilizada e que outro impacto nessa zona possa ser fatal ao autor.”
*
2) Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Sobre a modificabilidade da decisão de facto no âmbito do recurso de apelação, estabelece o n.º 1 do artigo 662.º do CPC, aplicável ex vi artigo 87.º, n.º 1, do CPT, que «
A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa
».
A Relação tem efetivamente poderes de reapreciação da matéria de facto proferida pela 1.ª instância, impondo-se-lhe no que concerne à prova sujeita à livre apreciação do julgador, a (re)análise dos meios de prova produzidos em 1ª instância, desde que o recorrente cumpra os ónus legalmente definidos pelo artigo 640.º do CPC.
Com efeito, nessas situações, resulta da conjugação dos artigos 635.º, n.º 4, 639.º, n.º 1 e 640.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, que, na impugnação da matéria de facto, e sob pena de rejeição do recurso (total ou parcial) deve o recorrente, nas conclusões de recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em questão que considera incorretamente julgados (enquanto delimitação do objeto do recurso) e, pelo menos, na motivação, deve identificar com precisão quais os meios probatórios que fundamentem essa pretensão, sendo que, tratando-se de prova pessoal, deverá ser feita a indicação com exatidão das passagens da gravação em que se funda o recurso e, bem assim, qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em causa
[4]
.
Como sublinha António Abrantes Geraldes
[5]
, as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um
critério de rigor,
decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconformismo. Contudo, importa que não exponenciem os requisitos formais a um ponto que seja violado o
princípio da proporcionalidade
e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.
Nesta decorrência, e a propósito do ónus previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, como também é entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, existem casos em que, apesar da impugnação da matéria de facto se dirigir a blocos de factos, ainda assim deverá ser admitida, nomeadamente, quando o conjunto de factos impugnados respeitem à mesma realidade ou tratando-se de matéria conexa e os concretos meios de prova indicados sejam comuns a esses factos. Neste sentido, vejam-se, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19-05-2021
[6]
, 27-10-2021
[7]
e de 1-06-2022
[8]
.
Por outro lado, como também refere António Santos Abrantes Geraldes
[9]
, quanto às funções atribuídas à Relação em sede de intervenção na decisão da matéria de facto, “foram recusadas soluções maximalistas que pudessem reconduzir-nos a uma
repetição dos julgamentos
, tal como foi rejeitada a admissibilidade de
recursos genéricos
contra a decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas e relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”.
A modificação da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que for declarado pela 1ª instância. Porém, como também salienta António Santos Abrantes Geraldes
[10]
, «(…) a reapreciação da matéria de facto pela Relação no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662.º não pode confundir-se com um novo julgamento, pressupondo que o recorrente fundamente, de forma concludente, as razões por que discorda da decisão recorrida, aponte com precisão os elementos ou meios de prova que impliquem decisão diversa da produzida e indique a resposta alternativa que pretende obter».
Não se questionando a amplitude de conhecimento por parte do Tribunal da Relação, nos moldes que vem sendo reconhecida em jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça
[11]
– de maneira a que fique plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição -, o certo é que o poder/dever previsto neste último normativo – de alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente
impuserem
decisão diversa – significa que para tal alteração, como se afirma no Acórdão de 17-04-2023
[12]
desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, “
não basta que os meios de prova admitam, permitam ou consintam uma decisão diversa da recorrida
”.
De facto, como também se evidencia neste último Acórdão
[13]
, «
a parte recorrente não pode simplesmente invocar um generalizado erro de julgamento tendente a uma reapreciação global dos meios de prova, não podendo a censura do recorrente quanto ao modo de formação da convicção do tribunal a quo assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, simplesmente em defender que a sua valoração da prova deve substituir a valoração feita pelo julgador; antes tal censura tem que assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente por não existirem os dados objetivos que se apontam na motivação ou por se terem violado os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou ainda por não ter existido liberdade de formação da convicção [21 – É que de outra forma, ocorreria uma inversão da posição dos intervenientes no processo, mediante a substituição da convicção de quem tem que julgar pela convicção de quem espera a decisão].».
Ora, feita uma apreciação preliminar global dos argumentos aduzidos para sustentar a impugnação apresentada, verifica-se que a Recorrente procura pôr em crise a correção do juízo de livre convicção formado pelo julgador ao valorizar a prova, pelo que consideramos pertinente deixar, desde já, algumas noções gerais a esse propósito.
Assim, sublinhe-se que o juiz, como regra, aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (artigo 607.º, n.º 5, do CPC). Pode também dizer-se que é entendimento pacífico da doutrina e jurisprudência, que a livre apreciação da prova não consente que o julgador forme a sua convicção arbitrariamente, impondo-se ao invés um processo de valoração racional, dirigido à formação de um prudente juízo crítico global. Este juízo deve assentar na ponderação conjugada dos diversos meios de prova, aferido segundo regras de experiência, atendendo aos princípios de racionalidade lógica e considerando as circunstâncias do caso.
Claro está que o resultado desse processo deve ter suporte na prova produzida e tal deve emanar, em termos suficientemente claros e objetivos, da fundamentação da decisão da matéria de facto.
Como é evidente, tal resultado não pressupõe uma certeza absoluta, sendo sim necessário que a prova permita criar a convicção da realidade de um facto [nas palavras de Antunes Varela, J.Miguel Bezerra e Sampaio e Nora
[14]
, “
grau especial de convicção, traduzido na certeza subjetiva”
].
E, como se enfatiza no Acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 4-05-2022
[15]
, «[e]
ssa
certeza subjetiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradição ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá um dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.».
Do atrás exposto decorre com manifesta clareza que, para sustentar a impugnação sobre a decisão da matéria de facto, não bastará invocar um (ou mais) depoimento(s) em sentido contrário do decidido para pôr em crise a livre convicção formada e proceder a impugnação.
Do mesmo passo, se o recorrente entende que o Tribunal
a quo
valorou indevidamente meios de prova e, em contraste, atendeu indevidamente a outros que não mereciam credibilidade, errando assim na formação da sua livre convicção, não é suficiente partilhar e esgrimir aquela que é a sua própria convicção para procurar descredibilizar os meios de prova que foram valorados pelo julgador, antes lhe cumprindo evidenciar as razões que revelam o erro, seja por ter decidido ao arrepio das regras da experiência, ou por contrariar os princípios da racionalidade lógica, ou por ter desconsiderado quaisquer circunstâncias com influência relevante naquele processo de valoração da prova.
Feitas estas considerações, haverá agora que incidir a análise sobre o caso vertente.
A Recorrente manifesta a respetiva discordância quanto à decisão da matéria de facto proferida pelo Tribunal
a quo
, resultando da conjugação das conclusões da apelação que dirige a impugnação aos pontos Y) e Z) dos factos provados (cfr. pontos 2., 3., 17., 18., e 23. das conclusões). Por sua vez, ainda que a Recorrente não prime pela objetividade e clareza na enunciação, da conjugação das sobreditas conclusões com a motivação da apelação, é possível depreender que pretende que a factualidade em causa passe a integrar o elenco dos factos não provados.
Especifica ainda na motivação os elementos probatórios constantes do processo e que considera devem conduzir à alteração daqueles pontos impugnados, sendo que apelando a prova pessoal gravada indica, na motivação, as passagens da gravação em que funda o seu recurso, transcrevendo esses excertos.
Pese embora a Recorrente tenha agrupado a matéria em causa, considerando que se trata de matéria intimamente conexa, que à mesma se reportam os mesmos meios de prova invocados e a Recorrente faz a conexão dos elementos de prova com os pontos impugnados, conclui-se não se verificar obstáculo ao conhecimento da impugnação.
Se atentarmos, aliás, na sentença recorrida, constata-se que a matéria em causa foi também agrupada na motivação em termos de apreciação crítica dos elementos probatórios.
Analisadas as conclusões e a motivação da alegação, e reverenciando o princípio da proporcionalidade, consideram-se, no caso, minimamente cumpridos os ónus legais de impugnação previstos no artigo 640.º do CPC.
Isto posto, haverá que apreciar a impugnação apresentada.
Deixa-se desde já consignado que nesta sede recursiva, se procedeu à reanálise de toda a prova produzida na matéria em causa, por forma a que estivesse garantida a devida contextualização dos elementos de prova convocados em sede de recurso e na fundamentação da decisão recorrida.
Relembre-se a redação dos pontos impugnados:
Pontos dos factos provados que a Recorrente considera que devem passar a figurar nos factos não provados:
“Y) A carga explosiva que causou o acidente referido no ponto D), foi fornecida pela ré empregadora ao autor para levar a cabo a tarefa aí descrita;
Z) A carga explosiva que causou o acidente referido no ponto D), foi introduzida pelo autor num furo que previamente havia aberto, com martelo pneumático, na massa rochosa que fraturava;”
Consta na sentença recorrida em sede de motivação, no que se refere à matéria em causa, o seguinte:
“Deram-se como provados os pontos Y) e Z), com base na análise da prova documental junta aos autos, conjugada com os depoimentos de BB, CC e DD, que se mostraram todos sinceros e credíveis nas respostas dadas, respondendo com desassombro e em termos que causaram forte impressão subjetiva no Tribunal.
Por isso e porque o teor dos respetivos depoimentos se conjuga com as regras da normalidade e com os demais elementos dos autos, formou-se um todo coeso e credível que permitiu afastar o depoimento de GG, que terá mentido com vista a ajudar a ré patronal a eximir-se à responsabilidade que sobre si impende e concluir, por ilação, que a carga explosiva que causou ao autor o dano que os autos patenteiam, lhe foi fornecido pela entidade patronal e por si introduzido no maciço rochoso que fraturava.
Com efeito, BB esclareceu que o autor tinha fulminantes nos bolsos da roupa que usava no momento do sinistro, o que indica que estava a usar cargas explosivas, e CC e DD, esclareceram que essa era a sua função em obra que, no passado, executou a ré patronal.
A ré patronal, por outro lado, não se poupou a esforços para escamotear a verdade, tudo tendo, desde o primeiro momento, feito nesse sentido, desde logo, participando o acidente como queda, o que claramente demonstra, atento o que depois se veio a apurar, que bem sabia da ilicitude da sua conduta e das gravosas consequências que sobre si impendiam.
Tudo a conjugar-se no sentido de não ter restado na mente do Tribunal dúvida sobre a factualidade em causa que, por isso, se considerou provada.”
A Recorrente, como resulta das suas alegações, discorda desta fundamentação, por considerar que perante a prova produzida e que indica (depoimentos das testemunhas GG, HH, BB, CC, DD e II), o Tribunal
a quo
não poderia ter dado como provados os pontos Y) e Z), argumentando que os depoimentos que foram valorizados pelo julgador sequer revelaram
conhecimento direto dos factos que permitem aferir do conhecimento efetivo do sucedido
.
Que dizer?
Ora, analisados os argumentos da Recorrente para sustentar a impugnação dos pontos agora em causa, o que se constata é que a mesma procura pôr em causa a correção do juízo de livre convicção formado pelo julgador ao valorizar determinada prova em detrimento de outra.
Nesse pressuposto, importa que se tenham presentes as noções gerais supra tecidas no âmbito do princípio da livre apreciação da prova que impera no processo civil (artigo 607.º, n.º 5, do CPC).
No presente caso, lendo a fundamentação fáctica da sentença recorrida, constata-se que a Recorrente faz uma apreciação dos elementos probatórios diversa do Tribunal
a quo
e entende que deveria ser acolhida a sua apreciação, o que, sendo-lhe legítimo, não resultou em evidenciar a ocorrência de qualquer erro do julgador na formação da sua convicção.
Da análise crítica e conjugada efetuada de todas as provas produzidas nos autos, consideradas pelo Mº Juiz
a quo
quanto aos factos impugnados, não vislumbramos razões para não consideramos que a decisão recorrida motivou e analisou, de forma ponderada e clara, a globalidade da prova produzida. O Mmº Juiz
a quo
firmou a sua convicção, fundamentada na globalidade e apreciação conjunta de todas as provas produzidas, que analisou, com apelo às regras da experiência e aos princípios da racionalidade lógica, não padecendo de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que no caso foram produzidos. O Tribunal
a quo
justificou a valoração que fez em termos de credibilidade – ou ausência dela – quanto aos depoimentos produzidos, concatenando-os com a análise da prova documental junta aos autos, logrando explicitar o resultado da convicção a que chegou em termos de razoabilidade e lógica
.
Não obstante, não resistimos a tecer algumas considerações adicionais que advêm da análise crítica e conjugada da prova que efetuamos à luz das regras da lógica e da experiência.
Assim, e como ponto de partida, estava já assente que o evento/acidente ocorreu pelas 10 horas do dia 10-01-2019, quando o Autor, cumprindo ordens do gerente da Ré empregadora – Sr. FF – se encontrava a fragmentar uma massa rochosa de granito, para obtenção de pedra, para a construção nas proximidades, de um muro de contenção de terras, e que houve uma explosão, com projeção de chama e fragmentos graníticos em várias direções que atingiram fortemente o Autor e, mais levemente, o seu colega de trabalho GG, que andava um pouco mais afastado a operar uma retroescavadora – cfr. alínea E) dos factos considerados assentes por acordo e que não foi objeto de impugnação. Isso mesmo, aliás, resultou inequívoco da conjugação dos depoimentos das testemunhas JJ e HH (a primeira trabalha perto do local e o segundo vive perto do local, que confirmaram que ouviram um estrondo), com o depoimento da testemunha GG (que, segundo reportou, nesse dia se encontrava a trabalhar na mesma obra, a uns “
sete metros”,
fazendo serviço com uma máquina e ouviu uma explosão e saltou da máquina para socorrer o Autor). Está também assente que o Autor, para além do traumatismo crânio encefálico, sofreu queimaduras na face, mão e antebraço esquerdo (alíneas G) e L) dos factos assentes por acordo e não impugnados – atente-se que dos registos clínicos constantes dos autos, decorre que o Autor sofreu queimaduras de 2º grau na face e 1º e 2º grau no membro superior esquerdo).
É certo que nenhuma das testemunhas cujo depoimento foi valorado se encontrava no local de forma a que pudessem testemunhar de forma direta o sucedido, sendo que a testemunha GG, único trabalhador que acompanhava o Autor nas tarefas desenvolvidas para a construção do muro, negou que AA estivesse a usar explosivos para fragmentar o granito, antes afirmando que ele andava a cortar a pedra e que utilizava umas “
galhetas”, a furar para meter as galhetas para abrir a pedra
(sic).
Mas, a verdade é que, analisada de forma crítica toda a prova, não podemos deixar de concordar com a apreciação que foi feita pelo Tribunal
a quo
e que levou este a concluir que o Sinistrado, para concretizar a tarefa que desenvolvia, estava a usar carga explosiva.
Sublinhe-se que a apreciação das provas deve ser feita pelo juiz segundo a sua prudente convicção e em função da análise crítica das provas que faça e das ilações que tire dos factos instrumentais, compatibilizando nessa tarefa toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas por lei e por regras de experiência.
Nesta conformidade, e como se dá nota no Acórdão da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto de 11-11-2024
[16]
, «o juízo probatório que deve presidir à fixação da matéria de facto pode não ser adquirido de forma directa ou através de testemunhas que tenham conhecimento directo dos factos, podendo resultar também da conjugação de diversos outros elementos que, caso fossem considerados isoladamente, podiam ser insuficientes para a determinação dos factos, mas que, quando analisados no seu conjunto e à luz das regras da lógica e da experiência comum, por convergirem no mesmo sentido e não se mostrarem contrariados por outros elementos com consistência probatória, autorizam que se conclua com segurança quanto à realidade que é dada como provada.».
Ora, foi esse processo valorativo que foi feito pelo Tribunal
a quo
, e que lhe permitiu afastar o depoimento da testemunha GG quanto à alegada não utilização de explosivos pelo Autor.
Neste particular, atente-se no já acima explanado quanto à materialidade assente no que respeita à existência de uma explosão com projeção de chama e fragmentos graníticos que atingiram o Autor e a testemunha GG, sendo que o Autor ficou com queimaduras.
Ademais, a testemunha KK, cabo da GNR - que se deslocou ao local do evento após a sua ocorrência, mas ainda quando o Autor se encontrava a ser assistido no local -, explicou que no local lhe foi comunicado pelo legal representante da Ré entidade empregadora que se trataria de uma queda, mas que depois no contacto que teve com o médico do INEM o mesmo lhe terá dito que o Sinistrado estava queimado e que provavelmente se trataria de manuseamento de explosivos, pelo que contatou o órgão competente.
Se atentarmos, no auto de notícia da GNR, constante dos autos a fls. 391, elaborado pela indicada testemunha, resulta confirmado o referido relato, estando aí explicitado o seguinte: “
No local fomos contatados pelo Senhor FF (…). O mesmo intitulou-se como proprietário da empresa A... Unipessoal, Lda., Lda. que se encontrava a executar a obra no terreno, estando dois funcionários, já identificados no campo da vítima, a proceder à remoção de pedras e terra, com a ajuda de uma máquina retro escavadora, que estava no local a chegada desta patrulha, que um dos funcionários escorregou e bateu com a cabeça numa pedra. (…) Durante as diligências no local e junto da equipa médica que se encontrava a assistir uma das vitimas, constatou-se que os ferimentos eram queimaduras pelo corpo, levando a suspeitar que foram utilizados explosivos para a execução dos trabalhos. Por tal facto, foi contatado a equipa do Núcleo de Armas e Explosivos da Polícia de Segurança Pública, a fim de apurar da veracidade dos factos acima descritos. (…)”.
Do mesmo passo, consta dos autos a Informação de Serviço da Equipa da Polícia de Segurança Pública, da Secção de Fiscalização de Armas e Explosivos da PSP do Porto, que no mesmo dia do evento se deslocou ao local. Assim consta dessa informação – fls. 389 a 390 dos autos – o seguinte: “
Para os devidos efeitos, informo V. Exª, que no dia 10-01-2019, pelas 12h25, juntamente com o Agente Principal nº (…), no âmbito das nossas funções na Secção de Fiscalização de Armas e Explosivos da PSP do Porto, por ordem superior, deslocamo-nos à localidade de Paredes, mais concretamente a uma obra de reconstrução de um muro, (…) por haver notícia da ocorrência de uma acidente de trabalho, supostamente durante o emprego de produto explosivo. (…). Já no local da ocorrência (fotograma 1), pelas 13h30 (acompanhados da GNR de Paredes), verificamos que o cenário do acidente não se encontrava devidamente salvaguardado, encontrando-se aparentemente já mexido e arrumado, não se encontrando conforme disposição pós-acidente. No sentido de averiguar a existência de restos de material/produto explosivo que pudesse colocar em risco pessoas e bens bem como das possíveis causas do acidente, procedi à realização das necessárias medidas cautelares e de polícia, efetuando a inspeção ao local, e reportagem fotográfica, com recolha e apreensão de objetos. Análise técnica: 1º Existiam vestígios hemáticos, no local onde ocorreu o acidente (fotograma 2 e 9); 2º Era sentido junto do local da ocorrência, cheiro a pólvora queimada, indiciando a utilização de produtos explosivos; 3º Das ferramentas de trabalho, encontrava-se no local da ocorrência apenas uma máquina industrial vulgo “giratória” e um compressor industrial (fotograma 1); 4º Verificou-se que na frente de trabalhos existiam diversos furos efetuados em rocha, que normalmente são realizados aquando da necessidade de operações de desmonte de maciços rochosos, com recurso a explosivos, conforme é visível no fotograma 2 (marcadores A1, A2, B1, B2); 5º Existiam marcas de furos nas rochas, retratados nos fotogramas 3 e 4, que conjugado com as marcas de combustão, serão indiciantes de utilização e emprego de substâncias explosivas no desmonte de rocha; 6º No decurso das diligências, procedi ainda à recolha e apreensão a desconhecidos, de um pedaço de rastilho por deflagrar (marcador B1) e um pedaço de rastilho deflagrado (marcador C1), conforme Auto de apreensão (…), pormenorizado no fotograma 7 e 8 (…)”. –
a fls. 392 a 396 dos autos constam fotos do local, o auto de apreensão dos pedaços de rastilho consta a fls. 396 verso a 397 dos autos e a “reportagem fotográfica” com os fotogramas mencionados na referida informação consta a fls. 397 verso a 399 frente dos autos. Realce-se que: o fotograma 7 tem a legenda “
Pedaço de rastilho por deflagar, junto de furo ainda por encher com produto explosivo”;
o fotograma 8 tem a legenda “
Bloco granítico, onde é visível furo já detonado com pedaço de rastilho deflagrado, indícios de pólvora negra e material de tamponamento”
e o fotograma 9 tem a legenda “vestígios hemáticos”. Mais, dos autos consta um relatório da PSP do Departamento de Armas e Explosivos, referentes à análise dos dois fragmentos de rastilho apreendidos – um já utilizado e um por utilizar -, tendo-se aí concluído tratar-se de rastilho ou mecha de mineiro, enquadrável na qualidade de explosivos de uso civil – cfr. fls. 218 e 219 dos autos [rastilho ou mecha de mineiro, como resulta do artigo 3.º, alínea y), do Decreto-Lei n.º 9/2017 de 10-01 – que estabelece os requisitos da colocação no mercado de explosivos e munições -, é “
o objeto constituído por uma alma de pólvora negra de grãos finos envolta por uma tela de tecido maleável revestido de uma ou mais bainhas protetoras e que quando é inflamado arde a uma velocidade predeterminada sem qualquer efeito explosivo exterior”.
Não passou despercebido que a testemunha GG mencionou a dado passo que “
às vezes há pedras que vêm e não estão detonadas, vêm com rastilhos
” (sic), não se percebendo muito bem o que pretendeu deixar no ar com essa afirmação, já que não o desenvolveu, sendo que questionada sobre se o rastilho rebenta afirmou nunca ter visto nenhum rebentar. E, de facto, ditam as regras da lógica e da experiência comum, que um simples rastilho, se não tiver carga explosiva, não tem a virtualidade de provocar explosão/rebentamento. Como se evidencia também no citado Acórdão de 11-11-2024, não são necessários conhecimentos especiais, “nomeadamente de índole técnica ou científica, para se saber que a combustão de materiais, independentemente do poder destrutivo do fogo que lhe esteja associado, por si só não provoca explosão, evento este que apenas poderá sobrevir, sim, se a energia libertada pela combustão atingir uma
substância
ou um conjunto de substâncias que possam sofrer o processo de
explosão
(ou seja, cargas ou materiais explosivos). Este é um juízo que pode, perfeitamente, ser formulado pelo julgador, não carecendo, pois, de suporte pericial”.
De todo o modo, dos autos consta uma informação datada de 27-01-2020, prestada pelo Departamento de Armas e Explosivos da PSP, relativa a uma questão concreta submetida a apreciação – sobre se existe a possibilidade de pedaços de rastilho agarrados à pedra em consequência do próprio desmonte, poderem detonar/explodir quando em contato com o trabalho executado com um martelo pneumático -, na qual, referindo-se o comportamento do rastilho –
que quando inflamado arde a uma velocidade pré-determinada sem qualquer efeito explosivo exterior –
os pedaços de rastilho em causa não poderiam detonar/explodir quando em contacto com o trabalho executado com um martelo pneumático, nem provocar danos significativos, sendo que esse equipamento poderia eventualmente iniciar o produto mas sem qualquer efeito explosivo exterior – cfr. fls. 363 dos autos.
Tendo-se verificado, no caso, indubitavelmente, uma explosão, um efeito explosivo exterior, com projeção em várias direções e atingimento dos dois trabalhadores, sendo quanto ao Autor com consequências como queimaduras, nos moldes assentes e não impugnados, ditam as regras da racionalidade lógica e da experiência comum que se encontrava carga explosiva no local.
E, conjugando-se tais elementos probatórios com o facto de a testemunha BB ter revelado que encontrou dois fulminantes na casaca do seu irmão AA (Autor) – casaca essa que lhe foi entregue no hospital -, bem como com o facto de as testemunhas CC e DD terem revelado que, ainda que em data muito anterior (há uns 10 anos, segundo estimado), o Autor havia feito uso de explosivos para “rebentar” uns penedos junto a um terreno cedido pelo casal de testemunhas ao pai do gerente da empresa Ré empregadora para o qual o Autor já então trabalhava, considera-se ser possível formular, com base nas regras da experiência ou da normalidade da vida, um juízo seguro de que um acidente com as caraterísticas do ocorrido se deveu, justamente, ao facto de o Autor estar a utilizar explosivos para fragmentar pedras destinadas ao muro cuja construção estava adjudicada à sua entidade patronal. Isso mesmo, segundo o revelado na audiência pela testemunha BB, foi afirmado pelo próprio GG quando, a seguir aos factos, se deslocou até ao hospital para onde havia sido transportado o seu colega de trabalho, o que consubstancia mais um elemento que reforça a consistência do juízo probatório efetuado. Realce-se que, em sede de processo civil, o depoimento indireto não é um meio de prova proibido e, portanto, pode, nos termos gerais do artigo 607.º, n.º 5, do CPC, ser livremente valorado pelo julgador (como foi também efetuado pelo Tribunal
a quo
).
Não merece, pois, censura a desvalorização do depoimento da testemunha GG no que respeita à afirmada não utilização de explosivos na tarefa que estava a ser desenvolvida, já que o seu depoimento resultou logicamente infirmado, não merecendo credibilidade neste conspecto.
Do mesmo passo, é pertinente o apontado na fundamentação quanto à participação do acidente feita pela Ré entidade empregadora como sendo uma queda – se atentarmos na participação do acidente feita à Seguradora, consta no item atinente à descrição do acidente – “
Ao furar uma pedra, para colocação de umas alhetas, escorregou indo embater com a cabeça numa pedra. Tem feridas graves na cara (foi intervencionado cirurgicamente). At no exterior e em horário laboral” -,
nenhuma referencia sendo feita à explosão – que a própria testemunha GG admitiu no seu depoimento ter sido aquilo que o fez aperceber-se do acidente ocorrido com o colega e se ter precipitado em seu socorro -, sendo certo que as feridas graves na cara eram queimaduras como desde o início e na assistência ao Sinistrado foi constatado. Tal é revelador da necessidade de omitir tais circunstâncias pela evidência que as mesmas sustentariam, ou seja, que explosivos foram utilizados. Refira-se que a testemunha II, a que apela a Recorrente, relatou que tinha dificuldades em dizer a causa do acidente, justificando isso pela circunstância de por um lado as entidades oficiais – GNR, bombeiros - dizerem que se tratava de uma explosão e a entidade patronal dizer que não tinha sido uma explosão, depreendendo-se do seu depoimento que as diligências que terá feito foi apenas deslocar-se ao local (cerca de um mês depois do acidente), contactar a GNR, os bombeiros e falar com a entidade empregadora, sendo que, entretanto, a gestão da B... mandou encerrar o processo sem que nada tivesse concluído. Ou seja, do depoimento desta testemunha decorre que o que lhe foi transmitido pela entidade empregadora foi que não terá sido uma explosão, quando é certo que na contestação apresentada neste processo de acidente de trabalho, perante as evidências da prova no sentido de se ter verificado uma explosão, já aventou uma hipótese –
explosão de um rastilho que se encontrava na pedra que trabalhava o sinistrado
- que, como vimos supra, não colhe qualquer sustentação nas regras da lógica e da experiência comum.
No referido contexto probatório, analisados criticamente todos os elementos à luz das regras da lógica e da experiência, sabendo-se que existiu uma explosão, cuja única explicação, plausível e credível, é a utilização de explosivos, é também firme convicção deste Tribunal ser possível inferir de todos os factos conhecidos que o trabalhador Autor utilizava explosivos, não por sua auto recriação, mas sim porque fornecidos, para o efeito, pela sua entidade empregadora, ora Recorrente, única entidade que tinha interesse económico na atividade que estava a ser executada
Em conclusão, a prova produzida não impõe, pois, decisão distinta na matéria em apreciação, improcedendo a impugnação da matéria de facto.
*
Improcedendo as conclusões do recurso da Recorrente entidade empregadora quanto à impugnação da matéria de facto, o elenco factual a atender para o conhecimento do direito do caso é o mesmo que para o efeito foi fixado pelo Tribunal recorrido e que se mostra já supra transcrito em 1).
***
3) Aplicação do direito
3.1.
Saber se a sentença recorrida errou na aplicação do direito ao julgar verificados os pressupostos da afirmação da responsabilidade agravada da Ré entidade empregadora, ora Recorrente, nos termos e para efeitos do artigo 18.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro;
Face ao que resulta das conclusões do recurso, pressupondo a alteração da pronúncia em sede de matéria de facto (que, como vimos, improcedeu), a Recorrente, sustenta, em síntese, que: incumbia à Seguradora e ao Sinistrado, alegar e provar, não só a inobservância por parte da Empregadora de regras sobre a segurança e saúde no trabalho, mas também a existência de nexo de causalidade entre essa inobservância e o acidente; estando apenas provado que ocorreu uma explosão no local de trabalho, não pode haver lugar agravamento da responsabilidade por inobservância das regras de segurança prevista no artigo 18.º da Lei n.º 98/2009 de 4-09; na factualidade apurada nada se apurou que permita estabelecer o nexo de causalidade entre a violação das obrigações gerais do empregador assegurar a segurança e saúde dos trabalhadores na utilização de equipamentos de trabalho e a ocorrência do acidente, a omissão da formação/habilitação e a ocorrência do acidente e a necessidade de prevenir os riscos de explosão dos equipamentos ou substâncias e a ocorrência do acidente.
No respetivo parecer, o Exmº Procurador-Geral Adjunto defende que perante a matéria de facto provada não merece reparo a sentença recorrida.
A sentença recorrida considerou preenchida a previsão do artigo 18.º da NLAT, com a seguinte fundamentação (transcrição):
« […]
Ora, dos factos dados como provados resulta claro a existência de um acidente qualificável como acidente de trabalho, matéria que nenhuma das partes colocou em causa, sendo também incontestado o direito do autor a receber reparação.
Assim, constitui o âmago da presente decisão, antes de mais, aferir se o acidente de trabalho que vitimou o autor foi causado por culpa da entidade patronal.
Estabelece o artigo 18.º, n.º 1, do RJAT, que “Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais”.
Esta norma pressupõe a verificação dos seguintes requisitos: a) que sobre a empregadora ou qualquer outra das entidades mencionadas no normativo recaia o dever de observância de determinadas normas ou regras de segurança (entendidas como normas que
consagram deveres especiais de cuidado em matéria de segurança e saúde no trabalho); b) que aquela as não haja, efetivamente cumprido; c) que se verifique uma relação de causalidade adequada entre aquela omissão e o acidente (neste sentido, cfr., entre outros, Acórdãos do STJ de 06/05/2015, proc. 220/11.2TTTVD.L1.S1, e de 14/01/2015, proc. 644/09.5T2SNS.E1.S1, e Acórdão do TRÉvora de 21/12/2017, proc. 572/15.5T8LRA.E1, todos disp. in www.dgsi.pt).
Assim, no juízo de preenchimento do nexo causal entre a violação de regras de segurança no trabalho e o acidente de trabalho, como pressuposto da responsabilização a título principal e agravado do empregador, há que fazer apelo à teoria da causalidade adequada, consagrada no artigo. 563° do Código Civil, teoria segundo a qual para que um facto seja causa de um dano é necessário que, no plano naturalístico ele seja condição sem a qual o dano não se teria verificado e, em abstrato ou em geral, seja causa adequada do mesmo, traduzindo-se, essa adequação, em termos de probabilidade fundada nos conhecimentos médios, de harmonia com a experiência comum, atendendo às circunstâncias do caso.
Ora, o Decreto-Lei nº 50/2005, de 25/02, que transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva nº 89/655/CEE, do Conselho, de 30/11, alterada pela Diretiva nº 95/63/CE, do Conselho, de 05/12, e pela Diretiva nº 2001/45/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27/06, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho, veio dispor sobre as prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho.
Sendo que o seu artigo 2º alíneas a) e c) definem como equipamento de trabalho qualquer máquina, aparelho, ferramenta ou instalação utilizado no trabalho; e zona perigosa qualquer zona dentro ou em torno de um equipamento de trabalho onde a presença de um trabalhador exposto o submeta a riscos para a sua segurança ou saúde, pelo que a máquina aqui em causa se enquadra no âmbito de aplicação deste diploma legal.
O artigo 3º estabelece as obrigações gerais do empregador para assegurar a segurança e saúde dos trabalhadores na utilização de equipamentos de trabalho, salientando-se as suas alíneas a) e b), nos termos das quais, para assegurar a segurança e a saúde dos trabalhadores na utilização de equipamentos de trabalho, o empregador deve assegurar que os equipamentos de trabalho são adequados ou convenientemente adaptados ao trabalho a efetuar e garantem a segurança e a saúde dos trabalhadores durante a sua utilização e atender, na escolha dos equipamentos de trabalho, às condições e características específicas do trabalho, aos riscos existentes para a segurança e a saúde dos trabalhadores, bem como aos novos riscos resultantes da sua utilização.
O artigo 5º determina que sempre que a utilização de um equipamento de trabalho possa apresentar risco específico para a segurança ou a saúde dos trabalhadores, o empregador deve tomar as medidas necessárias para que a sua utilização seja reservada a operador especificamente habilitado para o efeito, considerando a correspondente atividade.
Já quanto aos riscos de explosão, temos de atentar no artigo 20.º, cuja al. c) estabelece que “os equipamentos de trabalho devem prevenir os riscos de explosão dos equipamentos ou de substâncias por eles produzidas ou neles utilizadas ou armazenadas.”
Refira-se ainda que a Lei nº 102/2009, de 10/09, que regulamenta o regime jurídico da promoção e prevenção da segurança e da saúde no trabalho, de acordo com o previsto no artigo 284º do CT, no que respeita à prevenção, estipula, no seu artigo 5º nº 1, que “O trabalhador tem direito à prestação de trabalho em condições que respeitem a sua segurança e a sua saúde, asseguradas pelo empregador ou, nas situações identificadas na lei, pela pessoa, individual ou coletiva, que detenha a gestão das instalações em que a atividade é desenvolvida”, reforçado no seu artigo 15º nº 1.
Acrescentando o artigo 17º nº 1 alínea a) da citada Lei que “Constituem obrigações do trabalhador cumprir as prescrições de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas nas disposições legais e em instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, bem como as instruções determinadas com esse fim pelo empregador”, obrigações estas que não excluem as obrigações gerais do empregador previstas no artigo 15º.
Ora, no caso dos autos, ao determinar a utilização de explosivos pelo autor, sem licenciamento para o uso de tais substâncias, sem lhe dar formação adequada, sem um plano específico de segurança e sabendo-se que, por força de tal uso, se produziu a explosão acidental duma carga, atingindo o autor que, no momento do acidente, não usava qualquer equipamento de proteção específica, causando-lhe os danos que resultaram provados, afigura-se-nos preenchida a previsão do artigo 18.º do RJAT, verificando-se a invocada atuação culposa da ré A... Unipessoal, Lda..».
Ponderando a transcrita fundamentação, tendo por base a factualidade provada e o quadro normativo aplicável, diremos, desde já adiantando a solução que, sempre ressalvando o devido respeito por posição divergente, consideramos não assistir razão à Recorrente na sua pretensão de ver alterado o julgado, concordando-se com o sentido decisório da sentença recorrida ao afirmar a responsabilidade da Recorrente pela reparação do acidente nos termos do artigo 18.º da Lei n.º 98/2009, de 5-09.
Explicitemos, então, as razões deste nosso entendimento.
Tendo em conta a data da ocorrência do acidente de trabalho (10-01-2019 – não está em crise tal qualificação do evento), é aplicável a Lei n.º 98/2009, de 4/09
[17]
(cfr. os respetivos artigos 187.º e 188.º).
O artigo 18.º da LAT dispõe que:
“1 - Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão de obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais.
(…)
4 - No caso previsto no presente artigo, e sem prejuízo do ressarcimento dos prejuízos patrimoniais e dos prejuízos não patrimoniais, bem como das demais prestações devidas por actuação não culposa, é devida uma pensão anual ou indemnização diária, destinada a reparar a redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte, fixada segundo as regras seguintes:
a) Nos casos de incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, ou incapacidade temporária absoluta, e de morte, igual à retribuição;
b) Nos casos de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, compreendida entre 70 % e 100 % da retribuição, conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível;
c) Nos casos de incapacidade parcial, permanente ou temporária, tendo por base a redução da capacidade resultante do acidente.
(…)”.
Como se mostra sintetizado no sumário do recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2-04-2025
[18]
, «[n]os termos do artigo 18.º, n.º 1, 2.ª parte, da Lei 98/2009 (LAT), para que o acidente de trabalho a ele se subsuma, é necessário: a) que sobre as entidades referidas no nº 1 recaia o dever de observar determina(s) norma(s) de segurança e que a(s) não haja observado; b) o nexo causal entre essa conduta (ato ou omissão) e o acidente».
Importa também referir que, conforme orientação jurisprudencial que se julga pacífica, máxime ao nível da jurisprudência do Supremo Tribunal
[19]
, que se acompanha, ao sinistrado/beneficiário e/ou seguradora incumbe o ónus de alegação e prova dos factos integradores da violação das regras de segurança determinantes da responsabilidade, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, da LAT.
Quanto à violação de regras de segurança, haverá que ter presente que, como decorre de diversas disposições legais, constitui um direito basilar dos trabalhadores o prestar o trabalho em condições de segurança e saúde (artigo 59.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa e artigo 281.º, n.º 1, do Código do Trabalho de 2009
[20]
).
Nessa decorrência, sob o empregador recai o dever de assegurar aos trabalhadores condições de segurança e saúde em todos os aspetos relacionados com o trabalho, aplicando as medidas necessárias tendo em conta princípios gerais de prevenção, sendo que na aplicação dessas medidas de prevenção deve mobilizar os meios necessários, nomeadamente nos domínios da prevenção técnica, da formação, informação e consulta dos trabalhadores e de serviços adequados, internos ou externos à empresa (cfr. n.º 2 e 3 do citado artigo 281.º). O empregador deve assegurar formação adequada, que habilite os trabalhadores a prevenir os riscos associados à respetiva atividade e os representantes dos trabalhadores a exercer de modo competente as respetivas funções (artigo 282.º, n.º 2, do CT/2009).
A Lei n.º 102/2009, de 10-09
[21]
, estabelece o regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho, aí se reiterando o direito do trabalhador à prestação de trabalho em condições de segurança e saúde, que deverá assentar no princípio geral de prevenção, com a eliminação, desde logo, dos fatores de risco e de acidente (artigo 5.º da citada lei sob epígrafe
Princípios Gerais)
, donde decorrem as inerentes obrigações que recaem sobre o empregador (artigo 15.º da citada Lei sob epígrafe
Obrigações gerais do empregador
).
Nos termos do artigo 15.º da Lei 102/2009, de 10-09:
“1 – O empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspectos do seu trabalho.
2 – O empregador deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, tendo em conta os seguintes princípios gerais de prevenção:
a) Evitar os riscos;
(…)
c) Identificação dos riscos previsíveis em todas as atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na seleção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos; (…)
e) Combate aos riscos na origem, por forma a eliminar ou reduzir a exposição e aumentar os níveis de proteção; (…)
g) Adaptação do trabalho ao homem, especialmente no que se refere à conceção dos postos de trabalho, à escolha de equipamentos de trabalho e aos métodos de trabalho e produção, com vista, nomeadamente, atenuar o trabalho monótono e o trabalho repetitivo e reduzir os riscos psicossociais;
i) Substituição do que é perigoso pelo que é isento de perigo ou menos perigoso;
(…)
3 – Sem prejuízo das demais obrigações do empregador, as medidas de prevenção implementadas devem ser antecedidas e corresponder ao resultado das avaliações dos riscos associados às várias fases do processo produtivo, incluindo as atividades preparatórias, de manutenção e reparação, de modo a obter como resultado níveis eficazes de proteção da segurança e saúde do trabalhador.
4 - Sempre que confiadas tarefas a um trabalhador, devem ser considerados os seus conhecimentos e as suas aptidões em matéria de segurança e de saúde no trabalho, cabendo ao empregador fornecer as informações e a formação necessárias ao desenvolvimento da atividade em condições de segurança e de saúde.
5 – Sempre que seja necessário aceder a zonas de risco elevado, o empregador deve permitir o acesso apenas ao trabalhador com aptidão e formação adequadas, pelo tempo mínimo necessário.
6 – O empregador deve adotar medidas e dar instruções que permitam ao trabalhador, em caso de perigo grave e iminente que não posse ser tecnicamente evitado, cessar a sua atividade ou afastar-se imediatamente do local de trabalho, sem que possa retomar a atividade enquanto persistir esse perigo, salvo em casos excecionais e desde que assegurada a proteção adequada.
7 – O empregador deve ter em conta, na organização dos meios de prevenção, não só o trabalhador como também terceiros suscetíveis de serem abrangidos pelos riscos de realização dos trabalhos, quer nas instalações, quer no exterior.
(…)
10 – Na aplicação das medidas de prevenção, o empregador deve organizar os serviços adequados, internos ou externos à empresa, estabelecimento ou serviço, mobilizando os meios necessários, nomeadamente nos domínios das atividades técnicas de prevenção, da formação e da informação, bem como o equipamento de proteção que se torne necessário utilizar.
(…)
14 – Constitui contraordenação muito grave a violação do disposto nos n.os 1 a 12.
15 – Sem prejuízo do disposto no número anterior, o empregador cuja conduta tiver contribuído para originar uma situação de perigo incorre em responsabilidade civil.”.
E, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, da Lei 102/2009, “[o] trabalhador deve receber uma formação adequada no domínio da segurança e da saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho e o exercício de atividades de risco elevado.
O artigo 79.º da Lei 102/2009 estabelece que, para efeitos dessa lei, entre outros, são considerados de risco elevado: trabalhos em obras de construção, escavação, movimentação de terras, túneis, com riscos de quedas de altura ou soterramento, demolições e intervenção em ferrovias e rodovias sem interrupção de tráfego (al. a)); fabrico, transporte e utilização de explosivos e pirotecnia (al. e)).
Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25-02
4
, transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 89/655/CEE, do Conselho, de 30-11, alterada pela Diretiva n.º 95/63/CE, do Conselho, de 05-12, e pela Diretiva n.º 2001/45/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27-06, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho (cfr. artigo 1.º).
O artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 50/2005 dispõe que, para efeitos do diploma, se entende: “a) «Equipamento de trabalho» qualquer máquina, aparelho, ferramenta ou instalação utilizado no trabalho; b) «Utilização de um equipamento de trabalho» qualquer actividade em que o trabalhador contacte com um equipamento de trabalho, nomeadamente a colocação em serviço ou fora dele, o uso, o transporte, a reparação, a transformação, a manutenção e a conservação, incluindo a limpeza; c) «Zona perigosa» qualquer zona dentro ou em torno de um equipamento de trabalho onde a presença de um trabalhador exposto o submeta a riscos para a sua segurança ou saúde; d) «Trabalhador exposto» qualquer trabalhador que se encontre, totalmente ou em parte, numa zona perigosa; e) «Operador» qualquer trabalhador incumbido da utilização de um equipamento de trabalho; (…)”.
O artigo 3.º do mesmo diploma estabelece as obrigações gerais do empregador para assegurar a segurança e saúde dos trabalhadores na utilização de equipamentos de trabalho, aí se prevendo, para além do mais, que o empregador deve: assegurar que os equipamentos de trabalho são adequados ou convenientemente adaptados ao trabalho a efetuar e garantem a segurança e a saúde dos trabalhadores durante a sua utilização (alínea a)); atender, na escolha dos equipamentos de trabalho, às condições e caraterísticas específicas do trabalho, aos riscos existentes para a segurança e a saúde dos trabalhadores, bem como aos novos riscos da sua utilização (alínea b)).
Nos termos do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 50/2005, os equipamentos de trabalho devem satisfazer os requisitos mínimos de segurança previstos nos artigos 10.º a 29.º, onde se conta o artigo 20.º referente aos riscos elétricos, de incêndio e explosão (alínea c) –
os equipamentos de trabalho devem prevenir os riscos de explosão dos equipamentos ou de substâncias por eles produzidas ou neles utilizadas ou armazenadas
).
O artigo 5.º do mesmo DL estabelece que “[s]empre que a utilização de um equipamento de trabalho possa apresentar risco específico para a segurança ou a saúde dos trabalhadores, o empregador deve tomar as medidas necessárias para que a sua utilização seja reservada a operador especificamente habilitado para o efeito, considerando a correspondente atividade.”.
Do artigo 8.º do DL n.º 50/2005, sob a epígrafe “Informação dos trabalhadores”, resulta que:
“1 - O empregador deve prestar aos trabalhadores e seus representantes para a segurança, higiene e saúde no trabalho a informação adequada sobre os equipamentos de trabalho utilizados.
2 - A informação deve ser facilmente compreensível, escrita, se necessário, e conter, pelo menos, indicações sobre:
a) Condições de utilização dos equipamentos;
b) Situações anormais previsíveis;
c) Conclusões a retirar da experiência eventualmente adquirida com a utilização dos equipamentos;
d) Riscos para os trabalhadores decorrentes de equipamentos de trabalho existentes no ambiente de trabalho ou de alterações dos mesmos que possam afectar os trabalhadores, ainda que não os utilizem directamente.”
O acidente dos autos ocorreu durante os trabalhos de fragmentação de uma massa rochosa de granito, para obtenção de pedra, para a construção, nas proximidades, de um muro de contenção de terras, sendo que ocorreu uma explosão, com projeção de chama e fragmentos graníticos em várias direções, atingindo o Autor e causando-lhe várias lesões e sequelas.
Como também ficou provado, o acidente ocorreu quando o Autor, cumprindo ordens do gerente da Ré empregadora, se encontrava a fragmentar a referida massa rochosa de granito, sendo que a carga explosiva que causou o acidente foi fornecida pela Ré empregadora ao Autor para levar a cabo a referida tarefa e foi introduzida pelo Autor num furo que previamente havia aberto com martelo pneumático na massa rochosa que fraturava.
Realce-se que os explosivos, salvo melhor opinião, em certos contextos, podem ser considerados equipamentos de trabalho, máxime quando utilizados em atividades como de construção ou em operações de demolição, e, especificamente, como
in casu
, quando utilizados para levar a cabo uma tarefa de fragmentação de uma massa rochosa de granito, para obtenção de pedra, para a construção de um muro de contenção de terras.
Mas, o uso de explosivos é estritamente regulamentado devido aos seus riscos inerentes, constituindo, como já se apontou aquando da análise da Lei n.º 102/2009, um trabalho qualificado como de risco elevado (cfr. artigo 79.º).
Assim, em sede de regulamentação específica haverá que ter em conta o Decreto-Lei n.º 376/84, de 30-11
[22]
, que aprova o Regulamento sobre o Licenciamento dos Estabelecimentos de Fabrico e de Armazenagem de Produtos Explosivos, o Regulamento sobre o Fabrico, Armazenagem, Comércio e Emprego de Produtos Explosivos e o Regulamento sobre Fiscalização de Produtos Explosivos.
Quanto ao Regulamento sobre o Fabrico, Armazenagem, Comércio e Emprego de Produtos Explosivos, o respetivo Capítulo IV versa sobre o emprego de produtos explosivos.
O respetivo artigo 30.º, sob a epígrafe “Cédulas de operador”, estabelece o seguinte:
“1 - O emprego de produtos explosivos na exploração de minas ou de pedreiras, em trabalhos de engenharia ou em quaisquer outros de natureza similar só poderá realizar-se por pessoal habilitado com a cédula de operador.
2 - As cédulas de operador dos modelos II (cor branca), III (cor amarela) e IV (cor cinzenta), anexos a este Regulamento, conferem aos seus titulares autorização, respectivamente, para manipular e empregar substâncias explosivas, só explosivos ou só pólvoras.
3 - Para a obtenção das cédulas de operador deverá o interessado dirigir um requerimento ao presidente da Comissão dos Explosivos, com a assinatura reconhecida, acompanhado de uma certidão das suas habilitações literárias, duas fotografias, uma guia comprovativa de haver depositado na tesouraria da Fazenda Pública a importância correspondente, indicada na tabela B anexa a este Regulamento, e uma declaração, com a assinatura reconhecida por notário, passada por uma entidade que tenha de empregar produtos explosivos nos seus trabalhos, declarando que para a sua execução necessita que o requerente adquira a cédula que pretende.
4 - As cédulas de operador serão concedidas pela Comissão dos Explosivos aos indivíduos que, tendo mais de 21 anos de idade, possuam como habilitações literárias mínimas as correspondentes à escolaridade obrigatória em vigor à data em que atingiram a maioridade e obtenham aprovação em exames, teórico e prático, a prestar sobre a matéria relativa aos produtos explosivos a manipular e ao seu emprego, devendo o requerente, no momento de entrega do requerimento e no acto de exame, apresentar o seu bilhete de identidade.
5 - A elaboração dos programas dos exames, teórico e prático, a prestar pelos requerentes e a nomeação dos respectivos examinadores competem à Comissão dos Explosivos, que para tal efeito recorrerá ao pessoal técnico das suas delegações, podendo, quando se trate de exames de pessoal destinado à execução de trabalhos em minas ou em pedreiras, recorrer a técnicos a designar pela Direcção-Geral de Geologia e Minas.
(…)”.
7 - O prazo de validade da cédula de operador é de 5 anos, o qual pode ser renovado mediante requerimento apresentado na Comissão dos Explosivos, juntamente com duas fotografias e uma declaração análoga à referida no n.º 3 deste artigo.
8 - A cédula de operador pode caducar e ser retirada quando o operador, na execução dos trabalhos em que se empreguem pólvoras ou explosivos, revele incúria, incompetência ou proceda em desacordo com as regras de segurança estabelecidas.”
Já o artigo 31.º do mesmo Regulamento, sob a epígrafe “Autorização para aquisição e emprego de produtos explosivos”, prescreve que:
“1 - As autorizações para a aquisição e emprego de explosivos, de pólvora negra e dos correspondentes dispositivos de iniciação deverão ser requeridas ao Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública.
2 - As autorizações referidas no número anterior só poderão ser concedidas às entidades que disponham de pessoal habilitado com a cédula de operador correspondente à natureza dos produtos explosivos a utilizar e desde que, pelos organismos oficiais de que dependa a execução dos trabalhos, tenha sido emitido parecer favorável quanto à necessidade do seu emprego e quanto às quantidades a empregar.
3 - As autorizações concedidas nas condições do número anterior serão válidas durante o ano a que se referem, podendo ser prorrogadas até ao final de cada um dos anos seguintes.
4 - Nos pedidos de aquisição e emprego de explosivos ou de pólvora negra deverão constar a natureza, o número e a data das cédulas dos operadores encarregados da sua aplicação, elementos que deverão ser inscritos pelo vendedor daquelas substâncias nos livros de registo legalmente existentes.
(…)”.
Nos termos do n.º 1 do artigo 32.º do mesmo Regulamento, “[o] Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública fará depender a sua decisão sobre a autorização do emprego de explosivos ou de pólvora negra de consulta prévia à Comissão de Explosivos, quando se trate da execução de trabalhos de natureza especial de que possam resultar riscos ou quaisquer danos, quer pela elevada carga que neles se utiliza, quer pela sua localização dentro de aglomerados populacionais ou pela sua curta distância a edifícios habitados, a vias de comunicação, pontes, viadutos e aquedutos, a instalações que ofereçam perigo de incêndio ou de explosão, a linhas aéreas ou enterradas de energia elétrica, telegráfica ou telefónica, a canalizações de abastecimento de água ou de esgotos ou a quaisquer outras instalações cuja ruína ou interrupção de funcionamento deva ser evitada”.
Sobre as exigências atinentes à necessidade de estabelecimentos de armazenagem rege o artigo 34.º do mesmo Regulamento.
O artigo 35.º do Regulamento em análise, sob a epígrafe “Precauções no emprego de produtos explosivos”, prescreve que:
“1 - As entidades que utilizam produtos explosivos são responsáveis por quaisquer acidentes que resultem do seu emprego.
2 - As empresas de exploração de minas ou de pedreiras, os empreiteiros e, em geral, as entidades responsáveis pelos trabalhos em que se empreguem produtos explosivos devem promover que seja ministrada a necessária instrução aos executantes.
3 - Na introdução dos cartuchos de pólvora negra ou de explosivo nos furos dos tiros em minas, em pedreiras ou em quaisquer outros trabalhos de desmonte, bem como no seu atacamento, deve proceder-se com precaução, evitando os choques e os movimentos bruscos e utilizando um atacador de madeira ou de material não susceptível de provocar faíscas, devendo os cartuchos ser apenas escorvados na ocasião do seu emprego.
4 - A pólvora não deve ser introduzida a granel nos furos dos tiros.
5 - Nos trabalhos em que se emprega como explosivo uma mistura tipo ANFO, esta pode ser introduzida nos furos sem necessidade de prévio encartuchamento.
6 - É proibido fumar ou fazer lume nos locais de emprego de produtos explosivos ou em quaisquer outros onde tais produtos se encontrem.
7 - Em todos os trabalhos onde se empreguem produtos explosivos devem observar-se todas as recomendações e normas usuais e oficiais estabelecidas sobre segurança.”.
Nos termos do artigo 36.º do dito Regulamento, em torno dos locais onde se empreguem produtos explosivos deverá montar-se um serviço de vigilância e sinalização, de modo a evitar que as pessoas se aproximem e possam sofrer qualquer acidente no momento em que se executam os rebentamentos.
Haverá também que ter presente o Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de outubro, que estabelece regras gerais de planeamento, organização e coordenação para promover a segurança, higiene e saúde no trabalho em estaleiros da construção e transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 92/57/CEE, do Conselho, de 24 de junho, relativa às prescrições mínimas de segurança e saúde no trabalho a aplicar em estaleiros temporários ou móveis (artigo 1.º).
Tal diploma é aplicável a todos os ramos de atividade, designadamente do setor privado, a trabalhos de construção de edifícios e a outros no domínio de engenharia civil que consistam, nomeadamente, em construção, ampliação, alteração, reparação, restauro, conservação e limpeza de edifícios (cfr. artigo 2.º, n.ºs 1 e 2, alínea c)).
Atente-se que, na linha da universalidade do âmbito de aplicação da segurança e saúde no trabalho definido no artigo 2.º da Diretiva-Quadro, o referido regime aplica-se, quanto ao setor da construção, indistintamente a todas as áreas da construção de edifícios e das obras de construção de engenharia civil, públicas ou particulares e a todas as atividades desenvolvidas, quer na obra, quer nos locais do estaleiro que lhe servem de apoio.
Para efeitos do referido diploma legal, entende-se por:
- “«empregador» a pessoa singular ou coletiva que, no estaleiro, tem trabalhadores ao seu serviço, incluindo os trabalhadores temporários ou em cedência ocasional, para executar a totalidade ou parte da obra; pode ser o dono da obra, entidade executante ou subempreiteiro” - artigo 3.º, n.º 1, alínea g) - abrange, pois, indistintamente toda e qualquer empresa interveniente na execução da obra, seja qual for o título contratual a que se tenha vinculado, visando reiterar que tais entidades estão obrigas ao cumprimento da legislação geral de segurança e saúde no trabalho, para além de terem o dever de cooperar no desenvolvimento da prevenção no estaleiro que partilham;
- “«entidade executante» a pessoa singular ou coletiva que executa a totalidade ou parte da obra, de acordo com o projeto aprovado e as disposições legais e regulamentares aplicáveis; pode ser simultaneamente o dono da obra, ou outra pessoa autorizada a exercer a atividade de empreiteiro de obras públicas ou de industrial de construção civil, que esteja obrigada mediante contrato de empreitada com aquele a executar a totalidade ou parte da obra» - artigo 3.º, n.º 1, alínea h);
“«estaleiros temporários ou móveis», a seguir designados por estaleiros, os locais onde se efetuam trabalhos de construção de edifícios ou trabalhos referidos no n.º 2 do artigo 2.º, bem como os locais onde, durante a obra, se desenvolvem atividades de apoio direto aos mesmos” (artigo 3.º, n.º 1, alínea j)).
De acordo com o artigo 5.º, n.º 4, do Decreto-Lei em referência, o plano de segurança e saúde é obrigatório em obras sujeitas a projeto e que envolvam trabalhos que impliquem riscos especiais previstos no artigo 7.º ou a comunicação prévia de abertura do estaleiro.
O artigo 7.º prevê que o plano de segurança e saúde deve prever medidas adequadas a prevenir os riscos especiais para a segurança e saúde dos trabalhadores decorrentes, entre outros, de trabalhos que “envolvam a utilização de explosivos, ou suscetíveis de originarem riscos derivados de atmosferas explosivas” (alínea h)).
E, sempre que se trate de trabalhos em que não seja obrigatório o plano de segurança e saúde de acordo com o referido artigo 5.º, n.º 4, mas que impliquem riscos especiais previstos no artigo 7.º, a entidade executante deve elaborar fichas de procedimentos de segurança para os trabalhos que comportem tais riscos e assegurar que os trabalhadores intervenientes na obra tenham conhecimento das mesmas (artigo 14.º, n.º 1).
O artigo 20.º do diploma em análise prevê as obrigações da entidade executante, prescrevendo que a mesma, entre outras, deve: avaliar os riscos associados à execução da obra e definir as medidas de prevenção adequadas e, se o plano de segurança e saúde for obrigatório nos termos do n.º 4 do artigo 5.º, propor ao dono da obra o desenvolvimento e as adaptações do mesmo (alínea a)); elaborar fichas de procedimentos de segurança para os trabalhos que impliquem riscos especiais e assegurar que os subempreiteiros e trabalhadores independentes e os representantes dos trabalhadores para a segurança, higiene e saúde no trabalho que trabalhem no estaleiro tenham conhecimento das mesmas (alínea c)); assegurar a aplicação do plano de segurança e das fichas de segurança por parte dos seus trabalhadores, de subempreiteiros e trabalhadores independentes (alínea d)).
Por seu turno, o artigo 22.º prevê as obrigações dos empregadores, estabelecendo o seu n.º 1 que, durante a execução da obra, os empregadores devem observar as respetivas obrigações gerais previstas no regime aplicável em matéria de segurança higiene e saúde no trabalho e em especial:
“a) Comunicar, pela forma mais adequada, aos respetivos trabalhadores e aos trabalhadores independentes por si contratados o plano de segurança e saúde ou as fichas de procedimento de segurança, no que diz respeito a trabalhos por si executados, e fazer cumprir as suas especificações; (…)
d) Garantir a correta movimentação dos materiais e utilização dos equipamentos de trabalho;
(…)
m) Adotar as prescrições mínimas de segurança e saúde no trabalho revistas em regulamentação específica;”.
Reitere-se que a utilização de explosivos é expressamente considerada como de risco elevado para efeitos do diploma que estabelece o regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho (Lei n.º 102/2009 de 10-09), a reclamar que seja, desde logo, assegurada pelo empregador ao trabalhador que seja incumbido dessa atividade formação adequada no domínio da segurança e da saúde no trabalho.
Mais, como vimos, o uso de explosivos é altamente regulamentado e restrito a entidades devidamente autorizadas (a aquisição e emprego de explosivos está sujeita a autorizações prévias requeridas ao Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública), sendo que as autorizações, por sua vez, só poderão ser concedidas às entidades que disponham de pessoal habilitado com cédula de operador (que conferem ao seu titular autorização para manipular e empregar substâncias explosivas, e são concedidas pela Comissão de Explosivos e dependem, para além do mais, de obtenção de aprovação em exames sobre a matéria relativa aos produtos explosivos a manipular e ao seu emprego) e desde que, pelos organismos oficiais de que dependa a execução dos trabalhos, tenha sido emitido parecer favorável quanto à necessidade do seu emprego e às quantidades a empregar, tudo conforme regulamentação específica acima referida (Regulamento sobre o Fabrico, Armazenagem, Comércio e Emprego de Produtos Explosivos).
E, estando a sua utilização associada a trabalhos de construção civil com a amplitude acima enunciada para efeitos da aplicação do Decreto-Lei n.º 273/2003, verifica-se que os trabalhos que envolvam a utilização de explosivos são trabalhos expressamente identificados como tendo riscos especiais para a segurança e saúde dos trabalhadores, a reclamar a previsão de medidas adequadas para prevenir tais riscos, seja no plano de segurança e saúde no trabalho quando obrigatório, ou, pelo menos, quando tal plano não é obrigatório, a impor a elaboração de fichas de procedimentos de segurança para tais trabalhos e que seja assegurado o respetivo conhecimento pelos trabalhadores intervenientes na obra.
Revertendo ao caso em apreço, relembre-se que resulta dos factos provados que:
- entre o Autor e a Ré empregadora foi celebrado, em 8-06-2009, um contrato de trabalho, nos termos do qual o Autor se obrigou a exercer, para esta, a sua profissão de pedreiro de 1.ª, no âmbito de obras de construção civil (execução de muros de pedra, etc), atividade a que, com fins lucrativos, a mesma Ré se dedicava.
- em 10-01-2019, o Autor foi vítima de um acidente quando, cumprindo ordens do gerente da Ré empregadora, se encontrava a fragmentar uma massa rochosa de granito, para obtenção de pedra, para a construção, nas proximidades, de um muro de contenção de terras, tendo ocorrido uma explosão, com projeção de chama e fragmentos graníticos em várias direções, que atingiram o Autor, sofrendo este, para além do mais, fratura frontal esquerda desalinhada com TCE - traumatismo crânio-encefálico – e queimaduras na face, mão e antebraço esquerdo;
- a carga explosiva que causou o referido acidente foi fornecida pela Ré empregadora ao Autor para levar a cabo a tarefa atrás descrita, sendo que tal carga foi introduzida pelo Autor num furo que previamente havia aberto, com martelo pneumático, na massa rochosa que fraturava;
- a Ré entidade empregadora não tinha sequer licença para deter nem usar explosivos, o que, necessariamente, significa que não dispunha das sobreditas autorizações legais para o emprego de explosivos nos trabalhos em causa.
- a Ré empregadora nunca deu formação ao Autor sobre o uso de explosivos.
Nenhum dos sobreditos comandos legais em matéria de segurança no trabalho foi cumprido pela entidade empregadora, sendo certo que em causa a execução de trabalhos com uso de explosivos, inequivocamente qualificados pelo legislador como de risco elevado em matéria de segurança e saúde no trabalho, a impor especiais exigências ao nível das obrigações de prevenção a cargo do empregador, desde logo ao nível da planificação da prevenção, com vista pelo menos à redução dos riscos mais que previsíveis, ao nível do fornecimento das informações e formação necessárias ao desenvolvimento da atividade em condições de segurança e de saúde, de apenas permitir a execução desses trabalho de risco elevado e o acesso a zonas de risco elevado a trabalhador com aptidão e formação adequadas para o uso de explosivos (com a formação exigida em regulamentação específica) e, bem assim, no domínio da segurança e saúde no trabalho tendo em conta o exercício de atividade de risco elevado.
A Ré entidade empregadora nada disso fez, sendo que ela própria não estava autorizada, como legalmente imposto, a sequer deter, quanto mais utilizar explosivos no exercício da sua atividade de construção civil, e concretamente para a execução da obra em questão!
Como se isso não bastasse, a Ré entidade empregadora, incumbiu o seu trabalhador, aqui Autor, que tinha a profissão de pedreiro, de levar a cabo uma tarefa de fragmentação de uma massa rochosa, tarefa que em si se reconduzia ao âmbito funcional da sua profissão, mas fornecendo-lhe carga explosiva para levar a cabo essa tarefa, sem que alguma vez tivesse dado formação a esse trabalhador sobre o uso de explosivos. Ou seja, a Ré entidade empregadora incumbiu o seu trabalhador de uma concreta tarefa que, atento o meio material de trabalho fornecido para a sua execução, com utilização de explosivos, se revelava de risco elevado, sem que esse trabalhador estivesse habilitado para operar com os mesmos nos termos legalmente exigidos e, aliás, sem que alguma vez lhe tivesse dado formação sobre o uso de explosivos.
À Ré A... Unipessoal, Lda., Lda., enquanto empresa dedicada com fins lucrativos à atividade de construção civil, incumbia-lhe dar o adequado cumprimento a todas as disposições legais aplicáveis à circunstância de pretender deter e utilizar explosivos no exercício dessa atividade e, bem assim, à realidade jurídica de se assumir como entidade empregadora e beneficiária do trabalho prestado pelo trabalhador Autor no âmbito de uma relação de trabalho. Ou seja, era-lhe exigível que tomasse outro cuidado, outro comportamento, no sentido de, na matéria em causa, das autorizações legais exigidas, das habilitações necessárias para a execução de um trabalho com risco elevado em condições de segurança e de saúde, da prevenção dos riscos e da formação, cumprir as determinações legais que sobre si impendiam. Não procedeu, pois, com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz, de que enquanto entidade empregadora tinha que ser capaz.
Em conclusão, entendemos que se verifica uma violação culposa de regras de segurança.
Isto posto, e no que respeita ao nexo causal, não poderá deixar de se ter presente o recente Acórdão do Pleno da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 6/2024
[23]
de 13-05, que uniformizou jurisprudência nos seguintes moldes:
«Para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador, ou por uma qualquer das pessoas mencionadas no artigo 18.º, n.º 1 da LAT, é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação».
Como se assinala no já citado Acórdão do STJ de 2-04-2025, este Acórdão surge atenta a controvérsia jurisprudencial instalada para efeitos do disposto no artigo 18.º da LAT quanto à «questão de saber se a prova do nexo causal se bastava com a demonstração de que o acidente é uma consequência normal, previsível da violação das regras de segurança, traduzindo-se, pelo menos, num aumento da probabilidade da sua ocorrência tal como ele se veio a verificar, ou, ao invés, se é exigível, no caso concreto, perante a sua fenomenologia naturalística, a demonstração de que a violação das regras de segurança tenha sido
conditio sine qua non
da verificação do acidente.».
O Acórdão Uniformizador decidiu no primeiro dos sentidos apontados.
Assim, mesmo que não se possa afirmar, com toda a certeza, que se a empregadora tivesse cumprido com as citadas regras o dano teria sido evitado, tal não se perfila como necessário para se afirmar o nexo de imputação.
Na fundamentação do Acórdão Uniformizador pode ler-se o seguinte:
“
O artigo 18.º da
Lei n.º 98/2009
de 4 de setembro (doravante designada por LAT) contempla duas hipóteses - sendo que uma delas é precisamente a violação de regras de segurança - em que ocorre um agravamento da medida da responsabilidade, já que havendo culpa de uma das pessoas nele referidas (o empregador, o seu representante ou pessoa por ele contratada) passa a existir responsabilidade solidária por todos os danos sofridos pelo sinistrado e já não apenas pelos danos resultantes da perda da capacidade de trabalho ou de ganho. Acresce que por este agravamento não responderá o segurador de acidentes de trabalho, o qual somente poderá ser demandado pelo sinistrado quanto ao dano que seria reparável se não tivesse ocorrido uma atuação culposa (artigo 79.º n.º 3 da LAT). A norma tem, assim, um claro escopo preventivo, mormente nesta hipótese de violação culposa de regras de segurança.
Importa, ainda, ter presente que da existência de um acidente de trabalho não se pode inferir, sem mais, a violação de regras de segurança. Com efeito, e como alguma doutrina tem destacado, o cumprimento das regras de segurança diminui, em muitos casos de maneira sensível, o risco, mas não o exclui por completo. Em suma, mesmo que as regras de segurança sejam escrupulosamente observadas, podem ocorrer acidentes de trabalho. E, por isso mesmo, não se poderá frequentemente afirmar que a violação culposa de uma regra de segurança foi conditio sine qua non de um acidente, porquanto nem sempre se pode afastar liminarmente que um dado acidente não poderia ter igualmente ocorrido sem a referida violação, ainda que a possibilidade de tal suceder, e/ou de ter aquelas consequências danosas, fosse, porventura, muito menor.
Um caso decidido por este Supremo Tribunal de Justiça ilustra o problema. Se um trabalhador que não teve formação profissional para trabalhar com explosivos, morre num rebentamento, as circunstâncias do acidente tornam extremamente difícil apurar se o trabalhador cometeu um erro e, em caso afirmativo, qual, sendo certo que mesmo os trabalhadores com a formação profissional exigível e adequada também cometem erros e podem morrer ao manusear explosivos. Assim, não se pode, em rigor, afirmar que a falta de formação foi conditio sine qua non do acidente.
No entanto, negar a imputação frustra o escopo preventivo da norma. Acresce que esta questão de nos interrogarmos sobre o que teria hipoteticamente sucedido se não tivesse ocorrido uma violação culposa da regra de segurança implica, como se viu, um juízo contrafactual marcado frequentemente por uma acentuada margem de incerteza.” [fim de citação].
Nesta consonância, conclui-se no identificado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência que a demonstração do nexo causal se baste com a demonstração de que “a violação [das regras de segurança] se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação”
[24]
.
No caso, repise-se, a Ré entidade empregadora não tinha licença para deter nem para usar explosivos, não estava licenciada, o que significa que não dispunha das necessárias autorizações legais para adquirir e empregar explosivos, autorizações essas para cuja concessão sempre pressupõe que a entidade que as requer ao Comando-Geral da Polícia de Segurança Pública disponham de pessoal habilitado com a cédula de operador também exigida por lei. Mais, significa também que não dispunha de parecer favorável emitido pelo organismo oficial de que dependia a execução dos trabalhos quanto à necessidade de emprego de explosivos e quanto às quantidades a empregar. A Ré entidade empregadora decidiu-se pela execução de trabalhos com uso de explosivos, sem diligenciar pela obtenção das necessárias autorizações legais.
Doutro passo, a Ré entidade empregadora incumbiu o seu trabalhador Autor de uma tarefa com risco elevado – fragmentação de massa rochosa de granito com uso carga explosiva -, sem que alguma vez lhe tivesse dado formação do uso de explosivos.
A conduta da Ré empregadora amplificou inequivocamente o risco associado à concreta tarefa em causa e potenciou largamente a probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se.
É que a necessidade das autorizações, habilitação e formação visam precisamente garantir as necessárias condições básicas e precauções de segurança para que possam ser executados trabalhos de risco elevado, como são os trabalhos com uso de explosivos, e isto para já não falar depois da exigência de concretas medidas de planificação em termos de previsão de riscos e de segurança para o emprego de explosivos.
Assim, perante a factualidade provada e à luz da mencionada jurisprudência uniformizadora, não restam dúvidas de que a violação das já apontadas regras de segurança se traduziu num inequívoco aumento da probabilidade do risco da ocorrência do acidente em apreço, a justificar a afirmação do referido nexo de imputação, ou seja, a afirmação da existência de nexo causal entre a violação de regras de segurança e o acidente.
Em conclusão, nenhuma censura merece a sentença recorrida ao afirmar a responsabilidade agravada da Ré entidade empregadora, ora Recorrente, nos termos do artigo 18.º da LAT, e ao condenar a mesma no pagamento da pensão anual e vitalícia a que alude a alínea a), do n.º 4, desse normativo, improcedendo também as conclusões da apelação quanto à questão em análise.
***
3.2.
Saber se a sentença recorrida errou na aplicação do direito ao condenar a
Recorrente Ré empregadora na indemnização por danos não patrimoniais
Tendo em conta o atrás decidido e a afirmação da responsabilidade da Ré empregadora para efeitos do artigo 18.º da LAT, verifica-se que a sentença recorrida condenou tal Ré a pagar ao Autor a quantia de € 100.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais.
A Recorrente insurge-se contra este segmento da sentença recorrida, sustentando que o Tribunal
a quo
a
condenou considerando o regime de reparação dos danos, em sede de responsabilidade civil e laboral, pois foi o mesmo evento que chamou a aplicação de ambos os regimes, atribuindo a indemnização pelo chamado dano biológico em pedido de indemnização por danos não patrimoniais, dano esse já considerado pelas regras de direito laboral, mais concretamente pelas normas da lei dos acidentes de trabalho. Argumenta que o dano tipicamente suportado pela reparação na ação do acidente de trabalho é parcialmente o mesmo (na parte em que se reporta à capacidade de ganho), do que decorre que as indemnizações não se podem cumular, apenas se poderiam completar. Mais argumenta que se pretende indemnizar a limitação de que a vítima ficou a padecer de utilizar o seu corpo de forma absoluta, enquanto força de trabalho e enquanto produtor de rendimento, o que já foi alcançado e não pode ser repetido pela condenação no agravamento da pensão do sinistrado.
No respetivo parecer, o Exmº Procurador-Geral Adjunto refere que a indemnização arbitrada a título de danos não patrimoniais se mostra justa, equilibrada e proporcional, se atentarmos na gravidade dos factos praticados, a ilicitude dos mesmos e nas graves consequências que daí advieram, não merecendo censura o decidido.
Quanto ao conhecimento do pedido do pedido formulado a título de indemnização por danos não patrimoniais, consta da fundamentação da sentença recorrida o seguinte:
« Peticiona o autor, por força dos danos que resultaram provados – pontos F) a R) e AA) a HH), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, indemnização de € 100 000, por danos não patrimoniais.
(…)
A responsabilidade civil extracontratual, dita aquiliana, encontra se prevista nos Arts. 483º e ss. do Código Civil, assentando num dos três iuris praecepta de Ulpiano: alterum non laedere, não prejudicar ninguém.
Na sua base está, pois, um princípio básico de direito natural, prescrevendo que quem causa um dano a outrem, deve ser obrigado a repará-lo e a repor a situação anterior (reconstituição natural) ou, quando tal não seja possível, a indemnizá-lo em função do dano causado.
Em cumprimento destas directrizes, o Art. 483º, n.º 1 do Código Civil, dispõe que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
A doutrina tem vindo a sistematizar os pressupostos da responsabilidade civil constantes do Código Civil, verbi gratia, em ato ilícito e prejuízo reparável (PESSOA JORGE, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, reimpressão, Coimbra, 1995, p. 53 e ss.), ou, mais especificadamente, em facto, ilicitude, imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (neste sentido, paradigmaticamente, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral I, 8ª Edição, Coimbra, 1994, p. 533, p. 533).
Em primeiro lugar, temos um facto voluntário da ré patronal. (determinar que o autor fizesse uso de explosivos sem que estivesse licenciada para tanto, sem que lhe desse formação e sem que lhe fornecesse equipamento de proteção), um comportamento que resulta da sua vontade, que foi controlado e querido por esta, mesmo que esta não tenha querido o resultado final (cfr. ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 7ª Edição, Coimbra, 1999, p. 484).
Existe também ilicitude nas suas duas modalidades, desde logo porque foram violados diversos direito subjetivos, como o direito à prestação de trabalho em segurança e o direito à integridade física do autor. (previsto constitucionalmente e abrangido pelo Art. 70º do Código Civil), bem como diversas disposições legais e regulamentares que pretendem tutelar esses mesmos direitos do autor. Por outro lado, claro é também que esta ré agiu negligentemente (Art. 483º, n.º 1 do Código Civil), com culpa, uma vez que poderia e deveria ter agido de outra forma, o que permite imputar-lhe os danos que foram causados pela sua atuação.
Caberia, pois, à ré patronal “reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação” (Art. 562º do Código Civil). Uma vez que a reconstituição natural é impossível, dada a própria natureza dos danos em causa, a obrigação da responsável civil acaba por corresponder à atribuição de uma indemnização ao demandante (Art. 566º, n.º 1 do Código Civil).
A obrigação de indemnizar, por sua vez, “só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão” – Art. 563º do mesmo diploma legal, que adotou, no âmbito da responsabilidade civil, a teoria da causalidade adequada. Nestes termos, nem todo o dano que teve como sua condição aquela conduta ilícita integra a obrigação de indemnizar (como aconteceria se se adotasse a doutrina das condições equivalentes), mas apenas aquele que, segundo um juízo de probabilidade, não teria ocorrido se não fosse a existência da lesão.
Em relação aos danos não patrimoniais, tomar-se-ão em consideração as lesões corporais causadas, as sequelas daí decorrentes e as suas consequências na vida pessoal e social do autor, que merecem ser atendidos dada a sua efetiva gravidade em termos objetivos (Art. 496º, n.º 1 do Código Civil), bem como a incapacidade da A. (embora apenas no seu reflexo, não no âmbito laboral, mas na vida do dia-a-dia, em todos os seus diversos aspetos).
Assim, essa incapacidade permanente será também considerada enquanto dano não patrimonial: “A desvalorização física do lesado, com incapacidade funcional, resultante de sequelas permanentes das lesões sofridas em acidente, é dano emergente, determinante do prejuízo, que consiste na privação da efetiva utilidade que proporciona o bem que é um corpo são. II – E porque da reparação de um prejuízo se trata, reclama indemnização repositora da situação anterior, com valorização autónoma dos lucros cessantes por perda de capacidade laboral e do «pretium doloris», correspondente ao clássico dano não patrimonial” (Acórdão da Relação do Porto de 19 de março de 1993, BMJ n.º 455, p. 564).
Quanto ao montante da indemnização por danos não patrimoniais, este será fixado pelo tribunal segundo o que entender ser equitativo e de acordo com o “grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso” (Art. 496º, n.º 3 do Código Civil, que remete para o Art. 494º), concedendo “ao ofendido uma quantia em dinheiro considerada. adequada a proporcionar-lhe alegria ou satisfação que de algum modo contrabalancem as dores, desilusões, desgostos ou outros sofrimentos que o ofensor lhe tenha provocado” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Abril de 1991, BMJ n.º 406, p. 618).
Assim, consideramos ajustado, como pretendido pelo autor um valor indemnizatório de € 100 000 (valor atualizado à presente data nos termos do Art. 566º, n.º 2 do Código Civil), tendo em atenção as concretas consequências do acidente bem expressas em toda a matéria de facto dada como provada, mormente, nos pontos F) a R) e EE) a HH).
(…)».
Ponderando a sobredita fundamentação, e tendo por base a factualidade provada, não merece censura o decidido pelo Tribunal
a quo
nesta matéria.
Pese embora a suficiência da apontada fundamentação, para melhor se explicitar este nosso entendimento importa apenas tecer algumas considerações adicionais.
Nos termos do artigo 18.º, n.º 1, da LAT, a responsabilidade da Ré empregadora abrange a indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelo trabalhador Autor, nos termos gerais.
Quanto aos danos não patrimoniais, estabelece o artigo 496º, nº 1, do Código Civil, que na fixação da indemnização se deve atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Cabe, pois, ao tribunal, casuisticamente, apreciar e decidir a gravidade do dano.
Os danos não patrimoniais, como explica Mota Pinto
[25]
,
“resultam da lesão de bens estranhos ao património do lesado (a integridade física, a saúde, a tranquilidade, o bem estar físico e psíquico” e que “não sendo estes prejuízos avaliáveis em dinheiro, a atribuição de uma soma pecuniária correspondente legitima-se, não pela ideia de indemnização ou reconstituição, mas pela de compensação”
.
No mesmo sentido, Galvão Telles
[26]
refere que os danos não patrimoniais são aqueles “
prejuízos que não atingem em si o património, não o fazendo diminuir nem frustrando o seu acréscimo. O património não é afetado; não passa a valer menos nem deixa de valer mais. Há a ofensa de bens de caráter imaterial – desprovidos de conteúdo económico, insuscetíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro. São bens como a vida, a integridade física, a saúde, a correção estética, a liberdade, a honra, a reputação. A ofensa subjetiva desses bens tem, em regra, um reflexo subjetivo na vítima, traduzido na dor ou sofrimento, de natureza física ou de natureza moral”
.
De facto, há muito que vem sendo reiterado o entendimento uniforme, quer na doutrina quer na jurisprudência, de que os danos não patrimoniais são comummente definidos como prejuízos insuscetíveis de avaliação pecuniária – como sejam dores físicas e morais, a integridade física, a saúde, a reputação, os prejuízos estéticos, etc -, sendo que a indemnização prevista no artigo 496.º do Código Civil assume a natureza de uma compensação com que se visa, através da atribuição de uma prestação pecuniária, atenuar de alguma forma o desgosto, a dor, o sofrimento suportado e/ou a suportar pelo lesado, proporcionando-lhe a possibilidade de angariar um acréscimo de bem-estar capaz de compensá-lo pelos desgostos, as dores ou o sofrimento suportados ou que haja de suportar.
O nº 4 do artigo 496.º do Código Civil prevê que o montante pecuniário da compensação por este tipo de danos deve fixar-se equitativamente, tendo em atenção as circunstâncias a que se reporta o artigo 494º do mesmo diploma. Ou seja, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, designadamente a extensão e gravidade dos danos, a sensibilidade da vítima e o seu sofrimento.
A compensação por danos não patrimoniais, conforme vem sendo também uniformemente afirmado pela nossa jurisprudência, deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico.
No caso dos autos, face à factualidade apurada, consideramos inequívoco que as consequências danosas do acidente que vitimou o Autor, consubstanciam danos de natureza não patrimonial, com dimensão suficientemente grave de molde a merecerem, nos termos do artigo 496º, nº 1, do Código Civil, a tutela do direito e devem, consequentemente, ser compensadas.
O Autor foi atingido com a projeção de chama e fragmentos graníticos, sofrendo: queimaduras na face, mão e antebraço esquerdo; fratura frontal esquerda com TCE; ficou com os dentes abalados e um deles partido. O Autor foi mantido em coma induzido durante 30 dias, foi submetido a três cirurgias (uma primeira para tentar a correção da sobredita fratura frontal, uma segunda à mesma zona para colocação de “shunt” ventrículo-peritoneal e uma terceira para cranioplastia). Durante meses não pôde mastigar, nem tratar os dentes, que, abalados com o acidente, e um partido, lhe causavam dores. Fez, durante meses, tratamento de fisioterapia e reabilitação no CRN-Norte e tem andado, há meses, a fazer terapia da fala. Ficou a padecer de sequelas: defeito cutâneo na pálpebra esquerda (que encerra); paralisia da mão direita e a claudicar da perna direita; cicatrizes e deformidade na metade esquerda da região frontal e pálpebra esquerda e com pintas azuladas dispersas pela face, região frontal e no antebraço e mão esquerdos; afasia; dificuldades cognitivas e dificuldades em articular palavras, tornando-se difícil fazer-se entender e compreender o que se lhe diz. Ficou dependente de terceira pessoa para as atividades da vida diária (pelo período de quatro horas diárias), como seja para o auxiliar a tomar banho, partir comida sólida, ajudar a subir e descer escadas e acompanhar mesmo em piso plano. Tem necessidade de: ser acompanhado em consultas de urologia, oftalmologia, neurocirurgia, medicina física e de reabilitação, e ainda psiquiatria e, eventualmente, apoio psicológico, de acordo com a indicação da psiquiatria; tomar a medicação indicada nas referidas consultas; realizar tratamentos de terapia da fala, reabilitação cognitiva e medicina dentária. Sofreu dores com
quantum doloris
valorável no grau seis, numa escala de um a sete e é portador de dano estético, estático e dinâmico, valorável no grau seis, numa escala de um a sete.
Os factos provados são bem demonstrativos da existência de dano estético e sofrimento, ficando portador de sequelas que se repercutem necessariamente no seu dia a dia, na vida pessoal e social, atentas as dificuldades cognitivas e afasia, a dependência do auxílio de terceira pessoa para realizar atividades básicas como tomar banho, partir comida sólida, subir e descer escadas e até mesmo acompanhar em piso plano.
O Autor, aos 48 anos de idade, sofreu danos gravíssimos e atentatórios da sua saúde, com repercussões negativas na sua vida e no seu bem-estar, incluindo no estado emocional (atente-se que, para além de todas as demais consultas da especialidade – urologia, oftalmologia, neurocirurgia, medicina física e de reabilitação -, tem também necessidade de ser acompanhado em consultas de psiquiatria e tomar a medicação que seja indicada por essa especialidade).
Os danos não patrimoniais sofridos pelo Autor sinistrado foram causados pelo acidente de trabalho, que resultou de um ato ilícito e culposo da Ré empregadora, e são suficientemente relevantes para merecerem proteção jurídica
.
Apesar de se desconhecer a concreta situação financeira da Ré empregadora, sabe-se que é uma empresa que se dedica há largos anos à atividade de construção civil, com fins lucrativos (cfr. alínea A) dos factos provados).
Quanto à situação económica do lesado, sabemos que o mesmo ficou com incapacidade permanente absoluta para qualquer trabalho, dependente de uma pensão anual, vitalícia e atualizável no valor de € 10.059,40, estando provado que a mulher do Autor com quem o Autor vive dependia e depende do vencimento do Autor e, portanto, agora da referida pensão, e, bem assim, que o Autor e a mulher não têm outro rendimento (cfr. alíneas C), D) e JJ) dos factos provados).
Ora, atendendo a todas as circunstâncias do caso, inclusivamente às consequências do acidente – danos graves e duradouros - e à censurável conduta da entidade empregadora, entende-se que a quantia fixada de € 100.000,00 constitui compensação adequada e equitativa à dimensão dos apontados danos de natureza não patrimonial sofridos pelo Autor.
Sublinhe-se que, ao contrário do que parece ser sustentado pela Recorrente, inexiste qualquer duplicação indemnizatória com a fixada pela redução na capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado, traduzida na pensão anual e vitalícia que lhe foi reconhecida por incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho nos termos do artigo 18.º, n.º 3, alínea a), da LAT. Os danos indemnizados pela compensação por danos não patrimoniais são os atrás indicados, que são distintos e perfeitamente autonomizados em relação à dita pensão decorrente da perda da capacidade de trabalho e de ganho do sinistrado.
Improcede, pois, também o recurso nesta sede.
***
O recurso é totalmente improcedente, sendo consequentemente da responsabilidade da Ré empregadora recorrente a responsabilidade pelas respetivas custas (artigo 527.º do CPC).
***
IV – DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pela Recorrente Ré entidade empregadora, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas do recurso pela Recorrente.
Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC, anexa-se o sumário do presente acórdão.
Notifique e registe.
(texto processado e revisto pela relatora, assinado eletronicamente)
Porto, 10 de julho de 2025
Germana Ferreira Lopes [Relatora]
António Luís Carvalhão [1º Adjunto]
Rui Manuel Barata Penha [2º Adjunto]
____________________
[1]
Consigna-se que em todas as transcrições será respeitado o original, com a salvaguarda da correção de lapsos materiais evidentes e de sublinhados/realces que não serão mantidos.
[2]
Adiante CPC.
[3]
Adiante CPT.
[4]
Neste sentido, António Santos Geraldes,
in
“Recursos em Processo Civil – Recursos nos Processos Especiais, Recursos no Processo do Trabalho”, Almedina, 7ª edição atualizada, 2022, págs. 200 e 201, que indica o elenco de situações que justificam a rejeição do recurso (total ou parcial), tendo por base o entendimento jurisprudencial que vem sendo sufragado nesta matéria, máxime pelo Supremo Tribunal de Justiça.
A propósito do cumprimento dos ónus em referência, importa ter presente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Uniformizador de Jurisprudência n.º 12/2023, publicado no DR, Série I, n.º 220/2023, de 14-11-2023 – cujo sumário foi retificado pela Declaração de Retificação n.º 35/2023, de 28 de novembro, publicada no DR, Série I, de 28-11-2023. De facto, apesar de apenas ter sido ficada jurisprudência a respeito da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, o certo é que a fundamentação de tal Acórdão contém um conjunto de considerações que são inequivocamente relevantes quanto às demais exigências que resultarão do mesmo preceito como se mostra sintetizado no Acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 20-05-2024 (Processo n.º 14580/21.3T8PRT.P1, relatado pelo Desembargador Nelson Fernandes, no qual interveio como Adjunta a ora Relatora – ao que se julga não publicado, mas disponível no registo de acórdãos).
[5]
Obra citada, págs. 201 e 202.
[6]
Processo nº 4925/17.6T8OAZ.P1.S1, Relator Conselheiro Chambel Mourisco.
[7]
Processo nº 1372/19.9T8VFR.P1.S1, Relator Conselheiro Chambel Mourisco.
[8]
Processo nº 1104/18.9T8LMG.C1.S1, Relator Conselheiro Mário Belo Morgado.
[9]
In
obra citada, pág. 195.
[10]
Obra citada, página 350.
[11]
Cfr., entre outros, Acórdãos de 9-02-2017 (processo n.º 8228/03.5TVLSB.L1.S2, Relator Conselheiro Tomé Gomes), de 8-03-2022 (processo n.º 656/20.8T8PRT.L1.S1, Relatora Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza) e de 24-10-2023 (processo n.º 4689/20.6T8CBR.C1.S1, Relator Conselheiro Nuno Pinto Oliveira), acessíveis in
www.dgsi.pt
, site onde se mostram disponíveis os demais Acórdãos infra a referenciar, desde que o sejam sem menção expressa em sentido adverso.
[12]
Processo n.º 1321/20.1.T8OAZ.P1, relatado pelo Desembargador António Luís Carvalhão, aqui 1º Adjunto.
[13]
Inserindo-se no texto a nota de rodapé 21 do Acórdão em causa.
[14]
In Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, Lda., pág. 436 e 437.
[15]
Processo n.º 1166/20.9T8MTS.P1, Relator Desembargador Jerónimo Freitas.
[16]
Processo n.º 331/23.1T8PNF, Relator Desembargador José Nuno Duarte – em ação cível instaurada pela mulher e filhas do aqui Autor/Sinistrado contra a mesma Ré entidade empregadora, em que se discute o mesmo evento.
[17]
Adiante LAT.
[18]
Processo n.º 13102/18.9T8PRT.P1.S1, Relatora Conselheira Paula Leal de Carvalho.
[19]
Disso dando conta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-09-2022, processo n.º 940/15.2T8VFR.P1.S1, Relator Pedro Branquinho Dias, em cujo sumário consta que “
(…) segundo jurisprudência constante do STJ, a prova dos pressupostos do agravamento da responsabilidade pelos danos causados em acidente de trabalho, nos termos do art. 18.º, n.º 1, da LAT, recai sobre a parte que o invoca”.
Mais recentemente, veja-se o citado Acórdão do STJ de 2-04-2025, onde se reafirma a constância de tal entendimento.
[20]
Adiante CT/2009.
[21]
Já com as alterações introduzidas pela Lei n.º 3/2014, de 28-01.
[22]
Publicado no Diário da República n.º 278/1984, Série I, de 30-11-1984.
[23]
Publicado no DR, Série I, n.º 92/2024, de 13-05-2024 – cujo sumário foi retificado pela Declaração de Retificação n.º 35/2023, de 28 de novembro, publicado no DR, Série I, de 28-11-2023.
[24]
Sobre a questão do nexo de causalidade, à luz da jurisprudência do Acórdão de Uniformizador, vejam-se os subsequentes e recentes Acórdãos do STJ de 12-02-2025 (processo n.º 12823/20.0T8SNT.L1.S1, Relatora Conselheira Albertina Pereira), o já citado e identificado de 2-04-2025 e, bem assim, de 28-05-2025 (processo n.º 1060/22.9T8TMR.E1.S1, Relator Conselheiro José Eduardo Sapateiro).
[25]
Teoria Geral do Direito, pág. 115.
[26]
Direito das Obrigações, 7ª edição, pág. 378.
|
TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/b284faad4f3023b680258ccb004fcf72?OpenDocument
|
1,747,699,200,000
| null |
977/21.2PBSTR.E1
|
977/21.2PBSTR.E1
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CARLA FRANCISCO
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I - O regime penal especial para jovens não é de aplicação automática, consoante a idade do arguido, carecendo a sua aplicação de ser ponderada em função de os factos apurados permitirem efectuar um juízo de prognose favorável para a reinserção social do jovem condenado.
Não há lugar à atenuação especial da pena de prisão aplicada a um arguido com menos de 21 anos de idade que:
- tem antecedentes criminais pela prática de três crimes contra as pessoas e contra o património;
- praticou o crime dos autos durante o período de suspensão da execução de uma pena de prisão aplicada pela prática de um crime de roubo;
- revela uma personalidade rebelde e desrespeitadora das regras e das leis penais e incapaz de actuar em conformidade com a ordem jurídica vigente;
- desvaloriza a importância de não violar os bens jurídicos de terceiros.
II - Não há lugar à suspensão da execução da pena de prisão aplicada a um arguido, pela prática de um crime de furto qualificado, quando o mesmo não se mostra social e profissionalmente inserido, tem uma situação económica precária, tem uma remuneração incerta e recebe ajuda financeira irregular dos pais da sua companheira, já foi anteriormente condenado, por duas vezes, em penas de prisão suspensas na sua execução, pela prática de crimes de roubo e de passagem de moeda falsa, e praticou os factos dos autos durante o período de suspensão da execução de uma pena de prisão.
|
[
"REGIME PENAL ESPECIAL PARA JOVENS",
"SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA"
] |
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1– Relatório
No processo nº 977/21.2PBSTR do Tribunal Judicial da Comarca de … Juízo Central Criminal de … - Juiz …, foi proferido acórdão, datado de 19/12/2024, no qual se decidiu:
“a) Absolver o arguido AA, da prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso real de 1 (um) crime de furto de uso de veículo, previsto e punido pelo artigo 208.º n.º 1 do Código Penal, 1 (um) crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º n.º 1 do Código Penal e 1 (um) crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º n.º 1 do Código Penal;
b) Condenar o arguido AA, pela prática, em coautoria material, na forma consumada, em 09-11-2021, de 1 (um) crime de furto qualificado previsto e punido pelo artigo 204.º n.º 2, alínea e), por referência ao artigo 202.º, alínea d) e ao art.º 203.º do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;
c) Declara-se perdoado 1 (um) ano na pena de 4 (quatro) anos de prisão aplicada ao arguido, ao abrigo do preceituado nos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 1 e 8.º, n.º 1, todos da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, 127.º e 128.º, ambos do Código Penal, sob a condição resolutiva de o arguido não praticar infração dolosa no ano subsequente à data da entrada em vigor da presente Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acrescerão a parte da pena ora perdoada; (…)”
*
Inconformado com aquela decisão, quanto à pena de prisão que lhe foi aplicada e à não suspensão da sua execução, veio o arguido interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
“I - O presente recurso vai interposto do douto Acordão proferido pelo Tribunal «a quo», porquanto o recorrente não concorda com a apreciação feita pelo Tribunal, no que respeita à não aplicação do tegime especial para jovens e, consequentemente à aplicação de pena de prisão efectiva (da eventual substituição/suspensão da pena de prisão
II - O arguido ora Recorrente foi condenado, designadamente, para o que importa com relevância para o objecto do presente recurso “pela prática, em coautoria material, na forma consumada, em 09-11-2021, de 1 (um) crime de furto qualificado previsto e punído pelo artigo 204º, nº 2, alínea e), por referência ao artigo 202º, alinea d) e ao artigo 203º do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão (cfr. douto Acordão - VII – Dispositivo).
III - Porquanto, no que respeita à APLICAÇÃO DA PENA DE PRISÃO EFECTIVA, o Tribunal Recorrido fundamenta a decisão nos termos supra descritos na motivação, contantes do douto Acordão e que aqui se dão por reproduzidos (cfr. douto Acordão – V- Da não aplicação do regime especial para jovens e VI – Escolha e medida da pena).
IV - Ora, o recorrente rejeita, de facto, que a pena de prisão efetiva seja a única espécie de pena que realize, no caso concreto, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, uma vez que, não se encontram esgotadas todas as virtualidades pedagógicas e ressocializadoras que uma pena não detentiva poderá ainda ter sobre o mesmo
VI - E não se diga, a este propósito, que com a pena ora pretendida, atenuação especial da pena, por aplicação, in casu, do do Regime Especial para Jovens (Dec. Lei nº 401/82, de 23 de Setembro) e, consequntemente a respectiva suspensão, não se estará a dar um sinal à sociedade de que a sua conduta não se pode repetir. Isto porque a suspensão da execução da pena insere-se num conjunto de medidas não institucionais que, não determinando a perda da liberdade física, importam sempre uma intromissão mais ou menos profunda na condução da vida dos delinquentes, pelo que, embora funcionem como medidas de substituição, não podem ser vistas como formas de clemência legislativa, pois constituem autênticas medidas de tratamento bem definido, com uma variedade de regimes aptos a dar adequada resposta a problemas específicos e, por conseguinte, a suspensão da execução da pena de prisão, pressupõe que o julgador, reportando-se ao momento da decisão, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao futuro comportamento do arguido.
VII - Ora in casu, entendemos que o desvalor da conduta, não se coloca num plano em que a confiança da sociedade na eficácia da norma e no sistema de justiça reclama pena privativa da liberdade, pelo que, julgamos deverá permitir-se ao arguido recorrente uma derradeira oportunidade para atuar conforme o direito.
VIII - De facto, o arguido/recorrente, é ainda muito jovem (22 anos de idade) e em termos laborais, trabalha por conta de outrem, quer no sector rural, mas também, presentemente na construção civil, com rendimentos incerto (em valor) mas regulares, e, por conseguinte, com um contribuito indispensável para as despesas familiares.
IX – Acresce que, bem recentemente (em 16/01/2025), o arguido foi pai, pelo que, estas novas circunstâncias acarretam novas, acrescidas e necessarias responsabiliades parentais/familiares que estarão de acordo e consentaneas com o comportamento do arguido durante o ultimo ano, isto é, desde que estabilizou a sua vida familiar junto da supra referida BB, pelo que, de facto, o arguido/recorrente, encontra-se laboral e familiarmente inserido, tendo família constituída, agora com um filho recem nascido (D.N. 16/01/2025), residindo em habitação com boas condições de habitabilidade e contribuindo económicamente para as despesas do respectivo agregado, questões que o Tribunal recorrido desvaloriza. (cfr. DOC. em Anexo).
X- Pelo que, entendemos que no caso em concreto, é possível, ainda, fazer uma prognose favorável em relação ao comportamento do arguido, sendo ainda possível acreditar que a simples ameaça do cumprimento de uma pena de prisão é bastante para no futuro não praticar novamente crimes, devendo a pena que concretamente V. Exas. entenderem como adequada ser suspensa na sua execução, a qual, será já causadora de um impacto relevante na vida do arguido/recorrente, sendo percecionada pelo mesmo como bastante para que, jamais, pense sequer voltar a praticar este ou qualquer outro crime. – o que se requer para todos os efeitos legais.
XI- Efetivamente, não podemos olvidar que os estabelecimentos prisionais são escolas de crime e, que são pessoas ainda relativamente jovens como o arguido, ora recorrente, sem anterior contacto com o sistema prisional, as pessoas mais vulneráveis e influenciáveis, e que ali mais dano podem sofrer a esse nível, pelo que, no caso em apreço, entende-se como desajustada e desproporcional a decisão aplicada pelo Tribunal de 1ª instância, uma vez que, manifestamente a ameaça da prisão efectiva, realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição no caso concreto e muito particular do arguido, ora recorrente.
XII - Assim, julgamos que deverá permitir-se ao Arguido uma derradeira oportunidade, a qual o arguido certamente não desperdiçará, APLICANDO-SE ao recorrente A PENA DE PRISÃO AO RECORRENTE, MAS, SENDO A MESMA SUSPENSA NA SUA EXECUÇÃO.
Caso assim não se entenda,
XIII – Então defende o arguido/recorrente que tendo sido declarado perdoado 1 (ano), na pena a que foi condenado e podendo benficiar o arguido da especial atenuação da pena, por aplicação do regime especial para jovens, podendo ser, por essa via, aplicada pena de prisão até dois anos, pode a mesma ser executada em regime de permanência na habitação, por ser, no nosso entendimento, tendo em conta os factos dados como provados, a concreta participação do arguido/recorrente, e a sua concreta situação actual, a pena que melhor salvaguarda as exigências de prevenção geral e especial que o caso reclama, porquanto, com as alterações introduzidas pela Lei nº 94/2017 de 23/08, o regime agora previsto no artigo 43º do Código Penal passou a constituir não só uma pena de substituição em sentido impróprio, mas também uma forma de execução ou de cumprimento da pena de prisão.
XIV – Assim, admite-se agora que a pena de prisão não superior a dois anos possa ser executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, se o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir (artigo 43º nº 1 al. c) do Código Penal), sendo que, esta nova lei traduz o entendimento generalizado de que as penas curtas de prisão devem ser evitadas por não contribuírem necessariamente para a ressocialização efetiva do condenado, tendo sido, inclusivamente, na senda desse pensamento, que se procedeu à abolição da prisão por dias livres e do regime de semidetenção, alterando-se (através da ampliação do respetivo campo de aplicação) o regime de permanência na habitação. (Ac RP de 07/03/2018 no proc. 570/15.9GBVFR-A.P1)
XV - Com o regime de permanência na habitação evitam-se as consequências perversas da prisão continuada, não deixando de, com sentido pedagógico, constituir forte sinal de reprovação para o crime em causa.
“Trata-se de regime que tem justamente por finalidade limitar o mais possível os efeitos criminógenos da privação total da liberdade, evitando ou, pelo menos, atenuando os efeitos perniciosos de uma curta detenção de cumprimento continuado, nos casos em que não é possível renunciar à ideia de prevenção geral” (Ac. supra citado).
XVI - Contudo, a obrigação de permanência na habitação assenta em pressupostos e requisitos, previstos no artigo 43º do Código Penal, na sua nova redacção, como a viabilidade de instalação de meios técnicos de controlo à distância e o consentimento do próprio recorrente, que terão de ser obtidos e verificados pela 1ª instância, depois de devidamente equacionada a “adequação e suficiência” desta forma de execução ou de cumprimento da pena de prisão não superior a 2 anos a cumprir pelo recorrente, eventualmente subordinada ao cumprimento de regras de conduta previstas no nº 4 do citado artigo 43º.
XVII - O recorrente reside numa habitação que apresenta boas condições de habitabilidade e cumpre os requisitos legais necessários, para que o arguido/recorrente aí possa cumprir a execução da pena aplicada e, quanto ao consentimento por parte do recorrente – deve entender-se que o recorrente não só consente como requer tendo em conta a presente motivação de recurso.
XVIII - Deste modo, o entende o arguido/recorrente que alternativamente à suspensão da execução da pena de prisão aplicada, caso tal não seja concedido, que poderia cumprir a pena aplicada nos presentes autos em regime de OPHVE.
NORMAS VIOLADAS:
Artigo 4º do Dec. Lei nº 401/82 de 23 de Setembro (por omissão se aplicação) e Artigos 40.º; 42º; 43º (por omissão de aplicação) e 50º todos do Código Penal.”
*
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
*
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso do arguido, formulando as seguintes conclusões:
“1.ª - As necessidades de prevenção geral, mas particularmente especial são distintamente elevadas no caso em apreço, pelo que, em respeito pelas finalidades da punição, afigura-se-nos correta e sem reparos a decisão do Tribunal a quo ao condenar o ora recorrente numa pena de prisão efetiva, não aplicando à mesma a atenuação especial da pena decorrente do artigo 4.º do Regime Penal Aplicável a Jovens Delinquentes, por inexistirem razões para crer que desta atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.
2.ª – Bem andou o Tribunal a quo ao não suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA, porquanto a mesma não realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição previstas no artigo 40.º do Código Penal, o que contrariaria expressamente os pressupostos decorrentes do artigo 50.º do Código Penal e afrontaria as necessidades de prevenção geral e especial que o caso requer.
3.ª – A ponderação da execução da pena de prisão, aplicada ao ora recorrente, em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, encontra-se, prejudicada, porquanto não se encontra preenchido um dos requisitos formais para a sua aplicação, designadamente que a pena de prisão decretada seja não superior a 2 anos.
4.ª - Na hipótese de que assim não se entenda, e caso venha a pena de prisão aplicada ao arguido a ser reduzida, para medida não superior a 2 anos, ainda assim, reitera o Ministério Público que não se encontram preenchidos os requisitos materiais da aplicação do regime estipulado no artigo 43.º, n.º 1 do Código Penal ao presente caso, porquanto não se vislumbra que o Tribunal possa legitimamente concluir que por este meio se realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão previstas pelo artigo 42.º, n.º 1 do Código Penal.”
*
Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e da manutenção da decisão recorrida, acompanhando a posição assumida na primeira instância.
*
Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.
*
Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.
*
2 – Objecto do Recurso
Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
À luz destes considerandos, as questões a decidir neste recurso consistem em saber se a pena aplicada ao recorrente deve ser:
- atenuada de acordo com o regime penal aplicável a jovens delinquentes;
- suspensa na sua execução;
- cumprida em regime de permanência na habitação.
*
3- Fundamentação:
3.1. – Fundamentação de Facto
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos, com interesse para a presente decisão:
“(…) 5. Pelas 04h40m, do dia 09/11/2021, o arguido juntamente com outro individuo de identidade não concretamente apurada, deslocaram-se de forma, que em concreto não foi possível apurar ao estabelecimento comercial tipo café, denominado “…”, sito no lote …, da Rua …, em … e munidos com uma pedra, desferiram golpe na montra do referido café, partindo a mesma e assim logrando aceder ao interior daquele espaço.
6. Ato seguido, o arguido entrou no interior do referido café e levou do mesmo a caixa registadora, no valor de 150,00€, que ali se encontrava, contendo 150,00€ em numerário, após o que, transportando a referida caixa, o arguido e o referido individuo colocaram-se em fuga.
7. Ao comportar-se conforme referido em 5. e 6., o arguido agiu de forma livre e consciente, com propósito concretizado de, através do arrombamento da montra daquele café, se apropriar dos objetos e valores que encontrasse no interior daquele espaço comercial, bem sabendo que não tinha autorização para entrar naquele sítio, que aqueles bens não lhe pertenciam e que agia contra a vontade dos seus legítimos proprietários a quem causava prejuízo.
8. Mais sabia o arguido que o seu comportamento era proibido e punido por lei.
Mais se provou que:
9. O arguido foi condenado por sentença de 29.10.2020, transitada em 03.12.2020, no âmbito do Proc. n.º 1024/19.0…, que correu termos no Juízo Local Criminal de … Juiz …, pela prática em 26.11.2019, de um crime de roubo p.p. pelo art.º 210º, nº 1 do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão suspensa por dois anos, sujeita a regime de prova.
10. O arguido foi condenado por sentença de 30.12.2020, transitada em 02.11.2020, no âmbito do Proc. n.º 976/19.4…, que correu termos no Juízo Local Criminal de … - J…, pela prática em Janeiro de 2020, de um crime de ofensa à integridade física simples, p.p. pelo art.º 143º, nº1, do Código Penal, na pena de 100 dias multa, à taxa de €5,00, pena essa que foi extinta por despacho proferido em 22.01.2023.
11. O arguido foi condenado por decisão de 09.11.2023, transitada em 06.05.2024, no âmbito do Proc. n.º 18/22.2…, que correu termos no Juízo Local Criminal de … Juiz …, pela prática em 26.11.2019, de um crime de passagem de moeda falsa na forma tentada, p.p. pelo art.º 265º, nº 1, al. a), do c. penal de roubo, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão suspensa por 1 ano, com regime de prova.
12. Ao nível escolar o arguido efetuou um percurso irregular e sem sucesso, associado ao absentismo e desinteresse, tendo vivido uma adolescência rebelde, com consumo de produtos de estupefacientes, integrando um grupo de pares mais velho.
13. Deu entrada no Centro Educativo dos … a … de 2020, à ordem do Processo tutelar educativo n.º 1039/04.0…, para cumprimento de medida tutelar educativa de internamento, em regime semiaberto, pelo período de doze meses, em revogação (por incumprimento) da medida tutelar educativa de Imposição de Obrigações aplicada.
14. Concluiu o 9.º ano de escolaridade, no Centro Educativo, onde permaneceu cerca de um ano, para cumprimento de medida tutelar educativa.
15. À data dos factos o arguido AA coabitava com BB, com quem mantém relação afetiva há cerca de dois anos, num apartamento arrendado, na Rua …, em ….
16. A companheira do arguido encontra-se grávida de oito meses, estando o casal a aguardar o nascimento do primeiro filho em comum.
17. O arguido AA tem um filho, que nasceu quando o arguido contava apenas 16 anos de idade.
18. A criança tem atualmente … anos, é fruto de uma relação anterior e reside com progenitora no …, não participando o arguido na educação do menor.
19. Na atualidade AA e a companheira, BB (… anos de idade, desempregada), coabitam com CC, mãe do arguido, bem como, com dois irmãos mais novos do arguido: DD, … anos, estudante e EE, … anos, estudante.
20. O agregado habita um apartamento arrendado em nome da mãe do arguido.
21. O arguido e respetiva companheira pretendem alterar de residência para uma localidade próxima de ….
22. A situação económica do arguido e companheira regista dificuldades, uma vez que subsistem da remuneração incerta de alguns dias de trabalho que o arguido realiza no setor rural (40,00€/dia) e do subsídio pré-natal recebido pela companheira, no valor de Eur. 247,00€.
23. Embora os pais de BB, residam em …, os mesmos ajudam-na monetariamente.
24. O arguido revela um percurso laboral sem consistência, desempenhando atividades indiferenciadas e de curta duração.
25. O arguido foi acompanhado por Equipa da DGRSP no processo n.º 1024/19.0…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, em que foi condenado pelo crime de roubo a 18 meses de prisão com pena suspensa na sua execução pelo período de dois anos, que transitou em julgado a 03-12-2020, que não cumpriu, tendo sido elaborado pelos serviços de reinserção social relatório sobre os incumprimentos em 05-01-2022.
26. Presentemente é acompanhado por equipa da DGRSP numa medida probatória no processo 18/22.2…, Juízo local criminal de …– Juiz …, desse Tribunal.(…)”
*
3.2.- Mérito do recurso
Nos presentes autos foi o recorrente condenado pela prática de um crime de furto qualificado p. e p. pelo art.º 204º, nº 2, alínea e), por referência ao art.º 202º, alínea d) e ao art.º 203º, todos do Cód. Penal, na pena de quatro anos de prisão, à qual foi perdoado um ano, ao abrigo do disposto nos arts.º 1º, 2º, nº 1, 3º, nº 1 e 8º, nº 1 da Lei nº 38-A/2023, de 2/08, 127º e 128º do Cód. Penal, sob a condição resolutiva de não praticar infração dolosa no ano subsequente à data da entrada em vigor da Lei nº 38-A/2023, de 2/08.
O recorrente não discute a matéria de facto apurada na decisão recorrida, nem o seu enquadramento jurídico, pretendendo apenas a atenuação especial da pena de prisão que lhe foi aplicada, a suspensão da sua execução ou o seu cumprimento em regime de permanência na habitação.
Alega, para tanto, que é muito jovem, foi novamente pai há pouco tempo, está social e profissionalmente inserido e a sua ressocialização não beneficiará em nada com o cumprimento de uma pena de prisão efectiva, porquanto as prisões são escolas de crime, sendo ainda possível permitir-lhe uma derradeira oportunidade para atuar conforme ao direito.
Vejamos se lhe assiste razão.
Prevê-se no art.º 203º, nº 1 do Cód. Penal que:
“1 - Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.” (sublinhado nosso)
Por seu turno no 204º, nº 2, alínea e) do mesmo diploma prevê-se que:
“2- Quem furtar coisa móvel ou animal alheios: (…)
e) Penetrando em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas;(…)
é punido com pena de dois a oito anos.(…)” (sublinhado nosso)
Dispondo o art.º 202º, alínea d) que:
“d) Arrombamento: o rompimento, fractura ou destruição, no todo ou em parte, de dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada, exterior ou interiormente, de casa ou de lugar fechado dela dependente.”
Por via do presente recurso, pretende o recorrente ver a pena de prisão de 4 anos que lhe foi aplicada atenuada por força da aplicação do regime especial para jovens, atenta a sua idade de 19 anos à data da prática do crime.
O acórdão recorrido afastou a aplicação deste regime pela seguinte ordem de razões:
“(…) O arguido vai condenado pela prática como autor material de um crime de furto qualificado, p.p. pelo artigo 204º, nº 2 al. e), por referência ao disposto no art.º 202º, al. d), todos do Código Penal, que é punido em abstrato com pena de prisão de 2 a 8 anos.
O arguido tinha, há data da prática dos factos (09/11/2021) idade inferior a 21 anos, mais concretamente 19 anos (na medida em que nasceu no dia …/02/2002).
Termos em que cumpre decidir quanto à aplicação do regime jurídico contido no Dec. Lei n.º 401/82 de 23 de Setembro, atendendo a que na data dos factos, este arguido já tinha completado 16 anos de idade, mas não tinha ainda atingido a idade dos 21 anos (cfr. art.º 9.º do C.P. e art.º 1.º, n.º 2 do citado Diploma).
Dispõe o art.º 4.º deste diploma que "se ao arguido for aplicável pena de prisão, o juiz deve atenuar especialmente a pena nos termos dos arts. 72.º e 73.º do C.P., quando tiver razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a sua reinserção social".
Ora, considerando, quer a gravidade dos factos e a forma de execução, não é de aplicar o regime especial para jovens previsto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, por não se poder concluir que existem razões sérias para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do arguido, antes pelo contrário.
Na verdade, no diploma referido, prevêem-se especialidades quanto às sanções (essencialmente medidas corretivas e de carácter reeducativo), que surgem como substitutivas da pena de prisão (designadamente a admoestação, imposição de obrigações, multa e internamento em centros de detenção), e este regime não é de aplicação automática, dado ser fundamental demonstrar que da atenuação especial resultam vantagens para a integração social do delinquente.
Ora, conforme resulta das alíneas 4. e 7. do preâmbulo do diploma em análise “trata-se, em suma, de instituir um direito mais reeducador do que sancionador, sem esquecer que a reinserção social, para ser conseguida, não poderá descurar os interesses fundamentais da comunidade, e de exigir, sempre que a pena prevista seja a de prisão, que esta possa ser especialmente atenuada, nos termos gerais, se para tanto concorrerem sérias razões no sentido de que, assim, se facilitará aquela reinserção. (…) as medidas propostas não afastam a aplicação – como ultima ratio – da pena de prisão aos imputáveis maiores de 16 anos, quando isso se torne necessário, para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade, e esse será o caso de a pena aplicada ser a de prisão superior a dois anos.”, e, no artigo 4º do diploma estabelece-se que “se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena (…), quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.”.
Assim, diferentemente do regime geral previsto nos artigos 72º e 73º, do Código Penal (que se fundam em circunstâncias que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena) no regime especial para jovens, se impõe a sua aplicação pelo tribunal quando, considerando a idade do agente, se considerar que existem sérias razões para crer que a atenuação especial da pena poderá contribuir para a futura reinserção do jovem agente.
No presente caso, verifica-se que não obstante a sua juventude, o arguido praticou os factos no decurso de uma suspensão da execução de uma pena de prisão que lhe foi aplicada pela prática de crime contra o património (crime de roubo), o que revela a dificuldade do arguido em interiorizar a importância do bem jurídico património o que poderá implicar uma significativa predisposição para a assunção de comportamentos atentatórios dos valores das regras e do direito, motivo pelo qual, entendemos que inexistem, no caso concreto, razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a sua reinserção social.
Com efeito, a conduta do arguido é reveladora de uma personalidade distorcida e antissocial que exige medidas idóneas à satisfação das necessidades de prevenção geral, que não permitem a aplicação do regime especial para jovens, ainda para mais dada a ausência de elementos nos autos que permitam fazer um juízo de prognose favorável à referida atenuação – o que facilmente se conclui da leitura do relatório social junto aos autos -, pelo que, o circunstancialismo apurado reclama fortes exigências de prevenção especial, que sobrelevam a finalidade ressocializadora que perpassa a atenuação especial.
Pelos motivos expostos, entendemos que é aplicar no caso concreto a pena de prisão ao arguido e de afastar a aplicação do regime previsto no Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro..(…)”
Ora, não obstante a argumentação do recorrente, verifica-se que o Tribunal a quo ponderou a aplicação do regime em causa e afastou a sua aplicação fundadamente. Na verdade, tal regime não é de aplicação automática, carecendo a mesma de ser ponderada em função de os factos apurados permitirem efectuar um juízo de prognose favorável para a reinserção social do jovem condenado. No caso em apreço os antecedentes criminais do arguido, pela prática de três crimes contra as pessoas e contra o património, o facto de ter praticado o crime em apreço durante o período de suspensão da execução de uma pena de prisão, que lhe foi aplicada pela prática de um crime de roubo, e os elementos constantes do seu relatório social, que revelam uma personalidade rebelde e desrespeitadora das regras e das leis penais, com a prática de um ilícito criminal antes dos 16 anos e passagem por um centro educativo, são indicadores de que os anteriores contactos com o sistema penal não foram suficientemente dissuasores da prática pelo arguido de novos crimes, independentemente da sua idade. Na verdade, consta do seu relatório social, elaborado pela DGRSP e junto aos autos, que o arguido: “(…) AA referiu ter crescido num clima familiar pautado pela violência doméstica e desproteção. Na realidade, teve uma infância e adolescência ligada a vários fatores desestabilizadores a nível sociofamiliar e educativo com muita permissividade e falta de supervisão parental, face aos comportamentos de reatividade e de desafio à autoridade sem observância da necessidade de cumprimento de regras e obrigações. Adotou cedo um estilo de vida autónomo na gestão do seu quotidiano, com muitas rotinas diárias desadequadas e um estilo de vida errático. AA foi assumindo e agravando lacunas ao nível das competências sociais, particularmente ao nível do respeito pelas figuras de autoridade e tem apresentado resistência ao cumprimento de regras, descentração e autocontrolo, assume fácil passagem ao ato violento como único mecanismo de defesa perante as adversidades externas. Na área da saúde afirma já não consumir produtos estupefacientes desde que iniciou o presente relacionamento, situação confirmada pela companheira, mas referem o consumo de bebidas alcoólicas esporadicamente para fins recreativos. Em termos sociais e embora o arguido opte por transmitir uma imagem de inserção, segundo nos foi possível apurar junto das fontes policiais de investigação criminal, e na comunidade de residência, a presença do arguido é associada à prática recorrente de comportamentos desajustados. (…) AA é reincidente no contacto com o sistema judicial, desde jovem, com diversidade criminal quer contra as pessoas quer contra o património, revelando a este nível reduzido juízo critico e falta de interiorização da gravidade dos crimes, bem como dificuldades de descentração e de empatia para com o outro, relativamente aos crimes pelos quais foi condenado. Deu entrada no Centro Educativo dos … a … de 2020, à ordem do Processo tutelar educativo n.º 1039/04.0…, para cumprimento de medida tutelar educativa de internamento, em regime semiaberto, pelo período de doze meses, em revogação (por incumprimento) da medida tutelar educativa de Imposição de Obrigações aplicada. Foi ainda acompanhado por esta Equipa da DGRSP no processo n.º 1024/19.0…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, condenado pelo crime de roubo a 18 meses de prisão com pena suspensa na sua execução pelo período de dois anos, que transitou em julgado a 03-12-2020, que não cumpriu, tendo sido elaborado pelos serviços de reinserção social relatório sobre os incumprimentos em 05-01-2022. Presentemente é acompanhado por esta DGRSP numa medida probatória no processo 18/22.2…, Juízo local criminal de …– Juiz…, desse Tribunal, no âmbito do qual foi condenado pelo crime de passagem de moeda falsa na forma tentada, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, cuja sentença transitou em julgado em 06-05-2024 e tem o seu termo previsto para 06-05-2025, tendo o acompanhamento, por esta DGRSP, sido iniciado recentemente. (...) Da avaliação efetuada e de acordo com os dados disponíveis, AA revela como aspetos de maior vulnerabilidade a ausência de pensamento critico sobre os comportamentos desajustados, a falta de interiorização da gravidade das condutas, a impulsividade e reatividade, do modo de vida errante e a existência de múltiplos processos penais (percurso criminal persistente e diversificado quer contra pessoas quer contra o património) anteriores e posteriores ao presente processo. (…)”
Em face desta factualidade, constata-se que o arguido tem vindo a demonstrar, ao longo da sua adolescência e da sua ainda jovem vida adulta, uma incapacidade de actuar em conformidade com a ordem jurídica vigente, desvalorizando não só a importância de não violar os bens jurídicos de terceiros, como as advertências que lhe têm sido feitas e as oportunidades que lhe têm sido dadas pelo sistema de justiça, concretizadas nas suspensões da execução das penas de prisão que lhe foram anteriormente aplicadas.
Por outro lado, ao contrário do que alega, o recorrente não se mostra social e profissionalmente inserido, pois a sua situação económica é precária, subsistindo de uma remuneração incerta de alguns dias de trabalho que realiza no setor rural e da ajuda financeira irregular dos pais da sua companheira, o que revela um percurso laboral sem consistência, com desempenho de atividades indiferenciadas e de curta duração.
São, pois, prementes as necessidades de prevenção especial que se fazem sentir no presente caso, não se podendo fazer um juízo de prognose favorável a que seja possível alcançar a ressocialização do arguido e dissuadi-lo da prática de futuros crimes com uma atenuação especial da pena de prisão que lhe foi aplicada, improcedendo nesta parte o seu recurso.
Pretende também o recorrente que a pena de prisão em que foi condenado seja suspensa na sua execução.
Relativamente à suspensão da execução da pena de prisão, há que atentar no disposto no art.º 50º do Cód. Penal, onde se prevê que:
“ 1 – O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 – O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3 – Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4 – A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5 – O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.”
A decisão recorrida considerou não ser de suspender a execução da pena aplicada ao recorrente pela seguinte ordem de razões:
“(…) O arguido, antes da data da prática dos factos, foi condenado pela prática de um crime contra o património tendo praticado os factos no decurso da suspensão da execução de uma pena de prisão que lhe foi aplicada, pelo que o seu comportamento manifesta alguma reiteração na atividade criminosa.
Por outro lado, o arguido já demonstrou anteriormente que a suspensão da execução da pena de prisão e a ameaça de prisão não o impediu de voltar a praticar crimes, pelo que se terá de concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, especialmente a de alteração dos comportamentos delituosos impondo-se a aplicação de uma pena de prisão efetiva.(…)”
Afastada a viabilidade ou a possibilidade de aplicação de qualquer outra pena substitutiva ou de diferente regime de execução da pena de prisão aplicada nos autos, importa aferir se se mostram preenchidos os pressupostos em que assenta a suspensão da execução da pena de prisão, enunciados no art.º 50º do Cód. Penal.
Para a consecução do necessário juízo de prognose estão arredadas quaisquer motivações que contendam com a culpa do agente, importando unicamente razões de natureza preventiva, de molde a percecionar se a suspensão da execução da pena de prisão é ainda tolerada pela gravidade do crime, só o sendo se for plausível a esperança fundada de uma adequação pelo arguido dos seus comportamentos em conformidade com as normas vigentes, sendo a desejada socialização melhor alcançada em liberdade do que em reclusão e potenciando, desta forma, a interiorização pelo arguido do desvalor das suas condutas.
Ora, analisados os factos apurados, temos que concordar com a opção do Tribunal recorrido também neste tocante.
Na verdade, o recorrente já foi anteriormente condenado, por duas vezes, em penas de prisão suspensas na sua execução pela prática de crimes de roubo e de passagem de moeda falsa, sendo que a prática dos factos ora em apreço ocorreu durante o período de suspensão da execução de uma pena de prisão, o que demonstra inequivocamente que o arguido não interiorizou de forma consistente a advertência contida na anterior condenação, a qual não teve a virtualidade de o afastar da prática de novos crimes.
Impõe-se, assim, concluir que não é possível fazer um juízo de prognose favorável relativamente à futura conduta do arguido, atenta a falta de interiorização pelo mesmo do desvalor dos seus comportamentos, às suas características de personalidade e às anteriores condenações por si sofridas, a que se somam as prementes exigências de prevenção geral quanto a este tipo de crime, gerador de alarme e insegurança social, pelo que as finalidades da punição no caso concreto não se satisfazem com mais uma suspensão da execução da pena nos termos requeridos.
Por último, tendo sido declarado perdoado 1 ano na pena em que foi condenado e podendo beneficiar da atenuação especial da pena, por aplicação do regime especial para jovens, pretende o recorrente que, a ser-lhe aplicada uma pena de prisão até dois anos, lhe seja dada a possibilidade de a mesma ser executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância. Porém, não se tendo aplicado a atenuação especial da pena do recorrente, nos termos previstos no regime especial para jovens, não é possível o cumprimento na habitação da pena de três anos de prisão que lhe foi aplicada, porquanto a mesma ultrapassa o limite temporal previsto no art.º 43º do Cód. Penal.
Em face de tudo o exposto, impõe-se julgar também neste tocante improcedente o recurso.
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4. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso apresentado por AA e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s.
Évora, 20 de Maio de 2025
(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)
Carla Francisco
(Relatora)
Edgar Valente
Artur Vargues
(Adjuntos)
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/b033e32fec29afef80258ca8002bcb7f?OpenDocument
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1,764,633,600,000
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PARCIALMENTE PROCEDENTE
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884/22.1T8CSC.L2-4
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884/22.1T8CSC.L2-4
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MANUELA FIALHO
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1 - Invocada uma doença profissional decorrente de omissão de vigilância médica e de avaliação à exposição ao fator de risco, cabe ao autor alegar e provar tais omissões e, provadas estas, cumpre aquilatar da norma que as impõe.
2 – Concluindo-se pela violação da regra de segurança, à doença profissional é aplicável o disposto no Artº 18º da Lei 98/2009 de 4/09.
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[
"DOENÇA PROFISSIONAL",
"VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA",
"RESPONSABILIDADE CIVIL"
] |
Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Lisboa:
AA
, A. no processo à margem referenciado, tendo sido notificado da sentença e com a mesma não se conformando, vem interpor recurso.
Pede que se revogue a sentença recorrida.
Apresentou as seguintes conclusões:
1 – Vem o presente recurso interposto da douta sentença que absolve as RR. do pedido realizado pelo A., ora Recorrente, nomeadamente na condenação solidária das Recorridas a pagar a quantia de € 15.000,00, acrescida de juros, desde a citação, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento e, ainda, em custas e procuradoria;
2 – Considerou a Mma. Juiz que inexistiu omissão dos Recorridos ”no que tange à proteção contra o risco ruído, por terem fornecido protetores de ouvidos, fazerem avaliação de risco, proporcionarem acesso à medicina do trabalho e promoverem ações de formação na área de higiene e segurança no trabalho, designadamente quanto ao risco ruído”, entendendo, assim, que a presente ação não poderia deixar de improceder com a consequente absolvição dos então Réus;
3 – É pacífico e reconhecido pela Sentença recorrida que através de processo concluído em Julho de 2016, o Recorrente viu reconhecida, pelo Departamento de Proteção contra os Riscos Profissionais, do Instituto da Segurança Social, I.P., 9 a existência de doença profissional, com início em Junho de 2012, sendo o Diagnostico Perturbações de Audição e a Doença reconhecida Surdez e que essa situação clínica do Recorrente tem carácter evolutivo de agravamento;
4 – Alegou o Recorrente nos presentes autos que as Recorridas tinham, enquanto prestou as suas funções nas estações elevatórias, o dever de cumprir as regras de segurança previstas nos artigos 281º e 282º do Código do Trabalho e proporcionar ao Recorrente boas condições de trabalho e, termos de segurança, higiene e saúde, algo que não sucedeu e que em todo esse período o Recorrente foi exposto a ruído, não tendo sido distribuído e proporcionado pelas Recorridas o Equipamento de Proteção Individual (EPI) devido para essa situação;
5 – Sobre este assunto, crucial para a apreciação do pedido do Recorrente, a Sentença recorrida refere que “As testemunhas só divergiram na questão da existência ou não de equipamentos de proteção individual, designadamente abafadores e na existência de medicina do trabalho, relativamente a 1989 a 2004, em que a testemunha BB negou e a testemunha CC confirmou. Temos assim duas versões contraditórias quanto a esta matéria e a factos constantes de 15º e 17º. Ora, não obstante genericamente as duas testemunhas terem merecido credibilidade nos termos já exposto, face ao conhecimento direto que tinham dos factos em virtude do exercício da profissão e funções respetivas, neste particular mereceu mais credibilidade a testemunha CC pelos seguintes motivos: ambos são trabalhadores dos réus, a testemunha BB além de colega é amigo do Autor, ao contrário da testemunha CC, que apenas mantém relação funcional e profissional com o Autor, pelo que está numa situação de maior distanciamento ou isenção (…)” ;
6 – Ou seja, apesar da testemunha BB ser trabalhador dos Recorridos em moldes idênticos ao do Recorrente, desde 1985, com as funções de 10 operador e de adução e produção, colega e amigo do Autor, com funções idênticas às do Autor mas integrado numa equipa e zona diferentes, tal como reconhecido na Sentença Recorrida, ainda assim a Mma. Juiz entendeu dar maior credibilidade nesta matéria à testemunha CC, Engenheira do Ambiente, trabalhadora dos Recorridos desde 1989, onde nos SMAS exerceu funções na Divisão de Estudos e Projetos até ao início da concessão da Águas de... em 2001 passando a exercer funções na Divisão de Exploração e desde 2006 como Diretora da Divisão de Exploração e Manutenção, sendo superior hierárquica do Recorrente, bem como da testemunha BB;
7 – Esta testemunha, CC, em momento algum exerceu funções idênticas e nas condições idênticas às do Recorrente, contrariamente à testemunha BB, mas ainda assim, a Mma. Juiz optou por dar mais credibilidade nesta matéria à Diretora da Divisão de Exploração e Manutenção, decidindo pela existência de equipamentos de proteção individual, designadamente abafadores e pela existência de medicina do trabalho, relativamente a 1989 a 2004;
8 – Mais, a Sentença Recorrida ignorou, pura e simplesmente, um relatório do Recorrido Águas de..., em documento enviado ao Instituto da Segurança Social – Centro Distrital de Lisboa, Departamento de Proteção contra Riscos Profissionais, junto pelo Recorrente à p.i. como Doc.2;
9 – Este documento, subscrito pela Técnica Superior de Segurança e Saúde das Águas de..., Dr.ª DD e datado de 05 de Fevereiro de 2016, refere expressamente em conclusão e depois de realizar a análise legal da situação do Recorrente que ”Compreendido da análise legal, vem que as entidades empregadoras não cumpriram com a legislação em vigor em questão (conforme processo individual do colaborador analisado) não havendo registos de vigilância médica nem avaliação à exposição ao fator de risco – ruido ocupacional referente ao período em questão (1989-2004) ”;
10 – Inexplicavelmente, a Sentença recorrida considera que este documento, além de subscrito por quem não tinha poderes para vincular os Recorridos, apenas contém conclusões e análises jurídicas, baseando-se em premissas que não correspondem à realidade;
11 – Salvo o devido respeito por entendimento contrário, parece óbvio que este “Relatório de Avaliação de Exposição a Fator de Risco – Ruído Colaborador AA” foi elaborado de forma fundamentada e consistente, pela Técnica Superior de Segurança e Saúde do Recorrido Águas de..., realizando, em Fevereiro de 2016, de forma imparcial, uma análise sobre a situação do Recorrente, que não poderia ser totalmente desvalorizada pelo Mma. Juiz como foi;
12 – No fundo, a Sentença recorrida opta, nesta matéria, claramente por dar toda a credibilidade à testemunha CC, Diretora da Divisão de Exploração e Manutenção, em total detrimento do Relatório elaborado sobre o Recorrente pela Técnica Superior de Segurança e Saúde:
13 – O mesmo se passando, aliás, como se referiu, relativamente ao depoimento testemunha BB;
14 – Os Recorridos deveriam, entre 1989 e 2004, ter cumprido o determinado e previsto no Decreto-Lei n.º 251/87, de 24 de Junho, que aprovou o Regulamento Geral sobre o Ruído, o Decreto-Lei n.º 72/92, de 28 de Abril, que estabelece o quadro geral de proteção dos trabalhadores contra riscos decorrentes da exposição ao ruido durante o trabalho, aplicando-se a todas as empresas, estabelecimentos e serviços, incluindo Administração Pública e o Decreto-Regulamentar n.º 9/92, de 28 de Abril, que estabelece o quadro geral de proteção dos trabalhadores contra riscos decorrentes da exposição ao ruido durante o trabalho;
15 – Contudo, como se viu, esta legislação não foi cumprida pelas entidades empregadoras em causa, não existindo qualquer registo de vigilância médica do A., nem avaliação à exposição ao fator de risco, neste caso ruído, durante os 15 anos (1989 a 2004) em que exerceu funções em permanência em Estações Elevatórias;
16 – Não se aceitando a conclusão infundada e vertida na Sentença recorrida de que o tempo passado pelo Recorrente nas Estações Elevatórias ..., ..., ... e ... não seria suficiente para ser causa da doença e que as deslocações diárias entre estas instalações determinava que não passava a totalidade do seu horário de trabalho em nenhuma delas;
17 – Existiu da parte dos Recorridos omissão ilícita e negligente ao não assegurar ao Recorrente condições de trabalho idóneas, por forma a evitar o risco de doença profissional que era previsível face aos locais de trabalho e aos processos de trabalho adotados, de forma a reduzir ou excluir os seus efeitos negativos, tendo esta violação de regras de segurança estado diretamente ligada com a verificação de doença profissional do Recorrente, integrando tal realidade uma omissão ilícita e negligente dos Recorridos, como já se referiu, causal da doença decorrente da execução de trabalho naquelas condições;
18 – Como consequência direta e necessária da violação de regra de segurança resultou para o Recorrente uma doença profissional, devidamente certificada;
19 – A situação clínica do Recorrente tem tendência para o seu agravamento, como expressamente reconhecido pela Decisão Recorrida, com as consequências e limitações decorrentes do agravamento de uma situação de surdez, conforme se retira de Relatórios Médicos juntos à p.i., realidade que 13 provoca sofrimento moral e desgosto, sofrendo o Recorrente com a sua situação e com as limitações diárias que sofre, que irão, como já referiu, agravar;
20 – Nos termos do artigo 486º do Código Civil, “As simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou do negócio jurídico o dever de praticar o ato omitido”;
21 – A causa do da doença profissional atribuída ao Recorrente foi a conduta omissiva, ilícita e culposa dos Recorridos, que deveria ter usado de uma negligência que não empregou, pois efetivamente cabia aos Recorridos proporcionar condições de trabalho adequadas, atribuindo EPI ajustado à situação, garantindo vigilância médica e avaliação de exposição ao fator de risco;
22 – O que no caso sub judice indiscutivelmente não sucedeu, tendo essa hipotética realidade apenas existido para a Mma. Juiz na mente da testemunha CC:
23 – Sobre esta matéria, veja-se, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo 835/15.0T8LRA.C1, de 16.12.2015, decisão que aborda uma situação em tudo semelhante à do Recorrente;
24 – Pelo que considera o Recorrente que pelos sofrimentos suportados e desvalor resultante da surdez diagnosticada, na sequência da omissão praticadas pelos Recorridos, deverá ser paga uma quantia não inferior a € 15.000.00;
25 – Razão pela qual, salvo o devido respeito, carece de razão considerar improcedente o pedido realizado pelo Recorrente nos presentes autos.
Município de...
, Co-Réu/Recorrido, notificado das Alegações, vem responder debatendo-se por que seja mantida a sentença.
Águas de....
, Ré/Recorrida, notificada das Alegações, responderam às mesmas pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
O
MINISTÉRIO PÚBLICO
emitiu parecer do qual consta:
“Constitui jurisprudência corrente que, com o recurso da matéria de facto, não pode pretender-se um novo julgamento fundado numa nova convicção, mas apenas apreciar a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal recorrido relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados, com base na avaliação das provas que considera determinarem uma avaliação diferente. Ora, parece-nos que a douta sentença recorrida se encontra devidamente fundamentada, apresentando um raciocínio lógico e coerente quanto à apreciação da prova e matéria assente, não se verificando qualquer contradição. Tendo sido essa a convicção do julgador, não nos parece que os elementos referidos nas doutas alegações de recurso devam conduzir a uma factualidade provada distinta.
Por outro lado, tendo por base a matéria de facto considerada assente, parece-nos que o Tribunal de primeira instância fez correta interpretação e aplicação do direito aos factos provados.
Assim sendo, mantendo-se a factualidade provada na douta sentença recorrida, o parecer do Ministério Público é no sentido de que o recurso não merece provimento, devendo a douta sentença recorrida ser mantida nos seus precisos termos.”
*
Apresentamos, para cabal esclarecimento, um breve resumo dos autos:
AA instaurou contra Águas de... e Município de... a presente ação comum, pedindo que sendo a ação julgada procedente, em consequência sejam as rés solidariamente condenadas a pagar ao autor a quantia de € 15.000,00 acrescida de juros, desde a citação, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento e, ainda, em custas e procuradoria.
Para tanto alegou, em síntese, que integrou o quadro dos SMAS de... em Fevereiro de 1989, que em 2000 passou, através da figura de requisição e posteriormente de acordo de cedência de interesse público, a exercer funções nas Águas de..., o que se mantém. Mais alega que no exercício das suas funções para os SMAS de..., desde 1989, e posteriormente nas Águas de..., até cerca do ano de 2004, esteve em permanência afeto às Estações Elevatórias, local onde permanecia a totalidade do seu horário de trabalho, e que esteve exposto a ruído não tendo sido distribuído e proporcionado pelas rés o Equipamento de Proteção Individual devido, nem havendo registo de vigilância médica do autor, nem de avaliação de exposição ao fator de risco ruído. Alega que em Julho de 2016 viu reconhecida pelo Departamento de Proteção contra os Riscos Profissionais do Instituto da Segurança Social, I.P. a existência de doença profissional, com início em Junho de 2012, sendo o diagnóstico Perturbações de Audição e a doença Surdez. Mais alega que ocorreu violação de regras de segurança pelas rés, por omissão ilícita e negligente ao não assegurar condições de trabalho idóneas a evitar o risco de doença, e que aquela foi causal da doença. Finalmente alega que tal doença e suas limitações lhe provocam sofrimento moral e desgosto.
O réu Município de... contestou, por um lado por exceção, arguindo o erro na forma de processo, a sua ilegitimidade, a caducidade do direito à ação e a prescrição, e, por outro lado, por impugnação, impugnando que a falta de audição tenha origem nas funções que exerceu, e alegando que na CGA em sede de junta médica para confirmação de incapacidade foi atribuído o coeficiente 0%, e concluindo que não estão demonstrados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual. Conclui pela improcedência da ação.
O réu Águas de... contestou, por um lado por exceção, arguindo o erro na forma de processo, a sua ilegitimidade, a caducidade do direito à ação e a prescrição, e, por outro lado, por impugnação, alegando que desde 1999 e até 2002 foi implementado um sistema de Telegestão e que desde Novembro de 2000 o autor exerce funções neste sistema, com gestão remota de todo o sistema de adução e reservas de águas nos reservatórios. Mais alega que no período de 1989 a 2004 o autor esteve afeto à zona oriental do concelho de ... estando-lhe “atribuídas” 11 instalações que identifica e destas apenas 4 possuíam Estações Elevatórias e destas, 2 foram desativadas em 2000 e 2001, impugnando que o autor permanecesse durante o seu horário laboral sempre em Estação Elevatória como alegado. Alega que as regras de segurança sempre foram cumpridas e que foram disponibilizados Equipamentos de Proteção Individual e facultado o acesso e acompanhamento dos serviços de Medicina do Trabalho. Alega também quanto a avaliação do ruído que as instalações foram avaliadas em 2007 e foi concluído, nos termos que detalha, que o valor não exige atribuição de EPI e vigilância médica. Mais alega que proporcionou formação sobre segurança, higiene e saúde no Trabalho. Finalmente impugna a existência do nexo causal da alegada doença com o ruído no local de trabalho, e bem assim a existência de qualquer incapacidade ou limitação por parte do autor, posto que lhe foi atribuído o coeficiente de 0% de incapacidade. Conclui pela improcedência da ação.
O autor respondeu às exceções e concluiu pela sua improcedência.
No despacho saneador foram conhecidas e julgadas improcedentes as invocadas exceções do erro na forma de processo, da ilegitimidade e da prescrição.
Desta decisão foi interposto recurso, no âmbito do qual veio a ser proferido acórdão que julgou improcedente a exceção perentória de prescrição do direito do apelante, revogando, nessa parte, o saneador sentença e ordenando o prosseguimento da ação até final.
Realizou-se, após, audiência de discussão e julgamento e foi proferida sentença que julga a ação totalmente improcedente e em consequência absolve os réus Águas de... e Município de... dos pedidos formulados pelo autor AA.
Julgou ainda improcedente a exceção de caducidade.
***
As conclusões delimitam o objeto do recurso, o que decorre do que vem disposto nos Art.º 608º/2 e 635º/4 do CPC. Apenas se exceciona desta regra a apreciação das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Nestes termos, considerando a natureza jurídica da matéria visada, são as seguintes as
questões a decidir
, extraídas das conclusões:
1ª – O Tribunal fez uma errada apreciação da prova?
2ª – A causa do da doença profissional atribuída ao Recorrente foi a conduta omissiva, ilícita e culposa dos Recorridos?
3ª - Pelos sofrimentos suportados e desvalor resultante da surdez diagnosticada, na sequência das omissões praticadas pelos Recorridos, deverá ser paga uma quantia não inferior a € 15.000.00?
***
FUNDAMENTAÇÃO
:
Das conclusões 5ª a 13ª emerge a insurgência da Apelante relativamente à apreciação da prova. Daí a enunciação da
1ª questão
a dilucidar – a
errada apreciação da prova
.
O Apelante sustenta distinta apreciação da prova testemunhal e da documental.
A Apelada Águas alega o incumprimento dos ónus constantes do Artº 640º do CPC.
Na conjugação entre o que se dispõe no Artº 640º do CPC e no Artº 662º do CPC, compete, atualmente à Relação, intervir em sede de reapreciação da matéria de facto. Uma intervenção que, contudo, não se reconduz à repetição do julgamento, antes se restringe à possibilidade de rever concretas questões de facto relativamente às quais a parte divirja de modo fundamentado.
Ora, a errada apreciação da prova só poderá relevar no quadro da impugnação da decisão que enforma a matéria de facto e tal impugnação está sujeita à observância por parte do impugnante de um conjunto de ónus, ónus esses que não vemos cumpridos no caso concreto.
Na verdade, e conforme disposto no Artº 640º do CPC, aquele que se insurja contra a decisão da matéria de facto deve, sob pena de rejeição, indicar os concretos pontos de facto impugnados, as concretas provas a reapreciar e a concreta decisão a proferir sobre tais pontos de facto. E, incidindo a impugnação sobre provas gravadas, também se lhe exige a indicação precisa das passagens da gravação em que se funda para sustentar distinta decisão.
É assim que se exige enunciação, em sede de motivação do recurso, de todas aquelas exigências, e, nas conclusões, da síntese decorrente da indicação dos pontos de facto sobre os quais incide a reação do recorrente
1
. O AUJ nº 12/2023 de 14/11 estabeleceu, todavia, como regra que o recorrente que impugna a decisão sobre matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões do recurso a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.
No caso sub-júdice apenas se mostra cumprido o ónus enunciado na alínea b) do nº 1 do Artº 640º, sendo a apelação completamente omissa quanto aos restantes dois – indicação dos pontos de facto impugnados e da decisão a proferir- e também quanto ao que resulta do nº 2 deste artigo – indicação exata das passagens da gravação.
Nem nas conclusões, nem na precedente alegação, vemos cumpridas tais exigências, o que por si, e sem necessidade de outros considerandos, é suficiente para que se rejeite o recurso nessa parte.
***
OS FACTOS
:
Os Factos Provados são os seguintes:
1º O Autor integrou o quadro de pessoal dos SMAS de... em Fevereiro de 1989, tomando posse como Auxiliar Administrativo de 2ª Classe, passando depois, em Agosto de 1989, para o exercício de funções de Operador de Estações Elevatórias de Tratamento e Depuradoras de 2ª Classe, a que se seguiu a requalificação profissional em Junho de 1999 para Operador de Central. (artigo 1º da petição inicial – admitido por acordo)
2º Em 2000, por força do Contrato de Concessão da Exploração do Sistema Municipal de Distribuição de Água e Drenagem de Águas Residuais de ..., passou, através da figura de requisição e posteriormente de Acordo de cedência em interesse público a exercer funções profissionais nas Águas de..., situação que se mantém atualmente. (artigo 2º da petição inicial – admitido por acordo)
3º A alteração de categoria do Autor ocorrida em 1999, de Operador de Estações Elevatórias de Tratamento e Depuradoras de 2ª Classe para Operador de Central deveu-se à implementação, ainda no âmbito do segundo Réu, Município de.../SMAS, de um sistema designado por TELEGESTÃO, ferramenta que permitiu efetuar a exploração do sistema de captação, adução, armazenamento e distribuição de água remotamente a partir do centro de comando situado no edifício sede na empresa, nos termos constantes da deliberação do Conselho de Administração do Segundo Réu/SMAS de 28/07/99 e respetiva Proposta aprovada, Informação n.º 676/99/I, de 28/06/2019 e Aviso publicado no Diário da República III SÉRIE de 30/08/1999 juntos a fls.304 a 306v cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. (artigo 58º da contestação do 1º Réu – prova documental)
4º Tal sistema permitiu aos operadores, entre eles o Autor, adotar o Centro de Comando como local de trabalho habitual/principal e operar remotamente os órgãos de controlo, tomar conhecimento do valor de todas as variáveis de campo podendo inclusive mandar arrancar ou parar um grupo de bombagem, abrir e fechar uma válvula adutora, bem como tomar conhecimento dos caudais que passam em algumas condutas, nos termos descritos no Ponto 2.4.3 do Anexo XI do Contrato de Concessão de Exploração do Sistema Municipal de Distribuição de Água e de Drenagem de Águas Residuais de ... junto a fls. 300 e 300v cujo teor se dá por reproduzido. (artigo 59º da contestação do 1º Réu – prova documental)
5º Quando em Novembro de 2000, o Autor/Trabalhador passou a exercer funções na empresa Ré sob regime de requisição, o sistema de telegestão, já se encontrava em funcionamento, ainda que não na sua plenitude desde o primeiro momento pois foi implantado de forma faseada, tendo permitido, a partir de finais de 2002, data em que se mostrou finalizada a sua implementação, a completa gestão remota de todo o sistema de adução e reservas de águas nos reservatórios. (artigo 60º da contestação do 1º Réu)
6º Já integrado na Concessão nas Águas de ..., o Autor é novamente requalificado profissionalmente, passando em Dezembro de 2006 para a categoria de Operário Altamente qualificado. (artigo 3º da petição inicial – admitido por acordo)
7º O Autor encontrava-se, no período que refere de 1989 a 2004, afeto, no exercício das suas funções, à zona oriental do concelho de ... onde lhe estavam “atribuídas” onze instalações, em concreto: ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e .... (artigo 62º da contestação do 1º Réu)
8º Dessas onze instalações apenas quatro possuíam Estações Elevatórias (..., ..., ... e ...) das quais, durante esse mesmo período, duas dessas Estações Elevatórias, em concreto de ... e de ..., foram desativadas em 2001 e 2002, respetivamente. (artigo 63º da contestação do 1º Réu)
9º As funções do Autor/Trabalhador consistiam, até ao ano 2000, essencialmente no registo e transmissão diária, via telefone ou rádio, do nível de água nos reservatórios e alguns caudais podendo, eventualmente, participar ainda na gestão das reservas, para tal, arrancando ou parando grupos elevatórios e manobrando válvulas em todas as instalações supra referidas. (artigo 64º da contestação do 1º Réu)
10º Nesse sentido, num primeiro momento, as funções do Autor exigiam deslocações diárias a e entre todas as 11 instalações a que se encontrava afeto (entre elas, apenas 4 estações elevatórias), não permanecendo numa só instalação durante todo o seu horário laboral. (artigo 65º da contestação do 1º Réu)
11º O número de instalações a que o Autor se encontrava afeto diariamente impunha uma curta permanência do mesmo no seu interior, sendo grande parte do seu período normal de trabalho ocupado em deslocações entre todas essas instalações. (artigo 67º da contestação do 1º Réu)
12º No período entre 2000 e finais de 2002, tais deslocações e permanência foram-se mostrando bastante e cada vez mais reduzidas dada a implantação gradual do Sistema de Telegestão, sendo que, a partir de início de 2003, com o pleno funcionamento do Centro de Comando da Telegestão, todas as funções exercidas pelo Autor passaram a ser exercidas remotamente, sendo as suas deslocações às instalações meramente ocasionais. (artigo 68º da contestação do 1º Réu)
13º Em meados de 2004 ardeu uma instalação, localizada em ..., onde existia um arquivo com documentação dos SMAS e da Águas de..., nomeadamente relacionada com a entrega dos EPIs, no tempo dos SMAS, e documentação referente a avaliações de exposição ao ruído dos trabalhadores e muita documentação referente ao período invocado pelo Autor de 1989 a 2004. (artigo 75º da contestação do 1º Réu)
14º Quanto ao tema de avaliação do ruído, em Novembro de 2007 foi elaborado relatório de avaliação da exposição pessoal ao ruído junto a fls. 307v a 315v cujo teor se dá por reproduzido, nos termos do qual consta quanto às estações elevatórias, “em todas as situações a exposição ao ruído ocupacional não ultrapassa 0,5h/dia” tendo-se concluído “em relação à totalidade dos trabalhadores que trabalham nas Estações Elevatórias” a situação seguinte de níveis de exposição:
(contém foto)
E “para todos os locais de trabalho os trabalhadores não devem estar sujeitos a valores superiores a:
(contém foto)
Salientando que apenas na estação elevatória do ... “cuja exposição estima-se na meia hora (…) no caso do trabalhador permanecer no local por tempo superior torna-se obrigatório o uso de protetores de ouvido”. (artigo 76º a 78º da contestação do 1º Réu – prova documental)
15º Independentemente, no caso concreto dos abafadores, os Réus disponibilizaram ao Autor, desde o primeiro momento, tal equipamento, encontrando-se os mesmos pendurados à entrada de todas as suas instalações e acessíveis a quem ali se deslocava e a partir de certa altura através da consignação de novos EPI´s, exclusivos ao Autor. (artigo 82º da contestação do 1º Réu e art. 72º, nº1, Código de Processo do Trabalho)
16º Pelos Réus foram promovidas várias ações de formação sobre o tema Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho, por exemplo já no ano de 1999 e 2001, com a duração de 3 dias, nas quais o trabalhador ora Autor participou, com o conteúdo constante dos certificados juntos a fls. 318 a 319 cujo teor se dá por reproduzido, nomeadamente quanto ao Ruído Ocupacional, em 2001, numa formação de 3 dias com um módulo especificamente dedicado aos “Riscos do Ruído”. (artigo 84º e 89º-a da contestação do 1º Réu e art. 72º, nº1, Código de Processo do Trabalho – prova documental)
17º Os Réus promoveram e facultaram ao Autor, desde o primeiro momento, e a todos os trabalhadores ao seu serviço, o acesso e acompanhamento pelos competentes serviços de Medicina do Trabalho, (artigo 89º-b da contestação do 1º Réu)
18º O Autor teve um processo por doença profissional no Departamento de Proteção Contra os Riscos Profissionais do Instituto da Segurança Social I.P., concluído em 14/07/2016, no âmbito do qual foi certificada doença profissional com início em 11/06/2012, com o diagnóstico “Perturbações Audição” “Código 170” e doença “surdez”, e por aquele ser subscritor da CGA (Caixa Geral de Aposentações) o processo foi remetido a esta entidade para efeitos de junta médica prevista no art. 38º do DL 503/99, de 20 de Novembro, em 23/08/2016, nos termos constantes dos documentos de fls. 10, 11, 48v a 49v, e 405, cujo teor se dá por integralmente reproduzido. (artigo 5º da petição inicial e art. 72º, nº1, Código de Processo do Trabalho – prova documental)
19º Realizada Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações em 2/03/2017, relativa à doença profissional certificada pelo C.N.P.C.R.P. em 12/08/2016, o resultado foi o seguinte, nos termos constantes da comunicação de fls. 53 e 53v e do auto de junta médica de fls. 406 a 409, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais: “Das lesões apresentadas não resultou uma incapacidade permanente absoluta para o exercício das suas funções. Das lesões apresentadas não resultou uma incapacidade permanente absoluta de todo e qualquer trabalho. Das lesões apresentadas foi atribuído o coeficiente de 0%, uma vez que não são passíveis de qualquer desvalorização, de acordo com o Capítulo IV n° 8.1; Cap. IV n° 8.2 da T.Ν.Ι.” (artigo 61º da contestação do 2º Réu e artigo 106º do 1ª Réu– prova documental)
20º O Autor apresentou requerimento para realização de Junta de Recurso para apreciar novamente a sua situação clinica, que foi indeferido por despacho de 8/08/2017 da Direção da CGA, nos termos constantes do documento de fls. 50 e 50v, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. (artigo 62º da contestação do 2º Réu– prova documental)
21º A situação clínica do Autor tem carácter evolutivo de agravamento. (artigo 16º da petição inicial – prova documental)
22º O horário de trabalho do Autor era de 7 horas diárias e 35 horas semanais. (artigo 19º da petição inicial – admitido por acordo)
***
O DIREITO
:
Detenhamo-nos, então, sobre a
2ª questão
2
–
A causa da doença profissional atribuída ao Recorrente foi a conduta omissiva, ilícita e culposa dos Recorridos
?
A presente ação começou por ser interposta no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, vindo configurada como uma ação de responsabilidade civil por factos ilícitos, sustentada no disposto nos Artº 483º e 486º do CC. E foi nesse pressuposto que foi proferida a sentença.
O Autor teve um processo por doença profissional no Departamento de Proteção Contra os Riscos Profissionais do Instituto da Segurança Social I.P., concluído em 14/07/2016, no âmbito do qual foi certificada doença profissional com início em 11/06/2012, com o diagnóstico “Perturbações Audição” “Código 170” e doença “surdez”. Foi-lhe atribuído, pela junta médica, o coeficiente de 0% de incapacidade.
Pretende, na presente ação, ser ressarcido por danos de natureza não patrimonial.
O Apelado Município refuta o pedido alegando que o Apelante não identifica qualquer dano, salientando que nem sequer foi atribuída incapacidade, e que não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil.
A Apelada Águas de... alega que o recurso não se insurge contra a apreciação jurídica efetuada na sentença, que não existe prova de danos, que inexiste relação laboral entre si e o Apelante pelo que não responde solidariamente pelo eventual dano.
Vejamos, pois!
Dispõe o Artº 1º/2 da Lei 98/2009 de 4/09 – aplicável à situação dada a data de certificação da doença (Artº 187º/2) - que, sem prejuízo do disposto no capítulo III, às doenças profissionais aplicam-se, com as devidas adaptações, as normas relativas aos acidentes de trabalho constantes da presente lei e, subsidiariamente, o regime geral da segurança social.
Entre tais normas aplicáveis aos acidentes de trabalho encontra-se o Artº 18º relativo à atuação culposa do empregador.
Quando o acidente – ou, no caso, a doença – tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais.
A partir deste dispositivo legal deverá equacionar-se o pedido formulado, pois nestas circunstâncias fica afastado o regime de responsabilidade emergente do disposto no Cap. III da Lei, devendo a doença ser ressarcida nos termos gerais.
A isto não obsta ter-se decidido que não procede a exceção de erro na forma do processo, porquanto o que está ora em causa é o regime de direito substantivo aplicável. E também não obsta o enquadramento meramente civilístico efetuado pelo Apelante a partir da petição inicial, porquanto o tribunal não está vinculado às alegações das partes no tocante à indagação do Direito aplicável (Artº 5º/3 do CPC).
Cumpre, assim, ao trabalhador o ónus de provar que a doença foi provocada pelo empregador ou seu representante ou entidade por aquele contratada ou, então, que a mesma resulta da inobservância de normas sobre segurança e saúde no trabalho.
Como pressupostos de aplicação deste normativo temos, pois, a inobservância por parte do empregador de alguma regra sobre segurança, higiene e saúde e, bem assim, o nexo causal entre esta e a doença. Ou seja, não basta que ocorra tal inobservância, impõe-se que ela seja determinante na produção do evento. Donde, estar afastada a possibilidade de enquadramento neste título de responsabilidade de todas e quaisquer violações de princípios ou normas sobre segurança se de tal violação não resultar o evento.
A este propósito cabe, desde já, salientar que a lei não se basta com a violação de um qualquer dever de cuidado ou de alguma genérica obrigação de segurança. Tais violações inserem-se nos riscos próprios da atividade e são absorvidas pela responsabilidade geral (objetiva) decorrente de acidentes de trabalho/doenças profissionais
3
. O que no Artº 18º da LAT se prevê é a responsabilidade decorrente da concreta violação de uma específica regra de segurança, causal do acidente ou da doença.
Pretende o Apelante que a doença de que padece teve a sua causa em conduta omissiva, ilícita e culposa dos Recorridos.
E porquê?
Porque, segundo invoca, os Recorridos deveriam, entre 1989 e 2004, ter cumprido o determinado e previsto no Decreto-Lei n.º 251/87, de 24 de Junho, que aprovou o Regulamento Geral sobre o Ruído, o Decreto-Lei n.º 72/92, de 28 de Abril, que estabelece o quadro geral de proteção dos trabalhadores contra riscos decorrentes da exposição ao ruido durante o trabalho, aplicando-se a todas as empresas, estabelecimentos e serviços, incluindo Administração Pública e o Decreto-Regulamentar n.º 9/92, de 28 de Abril, que estabelece o quadro geral de proteção dos trabalhadores contra riscos decorrentes da exposição ao ruído durante o trabalho. Legislação que não foi cumprida, não existindo qualquer registo de vigilância médica do A., nem avaliação à exposição ao fator de risco, neste caso ruído, durante os 15 anos (1989 a 2004) em que exerceu funções em permanência em Estações Elevatórias.
Identifica, pois, o Recrte., as omissões registadas – inexistência de vigilância médica e de avaliação à exposição ao fator de risco.
Ora, em presença do disposto no Artº 18º da Lei 98/2009, essa é a atividade inicial a desenvolver para aplicação do regime de responsabilidade civil nos termos gerais, sendo, após, necessário estabelecer um nexo de causalidade entre a violação ou omissão e a doença propriamente dita, definindo-se, após, a responsabilidade em presença do dano apresentado. Tal como dito no Ac. do STJ de 3/02/2010, Proc.º 304/07.1TTSNT, a diferença existente entre ambas as previsões enunciadas no nº 1 do Artº 18º da LAT reside na prova da culpa, que é indispensável no primeiro caso e desnecessária no segundo. Decorre tal asserção da circunstância de, estando em causa a violação de preceitos legais ou regulamentares sobre higiene e segurança no trabalho, tal violação constituir fundamento autónomo bastante para o postulado agravamento e, bem assim, de a mencionada violação consubstanciar, por si mesma, a omissão concreta de um especial dever de cuidado imposto por lei.
Como se vem repetidamente afirmando a responsabilização da entidade empregadora nos termos do Artº 18º/1 exige que se demonstre (cabendo esse ónus a quem vier a tirar proveito dessa forma mais acentuada de responsabilização) um nexo causal entre a postergação das regras de segurança, saúde e higiene no trabalho e o evento infortunístico.
Significa isto que “a responsabilidade agravada do empregador com fundamento na violação de preceitos legais ou regulamentares ou de diretrizes sobre higiene e segurança no trabalho pressupõe a verificação dos seguintes requisitos: (i) que sobre o empregador recaia o dever de observar determinadas regras de comportamento, cuja observância teria impedido, segura ou muito provavelmente, a consumação do evento, assim se omitindo o cuidado exigível a um empregador normal; (ii) que entre essa conduta omissiva e o acidente intercorra um nexo de causalidade adequada”
4
.
O Artº 563.º do CC adotou, a propósito do nexo de causalidade, e como é reconhecido pela generalidade da doutrina, a teoria da causalidade adequada.
Um facto só deve considerar-se causa (adequada) daqueles danos (sofridos por outrem) que constituem uma consequência normal, típica, provável dele
5
.
Ora, “a apreciação do nexo de causalidade envolve dois patamares. O primeiro prende-se com a determinação naturalística dos factos, em ordem a determinar a sua causa-efeito e constitui matéria de facto... e que, por isso, implica uma avaliação de prova. O segundo implica o confronto daquela sequência cronológica com as regras jurídicas que delimitam o conceito de causalidade adequada, o que já é uma operação de subsunção jurídica.
6
”
Assim, ainda que, em abstrato, se constate a violação de alguma norma de segurança, em concreto será necessário que a factualidade seja reveladora, não só da existência da anomalia ou omissão, como também de que a mesma foi causal do evento, de modo a permitir estabelecer a correspondência entre a omissão registada e a ocorrência.
Impor-se-ia, pois, identificar nos diplomas referenciados o que estatuem sobre a matéria
7
,
8
.
Tratando-se de omissão de vigilância médica e de avaliação do risco, regem os DL 251/87 de 24/06 e o Dec. Regulamentar 9/92 de 28/04 (este regulamenta o DL 72/92 de 28/04) que, respetivamente, nos Artº 18º e 3º e 5º se debruçam sobre tais matérias.
Dispõe o Artº 18º/1 do DL 251/87 que quando se verificar que o valor do nível sonoro contínuo equivalente excede 85 dB (A), as entidades fiscalizadoras imporão a realização de rastreios audiométricos periódicos aos trabalhadores.
Por seu turno, no concernente à avaliação do risco, dispõe o Artº 3º/1 do Dec. Regulamentar que para identificar os trabalhadores expostos o empregador deve proceder à avaliação da «exposição pessoal diária de cada trabalhador ao ruído durante o trabalho», L(índice EP,d), e dos valores máximos dos picos de nível sonoro, MaxL(índice PICO). Já do Artº 5º/1 e 2 decorre a necessidade de implementar vigilância médica nos seguintes termos:
1- Quando as avaliações da exposição pessoal diária de cada trabalhador ao ruído durante o trabalho, L(índice EP,d), e dos valores máximos dos picos de nível sonoro, MaxL(índice PICO), revelarem a existência de qualquer trabalhador exposto a níveis superiores ao valor limite de exposição ou ao valor limite de pico, definidos, respetivamente, nas alíneas i) e j) do artigo 1.º, devem ser identificadas as causas desses excessos e deve ser posto em prática um programa de medidas técnicas, destinado a diminuir a produção ou propagação do ruído, ou um programa de medidas de organização do trabalho, destinado a diminuir a exposição dos trabalhadores ao ruído, tendo em conta o disposto no anexo V.
2 - Enquanto se mantiver a situação prevista no número anterior, o empregador deve assegurar:
a) …
b) A vigilância médica e audiométrica da função auditiva dos trabalhadores expostos com periodicidade anual, salvo se o médico responsável estipular periodicidade inferior.
Contudo, do acervo fático cuja prova se obteve não decorre nem a inexistência de vigilância médica, nem a inexistência de avaliação da exposição ao risco, omissões nas quais assenta o recurso e cuja prova competia ao Apelante nos termos do disposto no Artº 342º/1 do CC.
O que dali emerge é antes que os Réus promoveram e facultaram ao Autor, desde o primeiro momento, e a todos os trabalhadores ao seu serviço, o acesso e acompanhamento pelos competentes serviços de Medicina do Trabalho (ponto 17º) e, quanto ao tema de avaliação do ruído, a elaboração, em Novembro de 2007, de um relatório de avaliação da exposição pessoal ao ruído (ponto 14º). E, bem assim que em meados de 2004 ardeu uma instalação, localizada em ..., onde existia um arquivo com documentação dos SMAS e da Águas de..., nomeadamente relacionada com a entrega dos EPIs, no tempo dos SMAS, e documentação referente a avaliações de exposição ao ruído dos trabalhadores e muita documentação referente ao período invocado pelo Autor de 1989 a 2004 (ponto 13º). Daqui não podemos extrair que no período de 1989 a 2004 não existiu tal avaliação ao risco, sendo certo que o ónus da respetiva prova está, no caso, a cargo do A. (Artº 342º/1 do CC).
Ora, não identificada qualquer conduta que traduza a invocada omissão cautelar por parte das Apeladas
9
, e tendo soçobrado a impugnação da decisão fática, a questão em análise não tem como proceder, revelando-se desnecessários outros considerandos.
*
Fica, assim, prejudicada a análise da 3ª questão que enunciámos, por a mesma pressupor a responsabilidade fundada no disposto no Artº 18º/1 da Lei 98/2009.
<>
As custas da apelação constituem encargo do Apelante.
*
***
*
Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença.
Custas pelo Apelante.
Notifique.
Lisboa, 12/02/2025
MANUELA FIALHO
CELINA NÓBREGA
SÉRGIO ALMEIDA
_______________________________________________________
1. Neste sentido, a título de exemplo, os Ac. do STJ de 19/01/2023, Proc.º 3160/16.5T8LRS-A e de 13/11/2009, Proc.º 4946/05.1TTLSB-C
2. Muito embora nos pareça que a mesma é colocada no pressuposto de modificação do acervo fático. Mas, tratando-se de matéria de conhecimento oficioso, apreciá-la-emos
3. Neste sentido o Ac. do STJ de 13/10/2016, Proc.º 443/13.0TTVNF.
4. Ac. do STJ de 19/06/2013, Proc.º 3529/04.8TTSLB
5. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 4ª Ed., Almedina, 800
6. Ac. do STJ de 12/11/2009, Proc.º 632/06.3TTMR
7. Tarefa que o Apelante, de todo, não realiza na peça que submeteu
8. Na sentença identificaram-se as seguintes normas:
“ No DL 251/87, de 24 de Junho, que aprovou o Regulamento Geral sobre o Ruído, estabelecia-se, com relevo para os presentes autos:
Artigo 16.º
Locais de trabalho
1 - Nos locais de trabalho, o valor máximo do nível de pressão sonora instantâneo não poderá ultrapassar 140 dB.
2 - Nos locais de trabalho, o valor do nível sonoro contínuo equivalente não deverá exceder 90 dB (A). (…)
Artigo 17.º
Dispositivos de proteção individual
1 - Quando se verificar que o valor do nível sonoro contínuo equivalente excede 90 dB (A) e não for possível, através do recurso a medidas visando os equipamentos, as instalações e organização do trabalho, atenuar a severidade da exposição dos trabalhadores ao ruído, as entidades fiscalizadoras imporão, para uso dos trabalhadores, a adoção de dispositivos de proteção individual, devendo os locais estar devidamente sinalizados. (…)
DL 72/92, de 28 de Abril - Proteção dos trabalhadores contra os riscos devidos à exposição ao ruído durante o trabalho - que no respetivo art. 1º estabelece o quadro geral de proteção dos trabalhadores contra os riscos decorrentes da exposição ao ruído durante o trabalho se aplica a todas as empresas, estabelecimentos e serviços, incluindo a Administração Pública.
Decreto Regulamentar 9/92, de 28 de Abril, que regulamenta o DL 72/92, de 28 de Abril (proteção dos trabalhadores contra os riscos devidos à exposição ao ruído durante o trabalho):
Artigo 1.º
Conceitos gerais e definições
(…) h) Nível de ação: o nível de ação da «exposição pessoal diária de um trabalhador ao ruído durante o trabalho» é igual a 85 dB (A);
i) Valor limite da exposição pessoal diária: o valor limite da «exposição pessoal diária de um trabalhador ao ruído durante o trabalho» é igual a 90 dB (A);
j) Valor limite de pico: o valor máximo do pico de nível de pressão sonora é igual a 140 dB, equivalente a 200 pascal de valor máximo da pressão sonora instantânea não ponderada;
l) Trabalhador exposto: trabalhador cuja exposição diária ao ruído durante o trabalho é igual ou superior ao nível de ação ou que está sujeito durante o trabalho a picos do nível de pressão sonora iguais ou superiores ao valor limite de pico;
m) Protetores de ouvido: equipamento de proteção individual que é utilizado para reduzir o efeito agressivo do ruído ambiente no aparelho auditivo, considerando-se normalmente quatro tipos: os de inserção no canal auditivo externo (tampões), os de cobertura de todo o pavilhão auricular (protetores auriculares), os de cobertura de parte substancial da cabeça e de todo o pavilhão auricular (capacetes) e os protetores ativos;
(…)
Artigo 2.º
Medidas gerais de prevenção
1 - As exposições dos trabalhadores ao ruído durante o trabalho devem ser reduzidas ao nível mais baixo possível, tendo em consideração o progresso técnico, e, em qualquer caso, sempre inferiores aos valores definidos nas alíneas i) e j) do artigo 1.º
3 - Para reduzir os riscos ligados à exposição dos trabalhadores ao ruído durante o trabalho devem ser utilizadas, pela seguinte ordem de prioridades, medidas técnicas de proteção coletiva, de organização do trabalho e de proteção individual, designadamente as indicadas no anexo V.
Artigo 4.º
Ultrapassagem do nível de ação
1 - Quando as avaliações da exposição pessoal diária de cada trabalhador ao ruído durante o trabalho, L(índice EP,d), revelarem a existência de qualquer trabalhador sujeito a uma exposição igual ou superior ao nível de ação estabelecido na alínea h) do artigo 1.º, o empregador deve aplicar as medidas previstas nos números seguintes.
4 - O empregador deve pôr gratuitamente à disposição dos trabalhadores protetores de ouvido com atenuação adequada ao ruído a que estão expostos.
Artigo 5.º
Ultrapassagem dos valores limite
5 - É obrigatória a utilização de protetores de ouvido, adequados, pelos trabalhadores expostos a níveis superiores aos valores limite definidos nas alíneas i) e j) do artigo 1.º, devendo esta obrigatoriedade ser devidamente sinalizada.
Artigo 7.º
Protetores de ouvido
(…)”. Como decorre dos factos dados como provados os réus forneceram, desde sempre, protetores de ouvido ou abafadores para uso dos trabalhadores nas estações elevatórias. Nas estações elevatórias onde o autor trabalhou existiam protetores de ouvido à disposição dos trabalhadores e a partir de certa altura passou a ser distribuído individualmente a cada trabalhador um protetor de ouvido.
”
9. O que, na análise efetuada na sentença também ocorreu como se pode ver a partir do seguinte extrato:
“Como dos factos provados consta, todos os arquivos dos réus existentes até 2004 sobre higiene e segurança no trabalho arderam num incêndio e por isso não foi feita prova do concreto nível de exposição ao ruído ocupacional no período em causa, mas existe o relatório de 2007 de avaliação da exposição pessoal ao ruído, relativamente às mesmas instalações com a mesma maquinaria e no mesmo conclui-se que nas estações elevatórias, “em todas as situações a exposição ao ruído ocupacional não ultrapassa 0,5h/dia” tendo-se concluído “em relação à totalidade dos trabalhadores que trabalham nas Estações Elevatórias” níveis de exposição inferiores a 80 dB exceto na estação elevatória do ..., onde o autor nunca trabalhou, que em caso de exposição diária superior a meia hora “torna-se obrigatório o uso de protetores de ouvido”.
Ora, considerando os níveis de exposição apurados em 2007, inferiores a 80 dB nem sequer existia obrigatoriedade de uso de protetores de ouvido, considerando a legislação em vigor à data, que apenas a impunha para níveis de exposição igual ou excedendo 90 dB .
De todo o modo, como se disse, os protetores de ouvido existiam à disposição do autor nas estações elevatórias onde trabalhou.
Acresce que os réus demonstraram que proporcionavam ações de formação na área da higiene e segurança no trabalho e designadamente relativamente ao risco ruído, promoviam avaliações médicas e acesso à medicina do trabalho e faziam avaliações do risco e da exposição ao ruído.
Assim e uma vez que foi feita prova da inexistência de omissão dos réus no que tange à proteção contra o risco ruído, por terem fornecido protetores de ouvido, fazerem a avaliação do risco, proporcionarem acesso à medicina no trabalho e promoveram ações de formação na área da higiene e segurança no trabalho, designadamente quanto ao risco ruído, a ação não pode deixar de improceder por falta, desde logo, do primeiro dos pressupostos de que depende a existência de responsabilidade por factos ilícitos ou seja a existência de um facto voluntário (por ação ou omissão, praticado pelo agente, sendo irrelevante, por desnecessário analisar dos demais pressupostos.
”
10. Da autoria da Relatora
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/16c9044ee4e129b280258c380055e91f?OpenDocument
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1,750,204,800,000
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INCIDENTE IMPROCEDENTE
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2299/09.8TBBCL-T.G1-A
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2299/09.8TBBCL-T.G1-A
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SUSANA RAQUEL SOUSA PEREIRA
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I- O interesse tutelado pela proteção do segredo profissional do revisor oficial de contas é, primacialmente, o da proteção dos clientes cujos interesses lhes estão confiados, servindo outrossim a garantia de confiança instrumental ao exercício de funções de auditoria e fiscalização que constituem o núcleo da sua função.
II- Inexiste razão objetiva para que, feita a ponderação dos interesses conflituantes, deva ser quebrado o sigilo profissional que a testemunha está legalmente obrigada a respeitar, se a recolha do seu depoimento não se mostrar imprescindível para a descoberta da verdade e para a realização da Justiça no caso concreto, por existirem outros meios que permitem alcançar tal desiderato.
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[
"LEVANTAMENTO/QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL",
"REVISOR OFICIAL DE CONTAS"
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Acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:
I- RELATÓRIO
AA, Administradora de Insolvência da Massa Insolvente de BB, intentou ação declarativa com processo comum contra BB, entretanto falecido, EMP01..., S.A., CC, DD, EE e FF, e os entretanto habilitados por sentença proferida em 28.06.2018, no âmbito do apenso V, GG, HH, que também usa de nome II, JJ, KK e LL, pedindo que se declare «
nula e de nenhum efeito a compra e venda (cessão) das ações do I réu – insolvente - da sociedade EMP01..., S.A., promovida pelos réus, procedendo-se ao cancelamento de todos os registos subsequentes e com as mais ínsitas consequências legais
», ou, caso assim se não entenda, que os réus sejam «
condenados, na medida da proporção da sua cessão, conforme supra melhor descrito nos artigos 111.º a 113.º, a pagarem à A. massa insolvente o valor correspondente à diminuição do património do insolvente, que se estima, de forma global, em oitocentos e vinte e quatro mil, oitocentos e setenta e cinco euros e vinte e seis cêntimos
».
Alegou, em síntese, que, no âmbito do processo de insolvência n.º 2299/09.8TBBCL-G, que corre termos na Comarca de Braga – Vila Nova de Famalicão – 2.ª Secção do Comércio – J2, no dia 29.04.2009, foi proferida sentença de declaração de insolvência de BB, aqui 1.º réu.
Em 27.02.1998 foi constituída a sociedade comercial EMP01..., S.A., aqui 2.ª ré.
Os acionistas maioritários eram o 1.º réu
e a sua ex-cônjuge MM que detinham 4.000,00 ações, no valor de € 20.000,00 cada um.
As restantes ações eram tituladas pelos filhos do casal, nomeadamente, a 4.ª ré, DD (200 ações), NN (200 ações) OO (400 ações), PP (400 ações) e 5.ª ré EE, (400 ações) e genros QQ (200 ações) e RR (200 ações).
Em 08.02.2006, na sequência da dissolução do casal [1.º réu
e MM] por divórcio, foi celebrada partilha dos bens comuns, sendo que as oito mil ações no valor nominal de € 40.000,00 (quarenta mil euros) pertença do casal foram adjudicadas ao 1.º réu. Todavia, as 4.000,00 ações continuaram na posse e titularidade da sua ex-cônjuge MM,
Em inícios de 2008, o 1.º réu
surge como acionista maioritário, com 8.000,00 ações, no valor nominal de € 40.000,00.
No final de 2008, o 1.º réu alienou todas as suas ações, em primeiro lugar e ao preço nominal de € 35.000,00, a favor do 3.º réu CC, que em consequência surge como acionista maioritário, titular de 7.000,00 ações da 2.ª ré; em segundo lugar e ao preço nominal de € 1.000,00, a favor da 4.ª ré
DD, que duplicou o número das suas ações, que passaram de 200 para 400; em terceiro lugar e ao preço nominal de € 1.000,00, a favor da 5.ª ré
EE, que adquiriu 200 ações e passou a ser titular de 600 ações e, em quarto lugar e ao preço nominal de € 4.000,00, a favor do 6.ª réu FF, que adquiriu 800 ações, sendo este marido da 5.ª ré
EE.
O valor real das 8.000,00 ações ascendia ao montante de € 824.875,26, valor subtraído da esfera patrimonial do 1.º réu, meses antes da sua declaração de insolvência
Nenhum dos intervenientes quis celebrar a alegada cessão (compra e venda) das ações e nenhum dos réus acionistas pagou, pela cessão das ações, qualquer importância ou valor, sendo que todos conheciam que o 1.º réu se encontrava no limiar da insolvência.
A real intenção das partes foi a de enganar os credores do 1.º réu e subtrair do património deste bens (ações) que pudessem também responder pelas suas dívidas.
Os réus DD, EE, FF, GG, JJ, KK e LL contestaram, por exceção e por impugnação.
A autora pronunciou-se sobre as exceções invocadas, em sede de audiência prévia.
Foi proferido saneador no qual, além do mais, foi fixado o objeto do litígio e foram enunciados os temas de prova, cujo teor se reproduz:
«
Objeto do litígio
:
Apurar se in casu se verificam os fundamentos legais que permitem declarar nulo por simulação o contrato de cessão das ações da sociedade EMP01..., SA, pertencentes ao insolvente BB ou a responsabilização dos RR CC (seus herdeiros citados nos autos), DD, EE e FF de indemnizarem a massa insolvente A pela não apreensão das ações.
Temas da prova
:
- Apurar se o negócio jurídico de cessão das ações da sociedade EMP01..., pertencentes ao insolvente BB é nulo por simulação;
- Apurar se os RR CC (seus herdeiros citados nos autos), DD, EE e FF preenchem os requisitos da obrigação de indemnizar a massa insolvente Autora do valor correspondente à diminuição do património do insolvente em € 824.875, 26.
».
Designado dia e hora para a realização da audiência final, veio a testemunha SS, na qualidade de ROC da sociedade ré EMP01..., S.A., invocar o sigilo profissional a que está obrigada, alegando que todos os factos que são do seu conhecimento, com referência à indicada sociedade, chegaram ao seu conhecimento no âmbito do exercício da sua atividade profissional de Revisor Oficial de Contas.
Nessa sequência veio a autora requerer que fosse levantado o sigilo profissional alegando, para tanto, que «
o depoimento do referido ROC revela-se essencial à descoberta da verdade material, uma vez que dever-se-á reportar a factos diretamente relacionados com Ré sociedade e com a responsabilidade dos demais RR na dissipação das ações em prejuízo da massa insolvente de BB.
Matéria de manifesta relevância para o bom andamento do processo que se densifica no seguinte objeto de litígio - simulação do contrato de cessão das ações da sociedade EMP01..., SA, pertencentes ao insolvente BB e a responsabilização dos RR CC (seus herdeiros citados nos autos), DD, EE e FF de indemnizarem a massa insolvente Autora, pela não apreensão das ações
.
(…)
atento o teor da matéria de prova e essencialidade do depoimento sobre o qual se pretende ouvir a referida testemunha e a sua importância para o esclarecimento dos factos, nomeadamente dos pressupostos da dissipação das 8.000,00 ações distribuídas pelos III a VI Réus, na respetiva proporção melhor identificada na petição, sendo que o seu valor real ascendia ao montante de € 824.875,26 (Oitocentos e vinte e quatro mil, oitocentos e setenta e cinco euros e vinte e seis cêntimos)
.».
Pela decisora de 1ª instância foi determinada a remessa dos autos a este Tribunal para resolução do incidente de levantamento do sigilo profissional da testemunha.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO INCIDENTE
A única questão a decidir no presente incidente consiste em saber se, no caso concreto, existe fundamento legal para o impetrado levantamento do sigilo profissional do revisor oficial de contas SS, de modo a que o mesmo fique obrigado a prestar depoimento como testemunha em sede de audiência final.
***
III- FUNDAMENTOS DE FACTO
A factualidade a atender é a que dimana do antecedente relatório.
***
IV- FUNDAMENTOS DE DIREITO
Como emerge do n.º 1 do art.º 417.º, não só as partes no processo, como terceiros, “têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados”.
Trata-se de um corolário do princípio da cooperação que, no entanto, cessa sempre que se verifique alguma causa legítima que justifique a recusa da colaboração solicitada.
Entre os fundamentos que a lei adjetiva contempla como legitimadores dessa recusa (
rectius,
escusa) conta-se, no que ao caso importa, o facto de a testemunha estar sujeita à observância do sigilo profissional (cf. art.º 417.º, n.º 3, al. c)).
Como tem sido sublinhado
[1]
, o sigilo profissional corresponde à reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício, factos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é pedido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço ou à sua profissão.
Com efeito, o exercício de certas profissões exige ou pressupõe, pela própria natureza das necessidades que tais profissões ou serviços visam satisfazer, que quem a eles tenha de recorrer revele factos que interessam à esfera íntima da sua personalidade, quer física, quer jurídica. Daí que, quando esses serviços ou profissões são de fundamental importância coletiva, porque virtualmente todos os cidadãos carecem de os utilizar, a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu funcionamento ou exercício constitui, como condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis atividades, um interesse público
[2]
.
No que concerne à atividade desenvolvida pelos revisores oficiais de contas, dispõe o n.º 1 do art.º 84.º da Lei n.º 140/2015, de 7 de setembro, que aprovou o Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 99-A/2021, de 31 de dezembro e pela Lei n.º 79/2023, de 20 de dezembro, que “[o]s revisores oficiais de contas não podem prestar a empresas ou outras entidades públicas ou privadas quaisquer informações relativas a factos, documentos ou outras de que tenham tomado conhecimento por motivo de prestação dos seus serviços, exceto quando a lei o imponha ou quando tal seja autorizado por escrito pela entidade a que digam respeito.”
Como deflui do preceito transcrito, o segredo dos revisores oficiais de contas abrange todas as informações relativas a factos, documentos ou outras de que tenham tomado conhecimento por motivo de prestação dos seus serviços, numa relação de causalidade necessária entre a prestação dos seus serviços e o conhecimento dessas informações.
Conforme se escreve no acórdão da Relação de Lisboa de 12/01/2021
[3]
, o interesse tutelado pela proteção do segredo profissional do revisor oficial de contas é, primacialmente, o da «
proteção dos clientes cujos interesses lhes estão confiados, o que resulta muito claramente não apenas da possibilidade legal de autorização de divulgação das informações sujeitas a segredo pela entidade a que respeitam (nº1 in fine do art.84º do Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas), mas também de várias outras regras específicas como o art. 422º nº1, al. c) do CSC, 423º-G nº1, al. d) ou 441º-A do mesmo diploma.
».
Conclui-se, no mencionado aresto, que «
o segredo profissional dos revisores oficiais de contas funciona, em primeira linha como proteção da reserva e dos interesses dos visados (como, por exemplo, mas não só, o segredo de negócio das entidades a quem prestam serviços) mas servindo também a garantia de confiança instrumental ao exercício defunções de auditoria e fiscalização que constituem o núcleo da sua função e que têm reflexos externos à esfera das entidades a que respeita a informação
.».
Assim, sempre que no decurso de um processo civil uma testemunha sujeita ao sigilo profissional de revisor oficial de contas seja chamada a depor sobre factos abrangidos pelo sigilo, haverá que aferir da legitimidade de tal invocação, aplicando-se, sob o ponto de vista procedimental, o regime constante do art.º 135.º do Código de Processo Penal
ex vi
do n.º 4 do art.º 417.º.
Com efeito, resulta do disposto no n.º 4 do art.º 417.º que, uma vez deduzida a escusa com fundamento na violação do sigilo profissional, é aplicável, “com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa”, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
O referido n.º 4 remete para o disposto no art.º 135.º do Código de Processo Penal, no qual se dispõe, sob a epígrafe “segredo profissional”, que:
“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.os 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.”
Como se observa no acórdão da Relação de Lisboa de 12.01.2021, suprarreferido, por força do disposto no n.º 4 do art.º 417.º é, assim, «
aplicável o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, mas já não o subcritério da gravidade do crime e, eventualmente, o da necessidade de proteção de bens jurídicos (na aceção jurídico-penal)
.».
Deste modo, em conformidade com o n.º 2 do art.º 135.º do Código de Processo Penal, invocada a escusa e havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da invocação, compete ao juiz da causa proceder às averiguações necessárias e, caso conclua pela ilegitimidade da escusa, determinar a forma de cooperação requerida, cuja inobservância ficará, então, sujeita às cominações estabelecidas no n.º 2 do art.º 417.º.
Caso o juiz conclua que a escusa invocada se funda em sigilo efetivamente existente, é ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado que incumbe decidir da efetiva prestação da cooperação requerida, com preterição do dever de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante.
No caso vertente
,
perante os elementos que podem ser colhidos nos autos, resulta claro que o depoimento a prestar pela testemunha SS versaria sobre factos que foram trazidos ao seu conhecimento no desenvolvimento da sua atividade profissional de revisor oficial de contas da sociedade ré EMP01..., S.A., o que legitimaria a sua escusa em depor.
Haverá, todavia, que atentar que, em consonância com o que resulta da concatenação do art.º 417.º, n.ºs 3 e 4 com o citado art.º 84.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, o direito (ou dever) de sigilo não é um limite absoluto ao dever de cooperação para a descoberta da verdade
[4]
, porquanto a lei adjetiva prevê a possibilidade do seu “levantamento”.
No entanto, malgrado não seja um direito absoluto, e podendo ceder perante a necessidade de salvaguardar o interesse público da cooperação com a justiça e outros interesses constitucionalmente protegidos, as restrições ao sigilo profissional apenas poderão derivar de lei formal expressa e a sua aplicação em concreto terá de ser objeto de adequado controlo jurisdicional.
Num caso como o presente, revelando-se legítima a escusa da testemunha em depor (posto que, como se assinalou, a materialidade sobre que incidiria o seu depoimento, inequivocamente, está sob a capa do segredo profissional), resta como possibilidade de obter a prestação do seu depoimento seguir o caminho assinalado pelo n.º 3 do art.º 135.º do Código de Processo Penal, desencadeando-se o incidente destinado a verificar se, em concreto, deverá ser preterido o dever de sigilo.
De facto, de acordo com o regime plasmado em tal normativo, se concluir que a escusa é legítima, o juiz pode assumir uma de duas atuações possíveis: ou se conforma com a invocação do segredo, não podendo insistir na prestação do depoimento, ou então, se o considerar imprescindível para o esclarecimento de factos em apreciação no processo, deverá suscitar (oficiosamente ou a requerimento, nos termos do art.º 135.º, n.º 3
in fine
do Código de Processo Penal) o incidente de quebra de segredo junto do tribunal imediatamente superior
[5]
. Assim, afirmando-se a legitimidade da escusa com base na reconhecida existência de segredo profissional, a obtenção de informação a ele submetida já não pode ser ordenada sem a ponderação do valor relativo dos interesses em confronto: por um lado, os interesses protegidos pelo segredo profissional, por outro, os interesses de realização da justiça, sendo que essa decisão deverá resultar do juízo avaliativo a fazer dos interesses conflituantes, nomeadamente face ao “princípio da prevalência do interesse preponderante”.
Como, neste conspecto, salienta LOPES DO REGO
[6]
, esse «
juízo de ponderação deve ter, sempre e necessariamente, em conta a natureza dos interesses em causa: desde logo, trata-se de interesses privados (e não interesses públicos, como sucede necessariamente no âmbito do processo penal) que poderão, por sua vez, revestir natureza pessoal ou patrimonial – e, neste último caso, de valores muito variáveis
», acrescentando ainda que o tribunal superior, ao realizar esse juízo, «
carece de atuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, maxime o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão
».
Por via disso, tal como tem sido enfatizado quer pela doutrina
[7]
quer pela jurisprudência
[8]
, no âmbito do processo civil a quebra do sigilo profissional surge com características marcadamente excecionais, devendo ser aferida com base na estrita necessidade, numa lógica de indispensabilidade e limitar-se ao mínimo imprescindível à concretização dos valores pretendidos alcançar. Isso mesmo resulta do segmento da norma do art.º 135.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, que apela à “imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade”, o que constitui,
de per si
, uma concretização do princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade em sentido amplo.
Ora, como, a este propósito, escreve PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE
[9]
, em anotação ao art.º 135.º do Código de Processo Penal, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade «
significa duas coisas: a descoberta da verdade é irreversivelmente prejudicada se a testemunha não depuser ou, depondo, o depoimento não incidir sobre os factos abrangidos pelo segredo profissional e, portanto, o esclarecimento da verdade não pode ser obtido de outro modo, isto é, não há meios alternativos à quebra do segredo profissional que permitam apurar a verdade
».
De qualquer modo, em última análise, a dispensa do invocado sigilo dependerá sempre de um juízo concreto, fundado na específica natureza da ação e na relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através daquela dispensa, sendo que nesse juízo o princípio da prevalência do interesse preponderante, expressamente previsto no n.º 3 do art.º 135.º do Código de Processo Penal, impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá prevalecer.
No caso vertente, considerando a materialidade que se discute nos autos - cuja centralidade se traduz em apurar «
se o negócio jurídico de cessão das ações da sociedade EMP01..., pertencentes ao insolvente BB é nulo por simulação
» e «
se os RR CC (seus herdeiros citados nos autos), DD, EE e FF preenchem os requisitos da obrigação de indemnizar a massa insolvente Autora do valor correspondente à diminuição do património do insolvente em € 824.875,26
» - cabe-nos perguntar se obrigar a testemunha SS a prestar depoimento sobre os factos atinentes aos «
pressupostos da dissipação das 8.000,00 ações distribuídas pelos III a VI réus
» e, por conseguinte, a revelar informações trazidas ao seu conhecimento no desenvolvimento da sua atividade profissional de revisor oficial de contas da sociedade ré, é a única forma de provar a respetiva alegação.
Pois bem, a resposta só poderá ser negativa.
Compulsada a petição inicial, verifica-se que os factos alegados nos artigos 10.º a 70.º, incluindo, assim, os atinentes ao alegado prejuízo (factos constantes dos artigos 67.º a 70.º), constituem factos que apenas podem ser provados por documento, ou que não são do conhecimento direto da referida testemunha, ou que podem ser provados com recurso a prova indiciária, em complemento da prova documental existente
[10]
.
Ora, conforme se enfatiza no acórdão desta Relação de 17.12.2019
[11]
«
a quebra do segredo profissional só deve ser autorizada ou imposta quando estejam em causa interesses excepcionalmente relevantes e quando a sua revelação surja como ultima ratio. Isto é, o não depoimento vale como regra geral e a obrigação de depor como a excepção
.».
Inexiste, assim, razão objetiva para que, feita a ponderação dos interesses conflituantes (o interesse subjacente ao sigilo profissional do revisor oficial de contas e o interesse na descoberta da verdade e na realização da justiça), à luz dos elementos disponíveis, deva ser quebrado o sigilo profissional que a referida testemunha está legalmente obrigada a respeitar, posto que a recolha do seu depoimento não revela caráter imprescindível para a descoberta da verdade e para a realização da Justiça no caso concreto, dado existirem outros meios que permitem alcançar tal desiderato, nem no próprio requerimento de quebra do sigilo profissional a requerente concretizou quais os factos concretos de que o ROC teve conhecimento pessoal no exercício da sua profissão, o que, por si só, afasta a possibilidade do seu depoimento se mostrar imprescindível à descoberta da verdade material.
*
As custas do incidente processual de levantamento do sigilo profissional são integralmente da responsabilidade da requerente, à luz do princípio da causalidade, atento o indeferimento daquela pretensão (art.º 527.º).
***
V- DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o incidente e indeferir o levantamento do sigilo profissional invocado pelo revisor oficial de contas SS.
Custas pela requerente, fixando-se a respetiva taxa de justiça em 2 UC, nos termos do art.º 7.º, n.º 4 e tabela II do Regulamento das Custas Processuais, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Notifique.
Guimarães, 18 de junho de 2025
Susana Raquel Sousa Pereira – Relatora
Pedro Maurício - 1.º Adjunto
Rosália Cunha - 2.ª Adjunta
[1]
Assim, Fernando Elói,
Da Inviolabilidade das correspondências e do sigilo profissional dos funcionários telégrafo-postais
, O Direito, Ano LXXXVI, 1954, p. 81.
[2]
Cf., Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 110/56, publicado no B.M.J., n.º 67, p. 294, citado no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 49/1991, de 12.03.1992 (relator Ferreira Ramos).
[3]
Processo n.º 18588/16.2T8LSB-DA.L1-1.
[4]
Isso mesmo é enfatizado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2009 (processo n.º 159/07.6TVPRT-D.P1.S1), no qual se escreve que «
o direito de sigilo é um direito condicional que, ao contrário dos direitos absolutos ou intangíveis, que são objeto de uma proteção inderrogável, apenas gozam de uma tutela relativa, porquanto admitem limitações, em caso de estado de necessidade
».
[5]
Registe-se, neste particular, que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2008 uniformizou jurisprudência no sentido de que «
caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado
(…)
decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do nº 3 [do art. 135º do Código de Processo Penal]
».
[6]
Em
Comentários ao Código de Processo Civil
, vol. I, 2ª ed., Almedina, 2005, pp. 457-458.
[7]
Cf., neste sentido, MENEZES CORDEIRO,
Manual de Direito Bancário
, p. 268 e seguinte e PIRES DE SOUSA,
A prova testemunhal
, p. 244, o qual ressalta outrossim que a interpretação do art.º 135.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, aplicado num processo cível, tem de pautar-se necessariamente pelo princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade em sentido amplo, princípio esse que se mostra plasmado no n.º 2 do art.º 18.º da Constituição da República Portuguesa, o que envolve, para os tribunais, a obrigação de interpretar e aplicar os preceitos sobre direitos, liberdades e garantias de modo a conferir-lhes a máxima eficácia possível, dentro do sistema jurídico, e a obter equilíbrio, a concordância prática, se possível a realização simultânea dos direitos, liberdades e garantias, por um lado, e da iniciativa privada, por outro.
[8]
Cf., por todos, os acórdãos desta Relação de 16.10.2008 (processo n.º 1910/08-2) e de 19.12.2008 (processo n.º 2730/08-2) e acórdão da Relação de Lisboa de 25.03.2014 (processo n.º 602/08.7TBBNV-A.L1-7).
[9]
Em
Comentário do Código de Processo Penal à luz da constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 379 e ss..
[10]
Vd., sobre os indícios (da simulação) socialmente típicos para descortinar a intenção das partes ao outorgarem o negócio, LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA,
Prova da Simulação
, Revista Julgar, Número Especial, 2013, pp. 71-88, texto disponível no seguinte endereço:
https://comarcas.tribunais.org.pt/comarcas/juris2/lisboa/pdf/3.pdf
.
Na jurisprudência, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.01.2017 (processo n.º 841/12.6TBMGR.C1.S1), os acórdãos desta Relação de 02.02.2017 (Processo n.º 6420/14.6T8VNF-A.G1) e de 18.12.2017 (processo n.º 396/14.7T8VCT.G1), da Relação do Porto de 23/03/2020 (processo n.º 2620/17.5T8VFR.P1) e de 12.09.2023 (processo n.º 1078/21.9T8AMT.P1), da Relação de Coimbra de 16.01.2018 (processo n.º 1094/14.7TBLRA.C1), da Relação de Lisboa de 29.09.2005 (processo n.º 9549/2004) e de 27.05.2010 (processo n.º 1684/05) e da Relação de Évora de 08.10.2020 (processo n.º 2676/16.8T8ENT.E1).
[11]
Processo n.º 74/18.8T8GMR.G1.
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TRG
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https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/f045d0473c5faa7e80258cc300518278?OpenDocument
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1,746,144,000,000
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REVOGADA
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57/21.0 GACDR.C2
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57/21.0 GACDR.C2
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SANDRA FERREIRA
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I - Para além dos factos essenciais, também os factos circunstanciais ou instrumentais, alegados na contestação, mas que sejam relevantes para a prova, ou para que não se provem, os factos probandos descritos na acusação, devem ser objeto de pronúncia por parte do Tribunal e não o fazendo existe omissão de pronúncia que fere a sentença de nulidade (art. 379º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal.
II – Homologada prévia desistência de queixa apresentada pela ofendida, por factos que foram qualificados pelo Ministério Público como integrantes de um crime de ofensa à integridade física, com o consequente arquivamento dos autos, tal factualidade não pode ser de novo valorada, agora, para efeito de poder ser o arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica.
III – Valorando a sentença recorrida tais factos viola o princípio ne bis in idem o que a torna nula por excesso de pronúncia, nos termos do art.º 379.º n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal.
IV- A tomada de declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável em situações de violência doméstica é a regra (art.º 33.° n.°1 da Lei 112/2009, de 16 de setembro e art. 24º, nº 6 da lei nº 130/2015 de 4 de setembro).
V – Sendo as declarações para memória futura uma antecipação da audiência impõe-se a observância de todas as regras a estas atinentes, incluindo naturalmente a advertência, prevista no art. 134º, nº 1 al. b) do Código de Processo Penal que no caso foi cumprido.
VI - Tendo a testemunha sido advertida nesse momento, não pode mais tarde invalidar essa mesma prova afirmando, quando chamada a julgamento, na qualidade de testemunha arrolada pela defesa, que não pretende prestar declarações.
VII - Essa sua manifestação de vontade poderá impedir a prova de alguns factos a que eventualmente poderia responder, no âmbito da matéria da contestação, mas não terá a virtualidade de destruir retroativamente a prova que foi validamente produzida e adquirida em antecipação do julgamento, com o cumprimento de todas as formalidades previstas na lei.
VIII - O art.º 356.º do CPP não contém qualquer referência ao art.º 24.º do Estatuto da Vítima, legislação especial, razão pela qual não lhe é aplicável o seu n.º 6.
IX - Dado o caráter subsidiário da reparação oficiosa da vítima por via do artigo 82º-A do Código de Processo Penal, tendo sido deduzido pela demandante pedido de indemnização civil, a reparação dos danos eventualmente causados pela conduta do arguido será apreciada e decidida no âmbito do pedido formulado, cessando a aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, cuja apreciação que se torna supervenientemente impossível de conhecer nos termos do disposto no art. 277º, al. e) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 4º do Código de Processo Penal.
(Sumário elaborado pela Relatora)
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[
"VALORAÇÃO DAS DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA",
"OMISSÃO DE PRONÚNCIA/FACTOS ALEGADOS NA CONTESTAÇÃO E FALTA DE EXAME CRÍTICO DA PROVA",
"EXCESSO DE PRONÚNCIA COM VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM",
"EXCESSO DE PRONÚNCIA - PEDIDO DE ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO OFICIOSA NOS TERMOS DO DISPOSTO NO ART. 82º A DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL"
] |
*
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo comum singular
n.º 57/21.0 GACDR.C2
que corre termos pelo Juízo de Competência Genérica de Castro Daire, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, a 13 de junho de 2024, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo [transcrição]:
“VI – DECISÃO
Nestes termos o Tribunal decide:
1. ABSOLVER a arguida AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1 do Código Penal;
2. ABSOLVER a arguida AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180.º, n.º 1 do Código Penal.
3. CONDENAR o arguido BB pela prática, em autoria material de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea a), nº 4 e 5 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
4. SUSPENDER a execução da pena identificada em 1. por 2 (dois) anos e 6 (seis) meses subordinada às seguintes regras de conduta:
a. a proibição de contactos com a vítima, por qualquer meio (incluindo contactos telefónicos, por telemóvel e através da internet), e de se deslocar à residência da mesma;
b. a frequência de entrevistas/sessões com o técnico de reinserção social, orientadas no sentido de o arguido interiorizar o desvalor da sua conduta, com vista a evitar a prática de novos factos, em moldes a definir pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais;
c. a colaboração com os técnicos de reinserção social na execução do plano que vier a ser elaborado, prestando todas as informações solicitadas, respondendo às convocatórias e recebendo as visitas que aqueles entendam necessárias e pertinentes; e
d. pagamento da indemnização arbitrada à vítima em 5. a comprovar nos autos nos primeiros seis meses da suspensão.
5. ARBITRAR a reparação oficiosa à vítima AA que se fixa em €1.000,00 (mil euros) a pagar nos primeiros seis meses do período da suspensão, comprovando tal pagamento nos autos nos primeiros 6 (seis) meses;
6. ABSOLVER a demandada AA do pedido de indemnização civil contra si deduzido.
7. CONDENAR o demandado BB a pagar ao demandante AA a quantia de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, à qual acrescem juros de mora à taxa legal contados desde a condenação até efetivo e integral pagamento.
8. CONDENAR o arguido BB nas custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (duas unidades de conta) - artigos 513.º e 514.º, do Código do Processo Penal e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, com referência ao artigo 8.º, n.º 9 do mesmo diploma.
*
I.1 - Recurso da decisão
Inconformado com tal decisão dela interpôs recurso para este Tribunal da Relação, o arguido
BB
, com os fundamentos expressos nas motivações do qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“I A convicção do Tribunal a quo para dar os factos como provados alicerçou-se essencialmente nas declarações da alegada vítima AA, bem como da filha do ex-casal prestadas em sede de declarações para memória futura.
II A testemunha CC, filha do ex-casal, compareceu em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, na qualidade de testemunha, sendo que, advertida do direito de se recusar a depor como testemunha, nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do art. 134.º, a mesma optou por exercer esse direito
III No caso em apreço, inexistiu qualquer oposição – por parte da Assistente/alegada vítima, do Ministério Público ou do Tribunal - à prestação de declarações por parte da testemunha CC, nomeadamente em virtude de já ter prestado declarações para memória futura, nem tão-pouco foi alegado ou conjeturado que a sua prestação em sede de audiência de discussão e julgamento pusesse em causa a sua saúde física ou psíquica, nem tão-pouco foi arguida qualquer irregularidade ou ilegalidade relativamente à notificação para prestar depoimento e à sua presença na qualidade de testemunha em sede audiência de discussão e julgamento, antes foi admitida sem qualquer oposição. nem a testemunha referiu que mantinha as declarações já prestadas.
IV Simplesmente referiu a testemunha que, tendo o direito de não prestar depoimento (nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 134.º do C.P.P., naturalmente), não pretende prestar declarações, e quer remeter-se ao silêncio.
V Ao Tribunal a quo estava vedada a apreciação das declarações para memória futura prestadas pela testemunha CC, pelo que, ao ter apreciado e considerado na Sentença proferida as declarações para memória futura da testemunha CC, estamos perante a nulidade de sentença, nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do C.P.P..
VI Nessa senda, o Tribunal a quo violou os artigos 134.º, n.º 1, al. a), 271.º, n.º 8, e 356.º, n.º 6, todos do C.P.P., e art. 33.º, n.º 7, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, pois que numa correta aplicação do direito, nunca poderiam as declarações para memória futura prestadas pela testemunha CC ser consideradas como meio de prova na Sentença proferida pelo Tribunal a quo.
VII Estamos ainda perante erro notório na apreciação da prova, porquanto do próprio texto da decisão recorrida ressalta, com patente evidência, que o Tribunal a quo valorizou prova contra critérios legalmente fixados, designadamente por ter assentado convicção quanto à quase totalidade dos factos julgados provados na valoração de prova proibida.
VIII Pelo que deve ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e substituída por outra que não considere as declarações para memória futura prestadas pela testemunha CC, o que se Requer a V. Exas. seja determinado, o que, em ´última instância, determina seja o Arguido BB absolvido dos presentes autos, quer em matéria penal, quer em matéria civil.
IX Os factos vertidos nos referidos pontos 42., 43. e 44 dos factos dados como provados foram objeto de investigação no processo n.º 127/16...., o qual foi arquivado por despacho datado de 11/07/2017, na sequência da homologação da desistência de queixa por parte da Assistente/alegada ofendida AA, e consequente extinção do procedimento criminal.
X Não obstante tais factos serem falsos, certo é que os mesmos já foram objeto de procedimento criminal autónomo, na sequência de cuja apreciação pelo titular do inquérito foi declarado extinto em face da desistência de queixa efetuada pela Arguida AA e respetiva qualificação dos factos, sendo que tal despacho não objeto de impugnação, estabilizando-se no ordenamento jurídico.
XI Não pode, pois, agora, vir o Tribunal “ressuscitar” os factos que foram objeto de arquivamento, na sequência da homologação da desistência de queixa, à luz do enquadramento factual, anulando toda e qualquer certeza e segurança no ordenamento jurídico, e violando de forma flagrante o caso julgado e a garantia constituição ne bis in idem, ínsito no art. 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.
XII A proibição do ne bis in idem corresponde a uma manifestação substantiva daquele princípio do caso julgado, enquanto garantia básica de que ninguém pode ser submetido a um processo duas vezes pelo mesmo facto, seja de forma simultânea ou sucessiva.
XIII E não podemos deixar de frisar que tais factos ocorreram mais de 4 anos antes dos primeiros factos que o Tribunal a quo deu como provados, pelo que, com o devido respeito, nunca poderiam os mesmos consubstanciar uma conduta continuada dentro do hiato temporal em causa nos presentes autos, ou seja, um evento ocorrido fora do “pedaço de vida” em análise nos presentes autos, existindo um vazio claro entre tal período e o dia 24/12/2020, pelo que nunca poderia o mesmo integrar a prática do “mesmo crime”.
XIV Ao ter dado como provado os factos vertidos em 42., 43. e 44., o Tribunal a quo violou, além do mais, o n.º 5 do art. 29.º da CRP, o art. 143.º, n.º 1 e 181.º, n.º 1, 116.º, n.º 1 e n.º 2, e 152.º, todos do C.P., e arts. 48.º, 49.º e 51.º e 277.º, todos do C.P.P., sendo a Sentença proferida pelo Tribunal a quo nula, nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do C.P.P..
XV Numa correta aplicação do direito, e em cumprimento do principio ne bis in idem nunca deveriam tais factos ser dados como provados, antes sim deverão tais factos ser eliminados da douta sentença, o que se Requer a V. Exas. Venerandos Desembargadores seja determinado.
XVI No âmbito de um julgamento pela prática de um crime de violência doméstica, é obrigatório o arbitramento de uma compensação à respetiva vítima sem que seja necessário que estejam verificados os pressupostos previstos no art. 82.º-A.
XVII Não obstante este arbitramento de compensação não deixa de ter carácter subsidiário em relação ao pedido de indemnização civil formulado pela lesada, conforme decorre, do seu n.º 1, sendo, ilegal o arbitramento cumulativo de quantias fixadas no âmbito de um e outro instituto
XVIII Considerando que pela Assistente/alegada Vítima foi deduzido PIC (e que, inclusive, foi o Arguido aqui Recorrente condenado pelo Tribunal a quo, na qualidade de demandado, “a pagar ao demandante AA a quantia de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, à qual acrescem juros de mora à taxa legal contados desde a condenação até efetivo e integral pagamento”, claro está que não podia o Tribunal a quo arbitrar a reparação oficiosa, cumulando com o valor do PIC.
XIX Ao arbitrar a reparação oficiosa nos termos em que fez, na sequência de PIC deduzido pela Assistente, estamos perante a nulidade de Sentença, nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do C.P.P., e o Tribunal a quo violou o artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, os n.ºs 1 a 3 do art. 82.º-A do C.P.P., bem como os arts. 72.º e 77 do C.P.P..
XX Pois que, numa correta aplicação do direito e dos citados normativos, ao ter sido formulado o PIC pela demandante, e nomeadamente ao ter proferido decisão (condenatória) quanto ao mesmo, estava vedado ao Tribunal a quo ter arbitrado uma qualquer quantia a título de reparação oficiosa.
XXI Pelo que, à luz da legislação aplicável, deverá ser tal reparação oficiosa arbitrada à alegada vítima eliminada da Sentença, ou ser o Demandando BB absolvido da mesma, o que se Requer a V. Ex.ª seja determinado.
XXII Não consta da douta Sentença a panóplia de contradições e mentiras detetadas no depoimento da Arguida AA, que relevam de forma essencial para apreciar a sua credibilidade, sob pena de “acreditar em todas as mentiras que não forem apanhadas”, apenas e só porque estaremos perante uma prova diabólica, uma contra-prova impossível e, dessa forma, ilegal.
XXIII E, sendo um depoimento interessado e parcial, o mesmo apenas e só deverá ser considerado caso se verifique ser um depoimento isento, verdadeiro e, dessa forma, merecedor de credibilidade.
XXIV As contradições e mentiras detetadas no depoimento da Arguida AA, atenta a matéria em causa nos presentes autos e o que é factualmente possível “apanhar”, consistem no facto de a mesma alegar nunca injuriar o Arguido BB, ou discutir fora de casa, exceto em resposta/retaliação, bem como no facto de não existir qualquer amante em momento prévio aos factos ocorridos no dia 14/11/2022, e o facto de ter medo deste.
XXV Afigura-se-nos assim, de forma clara, notória e inequívoca, em face dos depoimentos prestados pelo Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha FF, e pela testemunha GG, acrescem ainda as mensagens de texto inc. como Doc.3 do requerimento apresentado por BB em 19/05/2021, no proc. 447/21.... (Apenso A dos presentes autos), inc. a fl.s 9 e 11 do Apenso A, bem como print das mensagens inc. a fls 250 a 468 e 590 a 684 dos autos, que a Arguida AA mentiu, sendo certo que injuriou o Arguido BB nos termos descritos, bem como que não tinha receio do mesmo, adotando sim inclusive postura agressiva para com este.
XXVI Afigura-se-nos assim, de forma clara, notória e inequívoca, atentos os depoimentos prestados pelos Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha HH e pela testemunha II que a testemunha II, com quem assumiu publicamente a relação em dezembro de 2022 e com quem começou a viver em união de facto em Janeiro de 2023.
XXVII Sendo um atentado às regras de experiência comum que a Arguida AA viva em união de facto, na companhia da sua filha menor, com um homem com quem inicia uma relação um mês antes, e após terminar uma relação de, pelo menos, vinte e dois anos….
XXVIII É claro, notório e inequívoco, atento o relatório inc. a fls. 473 e 474 dos presentes autos, bem como esclarecimentos prestados pela Perita responsável pela sua elaboração, Dr.ª JJ, e depoimento da testemunha KK, que a testemunha II mentiu, não merecendo o seu depoimento qualquer credibilidade
XXIX É claro, notório e inequívoco, atento o relatório inc. a fls. 473 e 474 dos presentes autos, bem como esclarecimentos prestados pela Perita responsável pela sua elaboração, Dr.ª JJ, e pelo depoimento da testemunha KK, bem como pelo Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha HH, pela testemunha II, bem como pela Arguida AA, que a testemunha LL mentiu, não merecendo o seu depoimento qualquer credibilidade.
XXX Atento o relatório inc. a fls. 473 e 474 dos autos, depoimentos prestados pelos Arguidos AA e BB, pelas testemunhas DD, EE, KK e MM, bem como esclarecimentos prestados pela Dr.ª JJ, se conclui facilmente que o problema de saúde de que a Arguida AA padece e o respetivo medicamento que toma – varfine – determina que a mesma fique muito facilmente com lesões visíveis, sem que seja preciso muita força ou grande impacto, e que as mesmas demoram mais tempo a sarar, em relação a uma pessoa que não tome tal medicamento.
XXXI Quanto ao alegado episodio ocorrido no dia 24/12/2020, apenas os Arguidos se pronunciaram quanto ao alegado episódio ocorrido neste dia, sendo que, por um lado, a versão apresentada pela Arguida AA não merece qualquer credibilidade, nos termos já devidamente exposto em supra A.6.1) e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, e sob pena de se acreditar nas mentiras nas partes das versões apresentadas que não permitem contraprova, para além das declarações do Arguido.
XXXII À luz da prova produzida nos presentes autos, nomeadamente a falta de credibilidade a atribuir ao depoimento prestado pela Arguida AA, tendo em consideração os depoimentos prestados pelo Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha FF, pela testemunha HH, pela Testemunha II e pela testemunha GG, mensagens de texto inc. como Doc.3 do requerimento apresentado por BB em 19/05/2021, no proc. 447/21.... (Apenso A dos presentes autos), inc. a fl.s 9 e 11 do Apenso A, bem como print das mensagens inc. a fls 250 a 468 e 590 a 684 dos autos, bem como a versão apresentada pelo Arguido BB, claro está que inexiste matéria de facto que permita dar como provado os factos dados como provados em 5, 6 e 7 dos factos dados como provados.
XXXIII À luz de uma análise criteriosa e objetiva da prova produzida, nomeadamente a acima mencionada, e ainda considerando o princípio in dubio pro reo, deveria o Tribunal ter dado como não provado os factos dados como provados em 5, 6 e 7.
XXXIV Ao não o ter feito, violou o Tribunal a quo o princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência, ínsito no n.º 2 do art. 32.º da C.R.P., pelo que deve ser revogada a Sentença a quo e substituída por outra que julgue não provados os factos dados como provados em n.ºs 5, 6 e 7, o que se Requer a V. Exas. seja determinado, o que, em última instância, determina seja o Arguido BB absolvido dos presentes autos, quer em matéria penal, quer em matéria civil.
XXXV Quanto ao alegado episódio ocorrido no dia 09/05/2021, A versão apresentada pela Arguida AA não merece qualquer credibilidade, nos termos já devidamente exposto em supra A.6.1) e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, e sob pena de se acreditar nas mentiras nas partes das versões apresentadas que não permitem contraprova, para além das declarações do Arguido, nem tão pouco tais factos foram sequer narrados pela Arguida AA, ou por qualquer outra, antes pelo contrário, desde logo quanto à matéria descrita nos pontos 11. e 17.dos factos dados como provados.
XXXVI À luz da prova produzida nos presentes autos, nomeadamente a falta de credibilidade a atribuir ao depoimento prestado pela Arguida AA, tendo em consideração os depoimentos prestados pelo Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha FF, pela testemunha HH, pela Testemunha II e pela testemunha GG, mensagens de texto inc. como Doc.3 do requerimento apresentado por BB em 19/05/2021, no proc. 447/21.... (Apenso A dos presentes autos), inc. a fl.s 9 e 11 do Apenso A, bem como print das mensagens inc. a fls 250 a 468 e 590 a 684 dos autos, bem como a versão apresentada pelo Arguido BB, claro está que inexiste matéria de facto que permita dar como provado os factos dados como provados em 8 a 17 dos factos dados como provados.
XXXVII À luz de uma análise criteriosa e objetiva da prova produzida, nomeadamente a acima mencionada, e ainda considerando o princípio in dubio pro reo, deveria o Tribunal ter dado como não provado os factos dados como provados de 8 a 17.
XXXVIII Ao não o ter feito, violou o Tribunal a quo o princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência, ínsito no n.º 2 do art. 32.º da C.R.P., pelo que deve ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e substituída por outra que julgue não provados os factos dados como provados em n.ºs 8 a 17, o que se Requer a V. Exas. seja determinado, o que, em última instância, determina seja o Arguido BB absolvido dos presentes autos, quer em matéria penal, quer em matéria civil.
XXXIX Quanto ao alegado episódio ocorrido no dia 14/11/2022, apenas os Arguidos se pronunciaram quanto ao alegado episódio ocorrido neste dia, sendo que, por um lado, a versão apresentada pela Arguida AA não merece qualquer credibilidade, nos termos já devidamente exposto em supra A.6.1) e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, e sob pena de se acreditar nas mentiras nas partes das versões apresentadas que não permitem contraprova, para além das declarações do Arguido.
XL À luz da prova produzida nos presentes autos, nomeadamente a falta de credibilidade a atribuir ao depoimento prestado pela Arguida AA, tendo em consideração os depoimentos prestados pelo Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha FF, pela testemunha HH, pela Testemunha II e pela testemunha GG, mensagens de texto inc. como Doc.3 do requerimento apresentado por BB em 19/05/2021, no proc. 447/21.... (Apenso A dos presentes autos), inc. a fl.s 9 e 11 do Apenso A, bem como print das mensagens inc. a fls 250 a 468 e 590 a 684 dos autos, bem como a versão apresentada pelo Arguido BB, claro está que inexiste matéria de facto dados como provados.
XLI Pois que, à luz de uma análise criteriosa e objetiva da prova produzida, nomeadamente a acima mencionada, e ainda considerando o princípio in dubio pro reo, deveria o Tribunal ter dado como não provado os factos dados como provados de 18 a 36.
XLII Ao não o ter feito, violou o Tribunal a quo o princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência, ínsito no n.º 2 do art. 32.º da C.R.P..
XLIII A esta matéria acresce ainda o facto de que, tal como devidamente exposto quanto ao problema de saúde de que a Arguida AA padece e da medicação que toma, mais concretamente em A.6.4) do presente recurso, temos que é completamente contrário às regras da experiência comum, contrariando com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, que se os factos tivessem ocorridos nos termos descritos na douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, a Arguida AA apenas e só tivesse as lesões que apresentou e que se encontram comprovadas.
XLIV Sendo que a própria perita explicou que as mazelas que tinha eram compatíveis com uma tentativa de imobilização, a qual foi devidamente explicada pelo Arguido BB.
XLV Não se compreende como, bom base nas lesões apresentadas e problema de saúde da Arguida AA, pôde o Tribunal a quo ter dado como provado, única e exclusivamente no depoimento da Arguida AA, que, por ex., “Ato contínuo, BB colocou-se sobre AA, e fazendo uso da sua força, apertou-lhe o pescoço com as duas mãos (…)” e respetiva sequência (facto dado como provado em 23), que desferiu diversos empurrões, fazendo com que a Arguida AA ficasse sentada nos mesmos (factos dados como provados em 24. e 25.), que “BB aproximou-se do sofá onde AA estava sentada, levantou-a em peso e, recorrendo ao uso da força, virou-o ao contrário, fazendo com que esta última caísse no solo e o aludido sofá tombasse sobre corpo deste (facto dado como provado em 26.).
XLVI Ao não se ter pronunciado e dado como provado que a Arguida AA tomava a medicação com Varfine, facto que determina que a mesma fique muito facilmente com lesões visíveis, sem que seja preciso muita força ou grande impacto, e que as mesmas demoram mais tempo a sarar, em relação a uma pessoa que não tome tal medicamento, por ser essencial à apreciação dos factos imputados ao Arguido BB, a Sentença proferida pelo Tribunal a quo é nula por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art.º 379.º n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, devendo ser tais factos aditados à matéria de facto dada como provada, o que se Requer a V. Exas...
XLVII Pelo que, ao ter dado como provados tais factos, estamos ainda perante um erro notório na apreciação da prova, nos termos do da al. c) do n.º 2 do art. 410.º do C.P.P., pelo que deve ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e substituída por outra que julgue não provados os factos dados como provados em n.ºs 18 a 36, o que se Requer a V. Exas. seja determinado, o que, em última instância, determina seja o Arguido BB absolvido dos presentes autos, quer em matéria penal, quer em matéria civil.
XLVIII Quanto ao alegado episódio ocorrido em julho de 2016, apenas a Arguida AA se pronunciou quanto a tais factos, e de forma completamente desprovida de assertividade ou credibilidade.
XLIX Além de que a versão apresentada pela Arguida AA não merece qualquer credibilidade, nos termos já devidamente exposto em supra A.6.1) e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, e sob pena de se acreditar nas mentiras nas partes das versões apresentadas que não permitem contraprova, para além das declarações do Arguido
L À luz da prova produzida nos presentes autos, nomeadamente a falta de credibilidade a atribuir ao depoimento prestado pela Arguida AA, tendo em consideração os depoimentos prestados pelo Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha FF, pela testemunha HH, pela Testemunha II e pela testemunha GG, mensagens de texto inc. como Doc.3 do requerimento apresentado por BB em 19/05/2021, no proc. 447/21.... (Apenso A dos presentes autos), inc. a fl.s 9 e 11 do Apenso A, bem como print das mensagens inc. a fls 250 a 468 e 590 a 684 dos autos, bem como a versão apresentada pelo Arguido BB, claro está que inexiste matéria de facto que permita dar como provado os factos dados como provados em 42. a 44. dos factos dados como provados.
LI Pois que, à luz de uma análise criteriosa e objetiva da prova produzida, nomeadamente a acima mencionada, e ainda considerando o princípio in dubio pro reo, deveria o Tribunal ter dado como não provado os factos dados como provados de 42. a 44...
LII Ao não o ter feito, violou o Tribunal a quo o princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência, ínsito no n.º 2 do art. 32.º da C.R.P..
LIII Sendo que, quanto a este último episódio inexiste qualquer menção ao respetivo elemento subjetivo que permita que tais factos tenham qualquer relevância penal (conhecimento e vontade da realização do tipo objetivo de ilícito), pelo que, a ter considerado tais factos na condenação, para além da nulidade e ilegalidade descrita em supra A.4), estamos ainda perante o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto.
LIV Pelo que deve ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e substituída por outra que julgue não provados os factos dados como provados em n.ºs 42 a 44, o que se Requer a V. Exas. seja determinado, o que, em última instância, determina seja o Arguido BB absolvido dos presentes autos, quer em matéria penal, quer em matéria civil.
LV Quanto ao facto dado como provado em 46, versão apresentada pela Arguida AA não merece qualquer credibilidade, nos termos já devidamente exposto em supra A.6.1) e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, e sob pena de se acreditar nas mentiras nas partes das versões apresentadas que não permitem contraprova, para além das declarações do Arguido.
LVI Nem tão pouco tais factos foram sequer narrados pela Arguida AA, ou por qualquer outra, antes pelo contrário, desde logo quanto à matéria descrita no ponto 46 dos factos dados como provados.
LVII À luz da prova produzida nos presentes autos, nomeadamente a falta de credibilidade a atribuir ao depoimento prestado pela Arguida AA, tendo em consideração os depoimentos prestados pelo Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha FF, pela testemunha HH, pela Testemunha II e pela testemunha GG, mensagens de texto inc. como Doc.3 do requerimento apresentado por BB em Apenso A, bem como print das mensagens inc. a fls 250 a 468 e 590 a 684 dos autos, bem como a versão apresentada pelo Arguido BB, claro está que inexiste matéria de facto que permita dar como provado os factos dados como provados em 46 dos factos dados como provados.
LVIII Além de que não é concretizado qualquer indicação da circunstância temporal dos factos, ainda que genérica ou abstratas, pois que inexistem factos dados como provados que permitam contextualizar o alegado comportamento.
LIX Pois que, à luz de uma análise criteriosa e objetiva da prova produzida, nomeadamente a acima mencionada, e ainda considerando o princípio in dubio pro reo, deveria o Tribunal ter dado como não provado os factos dados como provados em 46..
LX Ao não o ter feito, violou o Tribunal a quo o princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência, ínsito no n.º 2 do art. 32.º da C.R.P..
LXI Pelo que deve ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e substituída por outra que julgue não provados os factos dados como provados em n.º 46, o que se Requer a V. Exas. seja determinado, o que, em última instância, determina seja o Arguido BB absolvido dos presentes autos, quer em matéria penal, quer em matéria civil.
LXII O Tribunal a quo fez uma errada subsunção da factualidade provada no crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea a), nº 4 e 5 do Código Penal, para além de que a medida da pena concretamente aplicada pela prática desse crime, ultrapassa a media da culpa e as exigências de prevenção.
LXIII Ficou também comprovado, em A.6.1), nomeadamente através dos depoimentos prestados pelo Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha FF, e pela testemunha GG, acrescem ainda as mensagens de texto inc. como Doc.3 do requerimento apresentado por BB em 19/05/2021, no proc. 447/21.... (Apenso A dos presentes autos), inc. a fl.s 9 e 11 do Apenso A, bem como print das mensagens inc. a fls 250 a 468 e 590 a 684 dos autos, que a Arguida AA não tinha medo ou receio do Arguido BB, nem tão pouco este atuava como forma de domínio ou subjugação da alegada vítima, reconduzindo-a uma vivência de medo, de tensão e de subjugação, ou sequer que a alegada vítima era uma pessoa particularmente indefesa, por se encontrar numa situação de particular vulnerabilidade e de especial incapacidade de reação relativamente às investidas do agente.
LXIV No caso em apreço, claro está que não estamos perante uma pessoa particularmente indefesa, que se encontra numa particular vulnerabilidade e de especial incapacidade de reação relativamente às investidas do agente, ANTES PELO CONTRÁRIO!.
LXV De maneira a que, ao ter subsumido os factos imputados e dados como provados ao Arguido BB na prática de um crime de violência doméstica, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 152.º do C.P. e o disposto no n.º 1 do art. 143.º do C.P..
LXVI Pois que, numa correta aplicação do direito, deveria o Tribunal a quo ter subsumido os factos dados como provados à prática de, no máximo, e que apenas se concede por dever de patrocínio, um crime de ofensa à integridade física simples, p.p pelo n.º 1 do art. 143.º e, bem assim, considerado a desistência de queixa efetuada pela Arguida AA e homologado a mesma, com as devidas e legais consequências daí advindas, nos termos e em conformidade com o disposto nos arts. 116.º n.º 2, 143.º n.º 2, ambos do C.P., e n.º 2 do art. 51.º do C.P.P..
LXVII Desta forma, estamos perante insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, porquanto a matéria de facto dada como provada não é possível atingir a decisão de direito a que se chegou, nos termos do disposto na al. a) do n.º 2 do art. 410.º do C.P.P..
LXVIII Estamos ainda perante erro notório na apreciação da prova, porquanto, tendo o Tribunal dado como provado os pontos dados como provados de 48 a 52, não se compreende como pode assumir estarmos perante uma pessoa particularmente indefesa, que se encontra numa particular vulnerabilidade e de especial incapacidade de reação relativamente às investidas do agente, ou seja, que estamos perante uma vítima de violência doméstica.
LXIX Bem como estamos perante insuficiência para a decisão de matéria de facto, pois que os factos dados como provados na douta sentença proferida pelo Tribunal a quo id. nos pontos 5 a 36, 38 a 44. e 46, não são, por si só, passíveis de consubstanciar a prática de um crime de violência doméstica, pois que a alegada aprática de tais facto, nos termos descritos na Sentença – três episódios sem grande gravidade, ocorridos ao longo de cerca de 4 anos - não atinge a gravidade exigida pela noção de maus tratos físicos ou psíquicos, prevista na incriminação pelo crime de violência doméstica.
LXX Sendo que, numa correta apreciação da prova, e atenta a matéria dada como provada, sempre deveria o Tribunal quo ter subsumido os factos dados como provados à prática de, no máximo, e que apenas se concede por dever de patrocínio, um crime de ofensa à integridade física simples, p.p pelo n.º 1 do art. 143.º e, bem assim, considerado a desistência de queixa efetuada pela Arguida AA e homologado a mesma, com as devidas e legais consequências daí advindas.
LXXI Ao não ter feito, o Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 152.º e 143.º, ambos do Código Penal, bem como nas als. a) e c) do n.º 2 do art. 410.º do C.P.P..
LXXII Pelo que, subsidiariamente, deve ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e substituída por outra que absolva o Arguido BB dos presentes autos, pela prática de um crime de violência doméstica, p.p. pelo art. 152.º n.º 1 al. a), n.º 2 al. a), n.ºs 4 e 6, do C.P. bem como quanto ao PIC deduzido pela Arguida AA, o que se Requer a V. Exas..
LXXIII A considerar que o Arguido deve ser condenado pela prática do crime, o que apenas se admite em termos académicos e por dever de patrocínio, sempre se dirá que, de acordo com os elementos constantes dos autos, e os factos dados como provados, que a pena aplicada se revela pouco criteriosa e desequilibradamente doseada.
LXXIV De facto, conforme consta dos factos provados na douta Sentença, todos os factos que determinaram a condenação reconduzem-se a três episódios sem grande gravidade, ocorridos ao longo de cerca de 4 anos.
LXXV Analisada a sentença verificamos que a única agressão imputada e dada como provada terá ocorrido no dia 14/11/2022, i.e., último dia em que Arguidos residiram e estiveram juntos.
LXXVI O que consta da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo é tão só três discussões, em que terá havido, alegadamente, agressões no último dia em que se manteve a relação entre ambos, e da qual terá determinado 5 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho e sem afetação da capacidade de trabalho profissional.
LXXVII Atento o disposto no art. 40.º e 71.º do Código Penal, tendo sido aplicado pelo Tribunal a quo ao Arguido uma pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensos na execução subordinado às regras de conduta descritas em 4, na mera hipótese académica que se mantenha a condenação ao Arguido BB, nunca deveria ter sido aplicada pena de prisão superior a 2 anos, por ser o limite da sua culpa e das necessidades de prevenção especial, o que se Requer a V. Ex.ª seja, subsidiariamente, aplicado,
LXXVIII Pelo que o Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 40.º 1 71.º, ambos do C.P., pois que nunca correta aplicação das referidas normas deve ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e substituída por outra que condene o Arguido BB em pena não superior a 2 anos, o que se Requer a V. Exas.
LXXIX Não obstante a irrecorribilidade quanto à indemnização civil, nos termos e em conformidade com o disposto no n.º 2 do art. 400.º in fine, tendo em consideração os critérios de determinação do quantum indemnizatório, previstos nos arts. 483.º n.º 1, 484.º, 496.º n.º 1 e 494.º, todos do C.C., sempre deverá a quantia a que o Arguido BB foi condenado a pagar na sequência do PIC deduzido pela Arguida AA ser reduzida ou o mesmo absolvido, em proporção da alteração e de acordo com a alteração da matéria de facto que vier a ocorrer na sequência do presente recurso, o que se Requer a V. Ex.ª
LXXX O Tribunal a quo violou as seguintes normas: Os arts. 48.º, 49.º, 51.º, 72.º, 77.º, 82.º-A, 134.º, n.º 1 al. a), 271.º, n.º 8, , 277.º, 356.º n.º 6, 379.º, n.º 1 al. c) e 410.º n.º 2 als. a) e c), todos do Código de Processo Penal; Os artigos 40.º, 71.º, 116.º, n.º 1 e 2.º, art. 143.º n.º 1, art. 152.º, n.ºs 1 e 2, e art. 181.º n.º 1, todos do Código Penal; Os art. 29.º, n.º 5, e art. 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa; O art. 33.º, n.º 7, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro; O artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.
LXXXI Quanto ao crime de injúrias, o Tribunal decidiu pela absolvição da Arguida AA pela prática, além do mais, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria, p.p. pelo art. 181.º n.º 1 do Código Penal, bem como da respetiva indemnização civil
LXXXII O Tribunal a quo tem na sua posse as mensagens trocadas entre Arguidos nos referidos períodos de tempo, na sequência da apreensão levada a cabo ao aparelho do Arguido.
LXXXIII Dos factos dados como provados o Tribunal a quo não deu como provado qualquer injúria proferida pelo Arguido BB à Arguida AA em data anterior ao dia 14/11/2022.
LXXXIV Não se compreende, pois, como é que as expressões dadas como provadas em 48 a 52 podem ter sido “num contexto de conflitualidade entre o casal”, ou que terão sido proferidas “num clima de conflitualidade permanente e, não conseguindo o Tribunal apurar quem iniciou”.
LXXXV O Tribunal apenas não pôde tomar conhecimento de qualquer conduta ou comportamento adotado pelo Arguido BB que pudesse despoletar ou “desculpabilizar”, ou sequer minorar a ilicitude de tais condutas, apenas e só porque não existe tal conduta ou comportamento (!).
LXXXVI Dos factos dados como provados não se compreende como é que pode o Tribunal a quo concluir que, atentas as injurias proferidas pela Arguida AA descritas nos pontos 48. a 52. dos factos dados como provados – i.e., proferidas entre os anos de 2019 e 2022 - e inexistência de qualquer ação adotada por parte do Arguido BB para despoletar, de maneira a que surgissem num âmbito de eventual reciprocidade, e bem assim de qualquer injúria proferida pelo Arguido BB em data anterior, inexista o elemento subjetivo.
LXXXVII De acordo os factos dados como provados, entre os dias 16/11/2022 e 17/11/2022 o Arguido BB terá acusado a alegada vítima de ter amantes, de o trair, de ser uma criança, viver romances da escola com 15 anos e de ter um cérebro de canalha, de ser uma “sem vergonha porca”, e escreveu expressões que insinuavam que AA não foi agredida por si.
LXXXVIII Na situação descrita e comprovada nos presentes autos, em que é de conhecimento, inclusive de terceiros, que a alegada vítima mantém uma relação extraconjugal desde pelo menos outubro de 2022, referido inclusive pela alegada vítima a terceiros, e da qual o Assistente BB tem fundada convicção, não se nos afigura que, no contexto em que as referidas mensagens de texto são enviadas, e no hiato temporal em que o são, consubstanciam ou integram qualquer crime de violência doméstica, isolada ou conjuntamente, pois que o Arguido tem fundamentos sérios para, em boa fé, reputar tais imputações como verdadeiras.
LXXXIX Sendo que, ainda que o faça de forma deselegante e de mau gosto no calor do momento, e à luz da ocorrência dos factos, considerando o seu conteúdo e o hiato temporal em que ocorreram, não se releva com a gravidade e carácter suficientemente ofensivo para ser qualificado como crime, nem tão-pouco para ser enquadrado ou fundamentar a prática de um crime de violência doméstica.
XC Aliás, de frisar que os factos aqui em causa bem demonstram a existência de uma postura agressiva e violenta por parte da Arguida AA que o Tribunal a quo ignorou e desconsiderou de forma inexplicável, e que se encontram devidamente concretizados e contextualizados em supra A.6.1), que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, por uma questão de economia processual.
XCI Considerado tais factos dados como provados, numa correta apreciação dos factos, de forma criteriosa e objetiva, deveria o Tribunal a quo ter condenado a Arguida AA pela prática de um crime de injúrias, p.p. pelo n.º 1 do art. 181.º do Código Penal, bem como no respetivo pedido de indemnização civil deduzido pelo Assistente/Demandante BB.
XCII Ao não o ter feito, nos termos acima descritos, estamos perante a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, bem como erro notório na apreciação da prova, e, nessa senda, violou a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo o disposto nos arts.181.º n.º 1 do C.P. e als. a) e c) do n.º 2 do art. 410.º do C.P.P..
XCIII De maneira a que deverá ser a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo revogada e, em consequência, ser a Arguida AA condenada pela prática de um crime de injúrias, p.p. pelo n.º 1 do art. 181.º do Código Penal, bem como no respetivo pedido de indemnização civil deduzido pelo Assistente/Demandante BB, o que se Requer a V. Exas
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADA A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA E, EM CONSEQUÊNCIA,
O RECORRENTE/ARGUIDO BB SER ABSOLVIDO PELA PRÁTICA DE UMCRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DE QUE FOI CONDENADO
Ou, caso assim se não entenda,
SER A PENA DE DOIS ANOS E SEIS MESES DE PRISÃO REDUZIDA PARA PENA NÃO SUPERIOR A DOIS ANOS, SUSPENSA NA SUA EXECUÇÃO
Devendo, em qualquer das situações, o pedido de indemnização ser reduzido ou excluído em conformidade com a alteração da matéria de facto e do acórdão que vier a se proferido,
Bem como,
SER A RECORRIDA/ARGUIDA AA CONDENADA PELA PRÁTICA DE UM CRIME DE INJÚRIA, P.P. PELO ART. 181.º N.º 1, DO CÓDIGO PENAL, BEM COMO NO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL DEDUZIDO PELO RECORRENTE BB
FAZENDO DESTA FORMA V. EXAS. A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!»
*
O recurso foi admitido nos termos do despacho proferido a 28.11.2024.
*
I.2 - Respostas ao recurso:
Efetuada a legal notificação:
I.2.1-
O Ministério Público respondeu ao recurso interposto apresentando as seguintes conclusões
[transcrição]
:
“«I. Por sentença proferida no dia 14-10-2024, foi o arguido/Recorrente condenado como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea a) e n.ºs 4 e 5 do Código Penal, na pena de 2 (anos) e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada às regras de conduta, subordinada às seguintes regras de conduta:
a) proibição de contactos com a vítima, por qualquer meio (incluindo contactos telefónicos, por telemóvel e através da internet), e de se deslocar à residência da mesma;
b) a frequência de entrevistas/sessões com o técnico de reinserção social, orientadas no sentido de o arguido interiorizar o desvalor da sua conduta, com vista a evitar a prática de novos factos, em moldes a definir pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais; c) a colaboração com os técnicos de reinserção social na execução do plano que vier a ser elaborado, prestando todas as informações solicitadas, respondendo às convocatórias e recebendo as visitas que aqueles entendam necessárias e pertinentes; e d) pagamento da indemnização arbitrada à vítima, AA, no valor de € 1.000,00 (mil euros) a comprovar nos autos nos primeiros seis meses da suspensão.
II. Mais foi condenado, na qualidade de demandado, a pagar à demandante AA a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, à qual acrescem juros de mora à taxa legal contados desde a condenação até efetivo e integral pagamento;
III. A arguida AA foi absolvida da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, e de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1 ambos do Código Penal;
IV. Em sede de audiência de julgamento a testemunha CC, filha do ex-casal, recusou-se validamente a depor, usando da faculdade concedida pelo artigo 134.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, pese embora, em sede de inquérito, tenha prestado declarações para memória futura;
V. No entender do Recorrente, tais declarações para memória futura não poderiam ter sido valoradas pelo Tribunal a quo atenta a recusa da testemunha em depor em sede de audiência de julgamento;
VI. As declarações para memória futura, previstas no artigo 271.º do Código de Processo Penal, constituem uma das provas basilares sobretudo quando se está perante crimes de violência doméstica, uma vez que as mesmas têm como escopo primordial evitar a presença da vítima em audiência de julgamento e a evocação por esta de factos passados e vivenciados pela mesma que lhe trazem amarguras e más recordações;
VII. Ademais, a Diretiva da PGR n.º 5/2019, de 15 de novembro obriga o Ministério Público a requerer declarações para memórias futuras das vítimas em contexto de violência doméstica, e em determinadas circunstâncias aí elencadas;
VIII. Legalmente, os artigos 67.º-A, n.ºs 1, alínea b) e 3 do Código de Processo Penal, 20.º, n.º 1 e 33.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, 21.º da Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro, preconizam a tomada de declarações para memória futura às vítimas;
IX. Revertendo ao caso concreto, a filha do ex-casal usou do “privilégio do familiar depoente”, recusando-se validamente a depor em sede de audiência de julgamento;
X. Mas não é por via de tal recusa e silêncio que deixam de ser valoradas as declarações para memória futura anteriormente prestadas em sede de inquérito;
XI. São admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei, as quais ficam sujeitas à livre valoração pelo Tribunal, atento o artigo 127.º do Código de Processo Penal;
XII. Nos termos do artigo 356.º, n.º 6 do Código de Processo Penal, “é proibida, em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor”, não se confundindo a sua leitura com a sua valoração;
XIII. Não podia o Tribunal a quo, como não o fez e bem, escudar-se no silêncio de CC para evitar valorar as declarações anteriormente prestadas em sede de inquérito e de modo válido, sob pena de serem colocados em causa a descoberta da verdade material e a conservação da prova e a própria proteção da vítima visadas pelo instituto;
XIV. Consequentemente, andou bem o Tribunal a quo ao valorar tais declarações, não padecendo a sentença recorrida de qualquer nulidade, mormente a invocada pelo Recorrente, não tendo aquele Tribunal violado quaisquer normas jurídicas, mormente as invocadas pelo Recorrente – artigos 134.º, n.º 1, alínea a), 271.º, n.º 8, e 356.º, n.º 6, todos do Código de Processo Penal e artigo 33.º, n.º 7, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro – nem a sentença recorrida padece de qualquer nulidade, designadamente a prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal;
XV. A existência de inquérito anterior no qual foram apreciados parte dos factos pelos quais foi agora o Recorrente condenado, e no âmbito do qual foi proferido despacho de arquivamento, implica que tais factos não devam ser de novo valorados e o arguido/Recorrente de novo por eles ser perseguido criminalmente, em virtude de aquele despacho de arquivamento ter adquirido a força de caso julgado, tendo sido violados o n.º 5 do art. 29.º da Constituição da República Portuguesa, o artigo 143.º, n.º 1 e 181.º, n.º 1, 116.º, n.º 1 e n.º 2, e 152.º, todos do Código Penal, e artigos 48.º, 49.º e 51.º e 277.º, todos do Código de Processo Penal;
XVI. Acresce que, a sentença recorrida decidiu arbitrar a reparação oficiosa à vítima no montante de € 1.000,00 (mil euros), a pagar nos primeiros seis meses do período da suspensão, comprovando tal pagamento nos autos nos primeiros 6 (seis) meses e condenou o arguido/demandado, aqui Recorrente, a pagar à demandante a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, à qual acrescem juros de mora à taxa legal contados desde a condenação até efetivo e integral pagamento;
XVII. O instituto de arbitramento de quantia indemnizatória à vítima, previsto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal é subsidiário em relação à não dedução de pedido de indemnização por esta última;
XVIII. Em caso de condenação por crime de violência doméstica, como é o caso dos presentes autos, por força referido artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, o arbitramento de uma compensação à vítima é obrigatório e decorre da condenação criminal, não dependendo da verificação dos pressupostos estabelecidos no referido artigo 82.º-A do Código de Processo Penal;
XIX. Pelo que, o arguido/Recorrente, no que respeita à compensação à vítima, deveria ter sido condenado no pagamento da quantia peticionada em sede de pedido de indemnização civil pela vítima, não podendo a sentença recorrida arbitrar uma determinada quantia quando existia tal pedido, assistindo-lhe, assim, razão nesta parte, tendo o Tribunal a quo violado o artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, os artigos 72.º, 77.º e os n.ºs 1 a 3 do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal;
XX. Quanto à matéria de facto que o Recorrente impugna não lhe assiste razão;
XXI. Não existiram, e não existem, razões para retirar credibilidade aos depoimentos prestados pela vítima e, sobretudo, pelas testemunhas II e LL, os quais depuseram de forma íntegra e isenta e cujos depoimentos foram esclarecedores e consentâneos com a factualidade constante do libelo acusatório;
XXII. Não assiste razão, assim, ao Recorrente já que os factos dados como provados e aos quais o mesmo se refere encontram sustentação no rol probatório supra referido, devendo os mesmos manter-se como provados, não padecendo a sentença recorrida de qualquer censura;
XXIII. No que respeita à qualificação jurídico-penal do crime de violência doméstica, pelo qual o Recorrente foi condenado, subsumível aoartigo152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a), n.ºs 4 e 5 do Código Penal, não assiste razão ao mesmo;
XXIV. Resultou da factualidade dada como provada que, e como consequência da conduta do arguido/Recorrente, a vítima sentiu-se psicologicamente perturbada, humilhada e amedrontada, pois, além de ter, a todo o momento, aquele atentasse contra a sua integridade física ou mesmo contra a sua vida;
XXV. E que o arguido/Recorrente como representou, quis e logrou realizar, molestou o corpo e a saúde física e psíquica da vítima, bem sabendo que a mesma se encontrava impossibilitada de se defender das suas investidas, designadamente por força da sua inferior compleição física;
XXVI. O arguido/Recorrente estava também ciente de que praticava os factos na habitação comum com a vítima e sobre esta última, que era, à data, sua ex-mulher e companheira e a quem, nessas qualidades, devia respeito, cuidado e proteção, bem como os perpetrava na presença dos filhos de ambos, inclusivamente de CC que era, naquelas datas, ainda menor de idade, não se abstendo de a expor aos seus comportamentos, que a deixavam amedrontada e psicologicamente transtornada;
XXVII. A subsunção jurídico-penal do crime de violência doméstica pelo qual o Recorrente foi condenado não foi fundada na alínea d) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal, mas na alínea a) por a vítima, à data dos factos, ser sua ex-mulher e companheira, a que acresce a agravação previsto na alínea a) do n.º 2 do referido preceito legal por tais factos terem sido praticados na residência comum do casal e em frente da filha do casal, à data menor de idade;
XXVIII. Para a subsunção ao crime de violência doméstica, tanto releva a reiteração como a intensidade, e, no caso em concreto, não temos um só episódio grave, mas vários perpetrados ao longo do tempo que revestem especial seriedade atenta a forma como os mesmos foram praticados e às lesões, físicas e morais, que deixaram na vítima;
XXIX. Em sede de apreciação dos vícios do artigo 410.º do Código de Processo Penal não está em causa a possibilidade de se discutir a bondade do que se considerou provado ou não provado, a maior ou menor abundância de prova para sustentar um facto;
XXX. Não assiste razão ao Recorrente, não merecendo a sentença recorrida qualquer reparo, não devendo o Recorrente ser absolvido do crime pelo qual foi condenado por o Tribunal recorrido não ter violado o disposto nos artigos 152.º e 143.º, ambos do Código Penal, bem como, não temos por verificados os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou do erro notório na apreciação da prova, previstos nas alíneas a) e c) do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal.
XXXI. Quanto à medida da pena, sendo o crime de violência doméstica em causa punível com pena de prisão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos não há lugar à operação de escolha da pena aplicável, cabendo determinar a medida concreta da pena, em função da culpa e das exigências de prevenção;
XXXII. A gravidade objetiva dos factos, espelhada na factualidade provada, é de relevo considerável, sendo as exigências de prevenção geral muito elevadas.
XXXIII. No que respeita às exigências de prevenção especial, importa considerar que o arguido/Recorrente não demonstrou arrependimento, tentando imputar as responsabilidades dos acontecimentos à vítima, e adotando um comportamento de vitimização;
XXXIV. Não é o número dos episódios de violência que está em causa, como parece fazer crer o Recorrente; alega que o que consta da factualidade dada como provada “é tão só” a existência de três discussões as quais não importaram, no entender daquele, gravidade substancial ao nível das consequências;
XXXV. Todavia, não é o reduzido número das discussões, mas o conteúdo das mesmas e os atos que foram praticados durante as mesmas pelo arguido/Recorrente na pessoa da vítima, até pelo facto de terem sido praticados na residência comum que foi do casal e na presença da filha.
XXXVI. A título de exemplo, o agarrar na vítima, empurrá-la contra os móveis da sala, apertar-lhe o pescoço com as duas mãos ao mesmo tempo que lhe dizia “vou buscar umas facas, mato-te e vais para o céu”, o ter destruídos os objetos no interior da habitação, e o de a ter injuriado amiudadas vezes, são circunstâncias que permitem imputar ao arguido/Recorrente o crime pelo qual vinha acusado e condenar o mesmo numa pena de prisão;
XXXVII. Por outro lado, pelo facto de os antecedentes criminais do arguido/Recorrente apenas estarem relacionados com a sua atividade laboral e a regulação da mesma em França, o Tribunal a quo entendeu considerar ainda ser possível a formulação de um juízo de prognose favorável, sendo suficiente a simples censura e ameaça de uma pena de prisão para afastar o arguido/Recorrente do cometimento de novos ilícitos criminais, suspendendo a execução da pena de prisão por igual período;
XXXVIII. Pelo que, não assiste razão ao Recorrente, não merecendo a sentença recorrida qualquer reparo no que respeita à escolha e medida da pena àquele aplicada;
XXXIX. No que concerne à absolvição da arguida AA do crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal, cremos que andou bem o Tribunal a quo;
XL. Já que considerou a sentença recorrida que as expressões constantes dos factos dados como provados foram proferidas num contexto de conflitualidade entre o casal que, ao que se apurou, era a sua dinâmica familiar, o que foi, inclusivamente, confirmado pela filha do casal;
XLI. Tais expressões foram proferidas num contexto de dissociação familiar, em que a relação do casal era “pouco saudável”, nas palavras da filha, e em que existia um conflito permanente causado por ciúmes de parte a parte, não tendo sido possível lograr apurar quem iniciava o diálogo no âmbito das discussões;
XLII. Também não resultou provada a verificação do elemento subjetivo, no sentido de que, efetivamente, a arguida queria com as referidas expressões denegrir a imagem e o bom nome do Recorrente, não tendo sido possível formar convicção nesse sentido;
XLIII. Tais expressões, assim proferidas num contexto de discussão, não podem ter outro sentido que não a de manifestação de desagrado, não assumindo carácter injurioso.
XLIV. Neste sentido, e sem necessidades de outras considerações, não merece a sentença recorrida qualquer reparo, devendo manter-se a decisão de absolver a arguida AA de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal.
NESTES TERMOS,
- Deve a sentença recorrida proferida pelo Tribunal a quo ser revogada parcialmente e substituída por outra que elimine o arbitramento de quantia a título de reparação oficiosa e condene o arguido/Recorrente no pagamento à vítima do pedido de indemnização civil formulado por esta, no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) e que julgue verificada a exceção de caso julgado quanto aos factos constantes dos pontos 42., 43. e 44. Dos factos provados, devendo os mesmos serem excluídos de tal elenco;
No mais:
- Deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida na parte condenatória (quanto ao arguido/Recorrente BB) e absolutória (quanto à arguida AA), não havendo vício de erro de julgamento do facto ou erro na apreciação da prova, não merecendo reparo ou censura, nessa parte, assim se fazendo a costumada, JUSTIÇA!”
I.2.2 – A assistente/arguida/demandante
respondeu ao recurso interposto apresentando as seguintes conclusões
[transcrição]:
“«Termos em que se contestam todas as conclusões formuladas pelo recorrente por não serem verdadeiras, devendo as Alegações do Recorrente serem dadas como improcedentes e não provadas, devendo a pena de prisão de dois anos e seis meses manter-se na globalidade, ou ser esta agravada pelos atos horrendos que foram praticados pelo Recorrente contra a vítima.
E assim fazem Vªs Exªs Senhores Doutores Juizes Desembargadores fazem a tão costumada JUSTIÇA”.
*
I.3 - Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.
***
Prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:
***
II - Fundamentação
Poderes de cognição do tribunal
ad quem
e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante, designadamente, do STJ [Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 processo nº 18/05.7IDSTR.E1.S1 e 19/05/2010, processo nº 696/05.7TAVCD.S1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.], são as
conclusões
apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal [ Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95] e das nulidades previstas no art. 379º do mesmo Código de Processo Penal.
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as
questões a apreciar e decidir
são as seguintes:
®
Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia relativamente a factos alegados na contestação;
®
Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia com violação do princípio
ne bis in idem
;
®
Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia ao cumular o arbitramento de indemnização à vítima com a condenação em indemnização pedida pela lesada no requerimento de indemnização cível que deduziu;
®
Da nulidade da sentença por indevida valoração das declarações para memória futura prestadas por vítima que validamente se recusou a depor em audiência de julgamento;
®
Do erro notório na apreciação da prova;
®
Da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão;
®
Da violação do princípio
in dúbio pro reo
;
®
Do não preenchimento do tipo de violência doméstica pelo arguido;
®
Do preenchimento do tipo de injúrias pela arguida;
®
Do excesso da pena aplicada;
®
Da repercussão da alteração da matéria de facto provada no quantitativo indemnizatório.
*
II.1
Com relevo para a resolução das questões objeto do recurso importa recordar a fundamentação de facto da decisão recorrida
[transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:
“II. Dos factos
A) Factos Provados
Da decisão instrutória
1. AA e BB iniciaram uma relação amorosa em data não concretamente apurada e contraíram matrimónio a ../../2000, tendo ambos fixado residência, em data que não foi possível determinar, na Rua ..., ..., ..., ....
2. Fruto da relação entre ambos nasceram dois filhos, NN e CC, respectivamente a ../../2001 e ../../2007.
3. Porém, AA e BB separaram-se e, no dia 16/01/2017, vieram a divorciar-se.
4. Apesar do divórcio, AA e BB reataram a relação amorosa e voltaram a residir juntos, na morada acima descrita.
5. No dia 24/12/2020, noite da Consoada de Natal, perto da hora do jantar, BB chegou embriagado à supra referida residência e não tomou a respectiva refeição com AA e com os seus filhos, tendo, ao invés, se dirigido à casa de banho e ali permanecendo até cerca das 22h00.
6. Posteriormente, BB dirigiu-se à sala onde se encontrava AA e seus filhos e, assim que se apercebeu que os mesmos se encontravam a tomar a refeição, levantou os pratos de todos e colocou-os na cozinha e iniciou uma discussão com aquela, no decurso da qual vociferou a AA para a mesma sair de casa e aos seus filhos para, caso quisessem ficar com a mãe, se irem embora.
7. Posteriormente, pelas 23h desse dia, AA e os filhos foram pernoitar para casa dos pais daquela, na Rua ..., ..., ..., ..., ....
8. No dia 09/05/2021, pelas 12h40, BB chegou, embriagado, à residência acima descrita, na qual se encontravam AA e os seus dois filhos e iniciou uma discussão esta última, no decurso da qual o mesmo lhe disse que tinham de falar e que a mesma tinha amantes, sendo que desferiu um número não concretamente apurado de pontapés nas portas das divisórias da residência.
9. Com receio da conduta de BB, AA refugiou-se no quarto do filho de ambos, NN, no qual este se encontrava, tendo aquele seguido no seu encalço e, acto contínuo, fechou a porta e trancou o trinco com a respectiva chave, fechando-se dentro de tal divisória com AA e NN.
10. AA tentou fugir daquele local, mas sem conseguir, por a porta se encontrar trancada, sendo que BB pegou na respetiva chave e atirou-a para o exterior através da janela do quarto, que então se encontrava aberta, visando impedir qualquer um de sair do citado quarto.
11. Entretanto, CC tentou abrir a referida porta, mas sem sucesso, ao que BB, assim que se apercebeu de tal facto, desferiu um número não concretamente apurado de pontapés na citada porta, fazendo com que aquela se sentisse amedrontada.
12. Instantes depois, BB saiu para o exterior da residência pela janela do quarto onde se encontrava, após o que atirou a chave da porta que havia anteriormente arremessado para dentro do referido quarto, assim permitindo que AA e NN dali pudessem sair.
13. Acto contínuo, e ainda no exterior na residência, BB dirigiu-se ao logradouro, no qual se encontravam estacionados três veículos automóveis, mais concretamente
a. Um veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca e modelo BMW 320I, de matrícula ..-..-XQ;
b. Um veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca e modelo BMW X53, de matrícula ..-..-XV;
c. E um automóvel ligeiro de passageiros de marca e modelo SEAT IBIZA, de matrícula ..-..-LB, o qual era, à data, apenas utilizado por NN,
abriu os respectivos capôs e desligou os cabos que ligavam o motor à bateria, de forma a impedir que os mesmos iniciassem a marcha e que AA pudesse sair do local através dos mesmos, apenas não o tendo feito quanto ao último referido veículo, por o mesmo se encontrar trancado.
14. De imediato, BB voltou a entrar na residência, tendo AA aproveitado a sua distração para sair ao exterior com os filhos de ambos, após o que estes se deslocaram até ao veículo da marca SEAT, sendo que NN entrou no mesmo pela porta do condutor, ligou o motor e iniciou a marcha, enquanto a sua mãe e irmã permaneciam apeadas ao lado de tal veículo.
15. Apercebendo-se do funcionamento do veículo em questão, BB deslocou-se novamente ao logradouro e, de forma a impedir que qualquer pessoa dali saísse, correu em direcção ao veículo, abriu a porta do condutor e tentou tirar a chave da ignição, com o mesmo ainda em funcionamento, o que não logrou, por ter sido impedido por NN.
16. Paralelamente, CC, que se encontrava amedrontada com o sucedido, saiu das proximidades dos seus pais, de forma que não foi possível apurar, tendo-se deslocado para uma zona de mato sita nas imediações e, a partir daí, contactou telefonicamente a GNR de ..., solicitando a deslocação de uma patrulha ao local, o que veio a suceder.
17. Depois de a GNR ter chegado ao local, AA, NN e CC lograram dali sair, tripulando o veículo conduzido por NN.
18. No dia 14/11/2022, sensivelmente pelas 09h, quando se encontravam na sua então residência, mais concretamente na cozinha, BB iniciou uma discussão com AA, no decurso da qual aquele disse a esta última que “queria conversar” e que a mesma “tinha amantes”, o que foi por esta negado.
19. De imediato, BB colocou uma das suas mãos num dos bolsos do casaco que AA trajava e retirou-lhe o seu telemóvel, tencionando visualizar as comunicações ali contidas, após o que arremessou uma fruteira que se encontrava numa mesa na cozinha ao solo, partindo-a.
20. AA tentou reaver o seu telemóvel, sem sucesso e BB agarrou-a pela parte superior dos braços, perto dos ombros e empurrou-a para uma cadeira que ali se encontrava.
21. Apesar de AA tentar levantar-se da cadeira em número de vezes não concretamente apurado e de tentar afastar-se de BB, o mesmo, enquanto a acusava de ter amantes, agarrou-a com força, pela parte superior dos braços, ao ponto de rasgar a camisa que a mesma vestia e empurrou-a sucessivamente para a cadeira da qual a mesma se levantava e, posteriormente, sobre outras cadeiras, à medida que AA ia conseguindo movimentar-se, assim a obrigando a permanecer sentada contra a sua vontade.
22. Entretanto, AA conseguiu efectivamente, levantar-se de uma das cadeiras onde se encontrava sentada e logrou deslocar-se até à sala, ao que BB seguiu ao seu encalço e empurrou-a contra um puf que ali se encontrava, o que provocou o desequilíbrio da ofendida e consequente queda no solo sobre tal objecto.
23. Ato contínuo, BB colocou-se sobre AA, e fazendo uso da sua força, apertou-lhe o pescoço com as duas mãos, ao mesmo tempo que, com foros de seriedade, lhe disse “vou buscar umas facas, mato-te e vais para o céu”, tendo posteriormente colocado a sua mão sobre a boca desta, para a impedir de falar ou gritar.
24. Não obstante ser manietada por BB, AA logrou soltar-se daquele e conseguiu levantar e deslocar-se até uma das janelas da sala, ao que aquele, novamente, seguiu-a e desferiu-lhe um empurrão, fazendo com que esta última viesse a cair sobre um sofá que ali se encontrava.
25. De imediato, AA levantou-se de tal sofá na tentativa de continuar a afastar-se de BB, o qual a empurrou novamente, desta feita contra um novo sofá, de dimensões mais reduzidas que o anterior, fazendo com que a mesma ficasse sentada no mesmo.
26. Nesse seguimento, BB aproximou-se do sofá onde AA estava sentada, levantou-o em peso e, recorrendo ao uso da força, virou-o ao contrário, fazendo com que esta última caísse no solo e o aludido sofá tombasse sobre o corpo desta.
27. Assim que tal sucedeu, BB vociferou “dizes que andas sempre a limpar a casa, mas a casa debaixo do sofá está suja, o que tu fazes eu fazia em meia hora”.
28. Durante tais factos, AA encontrava-se descalça e, enquanto tentava resistir à forma como era manietada por BB, logrou obter a chave do BMW X5 acima descrito, que se encontrava num dos bolsos da roupa que este último então vestia.
29. Instantes depois, AA conseguiu sair debaixo do aludido sofá, levantou-se e afastou-se de BB, tendo logrado sair da sala e se deslocado para o exterior, mais concretamente ao logradouro, onde entrou no veículo acima descrito.
30. Nesse momento, BB surgiu no local, dirigiu-se aos portões pelos quais tal veículo teria de passar para sair e fechou-os com as suas mãos e, de seguida, de viva voz e com foros de seriedade, dirigiu a AA as seguintes expressões: “Não estou para viver desta forma consigo e custa-me pouco tapar-te a boca arrastar-se pelos cabelos até à porta da cozinha”, após o que voltou a entrar na residência.
31. Logo após, AA entrou na residência para se calçar, o que fez, deslocou-se novamente ao veículo acima descrito, iniciou a marcha e logrou sair da citada residência, cerca das 10h30.
32. Sucede que, AA não conseguiu levar o seu telemóvel conseguido, pois BB ficou com o mesmo, por lho ter tirado, permanecendo na então residência e sob o controlo deste até cerca das 15h30 do dia supra descrito, quando aquela se deslocou novamente à referida residência, desta feita acompanhada de militares da GNR de ....
33. Após, AA abandonou definitivamente a residência comum e passou a pernoitar, juntamente com a sua filha, na residência dos seus pais, acima descrita.
34. Como consequência directa e necessária da conduta de BB supra descrita, AA, além de ter sofrido dores nas partes do corpo que infra se descrevem, e de ter hematomas e arranhões, designadamente, no pescoço, pernas e braços, apresentou:
a. No membro superior esquerdo: duas equimoses da face anterior e lateral externa do terço médio do braço com 5 por 5 centímetros e 5 por 4 centímetros e outra equimose arroxeada da face posterior do braço, com 1 centímetro de diâmetro;
b. No membro inferior esquerdo: equimose acastanhada da raiz da coxa com 2 centímetros de diâmetro e outra da face anterior do terço superior da perna com 2 por 3 centímetros de maiores dimensões.
35. Acontece que, no mesmo dia 14/11/2022, pelas 19h30, BB deslocou-se à residência dos pais de AA, logrou abrir o portão de entrada, de forma não concretamente apurada e dirigiu-se à porta de entrada da residência, tendo desferido um número não concretamente apurado de pancadas na mesma, ao mesmo tempo que, de viva voz, apodava AA de “puta” e exigiu ver a sua filha, o que foi escutado por CC e fez com que a mesma se sentisse amedrontada.
36. Nessa sequência, foi acionada uma patrulha da GNR de ..., que se deslocou à referida residência, após o que BB abandonou o local sem levar acabo os seus intentos.
37. Mesmo após os factos descritos acima, BB enviou continuamente mensagens escritas (constantes de fls. 250 a 468 e que se dão por integralmente reproduzidas no presente despacho, por desnecessidade de transcição) do telemóvel por si utilizado, com o número ...42, para o número de telemóvel utilizado por AA, ...28, no decurso das quais o mesmo, para além do mais:
a. Acusou AA de ter amantes, de o trair, de ser uma criança, viver romances da escola com 15 anos e de ter um cérebro de canalha, pior que a sua filha, entre outras expressões referentes a esse tipo de imputações (designadamente, os dias 16/11/2022, pelas 05h33, 06h14, 06h20, 06h54, 07h10, 10h33, 10h35, 11h53, 12h, 15h02, 16h02, 18h07, 21h; no dia 17/11/2022, pelas 10h25, 10h26, 11h04, 22h02, 22h06, 22h48; no dia 18/11/2022, pelas 02h37, 02h49, 03h, 12h26, 12h37, 15h58; no dia 21/11/2022, pelas 22h45 e 22h49);
b. Disse que AA era uma “sem vergonha porca” (no dia 18/11/2022, pelas 03h01);
c. Que o pai de AA tem vergonha desta (no dia 16/11/2022, às 07h21);
d. Que AA vinha sempre acompanhada para fazer a novela e de coitadinha (no dia 14/12/2022, às 05h32);
e. Escreveu expressões que insinuavam que AA não foi agredida por si (no dia 16/11/2022, pelas 06h16, 06h17, 07h15; no dia 17/1172022, pelas22h14);
f. Disse a AA que gostava da mesma e questionou-a, por diversas vezes, se gostava de si (no dia 21/11/2022, pelas 22h45, 22h50, 22h52, 22h55, 22h56).
38. Na sequência de todo o supra descrito, e como consequência da conduta de BB, AA sentiu-se psicologicamente perturbada, humilhada e amedrontada, pois, além de temer, a todo o momento, aquele atentasse contra a sua integridade física ou mesmo contra a sua vida .
39. Com todas as suas condutas supra descritas, BB, como representou, quis e logrou realizar, molestou o corpo e a saúde física e psíquica de AA, bem sabendo que a mesma se encontrava impossibilitada de se defender das suas investidas, designadamente por força da sua inferior compleição física.
40. O arguido estava também ciente de que praticava os factos acima descritos na habitação comum com AA e sobre esta última, que era, à data, sua ex-mulher e companheira e a quem, nessas qualidades, devia respeito, cuidado e protecção, bem como os perpetrava na presença dos filhos de ambos, inclusivamente de CC que era, naquelas datas, ainda menor de idade, não se abstendo de a expor aos seus comportamentos, que a deixavam amedrontada e psicologicamente transtornada.
41. Ao logo de todas as suas condutas, o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as mesmas eram proibidas e puníveis por lei penal.
42. Em data que não foi possível apurar, mas no ano de 2016, entre as 15h e 16h, nas imediações do Continente de ..., BB disferiu um número que não foi possível apurar de chapadas com a mão aberta a AA.
43. Em data não concretamente apurada, mas seguramente em julho de 2016, BB deslocava-se num veículo automóvel com AA e os dois filhos, tendo ido deixar estes dois últimos ao avô paterno e seguido com AA para a casa do casal.
44. Já no interior da casa do casal, BB retirou o seu cinto e atingiu AA nas pernas, um número de vezes que não foi possível apurar, mas certamente mais do que uma.
Do Pedido de Indemnização Civil da Assistente
45. A habitação referida em 1. situa-se em lugar ermo, rodeada de mato, com algumas casas a cerca de 40/50 metros de distância desta.
46. Quando alcoólico e também em estado sóbrio, abria os braços e junto à casa de morada da família dizia para a assistente: “isto é tudo meu”, referindo-se à casa onde moravam assistente, arguido e filhos, assim como se referia ao logradouro da casa e a vários carros que têm, dizia isto, no sentido de humilhar a assistente.
47. A AA conduziu um veículo de marca Smart.
Da Acusação Particular
48. De forma reiterada, em datas que não foi possível apurar, mas com especial incidência a partir do ano de 2019 e até ao término da relação, em finais do ano de 2022, AA, num número de vezes que não foi possível apurar mas pelo menos uma vez, dirigindo-se a BB, quer pessoalmente, quer estivessem sozinhos ou na presença de terceiros, apelidou-o de “bêbado”, “porco”, “cabrão”, “touro”, “boi”, e “atrasado”.
49. Mais disse AA a BB, pelo menos uma vez e em data que não foi possível apurar, que “se queres roncar para mim, roncas em casa”.
50. As expressões referidas em 48. foram proferidas presencialmente por AA dirigindo-se a BB quando se encontravam sozinhos, quando se encontravam na presença dos seus filhos, sendo a filha menor de idade à data e quando estavam acompanhados de terceiros, designadamente da irmã do BB, EE e cunhado OO, quer na habitação comum, quer em locais públicos.
51. AA dirigindo-se a BB, enviou diversas mensagens escritas através do contacto telefónico por si utilizado (...28) para o contacto telefónico utilizado por BB (...42) através de mensagens de texto e da plataforma “whatsapp”, constantes de fls. 250 a 468 e 590 a 684, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para os devidos e legais efeitos, e no decurso das quais a mesma:
a. Acusou BB de ter amantes e de a trair, designadamente no dia 03/07(2021, às 11h57 (fls. 670 dos autos), no dia 30/08/2021, às 11h59 (fls. 675), no dia 23/10/2022, ás 20h42 /fls. 592), no dia 16/11/2022, às 6h15, 06h19, 06h22, 06h26, 06h55 e 10h06 (fls. 9,15, 18 e 90 do termo de juntada datado de 13/12/2022 e fls. 601 f- e 610 f) e no dia 21/11/2022, às 8h (fls. 186 do termo de juntada datado de 13/12/2022 e fls 616 f);
b. Disse que BB era maluco, designadamente nos dias 02/11/2022, às 11h21 (fls. 597) e 16/11/2022, às 10h29 e 10h30 (fls. 99 e 100);
c. Disse que BB era um bêbado, designadamente no dia 24/08/2022, às 15h43, 15h44, 15h46 e 16h25 (fls. 638, 639, 641 e 646);
d. Disse que BB era um miserável, designadamente no dia 24/08/2020, às 15h45 e 15h47;
e. Disse que BB era um porco, nos dias 30/12/2020, às 11h16 e 11h41 – fls 657 e 658), no dia 19/01/2021, às 17h14 (fls. 660), no dia 30/08/2021, às 11h59 (fls. 675) e no dia 28/10/2021, às 14h24;
f. Disse que BB era um atrasado, designadamente no dia 01(11(2022, às 22h22 (fls. 679);
g. Disse que BB merecia levar nos cornos como levou o membro da sua família, no dia 10/05/2021, às 8h28 (fls. 664).
52. Ao agir da forma supra descrita, a arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, representando e aceitando os resultados alcançados, sendo que, não obstante esta saber que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime, não se absteve de atuar da forma descrita.
Mais se provou,
53. A arguida não averba qualquer condenação no seu Registo Criminal.
54. O arguido averba no seu Certificado do Registo Criminal uma condenação em 8 de outubro de 2011, por trabalho irregular do dispositivo destinado ao controlo das condições de trabalho, bem como pela deterioração do mesmo.
55. A arguida trabalha num lar, auferindo cerca de €740,00.
56. Vive numa casa do pai, não pagando renda, com os dois filhos e o companheiro que é militar da GNR.
57. Recebe, a título de pensão de alimentos, €190,00 para a sua filha e €170,00 para o seu filho.
58. A arguida tem o 12º ano de escolaridade.
59. O arguido é motorista de longo curso e aufere por mês cerca de €2.00,00, gastando cerca de €600,00 em alimentação quando se encontra a trabalhar.
60. O arguido tem o 12º ano de escolaridade.
61. O arguido vive em casa própria, pagando, a título de empréstimo, cerca de €1.000,00 mensais.
62. Paga cerca de €400,00 para ajuda do filho maior.
63. Paga, a título de medicação para os filhos cerca de €15,00 a €20,00 mensais.
64. O arguido tem dois empréstimos para pagamento da casa de morada de família, pagando por mês cerca €177,00 e outro de €132,50.
B) Factos não provados
1. Aquando do divórcio as causas do mesmo eram as injúrias, ameaças e ofensas corporais de que a assistente era vítima, com murros, pontapés, empurrões e cinturadas no corpo.
2. O arguido tem um carácter possessivo querendo controlar toda a vida da assistente, amedrontando-a e coagindo-a.
3. Várias vezes quando chegava a casa com indícios de embriaguez com cheiro a álcool insuportável agredia a AA fisicamente na presença dos filhos menores, tendo inclusivamente o filho NN sido agredido pelo pai, enquanto defendia a mãe das agressões.
4. No seguimento da medida de coação que foi imposta ao arguido, este tinha uma pulseira que, ao aproximar-se da vítima, fazia tocar um dispositivo que esta tinha e, sabendo disso, passava continuamente, tanto de dia, como de noite, junto do apartamento onde a AA vive com os filhos, obrigando-a a levantar-se várias vezes de noite para o desligar, perturbando o seu sono.
5. O arguido desnudava a assistente e batia-lhe em casa para esta não fugir e poder massacrá-la a seu jeito.
6. O arguido retirou e escondeu as viaturas à assistente na garagem da casa da irmã, ficando a assistente privada de viatura para fazer compras para os filhos e ir para o trabalho.
7. O arguido sem autorização da AA, filmava-a, desnudava-a e exibia os filmes e fotografias nas redes sociais e aos amigos, num total desrespeito pela assistente, humilhando-a, demonstrando que este não tem respeito pela pessoa humana e muito menos de quem é a mãe dos seus filhos, nem repeito pelos familiares próximos da AA.
8. Por diversas vezes, e enquanto AA proferia tais expressões e palavras ofensivas da honra e consideração de BB, AA agredia BB, cuspia-lhe na cara, atirava-lhe com o prato de comida, com peças de fruta ou outros objectos que estivessem à mão.
9. A demandada, até à presente data, não se retratou.
10. De forma reiterada, em datas que não foi possível apurar, mas com especial incidência a partir do ano de 2019 e até ao término da relação, em finais do ano de 2022, AA, dirigindo-se a BB, quer pessoalmente, quer estivessem sozinhos ou na presença de terceiros, apelidou-o de “escumalha”, “animal”, “mentiroso”, “cabrão”, “filho da puta”, “bruto”, “cornudo”, “estúpido”, “parvo”, “bruto”, “cabeçudo”, “urso” e “miserável”.
11. A assistente sente-se e sente-se ofendida na sua honra e consideração.
12. De forma reiterada, em datas que não se consegue precisar, mas com especial incidência a partir do início do ano de 2019, AA, dirigindo-se a terceiros, nomeadamente a colegas de trabalho, entre as quais KK e FF), e no seu local de trabalho, referindo-se a BB apelidava-o com as expressões referidas em 48.
13. Em consequência das palavras e expressões injuriosas proferidas por AA, quer directamente a BB, quer a terceiros referindo-se a BB, bem como, nesses contextos, da imputação de factos a este que sabia ser falsos, com o propósito concretizado de ofender a honra e consideração de BB, este sentiu-se humilhado, vexado, minimizado e profundamente ofendido na sua honra e consideração.
14. A arguida bem sabia que, ao agir da forma supra descrita, dirigindo as palavras e expressões ofensivas à honra e consideração de BB supra referidas, quer directamente a este, quer a terceiros referindo-se a este, bem como, nesses contextos formulando sobre eles juízo ofensivo da sua honra e consideração, e imputando-lhe factos que sabia serem falso, estava a ofender a honra e consideração de BB, o que a arguida representou e almejou.
15. Com todas as suas condutas supra descritas, BB, como representou, quis e logrou realizar, molestou a sua honra e consideração.
16. Na sequência de todo o supra descrito, e como consequência da conduta de BB, AA sentiu-se ofendida na sua honra e consideração, com os insultos de que foi alvo e as imputações que lhe foram feitas por aquele.
17. A assistente sente-se psicologicamente perturbada, humilhada, amedrontada pois além de ter medo que a todo o momento aquele atentasse contra a sua integridade física ou mesmo contra a sua vida.
18. O comportamento do arguido causou à vítima uma depressão, deixando-a amedrontada e transtornada.
19. Mais dizia AA a BB, pelo menos uma vez, que este “havia de morrer esmagado de acidente”, “vai para o caralho”, “vai para a puta que te pariu”.
20. Em consequência directa, necessária e adequada das palavras e expressões injuriosas proferidas pela arguida AA, o demandante sentiu-se vexado, humilhado e minimizado, bem como profundamente ofendido na sua honra e consideração.
21. Como consequência directa, necessária e adequada, sentiu-se o demandante triste, magoado e abalado com todo o sucedido.
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Não foi considerada qualquer outra matéria por se considerar de direito, conclusões ou considerações ou sem qualquer interesse para a causa.
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C) Motivação de facto
A convicção do Tribunal estribou-se na análise crítica de todos os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, com o teor de todos os documentos juntos aos autos, sempre coadjuvada pelas regras da normalidade do acontecer e globalmente considerada e criticamente analisada à luz de critérios de experiência comum.
Na presente situação, cabe recordar as especiais características do crime de violência doméstica, as quais terão necessariamente que ser tidas em conta pelo julgador no processo de apreciação da prova.
Com efeito, a violência doméstica é um fenómeno que ocorre, na grande maioria das vezes, no interior da residência comum ou da vítima, o que suscita particulares dificuldades ao nível dos meios de prova, em virtude de tais factos não serem presenciados por terceiros, que sobre eles poderiam depor.
Assim, assumem especial relevância neste tipo de processos as declarações da vítima e do arguido, que não raras vezes são os únicos elementos probatórios que se encontram ao dispor do Tribunal. Nessa apreciação, haverá que analisar a coerência, verosimilhança e consistência de tais depoimentos, conjugando-os entre si e com outros meios de prova que eventualmente existam nos autos, tendo sempre presente a situação de especial fragilidade e vulnerabilidade em que habitualmente se encontra a vítima.
Tal é particularmente importante nas situações em que esta ainda evidencia uma dependência económica ou emocional do arguido – que, naturalmente, compromete as suas declarações –, mas também naquelas outras em que, por força de factos especialmente graves ou prolongados no tempo, se encontra perturbada e afetada do ponto de vista psíquico e emocional.
Deste modo, caberá ao julgador a tarefa de destrinçar aquilo que efetivamente constitui a realidade dos factos, tantas vezes desvalorizada pela própria vítima em consequência da exposição prolongada a um quadro de humilhação e maus tratos.
Descendo ao caso destes autos, foram decisivas para a formação da convicção do Tribunal as declarações da vítima, bem como da filha do ex-casal prestadas em sede de declarações para memória futura – juntas aos autos a fls. 954 e ss.
Nas suas declarações, o arguido negou na globalidade a prática de quaisquer factos, chegando mesmo a referir que este e a vítima não discutiam assumido, porém, uma postura de vitimização e total desresponsabilização, procurando justificar a sua conduta.
Sempre que perguntado sobre as situações descritas na factualidade constante da acusação, o arguido conseguiu circunstanciar no espaço e no tempo, bem como dar uma justificação para o sucedido, sempre dizendo, porém, serem mentira todos esses os factos.
Do comportamento do arguido ao longo de todo o julgamento conclui-se que este conseguiu identificar todas as situações sobre as quais era questionado, mas concluindo sempre por dizer que era tudo mentira, que nunca discutiam e que a vítima é que discutia com ele.
Deste modo, o seu discurso foi pautado por uma tentativa de denegrir a imagem da vítima.
O arguido BB referiu que a partir de 2019 que, sempre que chegavam a casa discutiam, mas que a razão não era o facto de estar alcoolizado uma vez que apenas bebe social e raramente.
De uma forma generalizada, o arguido negou, como supra referido, a prática dos factos, tentando fazer o Tribunal crer que este sim é a vítima.
De salientar, em particular, a justificação trazida pelo arguido em relação aos factos que ocorreram em 09/05/2021, em que o arguido se trancou a ele, à vítima e ao filho NN no quarto deste último, tendo atirado as chaves desse compartimento pela janela, caindo estas na rua, impedindo a vítima e NN dali saírem, tendo posteriormente saltado pela janela e, do lado de fora da habitação, pegou nas chaves e enviou-as pelo ar, passando pela janela, para o interior, permitindo, assim, que a vítima e o filho de ambos, abrissem a porta trancada por aquele.
Em face do confronto do arguido com esta situação, este referiu que te o hábito de sair pela janela, continuando a justificar que a vítima se encontrava parada à porta e não o deixava passar.
Ora, atenta a patente diferença de fisionomia entre arguido e vítima, é manifesto que, caso este quisesse passar, que o conseguiria fazer sem ter de forçar a vítima ou de usar de grande força, já o contrário não se verificaria.
Ora, a verdade é que este episódio foi referenciado e descrito pela filha de ambos, CC, em sede de declarações para memória futura, transcritas e juntas aos autos a fls. 954 e seguintes, tendo esta logrado circunstar temporal e espacialmente o episódio e descrito a situação com precisão, desinteresse e de forma consentânea à da vítima.
No caso de o arguido ter efectivamente o hábito de saltar pela janela, segundo as regras da experiência comum, seria de prever que pelo menos algum dos outros habitantes da casa referisse essa situação especialmente a sua filha que depôs com sinceridade e não demonstrando qualquer mágoa ou rancor com o pai, todavia, assim não aconteceu.
De forma generalizada, como se referiu, o arguido disse que nunca agrediu AA, mas que esta sim o arranhava, tendo se refugiado, no que concerne às marcas corporais apresentadas pela vítima no facto desta ter uma condição no sangue que a torna mais susceptível de criar hematomas.
Mais referiu que não tirou os carros à vítima, mas que guardou o jipe na garagem da irmã e do cunhado uma vez que este tinha um vidro estragado e por forma a este não ficar na rua.
Referiu que a vítima o apelidou de “bêbado”, “porco”, “cabrão”, “touro”, “boi” e “atrasado” e que o fazia à frente de fosse quem fosse, por chamadas telefónicas, mensagens de texto e para outras pessoas.
AA, vítima nos presentes autos, apresentou-se com uma postura absolutamente contrária àquela referida pelo arguido, não se afigurando que a movesse qualquer especial inimizade ou intuito persecutório quanto a este. Assim, o seu depoimento afigurou-se credível e genuíno, tendo sido essencial para a formação da convicção do Tribunal, porquanto relatou com clareza e precisão os factos que se vieram a dar como provados.
Assim, descreveu com exatidão que o arguido é consumidor frequente de bebidas alcoólicas e que sempre que o faz, descontrola-se e começa a “implicar” e a tratar mal a vítima, mas que aí ela se calava uma vez que tinha medo, referindo que aquele chegada quase sempre alcoolizado a casa.
Referenciou que lhe chamava de “bêbado” e que lhe respondia o que ele lhe chamava e que tal acontecia na presença dos filhos, mas não na de terceiros.
Mais referiu que, em data eu não logrou concretizar, que acusou o arguido de ter amantes, uma vez que acreditava que isso era verdade, tendo se mostrado convicta de que havia descoberto uma traição e que o havia confrontado com a mesma.
Mais confirmou que tal acusação ocorria de forma mútua entre ambos, tendo afirmado que em 2016 se divorciaram porque esta teve um relacionamento extraconjugal, mas que após a reconciliação, nunca mais teve nenhuma.
Confirmou os números de telemóvel constantes da acusação pública como sendo os correspondentes ao seu e do arguido.
Confessou ainda que se sentiu envergonhada e humilhada, bem como o facto do arguido abrir os braços e, olhando para a habitação de ambos, dizia “isto é tudo meu”, dando a entender que este é que ganhava bem e que a vítima tinha um parco rendimento.
De salientar que a vítima já havia prestado declarações em sede de declarações para memória futura, encontrando-se estas transcritas e juntas aos autos a fls. 205-206 e 965 a 981, tendo aí descrito de forma escorreita e desinteressada os vários episódios dados como provados, designadamente os ocorridos a 24/12/2020, 09/05/2021 e 14/11/2022, tendo logrado circunstanciar temporal e espacialmente os factos ocorridos em cada um dos episódios.
Tais declarações foram consentâneas com as prestadas em sede de audiência de julgado, mesmo quando contra instada e de uma forma desinteressada pelo que o Tribunal as reputou de sinceras e credíveis.
Descreveu ainda o episódio em que a vítima e os filhos estavam a ir levar o arguido ao camião, por forma a este ir de viagem de trabalho, quando aquele levou os jovens ao avô paterno e dirigiu-se para casa com a vítima, onde este lhe bateu. Tal episódio é ainda por esta descrito em sede de declarações para memória futura, tanto pela vítima, como pela filha CC que descreve a situação inicial de ir levar o pai, ir ter com o avô e depois ver marcas no corpo da mãe, referindo que a viu “magoada”.
A testemunha NN, filho do ex-casal, recusou-se validamente a depor.
A testemunha FF, colega de trabalho à data, da vítima, referiu que conhece o ex-casal, mas que nunca frequentou a casa destes, apenas sabendo o que a AA lhe contava.
Referiu que a vítima contava às colegas de trabalho que, para o arguido não a chatear, levava medicação do lar para este dormir.
Mais referiu que AA comentava que tinha amantes, dizendo o nome destes de forma alegre, isto para a testemunha e para outras colegas de trabalho cujo nome não logrou concretizar, nem circunstancializou tal facto no tempo.
Mais confirmou que AA apelidou BB de “boi” e “corno”, não logrando circunstancializar no tempo tais expressões.
A testemunha LL, amiga da vítima, referiu que costumava frequentar a casa do casal e confirmou que a relação destes era conflituosa.
Descreveu que a vítima costumava chamá-la para a ajudar a acalmar o arguido uma vez que este costumava chegar a casa embriagado.
Descreveu ainda uma situação que situou em agosto de 2022, em que tal aconteceu e que, a vítima estava “nervosa como sempre” e o BB estava bêbado e a implicar com a vítima sendo que esta não respondia, ficava calada.
Mais referenciou uma situação em que a vítima foi ter consigo ao lar a pedir ajuda uma vez que o arguido lhe havia batido e tirado o telemóvel, mais circunstancializando que esta se encontrava com a camisa rasgada e que esta disse que o arguido lhe havia colocado as mãos no pescoço e que esta tinha medo que ele a matasse.
Confirmou que nesse dia a testemunha chamou a GNR que depois acompanhou a vítima.
Referiu que nunca havia visto as fotografias de fls. 76 a 80 e que a vítima nunca lhe falou mal do arguido.
A testemunha II, militar da GNR, confirmou que vive em união de facto com a vítima há cerca de dois anos, tendo iniciado a sua relação em dezembro de 2022.
Confirmou ainda que se deslocou a casa do casal uma vez que havia recebido uma comunicação para ir ao Lar e que depois acompanharam a vítima para apresentar queixa, sendo que nessa altura esta apresentava escoriações pequenas na testa e pescoço e que se encontrava com a camisa rasgada.
Descreveu que após a apresentação da queixa se deslocaram à habitação do ex casal para que a vítima fosse recolher bens de primeira necessidade, encontrando-se o arguido no exterior da habitação que posteriormente se ausentou do local para ir buscar a filha à escola.
Mais confirmou que entraram pela residência pela cozinha e que esta se encontrava “toda partida”, concretizando que as cadeiras se encontravam viradas ao contrário, havia vidros partidos e que a sala também se encontrava remexida.
Descreveu que nesse entretanto o arguido chegou com a filha, tendo ainda descrito que nesse mesmo dia, mas perto das 20h, foi a GNR chamada a casa dos pais da vítima.
CC, filha do ex-casal, recusou-se validamente a depor, mas prestou declarações para memória futura que se encontram transcritas nos autos a fls. 954 e ss.
Aí, CC referiu-se à relação dos pais dizendo que nunca houve um ambiente saudável e que estes andavam sempre a discutir, com berros, maioritariamente sendo o tema os amantes de cada um.
Mais referiu que o arguido apelidava a mãe de “puta” e “prostituta” e que a mãe retribuía e o chamava de “bêbado” e “porco”.
Salientou que quando estes discutiam que ambos partiam tudo.
Descreveu ainda com detalhe o episódio de 2021, que situou como “quase verão” onde descreveu que estava em casa, com o irmão e os pais e que começou a ouvir uma discussão e foi ver o que se passava e verificou que o pai se havia trancado dentro do quarto do irmão, com este e a mãe.
Referiu que tentou arrombar a porta e que, como não conseguiu, a assistente gritou que as chaves do quarto estavam na rua.
Referenciou que nesta altura fugiu para o mato que se encontra à volta de sua casa e chamou a GNR, tendo depois voltado para casa.
Descreveu que quando se estava a deslocar para a rua para apanhar as chaves, que o pai saltou pela janela e que a testemunha trancou a porta da rua para que este não pudesse entrar por ali.
Afirmou que, para que a testemunha, o irmão e a assistente não se ausentassem de casa, o arguido arrancou os cabos das baterias dos carros que se encontravam na rua, mas que, entretanto, a testemunha abriu a porta da rua ao pai.
Salientou que a testemunha, a assistente e o irmão foram tentar buscar o carro deste último, mas que o arguido começou a agarrar a porta do carro para que este não fechasse a porta.
Descreveu ainda que o arguido continuou a tentar que estes não saíssem de casa, tendo tentado fechar o portão no carro do irmão onde estes se encontravam.
A filha do ex-casal descreveu ainda o episódio, em 2016, quando se encontravam no Continente em ..., que o arguido bateu “às chapadas” à vítima, tendo ainda puxado o cabelo.
Descreveu ainda que no dia 14 de novembro de 2022 o pai a foi buscar à escola, levou para casa e estava lá a GNR, tendo referenciado que viu a fruteira que costumava estar em cima da mesa, toda partida, fruta pelo chão, os sofás e cadeiras virados ao contrário.
Mais confirmou que nesse dia a mãe tinha ferimentos no pescoço e braço.
Narrou ainda o ocorrido na consoada de 2020, tendo confirmado que o pai tinha chegado a casa bêbado, que se meteu na banheira e depois começou a discutir com os filhos e vítima e os expulsou de casa.
A testemunha DD, cunhado do arguido, referiu que nunca viu o BB embriagado, mas que já o viu a beber à refeição e que presenciou a AA a chamar ao BB de “parvo”, “estúpido” e “burro”, uma vez em casa dos sogros, referindo que não se havia apercebido de nada que o arguido tivesse feito que o justificasse.
Descreveu a vítima como tendo variações de humor, depressiva e que esta tomava comprimidos por causa do sangue para tornar o sangue mais fino e que por isso ficava com mais marcas.
Descreveu o arguido como calmo e que até se admirava como é que ele conseguia permanecer calmo quando a vítima o chamava de nomes, sendo que esta não mostrava ter medo do arguido.
Contou ainda uma situação em que a vítima ligou à esposa, irmã do arguido, a pedir ajuda, tendo este chegado a ir ajudar, mas que se foi embora sem perceber a razão da discussão.
Confirmou que sabe que a AA já traiu o arguido e que o jipe destes ficou guardado na sua garagem porque não fechava.
A testemunha EE, irmã do arguido, referiu que frequentava a casa do ex-casal, que a vítima tinha alterações de humor e que dizia ao arguido “és um merdas”, “não vales nada”, “és um bêbado”, “ninguém te pega” e “porco”, não tendo logrado circunstancializar espacial ou temporalmente tais expressões.
Confirmou inda que nunca viu o arguido bêbado, nem alterado em virtude da bebida.
Descreveu que AA chamava nomes ao BB e que este se calava, que o manipulava e que tinha poder sobre este.
Informou ainda que chegou a contar ao irmão das relações extra conjugais da vítima de que teve conhecimento, enumerando-as.
De referir que EE e DD demonstraram alguma parcialidade, bem como um discurso algo concertado uma vez que principiaram o seu depoimento por dizer que nunca viram o arguido bêbado.
Ora, a testemunha EE em concreto prestou um depoimento transparecendo algum repúdio pela assistente, querendo dar a entender que o arguido era um marido exemplar e que a assistente é que causava todos os problemas, assim como o arguido tentou fazer.
Esta testemunha alegou ainda ter sido superior hierárquica da assistente, recorrendo a essa posição para informar o conteúdo dos relatórios médicos da assistente, numa clara atitude de vingança.
A testemunha KK, colega de trabalho da vítima referiu que esta dizia bem do arguido, que esta contou que o havia traído duas vezes e que este a havia perdoado.
Já a testemunha PP, referiu que chegou a ver a vítima com nódoas negras e que esta havia justificado com o seu problema no sangue.
Contou que muitas vezes estavam a tomar as refeições no Lar e que a vítima contava que o arguido era mau com ela, que berrava com ela, mas não dizia mal.
A testemunha HH referenciou que é a ex-mulher de II, com quem a vítima tem agora uma relação, tendo referido que se divorciaram porque “o II andava a tomar café com ela em novembro de 2022” (referindo-se à vítima).
Por fim a testemunha GG, motorista de longo curso e colega de trabalho do arguido, referiu que combinam encontrar-se para tomar as refeições quando fazem viagens e que nunca viu o arguido a falar mal ou maltratar a AA, mas que já ouviu a AA a chamar de “carneiro” e “filho da puta” ao arguido por telefone, tendo descrito que este ficava triste, não logrando concretizar temporalmente, nem em número de vezes.
Nunca viu o arguido embriagado.
Reputou-o como um bom rapaz, não sendo conflituoso.
Fundou ainda o Tribunal no relatório de perícia de avaliação do dano corporal junto aos autos a fls. 473 e 474, bem como nos esclarecimentos da perita que o elaborou prestados em sede de audiência de julgamento.
Mais teve o Tribunal em consideração, para fundar a sua convicção, na prova documental junta aos autos, designadamente:
- os assentos de nascimento de AA, BB, NN e CC – fls. 29-30, 46-48, 31-32 e 33;
- assento de casamento entre AA e BB – fls. 49-50;
- Auto de notícia de fls. 4 a 9 e respectivos aditamentos de fls. 230 a 232 e 89-91 do apenso B;
- cota de fls 346;
- auto de apreensão de fls. 44-45 do apenso B;
- Fotogramas de fls. 220 a 227 e 30 a 43 (este último do apenso B);
- Auto de interrogatório do arguido – fls. 529 a 551;
- CDs de fls. 239-240, 564-568, 1017, 1018, 556;
- prints das mensagens escritas e transcrição das mensagens de fls. 250 a 468 e 685 a 690;
- prints de fls. 9 a 11 do apenso A;
- prints de pesquisa por matrícula de fls. 475-477 e 479-480.
Os factos 1 a 4 e 47 foram confirmados quer pelo arguido, como pela vítima.
Da conjugação de todos estes depoimentos, e tendo presente a particular importância das declarações da vítima no âmbito do crime aqui em análise, o Tribunal não teve dúvidas que o arguido praticou os factos descritos na factualidade provada, designadamente os factos 5 a 34, 35 a 37, 42 a 44 e 46.
Acrescente-se, ainda, que a sua postura em audiência para isso também contribuiu, uma vez que, ao imputar a responsabilidade dos seus comportamentos à vítima, vitimizando-se e procurando justificar a sua conduta, numa postura de superioridade para com esta, tornou evidente o pouco respeito que lhe vota.
A demonstração dos factos de índole subjectiva – factos 39 a 41 e 52 -, resultou essencialmente da conjugação das regras da experiência com a demonstração de outros factos exteriores susceptíveis de os revelar, uma vez que o comportamento praticado pelo arguido não podia ter outra intenção senão aquela que ali se descreve.
O facto 38 foi dado como provado atenta a conjugação das declarações da vítima, tanto em sede de audiência de julgamento, como em sede de declarações para memória futura, com as prestadas pela filha do ex casal para memória futura.
Quanto aos antecedentes criminais – factos 53 e 54 - o Tribunal fundou a sua convicção no certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 1533 a 1534 e 1535v.
Os factos 48 a 51 foram dados como provados atenta a conjugação das declarações do arguido, vítima e da filha do ex-casal, bem como atendendo ainda à transcrição das mensagens escritas juntas aos autos.
A filha descreveu a relação dos pais como “pouco saudável”, referindo que ambos se apelidavam mutuamente de nomes injuriosos.
Relativamente à situação pessoal, familiar e económica dos arguidos, fundou o Tribunal a sua convicção no teor nas declarações dos próprios que, nessa parte, mereceram credibilidade.
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No que diz respeito aos factos não provados 1 a 21, estes assim se consideraram quer por ausência ou insuficiência de prova.
Vejamos, os factos 1 a 5, 7, 9, 12 e 19, foram dados como não provados por não ter sido produzida prova no seu sentido.
O facto 6 foi dado como não provado uma vez que a justificação que o arguido apresentou para ter guardado o jipe do casal na garagem da irmã foi plausível – este tinha uma janela estragada e precisava de estar guardado numa garagem -, tendo tal justificação sido corroborada pela irmã e pelo cunhado que, nessa parte pareceram sinceros.
Por outro lado, da prova produzida em audiência de julgamento, não ressaltou que o arguido se tivesse obstado a que a assistente ficasse com quais quer bens que fossem.
Por outro lado, em relação às mensagens que constam dos autos onde se verifica a assistente a pedir um carro ao arguido, verifica-se ainda que a sua resposta nos parece sincera – o carro em questão estaria no mecânico – sendo que também ao longo de uma troca de mensagens se verifica o arguido a oferecer à assistente o alegado carro que estaria no mecânico, pelo que, face ao exposto, não foi produzida prova suficiente que fizesse crer ao Tribunal que este o arguido quisesse que a assistente ficasse sem acesso aos automóveis do casal.
Quanto ao facto 8, negado pela assistente, este foi referido pela irmã do arguido e por este, todavia, não conseguiram concretizar quando, nem onde este facto terá acontecido.
Veja-se que tal facto não foi referido por mais nenhuma testemunha, designadamente pela filha do casal que prestou declarações em sede de declarações para memória futura e que terá assistido à maioria da vivência e dinâmica dos arguidos como casal e família alargada.
As expressões constantes do facto 10 foram apenas referidas pelo arguido e pela sua irmã, tendo-se esta última apresentado em audiência de forma altiva, querendo demonstrar superioridade sobre a assistente.
De referir que esta testemunha prestou depoimento na mesma linha do arguido, ou seja, por forma a descredibilizar a vítima, alegando que todas as discussões que existiam eram por esta iniciadas e por sua culpa, reputando o arguido como um bom marido que “chega do trabalho e ainda tem de tratar da roupa e fazer o jantar”.
O mesmo se diga do cunhado do arguido.
Ora, como supra referido, arguido e irmã referem que a vítima proferia aquelas expressões contra o arguido em frente de toda a gente da família, nisto se incluindo os filhos.
Todavia, a verdade é que a filha do casal apenas referiu que ouviu a mãe chamar ao pai “bêbado”.
Assim, conjugando todo o supra exposto, não tendo o depoimento da irmã e cunhado do arguido sido credível, considerou-se como não provado o facto 10.
Os factos 11, 13 a 18 e 20 e 21, foram dados como não provados uma vez que estes se referem à ofensa da honra tanto do arguido para com a assistente, como da arguida para com o assistente.
Vejamos.
Foi unânime o facto de todas as testemunhas reputarem a dinâmica do casal como conflituosa, bem como foi aceite pelos arguidos que estes discutiam e se reputavam mutuamente com expressões injuriosas.
Da factualidade provada e que resultou da prova produzida em sede de audiência de julgamento, ressaltou que esta era a dinâmica de relacionamento entre os arguidos, isto é, o facto destes proferirem expressões injuriosas era tão natural, frequente e usual que o Tribunal ficou em crer que o seu objectivo não era atingir a honra da outra parte, mas sim que era a forma destes interagirem.
E não se diga que segundo as regras da experiência comum, ninguém tem uma forma de interagir injuriosa porque bem sabemos que não é assim.
Em cada relacionamento existe uma dinâmica e, no caso dos autos ficou provado que era uma dinâmica disfuncional e, nas palavras de CC, filha do casal, “pouco saudável”.
O Tribunal ficou convencido que os arguidos já não nutriam qualquer respeito um pelo outro, sendo a linguagem injuriosa a sua linguagem um para com o outro.
De salientar ainda que as colegas de trabalho da arguida, ouvidas nos presentes autos como testemunhas, não lograram confirmar que esta apelidava o arguido de quaisquer expressões injuriosas, muito menos, face ao referido, concretizando-as no tempo.
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Do Direito
III. Enquadramento jurídico-penal
Uma vez fixados os factos, cumpre agora proceder à sua subsunção jurídica e aplicar o Direito.
A arguido vem acusada da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal.
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Do crime de violência doméstica
Estabelece o artigo 152º, nº 1, alínea a), do Código Penal, sob a epígrafe “violência doméstica”:
“1- Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”.
Por sua vez, preceitua o seu nº 2, alínea a), que,
“2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;
(…)
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”.
Já os números 4 a 6 do mesmo artigo dispõem que:
“4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos.”.
O bem jurídico protegido pela incriminação reside na dignidade da pessoa humana, incluindo-se todos os comportamentos que lesam essa dignidade.
Assim ensina Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 332., dizendo que: “o bem jurídico protegido é a saúde – bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos”.
Explicando, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, pág. 464, que, os bens jurídicos protegidos pela incriminação são: “a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra.” Acrescentando que este crime “é um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima.”, na medida em que pressupõe a existência de uma determinada relação entre o agente e a vítima, motivo pelo qual é também denominado como sendo um crime de relação, estando «em causa a protecção da dignidade e da integridade da pessoa enquanto membro de uma relação conjugal, e enquanto participante de uma realidade familiar ou “análoga”» como refere Miguez Garcia, in O Direito Penal Passo a Passo, Vol. I, Almedina Editora, 2011, pág. 204 e 205.
O tipo objectivo do ilícito em análise «inclui as condutas de “violência” física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal», sendo que as condutas previstas e punidas pela presente incriminação podem revestir várias espécies, nomeadamente: «os “maus-tratos físicos”, que correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os “maus tratos psíquicos” aos crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas.» (Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, pág. 465).
De acordo com o disposto no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.02.2004, Proc. 2857/03-3, disponível em www.dgsi.pt, maus tratos físicos são definidos como os “actos que se traduzem em qualquer forma de violência física, designadamente ofensas corporais e considera maus tratos psíquicos os actos que ofendem a integridade moral ou o sentimento de dignidade, como as injúrias, humilhações, ameaças e outros.”
E, de acordo com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.02.2008, Proc. 1702/2008-3, disponível em www.dgsi.pt, os maus-tratos psíquicos “compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional que perturbe a “normal convivência e as condições em que possa ter lugar o pleno desenvolvimento da personalidade dos membros do agregado familiar”.
Estas condutas identificadas que integram o tipo objectivo do crime em análise são susceptíveis de, isoladamente consideradas, consubstanciarem outros crimes, nomeadamente, o crime de ofensa à integridade física simples, injúria, difamação, ameaça, entre outros.
No entanto, entre os crimes acabados de referir e o crime de violência doméstica existe uma relação de especialidade pelo que o fundamento que leva a que o crime em análise nos presentes autos seja punido de forma mais agravada é, exactamente, a relação que liga o agente à vítima que cria entre os mesmos uma particular obrigação de não infligir maus tratos à pessoa com quem mantém uma relação amorosa, seja cônjuge ou não, sendo as referidas condutas que integram o tipo objectivo do crime valoradas globalmente por forma a aferir-se da violação do bem jurídico do crime.
Neste seguimento, entende-se que o crime de violência doméstica estará verificado quando ocorra verdadeiramente um dano do bem jurídico protegido pela incriminação da norma, sendo certo que, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.09.2014, “Não exigindo o tipo legal uma reiteração de acções, um único acto ofensivo só consubstanciará «maus tratos» se se revelar de tal modo intenso que ao nível do desvalor (quer da acção quer do resultado) seja apto a lesar em grau elevado o bem jurídico pondo em causa a dignidade da pessoa humana.”.
Relativamente ao tipo subjectivo de ilícito, o crime de violência doméstica pressupõe que o agente actue com dolo (em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal), pelo que o agente terá de ter o conhecimento correcto da factualidade típica, sob pena de não se preencher o elemento intelectual do dolo.
Revertendo aos presentes autos resultou provado AA e BB iniciaram uma relação amorosa em data não concretamente apurada e contraíram matrimónio a ../../2000, tendo ambos fixado residência, em data que não foi possível determinar, na Rua ..., ..., ..., ....
Fruto da relação entre ambos nasceram dois filhos, NN e CC, respectivamente a ../../2001 e ../../2007.
Porém, AA e BB separaram-se e, no dia 16/01/2017, vieram a divorciar-se.
Apesar do divórcio, AA e BB reataram a relação amorosa e voltaram a residir juntos, na morada acima descrita.
Tendo ainda resultado provado que no dia 24/12/2020, noite da Consoada de Natal, perto da hora do jantar, BB chegou embriagado à supra referida residência e não tomou a respectiva refeição com AA e com os seus filhos, tendo, ao invés, se dirigido à casa de banho e ali permanecendo até cerca das 22h00.
Posteriormente, BB dirigiu-se à sala onde se encontrava AA e seus filhos e, assim que se apercebeu que os mesmos se encontravam a tomar a refeição, levantou os pratos de todos e colocou-os na cozinha e iniciou uma discussão com aquela, no decurso da qual vociferou a AA para a mesma sair de casa e aos seus filhos para, caso quisessem ficar com a mãe, se irem embora.
Posteriormente, pelas 23h desse dia, AA e os filhos foram pernoitar para casa dos pais daquela, na Rua ..., ..., ..., ..., ....
No dia 09/05/2021, pelas 12h40, BB chegou, embriagado, à residência acima descrita, na qual se encontravam AA e os seus dois filhos e iniciou uma discussão esta última, no decurso da qual o mesmo lhe disse que tinham de falar e que a mesma tinha amantes, sendo que desferiu um número não concretamente apurado de pontapés nas portas das divisórias da residência.
Com receio da conduta de BB, AA refugiou-se no quarto do filho de ambos, NN, no qual este se encontrava, tendo aquele seguido no seu encalço e, acto contínuo, fechou a porta e trancou o trinco com a respectiva chave, fechando-se dentro de tal divisória com AA e NN.
AA tentou fugir daquele local, mas sem conseguir, por a porta se encontrar trancada, sendo que BB pegou na respetiva chave e atirou-a para o exterior através da janela do quarto, que então se encontrava aberta, visando impedir qualquer um de sair do citado quarto.
Entretanto, CC tentou abrir a referida porta, mas sem sucesso, ao que BB, assim que se apercebeu de tal facto, desferiu um número não concretamente apurado de pontapés na citada porta, fazendo com que aquela se sentisse amedrontada.
Instantes depois, BB saiu para o exterior da residência pela janela do quarto onde se encontrava, após o que atirou a chave da porta que havia anteriormente arremessado para dentro do referido quarto, assim permitindo que AA e NN dali pudessem sair.
Acto contínuo, e ainda no exterior na residência, BB dirigiu-se ao logradouro, no qual se encontravam estacionados três veículos automóveis, mais concretamente
a. Um veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca e modelo BMW 320I, de matrícula ..-..-XQ;
b. Um veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca e modelo BMW X53, de matrícula ..-..-XV;
c. E um automóvel ligeiro de passageiros de marca e modelo SEAT IBIZA, de matrícula ..-..-LB, (com matrícula que não foi possível apurar), o qual era, à data, apenas utilizado por NN,
abriu os respectivos capôs e desligou os cabos que ligavam o motor à bateria, de forma a impedir que os mesmos iniciassem a marcha e que AA pudesse sair do local através dos mesmos, apenas não o tendo feito quanto ao último referido veículo, por o mesmo se encontrar trancado.
De imediato, BB voltou a entrar na residência, tendo AA aproveitado a sua distração para sair ao exterior com os filhos de ambos, após o que estes se deslocaram até ao veículo da marca SEAT, sendo que NN entrou no mesmo pela porta do condutor, ligou o motor e iniciou a marcha, enquanto a sua mãe e irmã permaneciam apeadas ao lado de tal veículo.
Apercebendo-se do funcionamento do veículo em questão, BB deslocou-se novamente ao logradouro e, de forma a impedir que qualquer pessoa dali saísse, correu em direcção ao veículo, abriu a porta do condutor e tentou tirar a chave da ignição, com o mesmo ainda em funcionamento, o que não logrou, por ter sido impedido por NN.
Paralelamente, CC, que se encontrava amedrontada com o sucedido, saiu das proximidades dos seus pais, de forma que não foi possível apurar, tendo-se deslocado para uma zona de mato sita nas imediações e, a partir daí, contactou telefonicamente a GNR de ..., solicitando a deslocação de uma patrulha ao local, o que veio a suceder.
Depois de a GNR ter chegado ao local, AA, NN e CC lograram dali sair, tripulando o veículo conduzido por NN.
No dia 14/11/2022, sensivelmente pelas 09h, quando se encontravam na sua então residência, mais concretamente na cozinha, BB iniciou uma discussão com AA, no decurso da qual aquele disse a esta última que “queria conversar” e que a mesma “tinha amantes”, o que foi por esta negado.
De imediato, BB colocou uma das suas mãos num dos bolsos do casaco que AA trajava e retirou-lhe o seu telemóvel, tencionando visualizar as comunicações ali contidas, após o que arremessou uma fruteira que se encontrava numa mesa na cozinha ao solo, partindo-a.
AA tentou reaver o seu telemóvel, sem sucesso e BB agarrou-a pela parte superior dos braços, perto dos ombros e empurrou-a para uma cadeira que ali se encontrava.
Apesar de AA tentar levantar-se da cadeira em número de vezes não concretamente apurado e de tentar afastar-se de BB, o mesmo, enquanto a acusava de ter amantes, agarrou-a com força, pela parte superior dos braços, ao ponto de rasgar a camisa que a mesma vestia e empurrou-a sucessivamente para a cadeira da qual a mesma se levantava e, posteriormente, sobre outras cadeiras, à medida que AA ia conseguindo movimentar-se, assim a obrigando a permanecer sentada contra a sua vontade.
Entretanto, AA conseguiu efectivamente, levantar-se de uma das cadeiras onde se encontrava sentada e logrou deslocar-se até à sala, ao que BB seguiu ao seu encalço e empurrou-a contra um puf que ali se encontrava, o que provocou o desequilíbrio da ofendida e consequente queda no solo sobre tal objecto.
Ato contínuo, BB colocou-se sobre AA, e fazendo uso da sua força, apertou-lhe o pescoço com as duas mãos, ao mesmo tempo que, com foros de seriedade, lhe disse “vou buscar umas facas, mato-te e vais para o céu”, tendo posteriormente colocado a sua mão sobre a boca desta, para a impedir de falar ou gritar.
Não obstante ser manietada por BB, AA logrou soltar-se daquele e conseguiu levantar e deslocar-se até uma das janelas da sala, ao que aquele, novamente, seguiu-a e desferiu-lhe um empurrão, fazendo com que esta última viesse a cair sobre um sofá que ali se encontrava.
De imediato, AA levantou-se de tal sofá na tentativa de continuar a afastar-se de BB, o qual a empurrou novamente, desta feita contra um novo sofá, de dimensões mais reduzidas que o anterior, fazendo com que a mesma ficasse sentada no mesmo.
Nesse seguimento, BB aproximou-se do sofá onde AA estava sentada, levantou-o em peso e, recorrendo ao uso da força, virou-o ao contrário, fazendo com que esta última caísse no solo e o aludido sofá tombasse sobre o corpo desta.
Assim que tal sucedeu, BB vociferou “dizes que andas sempre a limpar a casa, mas a casa debaixo do sofá está suja, o que tu fazes eu fazia em meia hora”.
Durante tais factos, AA encontrava-se descalça e, enquanto tentava resistir à forma como era manietada por BB, logrou obter a chave do BMW X5 acima descrito, que se encontrava num dos bolsos da roupa que este último então vestia.
Instantes depois, AA conseguiu sair debaixo do aludido sofá, levantou-se e afastou-se de BB, tendo logrado sair da sala e se deslocado para o exterior, mais concretamente ao logradouro, onde entrou no veículo acima descrito.
Nesse momento, BB surgiu no local, dirigiu-se aos portões pelos quais tal veículo teria de passar para sair e fechou-os com as suas mãos e, de seguida, de viva voz e com foros de seriedade, dirigiu a AA as seguintes expressões: “Não estou para viver desta forma consigo e custa-me pouco tapar-te a boca arrastar-se pelos cabelos até à porta da cozinha”, após o que voltou a entrar na residência.
Logo após, AA entrou na residência para se calçar, o que fez, deslocou-se novamente ao veículo acima descrito, iniciou a marcha e logrou sair da citada residência, cerca das 10h30.
Sucede que, AA não conseguiu levar o seu telemóvel conseguido, pois BB ficou com o mesmo, por lho ter tirado, permanecendo na então residência e sob o controlo deste até cerca das 15h30 do dia supra descrito, quando aquela se deslocou novamente à referida residência, desta feita acompanhada de militares da GNR de ....
Após, AA abandonou definitivamente a residência comum e passou a pernoitar, juntamente com a sua filha, na residência dos seus pais, acima descrita.
Como consequência directa e necessária da conduta de BB supra descrita, AA, além de ter sofrido dores nas partes do corpo que infra se descrevem, e de ter hematomas e arranhões, designadamente, no pescoço, pernas e braços, apresentou:
a. No membro superior esquerdo: duas equimoses da face anterior e lateral externa do terço médio do braço com 5 por 5 centímetros e 5 por 4 centímetros e outra equimose arroxeada da face posterior do braço, com 1 centímetro de diâmetro;
b. No membro inferior esquerdo: equimose acastanhada da raiz da coxa com 2 centímetros de diâmetro e outra da face anterior do terço superior da perna com 2 por 3 centímetros de maiores dimensões.
Acontece que, no mesmo dia 14/11/2022, pelas 19h30, BB deslocou-se à residência dos pais de AA, logrou abrir o portão de entrada, de forma não concretamente apurada e dirigiu-se à porta de entrada da residência, tendo desferido um número não concretamente apurado de pancadas na mesma, ao mesmo tempo que, de viva voz, apodava AA de “puta” e exigiu ver a sua filha, o que foi escutado por CC e fez com que a mesma se sentisse amedrontada.
Nessa sequência, foi acionada uma patrulha da GNR de ..., que se deslocou à referida residência, após o que BB abandonou o local sem levar acabo os seus intentos.
Mesmo após os factos descritos acima, BB enviou continuamente mensagens escritas (constantes de fls. 250 a 468 e que se dão por integralmente reproduzidas no presente despacho, por desnecessidade de transcição) do telemóvel por si utilizado, com o número ...42, para o número de telemóvel utilizado por AA, ...28, no decurso das quais o mesmo, para além do mais:
c. Que o pai de AA tem vergonha desta (no dia 16/11/2022, às 07h21);
d. Que AA vinha sempre acompanhada para fazer a novela e de coitadinha (no dia 14/12/2022, às 05h32);
e. Escreveu expressões que insinuavam que AA não foi agredida por si (no dia 16/11/2022, pelas 06h16, 06h17, 07h15; no dia 17/1172022, pelas22h14);
f. Disse a AA que gostava da mesma e questionou-a, por diversas vezes, se gostava de si (no dia 21/11/2022, pelas 22h45, 22h50, 22h52, 22h55, 22h56).
Na sequência de todo o supra descrito, e como consequência da conduta de BB, AA sentiu-se psicologicamente perturbada, humilhada e amedrontada, pois, além de ter, a todo o momento, aquele atentasse contra a sua integridade física ou mesmo contra a sua vida.
Com todas as suas condutas supra descritas, BB, como representou, quis e logrou realizar, molestou o corpo e a saúde física e psíquica de AA, bem sabendo que a mesma se encontrava impossibilitada de se defender das suas investidas, designadamente por força da sua inferior compleição física.
O arguido estava também ciente de que praticava os factos acima descritos na habitação comum com AA e sobre esta última, que era, à data, sua ex-mulher e companheira e a quem, nessas qualidades, devia respeito, cuidado e protecção, bem como os perpetrava na presença dos filhos de ambos, inclusivamente de CC que era, naquelas datas, ainda menor de idade, não se abstendo de a expor aos seus comportamentos, que a deixavam amedrontada e psicologicamente transtornada.
Ao logo de todas as suas condutas, o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as mesmas eram proibidas e puníveis por lei penal.
Em data que não foi possível apurar, mas no ano de 2016, entre as 15h e 16h, nas imediações do Continente de ..., BB disferiu um número que não foi possível apurar de chapadas com a mão aberta a AA.
Em data não concretamente apurada, mas seguramente em julho de 2016, BB deslocava-se num veículo automóvel com AA e os dois filhos, tendo ido deixar estes dois últimos ao avô paterno e seguido com AA para a casa do casal.
Já no interior da casa do casal, BB retirou o seu cinto e atingiu AA nas pernas, um número de vezes que não foi possível apurar, mas certamente mais do que uma.
No caso dos autos e face a toda a matéria de fato dada como provada que se dá por reproduzida é evidente que as condutas do arguido demonstram, claramente, que este, motivado pelos ciúmes que sentia, pretendeu e conseguiu o propósito de subjugar a ofendida, submetendo-a a um tratamento desprezível e desumano, que lhe causou dor, o que, em si mesmos e sem qualquer dúvida afectaram a sua dignidade pessoal, nos termos e para os efeitos da aplicação do artigo 152.º, n.º 1 do C.P.
Entende, pois, o Tribunal que o arguido atingiu, com este comportamento, intoleravelmente, o núcleo essencial do bem jurídico protegido pela incriminação e, por isso, não nos restam dúvidas de que o arguido, com a sua conduta, cometeu um crime de violência doméstica pelo qual vinha acusado, pelo que terá de ser condenado, crime punido pelo nº1, alínea a) e 2, alínea a), do mesmo artigo pois que os factos foram praticados na residência comum do casal e em frente da filha do casal, à data menor de idade.
*
DO CRIME DE INJÚRIA
A arguida vem acusada da prática em autoria material e na forma consumada de um crime de injúria.
Ora, determina o n.º 1, do artigo 181º, do Código Penal que “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.”
Com esta norma visou o legislador tutelar o bem jurídico honra, que tem sido entendido como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo radicado na sua dignidade, quer a sua própria reputação ou consideração exterior (neste sentido, JOSÉ FARIA COSTA, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 607).
Assim, protege-se não só a própria dignidade pessoal mas também o sentimento daquilo que "os outros pensam e vêm em si, independentemente de corresponder à verdade, dando, assim, cumprimento ao estipulado na nossa Lei Fundamental que tutela autonomamente a inviolabilidade da integridade moral das pessoas e a sua consideração social, mediante o reconhecimento a todos do direito ao bom nome e reputação” (ANTÓNIO J. F. DE OLIVEIRA MENDES, in O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, pág. 20 e ss.).
Como referem SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, a honra pode ser entendida como «a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter...» (Código Penal Anotado, 3.ª Edição, pág. 469), enquanto que a consideração é o «património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros» (Código Penal Anotado, 3.ª Edição, pág. 469).
De todo o modo, releve-se que o conceito de honra tem sido definido e valorado de modos diferentes consoante a concepção (fáctica ou normativa) que dela se tenha.
Assim, e de acordo com a concepção fáctica de honra, esta consiste no juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma, corrigido pelo critério do sentimento médio de honra tido pela comunidade em que se insere, ou na avaliação que os outros fazem sobre ela e que, de acordo com este sentido objectivo, equivale à consideração, ao bom nome, à reputação de que uma pessoa goza no contexto social envolvente.
Por outro lado, a concepção normativa de honra caracteriza-a como um aspecto da personalidade de cada indivíduo, que lhe pertence pelo simples facto de ser pessoa e ter direito à sua dignidade, aliado também ao valor social de que a pessoa goza no contexto das relações sociais em que se insere.
Na realidade, e na medida em que ambas as concepções apresentam dificuldades e fragilidades, que nos dispensamos aqui de enunciar, a doutrina que veio a consagrar-se dominante parte da concepção normativa de honra mas tempera-a com a sua vertente fáctica, definindo a honra como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a sua própria reputação ou consideração exterior (neste sentido, JOSÉ FARIA COSTA, ob. sit.).
Quanto aos elementos objectivos do tipo, podemos com segurança afirmar que os mesmos se vertem na ofensa propriamente dita, ou seja na imputação de factos ofensivos da honra ou da consideração, sendo certo que tal imputação tem de ser feita directamente à pessoa visada.
Bem assim, as palavras utilizadas têm necessariamente de ser tidas como obscenas e ofensivas no contexto social em que o lesado se insere.
Além disso, hão-de ser expressões cujo uso não seja quotidiano e tido como normal e aceitável nesse mesmo meio, e nas relações entre o ofensor e o ofendido.
Refira-se ainda que esta imputação de factos praticados pelo visado pode mesmo ser feita sob a forma de suspeita, o que permite alargar consideravelmente o âmbito de aplicação da norma, abraçando também as situações aliás mais perversas da imputação de factos que estejam cobertos pelo manto da suspeita, aliás as formas mais destruidoras da honra e consideração das pessoas.
Finalmente, o elemento subjectivo deste crime restringe-se ao dolo, podendo definir-se como a intenção e vontade de proferir as palavras ou imputar os factos ofensivos da honra da pessoa visada, bem sabendo que o são e querendo com isso afectá-la, enfim, na sua dignidade pessoal e social, consciente de que a lei proíbe e pune tal comportamento.
Assim, e como é sabido, o crime de injúria é um crime contra as pessoas em que basta, para a sua execução no plano subjectivo, o dolo genérico (mesmo eventual), desde que os factos imputados ou as palavras sejam objectiva e subjectivamente ofensivas da honra, dignidade ou consideração de uma pessoa jurídica; no plano objectivo, para além do facto de a violação da honra ser perpetrada de maneira directa, ou seja, perante a vítima, ele realizar-se-á mediante a imputação de facto ou mediante a formulação de um juízo ofensivo da honra de outrem. (cfr. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, "As Consequências Jurídicas do Crime", Vol. I, pág. 218).
Sendo a vida em sociedade pautada por situações de conflito potencial, mais estando a intervenção penal subordinada ao princípio da subsidiariedade, é entendimento dominante que apenas assumem relevância penal os juízos ou valorações que ultrapassem o âmbito da critica objetiva, isto é, aqueles que atingem a honra e consideração pessoal do visado, por não se encontrarem relacionados com uma qualquer conduta ou obra, antes tendo como propósito humilhá-lo e rebaixá-lo.
Neste sentido, entre outros, lê-se no Ac. do TRP, de 20-06-2012 , o seguinte: ““I - A liberdade de expressão tem longínquas raízes históricas, surpreendendo-se na Constituição dos EUA, o primeiro texto legal a referir-se claramente a tal liberdade. II - São cada vez mais frequentes os conflitos entre o direito à honra, bom nome e reputação, por um lado, e o direito de expressão do pensamento, por outro. III - Numa sociedade democrática, a liberdade de expressão reveste a natureza de verdadeira garantia institucional, impondo por vezes, um recuo da tutela jurídico-penal da honra. Recuo, que tem que ser justificado por um correcto exercício da liberdade de expressão, aferido pelo interesse geral. IV - Sendo inevitável o conflito entre a liberdade de expressão, na mais ampla acepção do termo e o direito à honra e consideração, a solução do caso concreto, há-de ser encontrada através da “convivência democrática” desses mesmos direitos: i. é., consoante as situações, assim haverá uma compressão maior ou menor de um ou outro. V - Costa Andrade defende que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto, esclarecendo, no entanto, que se deve excluir a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar. […]”.
Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem perfilhado, em inúmeros arestos, uma visão mais ampla do que deve ser entendido como ofensivo da honra, acentuando a importância que a liberdade de expressão assume num Estado de Direito Democrático, com particular incidência em contextos de atuação política ou informação pública.
Contudo, e como se escreveu no Ac. do TRP, de 22-02-2023 , “I – Porque há que conciliar a tutela do direito à honra atingido (…) e a liberdade de expressão e crítica, há que distinguir entre a crítica da atuação de uma pessoa e a crítica que atinge a própria pessoa na sua dignidade, entre um juízo sobre essa atuação (que poderá até ser injusto, exagerado, formulado em termos agressivos, ou indelicados e descorteses) e um juízo sobre a pessoa”, sendo que a jurisprudência do TEDH não anula tal distinção, como se inexistisse direito à honra, nomeadamente entre particulares.
No que diz respeito ao elemento subjetivo, trata-se de um crime doloso, que pode assumir qualquer uma das modalidades previstas no art.º 14.º do CP.
Revertendo ao caso concreto e tendo em conta a factualidade dada como provada, designadamente que, de forma reiterada, em datas que não foi possível apurar, mas com especial incidência a partir do ano de 2019 e até ao término da relação, em finais do ano de 2022, AA, num número de vezes que não foi possível apurar mas pelo menos uma vez, dirigindo-se a BB, quer pessoalmente, quer estivessem sozinhos ou na presença de terceiros, apelidou-o de “bêbado”, “porco”, “cabrão”, “touro”, “boi” e “atrasado”.
Mais disse AA a BB, pelo menos uma vez e em data que não foi possível apurar, que “se queres roncar para mim, roncas em casa”.
As expressões referidas em 48. foram proferidas presencialmente por AA dirigindo-se a BB quando se encontravam sozinhos, quando se encontravam na presença dos seus filhos, sendo a filha menor de idade à data e quando estavam acompanhados de terceiros, designadamente da irmã do BB EE e cunhado OO, quer na habitação comum, quer em locais públicos.
AA dirigindo-se a BB, enviou diversas mensagens escritas através do contacto telefónico por si utilizado (...28) para o contacto telefónico utilizado por BB (...42) através de mensagens de texto e da plataforma “whatsapp”, constantes de fls. 250 a 468 e 590 a 684, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para os devidos e legais efeitos, e no decurso das quais a mesma:
a. Acusou BB de ter amantes e de a trair, designadamente no dia 03/07(2021, às 11h57 (fls. 670 dos autos), no dia 30/08/2021, às 11h59 (fls. 675), no dia 23/10/2022, ás 20h42 /fls. 592), no dia 16/11/2022, às 6h15, 06h19, 06h22, 06h26, 06h55 e 10h06 (fls. 9,15, 18 e 90 do termo de juntada datado de 13/12/2022 e fls. 601 f- e 610 f) e no dia 21/11/2022, às 8h (fls. 186 do termo de juntada datado de 13/12/2022 e fls 616 f);
b. Disse que BB era maluco, designadamente nos dias 02/11/2022, às 11h21 (fls. 597) e 16/11/2022, às 10h29 e 10h30 (fls. 99 e 100);
c. Disse que BB era um bêbado, designadamente no dia 24/08/2022, às 15h43, 15h44, 15h46 e 16h25 (fls. 638, 639, 641 e 646);
d. Disse que BB era um miserável, designadamente no dia 24/08/2020, às 15h45 e 15h47;
e. Disse que BB era um porco, nos dias 30/12/2020, às 11h16 e 11h41 – fls 657 e 658), no dia 19/01/2021, às 17h14 (fls. 660), no dia 30/08/2021, às 11h59 (fls. 675) e no dia 28/10/2021, às 14h24;
f. Disse que BB era um atrasado, designadamente no dia 01(11(2022, às 22h22 (fls. 679);
g. Disse que BB merecia levar nos cornos como levou o membro da sua família, no dia 10/05/2021, às 8h28 (fls. 664).
Ao agir da forma supra descrita, a arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, representando e aceitando os resultados alcançados, sendo que, não obstante esta saber que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime, não se absteve de atuar da forma descrita.
Há ainda que atender que foi ainda dado como provado que, BB enviou continuamente mensagens escritas (constantes de fls. 250 a 468 e que se dão por integralmente reproduzidas no presente despacho, por desnecessidade de transcição) do telemóvel por si utilizado, com o número ...42, para o número de telemóvel utilizado por AA, ...28, no decurso das quais o mesmo, para além do mais:
a. Acusou AA de ter amantes, de o trair, de ser uma criança, viver romances da escola com 15 anos e de ter um cérebro de canalha, pior que a sua filha, entre outras expressões referentes a esse tipo de imputações (designadamente, os dias 16/11/2022, pelas 05h33, 06h14, 06h20, 06h54, 07h10, 10h33, 10h35, 11h53, 12h, 15h02, 16h02, 18h07, 21h; no dia 17/11/2022, pelas 10h25, 10h26, 11h04, 22h02, 22h06, 22h48; no dia 18/11/2022, pelas 02h37, 02h49, 03h, 12h26, 12h37, 15h58; no dia 21/11/2022, pelas 22h45 e 22h49);
b. Disse que AA era uma “sem vergonha porca” (no dia 18/11/2022, pelas 03h01).
Na situação sub judice, temos que tais expressões foram proferidas num contexto de conflitualidade entre o casal que, ao que se apurou era a sua dinâmica familiar, o que, de foi asseverado até pela filha do casal.
Ora, tais expressões, tanto por parte da arguida, como do arguido, podem eventualmente ser compreendidas enquanto manifestação do seu desagrado pela conduta assumida pela outra parte quando proferidas no seio familiar.
Aliás, o clima vivido por esta família, que a testemunha CC apelidou de “pouco saudável”, era de conflito permanente causado por ciúmes de parte a parte.
Assim, o Tribunal ficou com a convicção de que as expressões supra referidas o foram de parte a parte, num clima de conflitualidade permanente e, não conseguindo o Tribunal apurar quem iniciou, sendo que, segundo as regras da experiência comum, tal seria extremamente improvável uma vez que toda a relação assim foi pautada, reputa-se que os factos acima descritos são a descrição da dinâmica familiar dos arguidos, que estes aceitaram e para a qual ambos contribuíam.
Atente-se ainda à falta de elemento subjectivo, uma vez que o Tribunal acredita que o objectivo dos arguidos não era atingir a honra e dignidade da outra parte uma vez que esta interacção entre ambos já estava integrada e entranhada na sua relação.
Face a todo o exposto, inexistindo elemento subjectivo para integrar o crime da qual a arguida vinha acusada, e considerando que os factos supra descritos, atenta o seu contexto, não atingem a dignidade penal suficiente para integrar o crime pelo qual a arguida vinha acusada, e tendo em conta que inexistem factos de ser subsumíveis ao elemento subjectivo, pelo que terá de ser absolvida.
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DO CRIME DE DIFAMAÇÃO
A arguida vem também acusada pela prática, em autoria material de um crime de difamação previsto e punido pelos arts. 180.º, n.º 1 do Código Penal.
Dispõe o referido preceito que “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias”.
Com esta incriminação pretendeu o legislador tutelar a honra do indivíduo, vendo a doutrina dominante tal honra como um bem jurídico complexo, o qual inclui, por um lado, “o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, e, por outro, a sua própria reputação ou consideração exterior” (neste sentido, JOSÉ DE FARIA COSTA, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I – Artigos 131.º a 201.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 602 a 607).
A difamação traduz a actuação de quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo.
Difamar é assim desacreditar publicamente; é atribuir a alguém um facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social e, por consequência, sejam ofensivos da reputação do visado.
Assim, doutrinariamente pode definir-se difamação como a atribuição indirecta a outrem de factos ou juízos, ainda que não criminosos, que encerrem em si reprovação ético social, isto é, que sejam ofensivos da reputação do visado.
Na linguagem da lei a difamação compreende comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém.
Honra é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter; é a dignidade subjectiva, entendida como o elenco de valores éticos que cada pessoa possui; consideração é o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros; é a dignidade objectiva, a forma como a sociedade vê cada cidadão.
Por isso afirmava Schoppenhauer que a honra, “objectivamente, é a opinião dos outros sobre o nosso mérito; subjectivamente o nosso receio diante dessa opinião”.
A difamação distingue-se da injúria por pressupor uma relação triangular, em que a ofensa é levada a cabo através da intervenção de uma terceira pessoa, ou seja, dirigida e veiculada por terceiro (ou terceiros), e não directamente perante a própria vítima.
Na definição do bem jurídico protegido com a incriminação da difamação deve-se, em nosso entender, partir de uma concepção normativa da honra, entendida enquanto bem que respeita a todo o homem pela sua qualidade de pessoa, e que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade (a honra inerente à pessoa enquanto portadora de valores morais e espirituais), quer a própria reputação ou consideração exterior.
A doutrina dominante perfilha ainda do entendimento de que a compreensão da honra, enquanto bem jurídico socialmente vinculado, tem uma óbvia variabilidade, “em função das representações colectivas dominantes e historicamente contingentes”.
O crime de difamação é um crime necessariamente doloso (artigo 13º do Código Penal), pressupondo o conhecimento dos elementos objectivos do tipo (elemento intelectual do dolo), a vontade de realização do facto (elemento volitivo) e a consciência da ilicitude da conduta (elemento emocional do dolo).
O dolo pode aqui revestir qualquer das suas modalidades, incluindo o dolo eventual (artigo 14º do Código Penal).
Em resumo, em termos de tipo objectivo de ilícito podemos sistematicamente afirmar que este se estrutura em dois grandes segmentos:
- Por um lado a ofensa propriamente dita;
- Por outro o segmento de sinuosidade que exige que a conduta não se face directamente ao ofendido, mas antes seja dirigido a terceiros.
Entenda-se que para se considerarem verificados os pressupostos do tipo legal em análise não é necessário que o ofendido tenha sofrido, de facto, uma diminuição na sua honra, ou na consideração social; basta que haja o perigo de que as ofensas que constituem aquelas infracções possam atingir esses dois valores.
Efectivamente a lei não exige que eles sejam realmente prejudicados, isto é, que os ofendidos, de facto, sejam computados socialmente como pessoas com menor dignidade do que a que tinham antes da ofensa, ou com menor consideração do que aquela que lhes era atribuída antes do ultraje em questão.
Relevante será a contextualização dos factos, ou seja, a atenção à característica da relatividade, o que quer dizer que o carácter injurioso de determinada palavra ou acto é fortemente tributário do lugar ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorrem e do modo como ocorrem (LEAL HENRIQUES E SIMAS SANTOS, O Código Penal de 1982, volume 2, pág. 203, 1986).
Por fim, e no que toca ao elemento subjectivo, podemos afirmar que o crime de difamação é um crime doloso, o que quer significar que só estão arredadas do seu âmbito subjectivo as condutas negligentes, sendo por isso suficiente a imputação baseada tão só em dolo eventual.
Ora, face a todo o exposto e à factualidade dada como provada nos autos, somos de concluir que a arguida não cometeu o crime de difamação que lhe é imputado, pelo que tem de ser absolvida.
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Da escolha e determinação da medida da pena
O crime de violência doméstica em causa, é punível com pena de prisão de dois a cinco anos – artigo 152.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal.
Sendo o crime punível, apenas, com pena de prisão, não há lugar à operação de escolha da pena aplicável, cabendo determinar, desde já, a medida concreta da pena, em função da culpa e das exigências de prevenção.
As finalidades da punição encontram-se consagradas no artigo 40º, n.º 1 do Código Penal, reconduzindo-se à protecção de bens jurídicos, no âmbito da prevenção geral positiva, e à reintegração do agente na sociedade, no âmbito da prevenção especial positiva.
Da conjugação deste preceito com o disposto no artigo 71.º, do mesmo Código, resulta que a pena terá como limite máximo intransponível a medida da culpa do agente, e que até esse limite máximo será estabelecida uma moldura de prevenção geral de integração, em que o limite superior será o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e o limite inferior será dado pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
Será dentro desta submoldura - estabelecida a partir da moldura penal abstracta, mas com consideração das particularidades do caso concreto - que se irá determinar o quantum da pena, de acordo com as necessidades de prevenção especial - Neste sentido v. Acórdão do STJ, de 12.03.2009, P. 08P2191, disponível em www.dgsi.pt..
No caso, no que concerne às exigências de prevenção geral, verifica-se que todos os dias a sociedade é confrontada com a prática de factos desta natureza, que são cada vez mais divulgados e que merecem forte censura e intolerância social.
Com efeito, «quando se fala em prevenção geral neste domínio, somos facilmente remetidos para as considerações de que este delito pretende obviar a uma das formas mais graves de violência, em que alguém é subjugado a uma vida de humilhações, forçado a aceitar as opiniões e as ofensas de outrem que se mostra fisicamente mais forte, num ciclo cada vez mais frequente, em termos estatísticos, e numa prática que deverá ser decisivamente afastada dos hábitos da nossa comunidade, num reforço da consciência jurídica comunitária, na qual o valor da igualdade entre cônjuges já se impõe há décadas, em termos de direito escrito. Também são elevadas as necessidades de prevenção geral no que tange ao sentimento comunitário de insegurança, face à constante violação da norma.» - 9 Paulo Guerra, in Violência Doméstica, implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, Manual Pluridisciplina, CEJ, Abril 2016, p. 241, disponível em
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/destaques_publicacoes.php
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Acresce que a gravidade objectiva dos factos, espelhada na factualidade provada, é já de relevo considerável.
Nesta medida, as exigências de prevenção geral são muito elevadas.
No que respeita às exigências de prevenção especial, importa considerar que o arguido não demonstrou arrependimento, tentando imputar responsabilidades dos acontecimentos à vítima.
Por outro lado, apesar de ter antecedentes criminais, estes estão relacionados com a sua actividade laboral e a regulação da mesma em França.
Tais circunstâncias, tendo em conta o modo como praticou os factos, bem como o clima de violência permanente, bem como as agressões perpetradas por aquele na vítima e ainda o hiato temporal de anos em que decorreram, levam-nos a considerar que as exigências de prevenção especial são elevadas.
Há, ainda, que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime em referência, depuserem a favor ou contra o agente - artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal.
No caso, cumpre considerar:
▪ o dolo, que é directo e, como tal, intenso;
▪ o grau de ilicitude e o modo de execução do crime: que dentro da gravidade objectiva do tipo legal de crime em que nos movemos, é elevada, envolvendo agressões praticadas no domicílio comum.
Tudo visto e ponderado, julgamos adequado e proporcional condenar o arguido na pena de 2 anos e 6 meses de prisão.
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Da suspensão da pena de prisão:
Nos termos do disposto no artigo 50.º do Código Penal:
«O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.».
A suspensão da execução da pena de prisão assume um carácter pedagógico e reeducativo, sendo que, na respectiva decisão, já não são atendíveis considerações de culpa, mas exclusivamente de prevenção, atentando-se, assim, na personalidade do agente, nas suas condições de vida, na sua conduta anterior e posterior ao crime, bem como nas circunstâncias deste.
Para suspender a execução da pena de prisão é necessário que se possa formular um juízo de prognose social favorável ao arguido, isto é, que se possa concluir que a respectiva condenação constituirá uma séria advertência e um forte alerta para que não volte a delinquir, e de que, em liberdade, o agente irá aderir, sem quaisquer reservas, a um processo de socialização – neste sentido, ver acórdão Supremo Tribunal de Justiça datado de 19.11.2008, processo n.º 08P3281, disponível em www.dgsi.pt.
Note-se que este juízo de prognose se reporta ao momento da decisão, e já não ao da prática dos factos.
No caso em apreço, como vimos, o arguido apenas possui antecedentes criminais quanto à regulação da sua actividade laboral em França.
O arguido não demonstrou arrependimento.
Tudo ponderado, considera-se que ainda se mostra possível formular o supra mencionado juízo de prognose social favorável ao arguido.
Neste contexto, afigura-se-nos que a simples censura do facto e a ameaça da prisão serão suficientes para tutelar o bem jurídico violado e impedir que o arguido volte a praticar crimes da mesma natureza, pelo que se suspenderá a execução da pena de 2 anos e 6 meses de prisão pelo mesmo período de tempo – artigo 50.º, n.º 1 e 5, do Código Penal.
Nos termos do disposto no artigo 50.º, n.º 2, do Código Penal, “o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do disposto nos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”.
Nos termos do disposto no artigo 34.º-B, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro:
«A suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.».
No caso em apreço, atendendo à sobejamente conhecida dificuldade de combater a problemática da violência doméstica e à circunstância de esta exigir uma mudança de postura de vida e de mentalidade por parte dos agressores, entendemos que a efectiva reintegração do arguido na sociedade e a protecção da vítima contra a prática de novos factos carece da subordinação da suspensão da execução da pena condicionada ao cumprimento de determinadas regras de conduta para alcançar esse objectivo, em benefício tanto do arguido como da vítima, designadamente:
a) a proibição de contactos com a vítima, por qualquer meio (incluindo contactos telefónicos, por telemóvel e através da internet), e de se deslocar à residência da mesma;
b) a frequência de entrevistas/sessões com o técnico de reinserção social, orientadas no sentido de o arguido interiorizar o desvalor da sua conduta, com vista a evitar a prática de novos factos, em moldes a definir pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais;
b) a colaboração com os técnicos de reinserção social na execução do plano que vier a ser elaborado, prestando todas as informações solicitadas, respondendo às convocatórias e recebendo as visitas que aqueles entendam necessárias e pertinentes; e
c) pagamento da indemnização que venha a ser arbitrada à vítima a comprovar nos autos nos primeiros seis meses da suspensão.
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Penas acessórias:
Nos termos do disposto no artigo 152.º, n.º 4 a 6, do Código Penal, em caso de condenação pela prática de crime de violência doméstica, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, bem como a de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica ou inibição do exercício das responsabilidades parentais.
A aplicação destas penas não é automática, dependendo, ao invés, de um juízo que, em face da factualidade provada e das circunstâncias do caso concreto, evidencie que as mesmas se mostram necessárias e adequadas às finalidades da punição – artigo 65.º, n.º 1, do Código Penal.
No caso em apreço, a pena acessória de proibição de uso e porte de armas (que, apesar de não constar na acusação, sempre poderia ser aplicada, com recurso à alteração da qualificação jurídica, se necessário), afigura-se desnecessária, visto que não se apurou que o arguido seja titular de qualquer arma ou qualquer relação entre a prática dos factos e a utilização de armas.
No que concerne à pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica e de proibição de contacto com a vítima – com afastamento da residência ou do local de trabalho -, tal situação encontra-se já abrangida por condições semelhantes impostas ao arguido no âmbito da suspensão da execução da pena de prisão, motivo pelo qual se torna desnecessária a sua aplicação.
Quanto à inibição do exercício das responsabilidades parentais, uma vez que da factualidade provada não ressalta qualquer agressividade ou facto cometido para com os filhos do ex-casal, entende-se não ser de aplicar qualquer pena acessória de tal natureza, atenta a sua eventual desproporcionalidade e desaquação.
Nesta medida, inexistem factos concretos que justifiquem a necessidade de impor ao arguido as penas acessórias mencionadas, motivo pelo qual as mesmas não serão aplicadas.
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Da reparação da vítima:
O artigo 21.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, dispõe que:
“1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.
2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.”.
A indemnização em causa apenas não é concedida quando a vítima a tal expressamente se oponha.
Ora, não tendo tal oposição expressa ocorrido, deverá ser fixada uma indemnização à vítima que, atenta a gravidade dos factos dados como provados, bem como as condições económicas do arguido, se fixa em €1.000,00 (mil euros) comprovando tal pagamento nos autos nos primeiros 6 (seis) meses da suspensão.
Do pedido de indemnização civil
De acordo com o disposto no art.º 71.º do CPP, “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.
No caso destes autos, a assistente deduziu pedido de indemnização civil, peticionando a condenação dos arguidos no pagamento do valor total de €20.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora legais contados desde a notificação até efetivo e integral pagamento.
De acordo com o art.º 483.º, n.º 1 do Código Civil (CC), quem, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos causados.
Este normativo apresenta os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, também denominada aquiliana, a qual assume, no nosso ordenamento jurídico, uma função essencialmente ressarcitória, de reposição do status quo ante.
São pressupostos da responsabilidade aquiliana a existência cumulativa de: i) um facto voluntário, ii) que esse facto seja ilícito, iii) existência de danos, iv) nexo de causalidade entre o facto e o dano e v) culpa.
Para além disto, nos termos do disposto no art.º 484.º do CC, “Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou coletiva, responde pelos danos causados”.
Já o art.º 496.º, n.º 1 do CC, por sua vez, dispõe que “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, acrescentando o n.º 4 que esse montante é fixado pelo tribunal, com recurso à equidade e tendo em conta as circunstâncias previstas no art.º 494.º do CC.
Os danos não patrimoniais, ao contrário do que sucede com os danos patrimoniais, não visam a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento lesivo, tendo antes como objetivo compensar o lesado pelos danos físicos e morais por este sofridos, os quais se podem traduzir, designadamente, em angústia, tristeza, dores físicas, ansiedade, privação de sono, entre outros.
Tais danos, embora sejam infungíveis e não possam ser reintegrados por equivalente, poderão ser objeto de uma compensação monetária, assim aliviando ou mitigando os sofrimentos que o facto lesivo originou.
Por sua vez, as circunstâncias a que manda atender o n.º 4 do art.º 496.º do CC são o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e a do lesado e, bem assim, as demais circunstâncias do caso.
Haverá ainda que atentar à gravidade do dano, apreciação esta que deve ser analisada de modo objetivo e tendo como referência a sensibilidade média humana.
Por fim, cumpre referir que a obrigação de indemnização só existe relativamente aos danos que o lesado, provavelmente, não teria sofrido se não fosse a lesão, o que decorre da doutrina da causalidade adequada, na sua vertente negativa, consagrada no art.º 563.º do CC. Desse modo, um facto é causa de um dano quando é um de entre várias condições sem as quais aquele se não teria produzido.
No caso em apreço, e relativamente ao demandado BB, resultou provado que a demandante, em consequência da conduta daquele, além de ter sofrido dores nas partes do corpo que infra se descrevem, e de ter hematomas e arranhões, designadamente, no pescoço, pernas e braços, apresentou:
a. No membro superior esquerdo: duas equimoses da face anterior e lateral externa do terço médio do braço com 5 por 5 centímetros e 5 por 4 centímetros e outra equimose arroxeada da face posterior do braço, com 1 centímetro de diâmetro;
b. No membro inferior esquerdo: equimose acastanhada da raiz da coxa com 2 centímetros de diâmetro e outra da face anterior do terço superior da perna com 2 por 3 centímetros de maiores dimensões.
Em face do que se deixou exposto, dúvidas não existem quanto ao preenchimento, in casu, dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos prevista nos art.ºs 483.º, n.º 1, 484.º e 496.º do CC.
Com efeito, os danos a que acima nos referimos assumem suficiente gravidade para merecer a tutela do Direito, tendo provindo de factos ilícitos e culposos, voluntariamente praticados pelo demandado, cuja conduta violou direitos subjetivos da demandante.
Por outro lado, mostra-se verificado o competente nexo de causalidade entre as condutas assumidas pelo demandado e os danos criados na esfera jurídica do demandante.
Consequentemente, forçoso será concluir que o demandado se encontra obrigado a indemnizar o demandante pelos danos que lhe causou.
Tais danos, por sua vez, são insuscetíveis de avaliação pecuniária, razão pela qual a obrigação de indemnizar terá de assumir uma natureza compensatória, a arbitrar segundo juízos de equidade e à luz dos critérios previstos no art.º 494.º, n.º 4 do CC.
No caso, importa atender às condições sócio-económicas do demandado e ainda considerar a extensão dos danos provocados ao demandante, que assumem uma dupla vertente (física), o grau de ilicitude das condutas do demandado e a sua culpa, que se reputam como elevados.
De igual modo, haverá que atender aos valores que vêm sendo decididos pela jurisprudência a título de indemnização em situações similares, tendo presente que “A indemnização por danos não patrimoniais, para responder, actualizadamente, ao comando do artº 496 do CC e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, não meramente simbólica ou miserabilista.”
Em face do exposto, considera-se ajustado e proporcional arbitrar, a título de reparação pelos prejuízos sofridos, a quantia de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) a favor da demandante AA, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 483.º, n.º 1, 484.º e 496.º, todos do CC.
No que concerne aos juros peticionados, tendo o montante da indemnização sido fixado na presente sentença, são devidos juros de mora desde a data da condenação, conforme decido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2002, de 09-05-2002, publicado no Diário da República – I Série-A, de 27 de junho de 2002.
*
Deduziu ainda o assistente pedido de indemnização civil, peticionando a condenação da arguida no pagamento do valor total de €2.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora legais contados desde a notificação até efetivo e integral pagamento.
Atenta a factualidade dada como provada, verifica-se não estarem preenchidos os elementos da responsabilidade civil extracontratual, nomeadamente a prática de um facto ilícito.
Face ao exposto, decide-se julgar improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante BB e, em consequência, absolver a demandada AA, do pedido de indemnização civil».
*
III - Apreciação do recurso
III.1 – Da nulidade por omissão de pronuncia relativamente a factos alegados na contestação.
Entende o recorrente ocorrer a mencionada nulidade por o Tribunal
a quo
não se ter pronunciado nem dado como provado ou não provado que a arguida AA tomava varfine (medicamento anticoagulante), o que determina que a mesma
«fique muito facilmente com lesões visíveis, sem que seja preciso muita força ou grande impacto, e que as lesões demorem mais tempo a sarar, em relação a uma pessoa que não tome tal medicamento»
, requerendo o aditamento de tais factos à matéria de facto provada.
Analisada a contestação apresentada pelo arguido verificamos que tal matéria foi alegada pela defesa para suportar a conclusão de que o episódio do dia 14.11.2022 não ocorreu da forma imputada e relatada pela ofendida, pois se assim o fosse, as lesões apresentadas por esta quando sujeita a exame pericial
[1]
seriam
“outras e mais gravosas”
.
Ainda em sede de contestação, foi requerida a tomada de esclarecimentos à Ex.ma Senhora Perita, subscritora do relatório de perícia médico-legal, o que veio a ser deferido tendo estes vindo a ser prestados em audiência de julgamento.
Todavia, analisada a sentença recorrida verificamos que:
- A factualidade alegada na contestação respeitante às condições de saúde da vítima e à toma de medicamentos e ao seu eventual papel no exacerbamento das lesões apresentadas não consta nem dos factos provados, nem dos não provados;
- Em sede de motivação, a propósito, apenas se escreveu que
“Fundou ainda o Tribunal no relatório de perícia de avaliação do dano corporal junto aos autos a fls. 473 e 474, bem como nos esclarecimentos da perita que o elaborou prestados em sede de audiência de julgamento”.
Ora, nos termos do art.º 374.º n.º 2 do CPP, o dever de fundamentação da sentença exige a enunciação «como provados ou não provados, de todos os factos relevantes para a imputação penal, a determinação da sanção e a responsabilidade civil, constantes da acusação ou da pronúncia e do pedido de indemnização cível e das respetivas contestações»
[2]
.
Como se vê, tal dever de enunciação abrange os factos relevantes para a decisão alegados na contestação, sejam eles provados ou não provados,
«importando saber se o tribunal recorrido apreciou ou não toda a matéria relevante da contestação»
[3]
.
O que bem se compreende, sabido que este articulado constitui um dos meios nucleares da defesa (ainda que não o único) através do qual o arguido exerce os seus direitos de defesa, na fase de julgamento, perante a acusação que lhe tenha sido movida ou face aos factos pelos quais tenha sido pronunciado.
É sobretudo nessa peça processual que o arguido tem ensejo de tomar posição sobre a factualidade contra si articulada, impugnando-a e alegando outra matéria que possa ter como efeito afastar ou minorar a sua responsabilidade criminal.
Importa dizer com palavras claras: frequentemente não resultam provados os factos da acusação porque resultaram provados os factos da contestação que punham em causa a tese da acusação.
Ou de outro modo. Não raras vezes, porque se indagaram, porque se produziu prova dos factos da contestação, porque se teve, como se deve, em igual conta a argumentação da defesa, é que determinados factos da acusação se não provam
[4]
.
E como assim é, para além dos factos essenciais, também os factos circunstanciais ou instrumentais, alegados na contestação, mas que sejam relevantes para a prova, ou para que não se provem, os factos probandos descritos na acusação, devem ser objeto de pronúncia por parte do tribunal.
Na verdade, é também através da prova de factos materiais e objetivos (factos indiciários) que não fazendo parte dos concretos factos integradores do tipo de ilícito que o Tribunal, por inferência, no respeito das regras da lógica e da experiência comum, dará ou não como provados os factos integradores do tipo.
Deste modo, o Tribunal de julgamento está, em princípio, vinculado a emitir juízo de prova sobre os factos alegados pelo arguido na contestação, a menos que sejam irrelevantes para a decisão a proferir.
E, pese embora o dever de fundamentação seja compatível com a enumeração concisa dos factos não provados, e com menor minúcia na indicação dos factos não provados do que relativamente aos factos provados, não pode deixar de ser feito
«em termos de se adquirir a certeza de que os factos alegados foram objeto de decisão», «deixando o tribunal bem claro que foram por ele apreciados todos os factos alegados com interesse para a decisão»
[5]
.
No caso vertente, compulsada a contestação podemos constatar que a estratégia da defesa passou pela alegação da falta de plausibilidade da descrição do episódio do dia 14.11.2022, alegando que não teria ocorrido na forma imputada e relatada pela vítima, já que, dadas as suas condições de saúde e o medicamento anticoagulante (varfine) que tomava, as lesões que a ofendida apresentava quando sujeita a exame pericial
[6]
teriam de ser
“outras e mais gravosas”.
Ou seja, a contestação não se limitou a infirmar a factualidade imputada, nem a descrever uma realidade alternativa sem relevância penal, nem a apresentar factos inócuos, antes foi alegada matéria que, no entender da defesa, é suscetível não só de contrariar os termos em que o episódio vem descrito como ainda de abalar a credibilidade do relato da ofendida.
E, como vimos, foi mesmo requerida e admitida a tomada de esclarecimentos à senhora perita subscritora do relatório médico-legal, que os veio a prestar em audiência de julgamento.
Todavia, o Tribunal recorrido, desconsiderando a estratégia da defesa limitou-se a fazer constar da motivação da decisão de facto que fundou a sua convicção «no relatório de perícia de avaliação do dano corporal junto aos autos a fls. 473 e 474, bem como nos esclarecimentos da perita que o elaborou prestados em sede de audiência de julgamento». Porém, tal não basta para que se mostre cumprido o dever de fundamentação.
Os factos alegados na contestação deveriam ter sido levados em conta na enumeração dos factos provados ou não provados, pois, naturalmente, foram entendidos pelo apresentante como sendo relevantes para a sua defesa e para a decisão da causa.
Portanto, pelo que acabou de se expor, afigura-se que o Tribunal
a quo
ficou aquém da indagação factual necessária para a decisão.
As circunstâncias invocadas poderão (ou não) assumir relevo para a decisão respeitante à factualidade imputada, para formar a convicção, sustentá-la (ou infirmá-la) e, se for caso disso, até para a fixação da medida da pena e do quantum indemnizatório.
Não vislumbramos é razões válidas para que, desconsiderando a estratégia da defesa, o tribunal
a quo
não tome posição clara sobre todos os factos levados à sua apreciação, ignorando-os.
Por essa razão, existe omissão da pronúncia na sentença recorrida, uma vez que se mostra, nos termos sobreditos, a omissão de tais factos no elenco dos factos provados ou não provados, pelo que, nessa medida, a sentença mostra-se ferida da arguida nulidade (art.º 379.º nº 1, alínea c) do CPP).
E, não só a fixação da matéria de facto é lacunosa, como o exame crítico das provas não é absolutamente revelador do raciocínio que ao Tribunal
a quo
incumbia fazer, o que torna a sentença nula, por violação do disposto no artigo 374 n.º 2 ex vi artigo 379.º n.º 1 alíneas a) e c) do CPP, impondo-se que seja proferida outra sentença que supra as omissões apontadas, se necessário com reabertura da audiência e produção da prova suplementar.
Consequentemente, com vista ao suprimento da nulidade verificada, importa que a Ex.ma Senhora Juíza profira nova sentença, em que se pronuncie sobre as seguintes questões:
a) Emissão de juízo probatório sobre a matéria de facto alegada na contestação que respeitam às condições de saúde da ofendida e ao medicamento varfine (anticoagulante) por esta tomado;
b) Adequação (ou não) das lesões apresentadas pela ofendida quando sujeita a exame pericial, com o evento ocorrido no dia 14.11.2022, face às condições de saúde da ofendida e (porventura, se assim resultar provado) ao medicamento, por esta tomado;
b) Ajuizamento das questões jurídicas suscitadas em conexão com essa alegação factual;
c) Caso o entenda com interesse para a decisão, o Tribunal poderá determinar, ao abrigo do disposto no art.º 340.º do CPP, a produção dos meios de prova necessários à averiguação dos factos sobre os quais lhe incumbe pronunciar-se, reabrindo, para o efeito, a audiência de julgamento.
***
III.3 – Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia por violação do princípio
ne bis in idem
Alega o arguido recorrente que os factos provados sob os pontos 42, 43 e 44 foram objeto de investigação no processo de inquérito n.º 127/16...., o qual foi arquivado por despacho datado de 11.07.2017, na sequência da homologação da desistência de queixa por parte da alegada ofendida AA, com a consequente extinção do procedimento criminal.
No entender do recorrente, uma vez que tal despacho de não foi impugnado, não pode
«vir o Tribunal “ressuscitar” os factos que foram objeto de arquivamento», «anulando toda e qualquer certeza e segurança no ordenamento jurídico, e violando de forma flagrante o caso julgado e a garantia constituição ne bis in idem, ínsito no art. 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa».
Conclui o recorrente que
«ao ter dado como provados os factos vertidos em 42., 43. e 44., o Tribunal a quo violou, além do mais, o n.º 5 do art. 29.º da CRP, o art. 143.º, n.º 1 e 181.º, n.º 1, 116.º, n.º 1 e n.º 2, e 152.º, todos do C.P., e arts. 48.º, 49.º e 51.º e 277.º, todos do C.P.P.» inquinando de nulidade a sentença recorrida «nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do C.P.P», pelo que «deverão tais factos ser eliminados da douta sentença».
Vejamos.
Como é sabido, o princípio
ne bis in idem
encerra um direito fundamental de defesa dos cidadãos contra o
ius puniendi
do Estado, encontrando entre nós consagração expressa no art.º 29.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), segundo o qual
«ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime».
O referido princípio tem como fundamento a proteção da liberdade individual e, simultaneamente, a manutenção da paz social, visando proibir que os mesmos factos sejam objeto de apreciação jurídico-processual de forma repetida.
O que se proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objeto do processo possa fundar um segundo processo penal.
Entende-se por crime não um certo tipo legal mas, outrossim, um comportamento espácio-temporalmente concretizado, um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida de um indivíduo.
Quer dizer, o que verdadeiramente interessa é o facto e não a sua subsunção jurídica
[7]
.
Esta garantia constitucional proíbe a dupla perseguição penal do indivíduo.
Assim, ultrapassa as sentenças transitadas para abranger qualquer outro ato processual que signifique uma definitiva assunção valorativa por parte do Estado sobre determinado facto penal, incluindo, portanto, a decisão de não pronúncia pelo Juiz de Instrução Criminal e o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público.
No que concerne aos despachos de arquivamento, nos termos do art.º 277.º do CPP, poderá o inquérito ser arquivado por prova de não verificação do crime, de o arguido não o ter praticado ou ser o procedimento legalmente inadmissível (nº 1) ou ainda, por falta de prova (nº 2).
É sabido que quanto aos despachos do Ministério Público não se deve falar em caso julgado ou decisão transitada em julgado.
No entanto, a decisão final do inquérito, salvo nos casos do art.º 277 n.º 2 do CPP é uma decisão definitiva e, como tal, com força análoga ao caso julgado, pelo que não pode ser deduzida acusação sobre factos que já tenham sido objeto de despacho de arquivamento, nos termos do n.º 1 do art.º 277.º do CPP, sob pena de violação da
“força de caso decidido”.
Já o despacho de arquivamento por falta de prova, nos termos do art.º 277 n.º 2 do CPP, na medida em que não contém um juízo perentório quanto aos factos, admite a reabertura do inquérito, nos termos do art.º 279.º do CPP,
«se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento».
Naturalmente que a reabertura do inquérito inevitavelmente contende com os princípios da segurança jurídica e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
E nesta matéria, revertendo às considerações acima vertidas,
«teremos de concluir que só poderão fundamentar a decisão de reabrir o inquérito, os elementos de prova que, sendo desconhecidos no Ministério Público à data do arquivamento, também não poderiam por este ter sido conhecidos nesse momento. E de igual modo no caso de uma testemunha ou vítima, vier a contradizer o seu depoimento, não pode o arguido ser prejudicado pelo facto de essa testemunha ou vítima na altura não ter proferido o seu depoimento. (…) Caso contrário (…) seria deixar nas mãos do ofendido o impulso processual para futuras acções penais, obrigando o arguido a defender-se de várias investigações e acusações, apresentando sucessivas queixas eventualmente em vários locais dando origem a diferentes inquéritos pelos mesmos factos»
[8]
.
Dito isto.
Compulsados os autos verificamos (sob a referência 91863457) que os factos julgados provados sob os pontos 42, 43 e 44 já tinham sido objeto do processo de inquérito n.º 127/16...., tendo o Ministério Público proferido despacho de encerramento do inquérito:
a) por considerar que não foi suficientemente demonstrada a prática pelo arguido do tipo de crime de violência doméstica, p.p. pelo art.º 152.º n.º 1 al. a) do Código Penal, sendo de prever que a ser deduzida acusação, o mesmo viesse a ser absolvido em julgamento, pelo que determinou o arquivamento do inquérito nos termos do art.º 277.º n.º2, do CPP; e
b) por entender que os crimes relativamente aos quais foram recolhidos indícios suficientes revestem natureza semipública e particular, de acordo com as disposições conjugadas dos art.ºs 143.º e 181.º do Código Penal, respetivamente e art.ºs 48.º, 49.º n.º 1 e 50.º n.º 1 do CPP, pelo que admitem desistência de queixa da ofendida, à qual o arguido não se opôs, sendo a mesma homologada e determinado o arquivamento do inquérito nos termos do artigo 277.º n.º1 do CPP.
Como se vê, da última parte do despacho de arquivamento decorre que os factos indiciados, e que são, afinal aqueles que resultaram provados na sentença recorrida sob os pontos 42, 43 e 44 integram prática de crime de ofensa à integridade física.
E, por isso, foram objeto de homologação da desistência de queixa.
Coerentemente, nos autos de inquérito 57/21.... (que deram origem ao processo comum singular no qual foi proferida a sentença recorrida), que, por sua vez, já haviam sido arquivados nos termos do art.º277.º n.º 2 do CPP, o MP proferiu despacho de reabertura do inquérito, nos termos do art.º 279.º do CPP, mas fazendo constar expressamente que tal operação «não será feita relativamente ao proc. n.º 127/16...., porquanto o mesmo foi arquivado nos termos do art. 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, designadamente por motivos de desistência de queixa».
E como assim sucedeu, não pode deixar de considerar-se que tais factos e a sua valoração jurídica foram definitivamente apreciados e decididos no inquérito n.º 127/16...., sob pena de serem fatalmente comprometidas a segurança e certeza jurídicas.
Por certo que a decisão de arquivamento do inquérito ao abrigo do estatuído no artigo 277.º, do Código de Processo Penal, pode não ter efeitos preclusivos
[9]
, nem tem, seguramente, natureza jurisdicional e, por conseguinte, não comporta a noção de «trânsito em julgado».
No entanto, homologada a desistência de queixa apresentada pela ofendida, por factos que foram qualificados pelo Ministério Público como integrantes de um crime de ofensa à integridade física, com o consequente arquivamento dos autos, sob pena de insuportável violação da paz jurídica e da segurança do cidadão, a factualidade objeto de tal despacho não pode ser, de novo e uma vez mais valorada, agora, para efeito de poder ser o arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica.
Naturalmente que os demais factos - que exorbitam o objeto do processo nº 127/16.... - podem e devem ser objeto de tratamento autónomo, como o foram.
Termos em que se julga que a sentença recorrida enferma de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do art.º 379.º n.º 1 al. c) do CPP, com violação do princípio
ne bis in idem
, no que respeita aos factos descritos sob os pontos os pontos 42, 43 e 44 que, em consequência, são eliminados.
***
III.4 –
Da nulidade da sentença por valoração das declarações para memória futura da vítima que se recusou a depor em audiência de julgamento
.
Entende o recorrente que tendo a testemunha CC em audiência de julgamento dito que não pretendia prestar declarações quando inquirida para efeitos do disposto no art. 134º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal, ao Tribunal
a quo
estava vedada a apreciação das declarações para memória futura prestadas previamente por esta testemunha, pelo que, ao ter apreciado e considerado na Sentença proferida as declarações para memória futura da testemunha CC, ocorre nulidade de sentença, nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do C.P.P..
Analisando a sentença verificamos que efetivamente o Tribunal
a quo
considerou, para efeitos de fundamentação da matéria de facto, as declarações para memória futura prestadas pela filha menor do arguido, CC, que terá presenciado parte dos factos consubstanciadores da violência doméstica perpetrados pelo progenitor sobre a sua mãe.
Vistos os autos verificamos também que a vítima CC foi arrolada na contestação apresentada pelo arguido e notificada para comparecer em audiência de julgamento onde exerceu a faculdade de não prestar depoimento, nos termos do n.º 1 al. b) do art.º 134.º do CPP.
Como alega o recorrente «
inexistiu qualquer oposição – por parte da Assistente/alegada vítima, do Ministério Público ou do Tribunal - à prestação de declarações por parte da testemunha CC, nomeadamente em virtude de já ter prestado declarações para memória futura, nem tão-pouco foi alegado ou conjeturado que a sua prestação em sede de audiência de discussão e julgamento pusesse em causa a sua saúde física ou psíquica, nem tão-pouco foi arguida qualquer irregularidade ou ilegalidade relativamente à notificação para prestar depoimento e à sua presença na qualidade de testemunha em sede audiência de discussão e julgamento, antes foi admitida sem qualquer oposição».
Como se sabe, o
princípio da legalidade da prova
perfilhado pelo art.º 125.º do CPP considera «
admissíveis as provas que não forem proibidas por lei
».
Vigora, por outro lado,
o princípio da livre apreciação da prova
, em conformidade com disposto no art.º 127.º do CPP, nos termos do qual: «
Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente
».
Mas se o Código de Processo Penal não enumera taxativamente as provas proibidas, aponta limites à produção de provas e à sua valoração.
Assim, e no que respeita à proibição de valoração de provas, resulta do art.º 355.º do CPP que não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, ressalvando-se apenas as provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas.
Importa, todavia, salientar que QQ assume a qualidade de vítima, nos termos da subalínea iii) da alínea a) do n.º 1 do artigo 67.°-A do CPP e da alínea a) do art.º 2.º da Lei 112/2009 (que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas), tratando-se, ademais de vítima especialmente vulnerável, por força do nº 3 do mesmo art. 67º A do Código de Processo Penal, por referência ao art. 1º, al. j) do mesmo diploma legal
[10]
.
Ora, a tomada de declarações para memória futura da vítima em situações de violência doméstica é a regra (art.º 33.° n.°1 da Lei 112/2009, de 16 de setembro).
Pretende-se, desta forma, evitar a repetição de audição da vítima, protegê-la do perigo de revitimização e acautelar a genuinidade do seu depoimento em tempo útil, evitando, assim, que a mesmo possa olvidar-se dos factos, na sua plenitude, pese embora a natureza urgente dos autos.
Já a (nova) prestação de declarações em audiência das vítimas de violência doméstica e vítimas especialmente vulneráveis é excecional, como resulta dos artigos 33.º n.º 7, da Lei 112/2009 e 17.º n.º 2, e 24.º n.º 6, da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, que aprovou o Estatuto da Vítima, devendo ocorrer apenas se «
for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar
».
No entanto, a prestação de declarações em audiência de julgamento pelas vítimas de violência doméstica e vítimas especialmente vulneráveis fora dos casos legalmente previstos, não se encontra expressamente cominada como nulidade.
Assim, o incumprimento do disposto nos artigos 33.º n.º 7, da Lei 112/2009 e 17.º n.º 2, e 24.º n.º 6, da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, nos termos conjugados dos art.ºs 118.º n.º 1 e 123.º, ambos do Código de Processo Penal, configura irregularidade, a arguir, em conformidade com o n.º 1 desta última disposição legal, pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado.
Ora, na situação que se aprecia, a testemunha havia sido indicada pelo arguido na sua contestação, e o Tribunal não se pronunciou, como devia, sobre a inquirição da vítima QQ e muito concretamente se esta era (ou não) indispensável à descoberta da verdade e se não punha (ou se punha) em causa a sua saúde física ou psíquica (artigos 33.º n.º 7, da Lei 112/2009 e 17.º n.º 2 e 24.º n.º 6 da Lei n.º 130/2015).
Alega o recorrente que nem os arguidos-assistentes nem o Ministério Público arguiram vício da diligência efetuada, e a testemunha presente em audiência de julgamento usou da faculdade de se recusar a depor.
Mesmo considerando que a irregularidade decorrente de o Tribunal não se ter pronunciado sobre a verificação das condições em que excecionalmente nos termos previstos nos arts. 33º nº 7 da Lei nº 112/2009 e 24º, nº 6 da Lei nº 130/2015 de 04.09, não tendo sido invocada estará sanada nos termos do disposto no art. 123º, nº 1 do Código de Processo Penal, não cremos que essa tomada de posição da testemunha tenha efeitos retroativos, invalidando a prova já antes adquirida em declarações para memória futura.
Na verdade, as declarações para memória futura, prestadas nos termos dos artigos 33.º n.º 7, da Lei 112/2009 e 17.º n.º 2, e 24.º n.º 6, da Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro podem ser valoradas, independentemente de serem ou não lidas em audiência de julgamento.
A propósito das declarações para memória futura prestadas no âmbito do art. 271º do Código de Processo Penal, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2017 [ publicado no DR: nº 224/2017 série I de 21.11.2017] fixou a seguinte jurisprudência:
«
As declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n. º 2, alínea a), do mesmo Código
».
Ali se escrevendo, sob o ponto 2.9.1. al. C): “
(…)Consideramos que a tomada de declarações para memória futura, nos termos dos artigos 271.º e 294.º, ambos do CPP,
configura-se como uma antecipação parcial da audiência, sabendo os intervenientes processuais de que aquele meio de prova poderá ser utilizado pelo Tribunal para formar a sua convicção
, não se revela obrigatória a leitura, em audiência de julgamento, dessas declarações.
Não o impõem os termos conjugados do artigo 355.º, n.
os
1 e 2 e do artigo 356.º, n.º 2, alínea a), do CPP, nem os princípios que enformam o processo penal português, sendo que o entendimento que se perfilha não ofende qualquer norma ou princípio constitucional.(…)».
(sublinhado nosso).
Sabemos que a questão que ora se coloca não vem obtendo resposta uniforme na jurisprudência dos tribunais superiores sendo exemplo da posição vertida pelo recorrente os acórdãos citados pelo mesmo na sua peça recursiva e muito concretamente o Acórdão deste TRC de 09.11.2021, proferido no processo nº 712/21.5CAMD.C1 e o Acórdão do TRL de 15.09.2021 proferido no processo nº 20/21.1 SXLSB.l1-3, ambos disponíveis in
www.dgsi.pt
.
No sentido de que sequer a recusa é válida, não se verificando os pressupostos do art. 24º da lei 130/2015 de 04.09, o Acórdão do TRL de 08.02.2023 [processo 617/20.7GBMTJ.L1-3, disponível in
www.dgsi.pt
].
E no sentido de que a recusa, nestas condições não pode ter efeitos retroativos, isto é tornar inválida a prova já previamente adquirida o Acórdão do TRL de 20.04.2022, proferido no processo nº 37/21.6SXLSB.L1-3 e o Acórdão do TRP de 14.12.2022, proferido no processo nº 82/21.1GBOAZ.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
Assim, no Acórdão do TRL de 20.04.2022 que seguiremos de perto escreve-se:
“A tomada de declarações para memória futura nos termos do artº 271.º, não prejudica a prestação de depoimento em audiência, sendo possível e não coloque em causa a saúde física ou psíquica do depoente.
O art.º 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, regula a prestação de declarações para memória futura, de forma autónoma do art.º 271.º, é expresso na preferência por estas declarações e pela excecionalidade do depoimento em audiência, apenas podendo ter lugar o depoimento em audiência se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
O art.º 271.º não exige qualquer avaliação da essencialidade da prestação do depoimento em audiência. É claro na opção por este.
O art.º 356.º, não se refere às declarações para memória futura a que se refere e regula o art.º 24.º do Estatuto da Vítima.
Por força do disposto no art.º 24.º do Estatuto da Vítima, aplicável às vítimas de violência doméstica atento o disposto no seu art.º 2.º, estas têm o direito de prestar declarações para memória futura, com observância do ali preceituado, e não devem ser chamadas a depor em audiência a não ser que tal se mostre essencial para a descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar (pressupostos cumulativos).
As declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, a valorar após a produção da restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.
Uma vez explicitada a prerrogativa nesta norma prevista, e exercido o direito de recusa a depor ou ao contrário a ele renunciar prestando depoimento, não pode mais tarde a testemunha que tem a qualidade de vítima, querer exercer em sentido diverso o mesmo direito com efeitos retroativos, pois ele já foi exercido.
Já produziu efeitos probatórios: as declarações uma vez prestadas constituem prova a valorar; são prova já constituída não podendo ser excluídas do universo probatório a valorar pelo juiz, por vontade da vítima.
As regras materiais e processuais sobre a validade ou aquisição da prova não podem nem estão dependentes da vontade dos particulares, sob pena de a justiça, um dos pilares do Estado de Direito Democrático, ser afinal, nada mais nada menos, que dependente da vontade e dos caprichos dos particulares, que poderiam colocar em marcha todo o aparelho judiciário para como qual castelo de cartas cair pela base sem qualquer efeito, pese embora todos os elementos constantes dos autos permitissem fazer justiça (seja ela condenatória ou absolutória).
O art.º 356.º do CPP não contém qualquer referência ao art.º 24.º do Estatuto da Vítima, legislação especial, razão pela qual não lhe é aplicável o seu n.º 6.”
Temos por certo que “
Os parentes e afins do arguido têm o direito a ser advertidos do direito à recusa. A omissão da advertência é uma nulidade. Esta nulidade consubstancia uma verdadeira proibição de prova resultante na intromissão na vida privada (…). A violação desta proibição tem o efeito da nulidade das provas obtidas, salvo o consentimento do titular do direito, isto é, a testemunha, que prestou depoimento (artigo 126º nº 3 do CPP )»
[11]
.
E, na verdade, sendo as declarações para memória futura uma antecipação da audiência
[12]
impõe-se a observância de todas as regras a estas atinentes, incluindo naturalmente a advertência, prevista no art. 134º, nº 1 al. b) do Código de Processo Penal - que como resulta do auto relativo à tomada de declarações para memória futura foi cumprido (cf. auto de 13.12.2023 - refª citius 91975756).
Concluímos, então, que tendo sido a testemunha advertida nesse momento, não pode mais tarde invalidar essa mesma prova afirmando, quando chamada a julgamento na qualidade de testemunha arrolada pela defesa, que não pretende prestar declarações. Essa sua manifestação de vontade poderá impedir a prova de alguns factos a que eventualmente poderia responder, no âmbito da matéria da contestação, mas não terá a virtualidade de destruir a prova que foi validamente produzida e adquirida em antecipação do julgamento, com o cumprimento de todas as formalidades previstas e designadamente com o cumprimento da advertência constante do art. 134º do Código de Processo Penal.
Socorrendo-nos mais uma vez do suprarreferido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, concluímos como ali se fez:
“Ou seja, a tomada de declarações para memória futura nos termos deste último normativo, 271.º, não prejudica a prestação de depoimento em audiência, sendo possível e não coloque em causa a saúde física ou psíquica do depoente. Significa que a prestação de declarações para memória futura só afastam o depoimento em audiência se o depoente o não puder fazer ou tal importe risco para a sua saúde.
Ao contrário o art.º 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, que regula a prestação de declarações para memória futura, de forma autónoma do art.º 271.º, é expresso na preferência por estas declarações e pela excecionalidade do depoimento em audiência, apenas podendo ter lugar o depoimento em audiência se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
Note-se que o art.º 271.º não exige qualquer avaliação da essencialidade da prestação do depoimento em audiência. É claro na opção por este.
Acresce que se bem se analisar o art.º 356.º, o mesmo não se refere às declarações para memória futura a que se refere e regula o art.º 24.º do Estatuto da Vítima.
Resumindo, podemos considerar assente:
Por força do disposto no art.º 24.º do Estatuto da Vítima, aplicável às vítimas de violência doméstica atento o disposto no seu art.º 2.º, estas têm o direito de prestar declarações para memória futura, com observância do ali preceituado, e não devem ser chamadas a depor em audiência a não ser que tal se mostre essencial para a descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar (pressupostos cumulativos).
2 – As declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, a valorar após a produção da restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.
Sendo audiência antecipada, como é, aberta especialmente com observância de todas as regras que regulam a audiência de julgamento adequadas a este instituto particular, deve ser observado o disposto no art.º 134.º do CPP quando a vítima tenha com o agente alguma relação de entre as aí previstas.
Estas conclusões impõem, quanto a nós, a seguinte conclusão: uma vez explicitada a prerrogativa nesta norma prevista, e exercido o direito de recusa a depor ou ao contrário a ele renunciar prestando depoimento, não pode mais tarde a testemunha que tem a qualidade de vítima, querer exercer em sentido diverso o mesmo direito com efeitos retroativos, pois ele já foi exercido. Já produziu efeitos probatórios: as declarações uma vez prestadas constituem prova a valorar; são prova já constituída não podendo ser excluídas do universo probatório a valorar pelo juiz, por vontade da vítima.
Note-se que nem tão pouco ao arguido é permitido excluir da valoração do tribunal as declarações que haja prestado com observância do disposto no art.º 141.º do CPP. Mesmo que em audiência exerça o seu direito ao silêncio ou preste declarações em sentido contrário ao anteriormente declarado, não inviabiliza nem retira a possibilidade e o dever de o julgador as apreciar, de forma conjugada com a restante prova e as valorar de harmonia com as regras da experiência e da lógica. Ora, nenhuma razão existe para que às testemunhas, que ainda por cima são vítimas, possam transformar uma prova legalmente obtida, previamente através do instituto das declarações para memória futura, em prova proibida como defende alguma jurisprudência.
As regras materiais e processuais sobre a validade ou aquisição da prova não podem nem estão dependentes da vontade dos particulares, sob pena de a justiça, um dos pilares do Estado de Direito Democrático, ser afinal, nada mais nada menos, que dependente da vontade e dos caprichos dos particulares, que poderiam colocar em marcha todo o aparelho judiciário para como qual castelo de cartas cair pela base sem qualquer efeito, pese embora todos os elementos constantes dos autos permitissem fazer justiça (seja ela condenatória ou absolutória).
Acresce que, a tese segundo a qual a vítima que tendo prestado declarações para memória futura, opte por não prestar depoimento quando chamada a audiência transformando as anteriores em prova proibida contraria a natureza pública do crime em causa, permitindo-se o mesmo efeito que uma desistência, com mais força até pois redunda as mais das vezes em decisão absolutória com efeitos de caso julgado, contrariando-se lei expressa, o espírito do legislador e os bens jurídicos que se pretendem proteger. Por outro lado, esta tese transmite uma maior vulnerabilidade às vítimas de violência doméstica perante os agentes de crimes que não hesitarão em iniciar mais um ciclo com a típica sedução para as impedir de manter a coragem de chamadas que continuam a ser para prestar depoimento em audiência, contra o seu direito a prestar declarações para memória futura e não serem mais inquiridas sobre os mesmos factos, atentos os efeitos de vitimização secundária daí decorrentes, contar os factos de que foram alvo.
Finalmente e acima de tudo, o art.º 356.º do CPP não contém qualquer referência ao art.º 24.º do Estatuto da Vítima, legislação especial, razão pela qual não lhe é aplicável o seu n.º 6.”
Deste modo, tendo sido a testemunha CC advertida aquando da prestação das declarações para memória futura da possibilidade de se recusar a depor e tendo exercido o direito de prestar depoimento, e não tendo a sua recusa a depor quando chamada em julgamento efeitos retroativos, nada impede o tribunal de analisar as referidas declarações para memória futura em conjugação com a restante prova produzida, como o fez o Tribunal
a quo
.
Improcede nesta parte o recurso interposto pelo arguido.
***
III.5 - Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia ao cumular o arbitramento de indemnização à vítima com a condenação em indemnização pedida pela lesada no requerimento de indemnização cível que deduziu
Entende o recorrente que a indemnização arbitrada prevista no artigo 21.º, nº
s
1 e 2, da Lei n.º 112/2009 é subsidiária da requerida pelo lesado, nos termos do art.º 129.º do Código Penal, pelo que o Tribunal recorrido, ao fixar cumulativamente as duas indemnizações, inquinou a sentença de nulidade por excesso de pronúncia.
Dispõe o art. 82º A do Código de Processo Penal que:
“
1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.
2 - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.
3 - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em ação que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.”
Por seu turno, estabelece o artigo 21º nºs 1 e 2 da Lei nº112/2009 de 16 de setembro, com a redação dada pela Lei nº57/2021 de 16 de agosto:
“
1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.
2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser
.”
Como se refere expressivamente no acórdão deste TRC de 27.09.2023 [processo nº 18/23.5GCGRD.C1, disponível in
www.dgsi.pt
] referindo-se aos arts. 82º A do Código de Processo Penal e 21º da lei 112/2009 de 04.09: “
O primeiro dos preceitos transcritos estabelece, em certos casos e reunidos determinados pressupostos, a atribuição oficiosa à vítima dos factos ilícitos em que se fundamenta a condenação criminal, de uma reparação pelos prejuízos sofridos, sem prejuízo, naturalmente, do disposto no artigo 129º do Código Penal e nos artigos 71º a 82º do Código de Processo Penal, relativos à dedução em Processo Penal, de pedido de indemnização por quem tem legitimidade (artigo 74º do mesmo código).
No caso de se estar perante uma condenação por crime de violência doméstica, por força do segundo dos preceitos acima transcritos, tal arbitramento de uma compensação à respetiva vítima, é obrigatório e decorre da condenação criminal, não dependendo da verificação dos pressupostos estabelecidos no transcrito artigo 82º-A, mantendo, contudo, o seu caráter de instituto subsidiário do pedido de indemnização civil formulado pelo lesado, conforme decorre do nº1 do preceito, não se admitindo o arbitramento cumulativo de quantias fixadas no âmbito de um e outro instituto, como decorre do nº3 (“A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em ação que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.”).
Em anotação ao artigo 82º-A do Código de Processo Penal, escreve Tiago Caiado Milheiro [Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina dezembro de 2019, páginas 879 a 888]:“
O pedido cível em processo penal ou não penal mantém-se autónomo e em nada é afetado por este instituto. Tem um caráter subsidiário (como resulta claramente da afirmação literal pela negativa “Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º”). Significa que, se tiver sido deduzido o pedido cível em processo criminal ou em processo não penal (de qualquer índole: cível, laboral, comercial, administrativo, família e menores, etc.) ou já existir decisão que tenha fixado a indemnização (entendendo-se toda aquela que seja vinculativa), não poderá haver lugar a arbitramento oficioso. Se porventura, existiu um pedido, mas não uma decisão de fundo (v.g. absolvição da instância por questões formais) mantém-se a possibilidade de reparação oficiosa. Só o veredito que tenha analisado os pressupostos materiais para a concessão de uma indemnização impede a reparação oficiosa. (…) O procedimento é oficiosamente iniciado e decidido pelo Tribunal. Isso não impede que possa ser solicitado (aliás é um dever do MP “pedir” quando seja aplicado o processo sumaríssimo cf. Art. 394º nº2 alínea b), mesmo que a vítima tenha deixado decorrer os prazos para dedução do pedido cível.
(…)
Assim, só será arbitrada uma indemnização oficiosa se a vítima de violência doméstica ou especialmente vulnerável não tenha deduzido pedido cível, o agressor tiver sido condenado e se provar a existência de danos.”
Analisando os autos verificamos que o Mº Público aquando da dedução e acusação contra o arguido imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica, promoveu, que à vítima fosse atribuída uma indemnização nos termos da conjugação dos arts. 67º, n.º 3 e 1º, al. j), 82º-A, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, 16º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015, de 04/09 e 21º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16/09 (cf. requerimento em anexo à acusação publica deduzida nos autos a 26.09.2023 – refª Citius 93644243).
Todavia, posteriormente, a vítima do crime veio a constituir-se assistente e a deduzir pedido de indemnização civil. Peticionando a condenação do arguido no pagamento da indemnização no montante de 20.000,00€ por danos não patrimoniais decorrentes da prática do crime (cf. pedido de indemnização civil formulado a 06.10.2023 refª Citius 6157994).
Tal pedido foi apreciado pelo Tribunal em sede de sentença.
Ora, dado o caráter subsidiário da reparação oficiosa da vítima por via do artigo 82º-A do Código de Processo Penal, concluímos que tendo sido deduzido pela demandante pedido de indemnização civil, a reparação dos danos eventualmente causados pela conduta do arguido será apreciada e decidida no âmbito do pedido formulado, cessando a aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, cuja apreciação que se torna supervenientemente impossível de conhecer nos termos do disposto no art. 277º, al. e) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 4º do Código de Processo Penal.
Deste modo, verificando-se a ocorrência desta exceção dilatória, não poderia o Tribunal
a quo
ter conhecido do pedido de arbitramento de reparação formulado pelo Mº Público, ocorrendo, assim, efetivamente excesso de pronúncia que determina a nulidade da sentença proferida nessa parte, nos termos do disposto no art. 391º, nº 1 al. c) do Código de Processo Penal.
Essa nulidade, pode ser suprida por este Tribunal da Relação, nos termos do disposto no art. 379º, nº 2 do Código de Processo Penal, e assim,
declara-se suprimida a parte em que na sentença recorrida o Tribunal
a quo
conheceu do pedido de arbitramento de reparação oficiosa nos termos do disposto no art. 82º A, do Código de Processo Penal, 21º da Lei nº 112/2009 de 16 de setembro
.
Aqui chegados entendemos que as nulidades da sentença que julgámos verificadas prejudicam o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso.
***
VIII- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam as Juízas da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido e consequentemente:
- Julgar
não verificada a arguida nulidade por valoração das declarações para memória futura da testemunha RR
.
-
Declarar a nulidade da sentença
:
-
Por omissão de pronúncia
relativamente aos indicados factos alegados na contestação (ponto III.1) e por falta de exame crítico da prova;
-
Por excesso de pronúncia
com violação do princípio ne bis in idem, e em consequência eliminando a factualidade dos pontos 42, 43, e 44 dos factos provados;
-
Por excesso de pronúncia
relativamente ao pedido de arbitramento de reparação oficiosa nos termos do disposto no art. 82º A, do Código de Processo Penal, e art. 21º da Lei nº 112/2009 de 16 de setembro formulado pelo Mº Público, declarando-se suprimida a parte em que o Tribunal
a quo
ali conheceu daquele pedido.
-
Determinando a prolação pelo Tribunal recorrido de nova sentença
que:
- Se pronuncie relativamente aos indicados factos alegados na contestação e efetue o necessário exame crítico da prova; tenha em consideração a eliminação dos pontos da factualidade provada nesta sede de recurso efetuada; e, analisando a restante prova, mantenha ou modifique em conformidade a matéria de facto; determinando, se o entender, ao abrigo do disposto no art.º 340.º do CPP, a produção dos meios de prova necessários à averiguação dos factos sobre os quais lhe incumbe pronunciar-se, reabrindo, para o efeito, a audiência de julgamento.
- Extraia as consequências ao nível da matéria de direito que tiver por pertinentes em resultado das alterações efetuadas.
Custas pela assistente, fixando a taxa de justiça no mínimo (art.ºs 515.º n.º 1 al. b) do CPP e tabela III anexa ao RCP).
Texto elaborado e revisto pela 1ª signatária
Coimbra, 05.02.2025
Sandra Ferreira (relatora por vencimento)
Alcina da Costa Ribeiro (Juíza Desembargadora 2.ª adjunta)
Alexandra Guiné (Juíza Desembargadora 1ª relatora vencida)
Voto de vencido:
Voto vencido apenas no segmento relativo à questão da valoração das declarações para memória futura prestadas pela vítima QQ pelos motivos que passo a referir.
Entendo, que a eventual irregularidade decorrente de o Tribunal não se ter pronunciado sobre se a inquirição da vítima QQ era (ou não) indispensável à descoberta da verdade e se não punha (ou se punha) em causa a sua saúde física ou psíquica (artigos 33.º n.º 7, da Lei 112/2009 e 17.º n.º 2 e 24.º n.º 6 da Lei n.º 130/2015), a existir, deverá considerar-se sanada, nos termos do n.º 1 do art.º 123.º do CPP.
Assim, considero que QQ recusou-se validamente a depor, em conformidade com o disposto no art.º 134.º do CPP.
Ora, dispõe o art.º 355.º do CPP que:
«1. Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência
2. Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes».
E, determina o artigo 356.º n.º 6 do CPP que «é proibida, em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor.”.
No Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos - Volume I, 5.ª edição atualizada, UCP Editora, pág. 550 escreve Paulo Pinto Albuquerque, em anotação ao artigo 134.º do CPP:
«O direito de recusa de depor não pode, ainda, ser subvertido pela leitura em audiência de julgamento das declarações para memória futura prestadas anteriormente pela testemunha que se recusa a depor em audiência de julgamento».
Tal como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 09.11.2022, no processo 712/21.5PCAMD.C1 (rel. Des. José Eduardo Martins):
«comparecendo a vítima em audiência de julgamento, se disser que se recusa a depor quanto a certos factos, invocando apenas a sua ligação familiar, está a expressar uma vontade que nos transporta para a colisão que existe entre o interesse público de uma eficaz investigação penal e o interesse da testemunha de não ser constrangida a prestar declarações num processo dirigido contra um seu familiar, ainda que estejamos perante um crime que não admite desistência».
O que a regra do n.º 1 do artigo 134.º protege, em última linha, «é a confiança e a espontaneidade inerentes à relação familiar, prevenindo (enquanto desenho do sistema jurídico relativo a esse ambiente privilegiado no qual as relações e as trocas de informação se devem desenvolver sem receio de aproveitamento por terceiros ou pelo Estado) e evitando (quando, perante um concreto processo, o risco passa de potencial a actual) que sejam perturbadas pela possibilidade de o conhecimento de factos que essa relação facilita ou privilegia vir a ser aproveitado contra um dos membros. E visa também – aliás, é essa a sua justificação de primeira linha – poupar a testemunha ao angustioso conflito entre responder com verdade e com isso contribuir para a condenação do arguido, ou faltar à verdade e, além de violentar a sua consciência, poder incorrer nas sanções correspondentes. Trata-se de uma forma de protecção dos escrúpulos de consciência e das vinculações sócio-afectivas respeitantes à vida familiar que encontra apoio no n.º 1 do artigo 67.º da Constituição e que outorga ao indivíduo uma faculdade que se compreende no direito (geral) ao desenvolvimento da personalidade, também consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, enquanto materialização do postulado básico da dignidade da pessoa humana» (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 154/09 de 25-3-2009).
O privilégio familiar constitui uma derrogação ao dever de declarar.
Nessa medida, o reconhecimento do direito de recusa em depor representa uma forte limitação à obtenção da prova e à administração da justiça.
Mas esta limitação é compreensível e justificada.
Tal como salientado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 09.11.2022, no processo 712/21.5PCAMD.C1 (relatado pelo ex.mo Juiz Desembargador José Eduardo Martins):
«A nosso ver, a partir do momento em que a vítima surge em audiência de julgamento e tem a possibilidade de se recusar a depor, tal só pode significar que lhe está a ser dada a possibilidade de colocar em causa o que antes disse, acautelando, até, a possibilidade de ter existido uma eventual denúncia caluniosa, podendo, assim, ainda em tempo se retratar.
(…)
Se o legislador tivesse a intenção de afastar a possibilidade da testemunha/vítima de violência doméstica se recusar a depor, caso fosse chamada à audiência de julgamento, após prestar declarações para memória futura, tê-lo-ia feito nos diplomas legais a que se refere o recorrente, o que, manifestamente, não fez.
E não fez porque, em qualquer audiência de julgamento, mesmo que estejamos perante crimes públicos, o legislador entende que a testemunha só presta depoimento se, ela mesmo, no caso concreto, considerar o interesse da administração da justiça superior à salvaguarda das suas relações familiares (…)
Concedemos que esta orientação acaba por colocar em causa uma prova pré-constituída na qual a acusação assenta grande parte daquilo que a sustenta, mas o privilégio familiar, se existe na lei, é para ser aplicado sempre, independentemente do crime em causa e até ao encerramento da audiência de julgamento».
Tal foi a opção do legislador, que não retirou a estas testemunhas/ofendidas, o poder de impedir, através do recurso ao silêncio em audiência de julgamento (não prestando declarações sobre os factos que integram o objeto do processo), que declarações suas prestadas anteriormente perante o Juiz em sede de inquérito ou instrução, incluindo aquelas que o foram a título de declarações para memória futura, possam ser lidas, ou valoradas pelo Juiz de julgamento.
Pois tal como se lê no Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 15.09.2021, no processo n.º 20/21.1SXLSB.L1-3 (relatado pela Exma. Juíza Desembargadora Adelina Barradas de Oliveira):
«A decisão sobre a tomada de declarações para memória futura não pode ser vista como um meio de evitar ou propiciar que a vítima exerça o direito de se recusar a depor porque a vítima tem (como o arguido), esse direito a qualquer momento em que tenha de depor ou queira depor, ainda que, sendo apenas ofendida, seja ouvida como testemunha.
É o que resulta do disposto no n.º 6 do artigo 356.º do CPP e do artº 134º nº 1 a) e b) CPP.
O artº 356º não inibe a leitura/valoração das declarações para memória futura, mas também não pode inibir o direito a recusar-se a depor acrescendo que a lei é rigorosa quando diz que é proibida, em qualquer caso, a leitura de depoimento nessas circunstâncias.
Poderia argumentar-se que o que o legislador pretendeu foi proibir a leitura nos casos de recusa a depor, mas não a apreciação das declarações prestadas para memória futura.
Mas, o que temos perante nós, já que entendemos que nem têm de ser lidas as declarações, é que havendo proibição expressa de leitura das declarações de quem se recusa a depor, o legislador está a impedir que essa prova seja valorada» (sublinhado nosso).
Dito isto, a meu ver, como a ofendida se recusou legitimamente em audiência de julgamento a prestar declarações sobre o objeto do processo, não podiam ser valoradas as declarações para memória futura que havia prestado.
Ou seja, entendo que violando o disposto nos art.ºs 355.º e 356.º, ambos do CPP, o Tribunal recorrido valorou prova que a lei não consente.
No Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos - Volume I, 5.ª edição atualizada, UCP Editora, pág. 549 escreve Paulo Pinto Albuquerque, em anotação ao artigo 134.º do CPP:
«Os parentes e afins do arguido têm o direito a ser advertidos do direito à recusa. A omissão da advertência é uma nulidade. Esta nulidade consubstancia uma verdadeira proibição de prova resultante na intromissão na vida privada (…). A violação desta proibição tem o efeito da nulidade das provas obtidas, salvo o consentimento do titular do direito, isto é, a testemunha, que prestou depoimento (artigo 126º nº 3 do CPP )».
Lê-se no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 03.06.2008, no processo 1991/07-1 (relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador António João Latas):
« (…)
2. Apesar de o art. 134º nº2 do CPP se referir expressamente a nulidade, tal não significa, sem mais, que o mesmo se reporta ao regime das nulidades de que trata o art. 118º nº1 e 119º a 123º, do CPP, pois constituindo o art. 134º do CPP norma relativa à produção de prova, coloca-se a questão de saber se não deve antes ser-lhe aplicável o regime das proibições de prova, na medida em que tal regime detém autonomia face ao regime geral das nulidades.
3. No sentido da autonomia das proibições é decisivo no nosso processo penal o teor do art. 118º nº 3 do CPP, que expressamente ressalva do regime das nulidades “qua tale” as normas do CPP relativas a proibições de prova, donde decorre que o legislador processual penal não pretendeu reconduzir as proibições de prova ao regime geral das nulidades, reconhecendo-lhe autonomia de forma expressa.
4. Entre nós a consagração das proibições de prova radica em primeira linha na eleição, por parte do legislador, de um conjunto de bens jurídico-penais que, em absoluto (proibições absolutas), ou em termos relativos (proibições relativas), não podem ser lesados pela prossecução das finalidades próprias do processo penal, máxime, a procura da verdade material. No entanto, para além da tutela dos bens jurídico-penais directamente abrangidos pelo art. 32º nº8 da CRP, as proibições de prova podem tutelar outros bens jurídico-penais a que o legislador atribua especial relevância, ainda que radicados em pessoa diferente do arguido, e mesmo princípios fundamentais do processo penal.
5. De iure condito é reconhecido à testemunha o direito, estabelecido de forma abstracta e potestativa, de recusar-se a depor contra o cônjuge ou afim até ao 2º grau, em nome de:
Um direito próprio a evitar o conflito pessoal que resultaria para a testemunha de poder contribuir para a condenação de um seu familiar (ou cônjuge) ao cumprir o dever legal de falar com verdade;
Salvaguarda das relações de confiança e solidariedade no seio da instituição familiar.
(…)
8. - Na falta de consagração de um regime das proibições de prova que regulasse, com autonomia, as diversas questões suscitadas por esta forma de invalidade, entendemos com Costa Andrade e Germano Marques da Silva, que há uma imbricação estreita entre os efeitos das proibições de prova e as nulidades insanáveis, máxime no que respeita à aplicação da regra geral contida no art.º 122º do CPP».
No caso, não se trata de valoração de testemunho não obstante a falta de advertência prevista no art.º 134.º do CPP, mas de valoração de declaração para memória futura prestada por testemunha que em audiência de julgamento se recusou a depor.
No entanto, a meu ver, a solução seria idêntica.
Ou seja, a proibição da valoração da prova teria como consequência, quando a prova é indevidamente utilizada, a invalidade do ato em que se verifica, bem como os que dele dependerem e aquela puder afetar (artigo 122.º n.º 1 do CPP).
Considero que existindo valoração da prova que não foi produzida ou examinada em audiência, ocorre violação do disposto no artigo 355.° n.° 1, do CPP, integrando a mesma prova proibida, sendo a consequência processual inerente a da exclusão dessa prova do conjunto das que foram valoradas na fundamentação da matéria de facto levada a cabo na decisão recorrida.
A meu ver, esta situação distingue-se da hipótese do reenvio, que se dirige aos casos em que não é possível julgar a causa por existência de um dos vícios do artigo 410.º do CPP.
Entendo que, na hipótese de ser declarada a proibição de prova, não está em causa o vício que afeta a matéria de facto, a necessitar de um adequado esclarecimento, mas sim o expurgar do vício da nulidade que afeta a mesma decisão, o que tem, em princípio, por consequência, a emissão de uma nova sentença pelo Tribunal recorrido, mas expurgada do vício apontado – Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa dado de 20.03.2018, processo 124/16.2PELSB, relatado pelo ex.mo senhor Juiz Desembargador Artur Vargues.
No seguimento do exposto, no meu entendimento seria de declarar a nulidade da sentença recorrida por valoração de prova proibida, impondo-se a prolação pelo Tribunal recorrido de nova sentença que, expurgando-a do vício da nulidade que a afeta, excluísse como meio de prova a valorar na sua fundamentação de facto tais declarações e que, analisando a restante prova, mantivesse ou modificasse, em conformidade, a matéria de facto e a respetiva matéria de direito.
[1]
«hematomas e arranhões, designadamente no pescoço, pernas e braços, e apresentou no membro superior esquerdo duas equimoses de face anterior e lateral externa do terço médio do braço com 5 por 5 centímetros e 5 por 4 centímetros e outra equimose arroxeada da face posterior do braço, com 1 centímetro de diâmetro; e, no membro inferior esquerdo, uma equimose acastanhada da raiz da coxa com 2 centímetros de diâmetro e outra da face anterior do terço superior da perna com 2 por 3 centímetros de maiores dimensões», que terão «determinado 5 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional, e não resultaram quaisquer consequências permanentes»
[2]
Cf. Paulo Pinto de Albuquerque no Comentário do Processo Penal, à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, vol. II, 5.ª edição atualizada, pág. 469, p. 8
[3]
Paulo Pinto de Albuquerque, na obra citada, pág. 469, p. 8
[4]
Cf. em sentido aproximado, Sérgio Poças, «DA SENTENÇA PENAL — FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO», em
https://julgar.pt/wp-content/uploads/2016/05/02-S%C3%A9rgio-Po%C3%A7as-fundamenta%C3%A7%C3%A3o-senten%C3%A7a-penal.pdf
(consultado a 24.05.2024) e JULGAR - N.º 3 - 2007
[5]
Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, pág. 471, p. 10
[6]
«hematomas e arranhões, designadamente no pescoço, pernas e braços,», «no membro superior esquerdo duas equimoses de face anterior e lateral externa do terço médio do braço com 5 por 5 centímetros e 5 por 4 centímetros e outra equimose arroxeada da face posterior do braço, com 1 centímetro de diâmetro; e, no membro inferior esquerdo, uma equimose acastanhada da raiz da coxa com 2 centímetros de diâmetro e outra da face anterior do terço superior da perna com 2 por 3 centímetros de maiores dimensões», que terão «determinado 5 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional, e não resultaram quaisquer consequências permanentes».
[7]
Cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto processo 130/10.0GAMTR.P1, datado de 10.07.2013 (Alves Duarte) e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra processo 120/20.1GCCLD.C1, datado de 22.03.23 (Maria José Guerra).
[8]
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 07.03.2018, processo 38/16.6PBFUN.L1-3 (Vasco Freitas), no mesmo sentido, v.g. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 08.11.2023, processo 417/21.7PVNG.P1 (Maria Luísa Arantes)
[9]
Cfr. artigo 279.º do CPP
[10]
Por despacho de 06.12.2022 – sob a referência 91922126 - foi atribuído, ao abrigo do art.º 14.º n.º 1 da Lei n.º 112/2009, o estatuto de vítima a QQ.
[11]
Cfr. citado autor, in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª Edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 375)
[12]
Neste sentido se pronunciou o acima referido Acórdão de Fixação de jurisprudência nº 8/2017.
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TRC
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https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/7d7a0a77638f416880258c3d0054d6fc?OpenDocument
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1,736,985,600,000
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NÃO PROVIDO
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4175/10.2TXLSB-Q.L1-9
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4175/10.2TXLSB-Q.L1-9
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ANA MARISA ARNÊDO
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I. Uma vez que na situação em crise estão em causa os dois terços da pena, a concessão da liberdade condicional terá de assentar, somente, num juízo de prognose favorável de que, em liberdade, o condenado assumirá uma postura responsável e abstinente da prática de crimes.
II. Isto é, quando a concessão da liberdade condicional é apreciada aos dois terços da pena queda-se o pressuposto a que alude a al. b) do art.º 61º, n.º 2 do C.P., atinente às razões de prevenção geral, tendo o legislador presumido que a libertação neste marco já não é inconciliável com a defesa da ordem e da paz social.
III. A formulação do juízo de prognose favorável, no sentido de que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes deverá assentar numa ponderação conjunta de factores, designadamente, na personalidade do condenado e evolução desta durante a execução da pena, nas competências adquiridas no período de reclusão, no comportamento prisional, na capacidade crítica perante o crime cometido e nas necessidades de reinserção social, maxime as atinentes ao enquadramento familiar, social e profissional.
IV. Da factualidade assente resulta abreviadamente que: o recluso vem mantendo um comportamento prisional isento de processos disciplinares há mais de um ano; está em regime aberto voltado para o interior; beneficiou de licença de saída jurisdicional e saída de curta duração, sem notícia de anomalias ou incidentes; encontra-se a frequentar um curso de canalizador de dupla certificação, tendo concluído a parte teórica, com equivalência ao 9.º ano; beneficia de apoio familiar; mantém relação afectiva consistente e tem expectativa de emprego no exterior.
V. Acresce que, sabendo-se que, para efeitos de aferição das exigências de prevenção especial, o sentido crítico do agente quanto à própria conduta é factor relevante (embora não constitua pressuposto legal e/ou condição necessária), no caso, o recluso manifesta consciência crítica e arrependimento consistentes, tal qual, também, resulta da fundamentação de facto.
VI. Assim sendo, tudo induz a verificação de um contexto atenuativo relativamente aos riscos de recidiva e ao enfraquecimento das exigências de prevenção especial a condescender a concessão da liberdade condicional, cumpridos que se mostram os dois terços da pena.
VII. Ademais, derradeiramente, afigura-se inolvidável a conveniência de um período de liberdade sob tutela. Com efeito, «(…) no decurso deste período o condenado poderá, gradualmente, adaptar-se à vida em liberdade, adequando a sua conduta aos padrões sociais, no que será apoiado, vigiado e fiscalizado pelos serviços competentes (DGRSP) o que, seguramente, terá resultados muito mais proveitosos, em termos das subsistentes necessidades de reinserção social, do que o cumprimento total da pena de prisão, e a consequente colocação do condenado em meio livre, sem qualquer período de apoio institucional».
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[
"LIBERDADE CONDICIONAL",
"2/3 DA PENA",
"JUIZO DE PROGNOSE"
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Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
1. Nos autos em referência, foi proferida decisão, em 12 de Julho de 2024, que concedeu a liberdade condicional a
AA
.
2. A Ex.ma Magistrada do Ministério Público interpôs recurso desta decisão. Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:
« A decisão recorrida, contrariando os pareceres desfavoráveis do Exmo Senhor Diretor do EP, da DGRSP, dos Serviços Prisionais e do Ministério Público, concedeu a liberdade condicional a AA, por referência aos dois terços das penas, em execução sucessiva, de 3 anos de prisão, aplicada no processo nº 74/19.0JELSB, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, dois crimes de furto e dois crimes de furto qualificado e 1 anos e 6 meses de prisão, à ordem do processo 252/18.0PBSNT, pela prática de um crime de furto qualificado.
A concessão da liberdade condicional aos dois terços da pena, nos termos do art.º 61.º nº 3 do CP está condicionada à evolução da personalidade do condenado e fortemente limitada pelas finalidades de execução das penas.
Entendemos que, no caso, subsistem fortes exigências de prevenção especial, porquanto o condenado carece ainda de desenvolver a sua atitude crítica, de modo a criar condições internas que potenciem a necessária alteração comportamental, sendo indispensável que continue a ser sujeito a intervenção técnica que permita o desenvolvimento da sua capacidade crítica e de descentração, sensibilizando-o de molde a prevenir comportamentos de idêntica natureza e a sentir a gravidade da sua conduta desviante.
Na verdade, embora o recluso assuma a prática dos factos e verbalize arrependimento, ainda não se consciencializou do desvalor da sua conduta, nem das suas consequências para as vítimas, não oferecendo garantias minimamente fiáveis de que não reincidirá, pois, o facto de já ter sido condenado anteriormente pela prática de crimes da mesma natureza não o inibiu de voltar a delinquir e de modo mais grave, tanto mais que lhe foram aplicadas penas de prisão efetiva.
De facto, trata-se de recluso com condenações por furto (várias), condução sem habilitação legal (várias), resistência e coação sobre funcionário, tráfico de estupefacientes, posse de estupefacientes para consumo, abuso sexual de menores, roubo e tráfico de estupefacientes de menor gravidade, o que demonstra que necessita de adquirir competências pessoais intrínsecas de forma a vir poder beneficiar da liberdade condicional, devendo continuar no seu percurso evolutivo de interiorização do desvalor da sua conduta face aos crimes pelos quais se encontra em reclusão.
Impõe-se, pois, que o condenado faça uma aproximação gradual ao meio livre, gozando de outras medidas de flexibilização da pena, como a colocação em regime aberto no exterior (RAE), caso venha a ter percurso merecedor, assim como de licenças de saída que servirão de teste para que, caso a avaliação seja positiva, se pondere uma libertação antes do termo da pena e sujeito a apertado regime de prova.
A decisão recorrida não fez correta aplicação do direito, mormente, do art.º 61.º n.º 3 do Código Penal, devendo, pois, ser revogada.
Nestes termos e invocando o douto suprimento de V. Exas, deverá conceder-se provimento ao recurso e, em consequência, revogar-se a decisão recorrida e substituí-la por outra que não conceda a liberdade condicional a AA»
3. O recurso foi admitido, por despacho de 5 de Agosto de 2024.
4. O recluso
AA
, apresentou resposta ao recurso interposto. Aparta da motivação as seguintes conclusões:
«O Ilustre Magistrado do Ministério Público no seu recurso conclui em suma que “ …o condenado carece ainda de desenvolver a sua atitude crítica, de modo a criar condições internas que potenciem a necessária alteração comportamental, sendo indispensável que continue a ser sujeito a intervenção técnica que permita o desenvolvimento da sua capacidade crítica e de descentração, sensibilizando-o de molde a prevenir comportamentos de idêntica natureza e a sentir a gravidade da sua conduta desviante.”
Refere ainda que “Na verdade, embora o recluso assuma a prática dos factos e verbalize arrependimento, ainda não se consciencializou do desvalor da sua conduta, nem das suas consequências para as vítimas, não oferecendo garantias minimamente fiáveis de que não reincidirá, pois, o facto de já ter sido condenado anteriormente pela prática de crimes da mesma natureza não o inibiu de voltar a delinquir e de modo mais grave, tanto mais que lhe foram aplicadas penas de prisão efetiva.”
Acrescentando que “…trata-se de recluso com condenações por furto (várias), condução sem habilitação legal (várias), resistência e coação sobre funcionário, tráfico de estupefacientes, posse de estupefacientes para consumo, abuso sexual de menores, roubo e tráfico de estupefacientes de menor gravidade, o que demonstra que necessita de adquirir competências pessoais intrínsecas de forma a vir poder beneficiar da liberdade condicional, devendo continuar no seu percurso evolutivo de interiorização do desvalor da sua conduta face aos crimes pelos quais se encontra em reclusão.”
Alegando “…que o condenado faça uma aproximação gradual ao meio livre, gozando de outras medidas de flexibilização da pena, como a colocação em regime aberto no exterior (RAE), caso venha a ter percurso merecedor, assim como de licenças de saída que servirão de teste para que, caso a avaliação seja positiva, se pondere uma libertação antes do termo da pena e sujeito a apertado regime de prova”.
Pedindo que “a decisão recorrida não fez correta aplicação do direito, mormente, do art.º 61.º, n. 3º do Código Penal, devendo, pois, ser revogada.”
Conforme extraído Equipas da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (Serviços de Reinserção Social e Serviços Prisionais), dos esclarecimentos obtidos em sede de conselho técnico e da audição, o condenado vem mantendo uma postura adequada de contexto, tendo averbado um procedimento disciplinar, correspondente a outra infracção grave (agressão a companheiro), em Janeiro do ano passado ano; encontra-se a frequentar um curso de canalizador de dupla certificação, tendo concluído a parte teórica, com equivalência ao 9.º ano, faltando-lhe apenas concluir um módulo da parte prática.
O condenado AA tem duas filhas, actualmente com 23 e 21 anos, mas com quem mantém uma relação distante; antes da sua reclusão o condenado mantinha um relacionamento amoroso com BB, que perdura há cerca de três anos, embora já se conhecessem há cerca de 20 anos; quando regressar ao meio livre, AA terá o apoio da companheira e do progenitor, sendo que o recluso pretende integrar o agregado deste, com a sua companheira, quando estiver em liberdade; trata-se de um apartamento de habitação social, de tipologia T3; não obstante, é referido pela companheira que têm a intenção de constituir agregado próprio futuramente, visitando-o regularmente; no âmbito da presente medida o condenado já beneficiou de medidas de flexibilização da pena, que decorreram de forma positiva, não se esperando reacções negativas à sua presença no meio comunitário.
AA apresenta um percurso escolar desinvestido, concluindo apenas o 1.º ciclo, tendo mais tarde retomado esse percurso em contexto prisional, embora sem sucesso; não obstante, presentemente o recluso refere ter a intenção de tirar o curso de canalizador, com equivalência ao 6.º ano de escolaridade; quanto ao futuro, perspectiva integrar-se no ramo da construção civil; economicamente o condenado prevê a sua integração laboral imediata e poder ajudar e contribuir para as despesas comuns do agregado familiar; no entanto, tal como tem acontecido durante o cumprimento da execução da pena, terá o apoio essencialmente da companheira e progenitor.
O condenado não apresenta queixas relevantes ao nível da saúde; do seu historial clínico consta a problemática aditiva aos consumos de estupefacientes (cocaína e haxixe), situação de que aparentemente se encontra abstinente… não obstante, presentemente AA apresenta alguma evolução ao nível das suas competências pessoais e sociais, apresentando um discurso mais assertivo, de reconhecimento das suas dificuldades propiciadoras do cometimento de novos ilícitos, parecendo mais motivado para a mudança, demonstrando os familiares, nomeadamente a companheira e pai, um apoio mais consistente, continuando a demonstrar esperança na sua alteração comportamental.
É preciso chamar atenção para a reflexão autocrítica efectuada pelo para condenado sobre a sua conduta criminosa e suas consequências são indispensáveis para uma cabal interiorização do desvalor da conduta e, como tal, essenciais para que se conclua que o condenado está munido de um relevante inibidor endógeno, que é o caso, e que o Condenado, está efectivamente determinado e empenhado em trilhar um caminho normativamente correcto.
Conforme perfilhado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/04/2010 (Proc. 2026/08,7TXPRT-A.P1, é importante referir o conteúdo da Recomendação “Rec(2003) 22” do Conselho da Europa, adoptada pelo Comité de Ministros em 24/09/2003. Em que refere na Recomendação (uma das mais importantes das muitas que o Conselho da Europa tem dedicado a estamatéria) define a liberdade condicional como uma “medida comunitária” que deve ter por objectivo ajudar os reclusos a fazer a transição da vida na prisão para uma vida responsável na comunidade através de condições e da supervisão do período de liberdade que promovam esse fim e contribuam para a segurança pública e a redução do crime na comunidade.
Por isso, a liberdade condicional deve estar disponível para todos os reclusos condenados a fim de reduzir o risco de reincidência, a liberdade condicional pode ser sujeita a condições individualizadas e acompanhada de fiscalização e de medidas de controlo.
É necessário que a Liberdade condicional e a ressocialização continuem a equilibrar a segurança pública com a necessidade de oferecer ao condenado a oportunidade de uma segunda chance, é fundamental para humanizar o sistema penal e, ao mesmo tempo, garantir que a concessão da liberdade condicional seja prudente e focada na prevenção de novos delitos.
É perfeitamente compreensível que para a sociedade, a liberdade condicional, em especial, busca não só proteger a sociedade, mas também assegurar que o retorno do condenado seja feito de maneira progressiva, minimizando os riscos associados à sua reinserção. Este processo permite que a sociedade acolha ex-reclusos, favorecendo a criação de uma rede de apoio social que previne a reincidência.
Não podendo com isso esquecer que a ressocialização busca transformar o comportamento do condenado, proporcionando meios para que ele supere o ciclo de criminalidade e se reintegre ao convívio social de forma produtiva.
É necessário enquanto responsabilidade coletiva que a ressocialização durante o período de cumprimento da pena, seja feita por meio de programas de educação, trabalho, e acompanhamento psicológico, por exemplo. É importante reduzir a reincidência, criando condições para que o condenado adote uma vida em conformidade com a lei e desenvolva uma mentalidade voltada para a convivência social pacífica.
A liberdade condicional para o condenado, ela representa uma segunda oportunidade, oferecendo a oportunidade de reconstruir sua vida sob determinadas condições de supervisão. Esse retorno gradual ao convívio social permite que ele recupere sua liberdade de forma controlada, mas com a responsabilidade de manter-se dentro das normas sociais.
Pois bem foi este o sentido certamente que Douto Tribunal se pronunciou e concedeu a liberdade condicional ao condenado AA.
Assim se conclui que o Douto Tribunal fez a correta aplicação do direito termos do nº 3 do art.º 61 do Código Penal, fazendo jus à recomendação e perfilhado a Recomendação “Rec(2003) 22” do Conselho da Europa, adoptada pelo Comité de Ministros em 24/09/2003. Em que refere na Recomendação (uma das mais importantes das muitas que o Conselho da Europa tem dedicado a esta matéria) define a liberdade condicional como uma “medida comunitária” que deve ter por objectivo ajudar os reclusos a fazer a transição da vida na prisão para uma vida responsável na comunidade através de condições e da supervisão do período de liberdade, e que foram impostas no caso em concreto».
5. Neste tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta, louvada no recurso interposto, pugna pela sua procedência.
6. Cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2 do C.P.P., nada mais sobreveio aos autos.
7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. O objecto do recurso, tal como demarcado pelo teor das conclusões da respectiva motivação, reporta à questão de saber se o Sr. Juiz do Tribunal
a quo
incorreu em erro
de jure
na verificação dos pressupostos materiais da concessão da liberdade condicional.
2. A decisão levada, na instância, quanto à matéria de facto é do seguinte teor:
«2 – Factos com relevo para a decisão a proferir, tidos como provados:
A. O condenado encontra-se a cumprir, pela prática dos indicados crimes, a seguinte sucessão de penas:
3 anos de prisão pela prática dos seguintes crimes:
• Tráfico de estupefacientes de menor gravidade [artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93];
• 2 de furto [artigo 203.º do Código Penal];
• 2 de furto qualificado [artigos 203.º e 204.º do Código Penal];1 ano e 6 meses de prisão pela prática do seguinte crime: (Proc. 252/18.0PBSNT – Juízo Local Criminal de Sintra)
• Furto qualificado [artigos 203.º e 204.º do Código Penal].
B. Factos ocorridos em entre Novembro de 2017 e Fevereiro de 2019; Março de 2018, respectivamente.
C. Cumpriu metade das penas em 18/10/2023, atinge os 2/3 em 17/07/2024 e tem termo previsto para 17/01/2026.
D. Como antecedentes criminais averba condenações por furto (muitas), condução sem habilitação legal (muitas), resistência e coacção sobre funcionário, tráfico de estupefacientes, posse de estupefacientes para consumo, abuso sexual de menores, roubo e tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
E. Cumpre pena pela quinta vez.
F. Em 6 de Dezembro de 2023 viu ser-lhe apreciada a liberdade condicional, com negação, decisão com a qual se conformou.
G. Referências constantes do SIPR (ficha biográfica – situação jurídico penal – do condenado):
1 processos pendentes: nada consta;
2 outras penas autónomas a cumprir: nada consta;
3 medidas de flexibilização de pena: RAI – desde 22/05/2024; LSJ – 1, em Maio passado; LCD – 1, o mês passado.
H. Dos relatórios das competentes Equipas da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (Serviços de Reinserção Social e Serviços Prisionais), dos esclarecimentos obtidos em sede de conselho técnico e da audição do condenado, em súmula, extrai-se que:
1 O condenado vem mantendo uma postura adequada de contexto, tendo averbado um procedimento disciplinar, correspondente a outra infracção grave (agressão a companheiro), em Janeiro do ano passado ano; encontra-se a frequentar um curso de canalizador de dupla certificação, tendo concluído a parte teórica, com equivalência ao 9.º ano, faltando-lhe apenas concluir um módulo da parte prática.
2 situação económico-social e familiar:
AA é o segundo filho do casal, de uma fratria de três descendentes, que se separou quando o condenado era ainda criança, tendo os estes ficado entregues aos cuidados da progenitora; a mãe fixou então residência no norte do país, perto de ..., onde o arguido frequentou a escola e passou a sua infância; no início da adolescência AA decidiu mudar a sua residência para a zona da …, acabando por integrar o agregado familiar do progenitor; nessa altura começou a acompanhar indivíduos com problemas de comportamento e iniciou uma relação de intimidade, tendo aos dezasseis anos sido pai pela primeira vez; foi também com cerca de dezasseis anos que teve os primeiros contactos com o Sistema da Administração da Justiça Penal, tendo cumprido uma pena efectiva de prisão; posteriormente veio a ser condenado em vários processos, em medidas privativas e não privativas de liberdade, tendo saído a última vez em liberdade em Junho de 2021; AA tem duas filhas, actualmente com 23 e 21 anos, mas com quem mantém uma relação distante; antes da sua reclusão o condenado mantinha um relacionamento amoroso com BB, que perdura há cerca de três anos, embora já se conhecessem há cerca de 20 anos; quando regressar ao meio livre, AA terá o apoio da companheira e do progenitor, sendo que o recluso pretende integrar o agregado deste, com a sua companheira, quando estiver em liberdade; trata-se de um apartamento de habitação social, de tipologia T3; não obstante, é referido pela companheira que têm a intenção de constituir agregado próprio futuramente, visitando-o regularmente; no âmbito da presente medida o condenado já beneficiou de medidas de flexibilização da pena, que decorreram de forma positiva, não se esperando reacções negativas à sua presença no meio comunitário.
3 perspectiva laboral/educativa:
AA apresenta um percurso escolar desinvestido, concluindo apenas o 1.º ciclo, tendo mais tarde retomado esse percurso em contexto prisional, embora sem sucesso; quanto ao percurso laboral, o recluso apresentou um quotidiano desligado de tarefas laborais, marcado essencialmente pela ociosidade, convivência com grupos de pares sem ocupação; não obstante, presentemente o recluso refere ter a intenção de tirar o curso de …, com equivalência ao 6.º ano de escolaridade; quanto ao futuro, perspectiva integrar-se no ramo da construção civil; economicamente o condenado prevê a sua integração laboral imediata e poder ajudar e contribuir para as despesas comuns do agregado familiar; no entanto, tal como tem acontecido durante o cumprimento da execução da pena, terá o apoio essencialmente da companheira e progenitor.
4 caracterização pessoal:
O condenado não apresenta queixas relevantes ao nível da saúde; do seu historial clínico consta a problemática aditiva aos consumos de estupefacientes (cocaína e haxixe), situação de que aparentemente se encontra abstinente; AA apresenta algumas fragilidades, nomeadamente ao nível das suas competências pessoais e sociais, marcado pelos consumos de produtos estupefacientes e imaturidade; não obstante, presentemente AA apresenta alguma evolução ao nível das suas competências pessoais e sociais, apresentando um discurso mais assertivo, de reconhecimento das suas dificuldades propiciadoras do cometimento de novos ilícitos, parecendo mais motivado para a mudança, demonstrando os familiares, nomeadamente a companheira e pai, um apoio mais consistente, continuando a demonstrar esperança na sua alteração comportamental».
E relativamente ao direito, o Sr. Juiz do Tribunal
a quo
decidiu assim:
«O instituto da liberdade condicional é especificamente regulado pelos artigos 61.º e 63.º do Código Penal, cuja concessão implica (com excepção da concedida pelos 5/6 da pena, que é obrigatória) toda uma simultaneidade de circunstâncias, necessárias e cumulativamente verificáveis, e que mais não são do que o fim visado pela execução da própria pena. Por outras palavras, a pena, por si só, terá que espelhar a capacidade ressocializadora do sistema, sempre na mira de evitar o cometimento futuro de novo crime.
«A liberdade condicional não é uma medida de clemência: pela promoção, de forma planeada, assistida e supervisionada da reintegração do condenado na sociedade, constitui, sim, um meio dos mais eficazes e construtivos de evitar a reincidência.
Sendo exclusivamente preventivas as razões que estão na base da justificação e da avaliação da liberdade condicional (prevenção especial positiva ou de ressocialização e prevenção geral positiva ou de integração e defesa do ordenamento jurídico), só deverá a mesma ser recusada se a libertação afrontar as exigências mínimas de tutela do ordenamento jurídico ou na decorrência de motivo sério para duvidar da capacidade do recluso para, uma vez em liberdade, não repetir a prática de crimes.»
“A liberdade condicional constitui a libertação antecipada, mas não definitiva, do recluso, após cumprimento de uma parte da pena de prisão em que foi condenado.” No fundo, é uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena (que também característica desta é) no fito de ressocialização.
Tal qual está definido no Preâmbulo do Código Penal (ponto 9) «[é] no quadro desta política de combate ao carácter criminógeno das penas detentivas que se deve ainda compreender o regime previsto nos artigos 61.º e seguintes para a liberdade condicional. Definitivamente ultrapassada a sua compreensão como medida de clemência ou de recompensa por boa conduta, a libertação condicional serve, na política do Código, um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.
Com tal medida – que pode ser normalmente decretada logo que cumprida metade da pena (artigo 61.º, n.º 1 – leia-se 61.º, n.ºs 2 e 3, após a redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro) – espera o Código fortalecer as esperanças de uma adequada reintegração social do internado, sobretudo daquele que sofreu um afastamento mais prolongado da colectividade. Assim se compreendem, por um lado, a fixação de mínimos de duração para o período da liberdade condicional (artigo 61.º, n.º 3 – leia-se 63.º, n.º 5, após a redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro) e, por outro, a obrigatoriedade da pronúncia dela, decorridos que sejam 5/6 da pena, nos casos de prisão superior a 6 anos (artigo 61.º, n.º 2 – leia-se n.º 4, após a redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro).»
Em súmula, visa-se com a liberdade condicional atingir uma adequada reintegração social, satisfazendo-se o preceituado no artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal sob a epígrafe «finalidade das penas», onde se diz que “a aplicação de penas (…) visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, bem como o quanto estipula o artigo 42.º, n.º 1 do mesmo código (após a redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro), ao dizer-nos que “a execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”.
Reconhecidamente, a finalidade da liberdade condicional é hoje a prevenção especial positiva ou de socialização.
O artigo 61.º do Código Penal, abrindo a secção da liberdade condicional, fixa-nos os pressupostos e duração da mesma.
Assim, são
pressupostos formais
da concessão da liberdade condicional:
a) que o condenado tenha cumprido 1/2 da pena, e no mínimo 6 meses de prisão (n.º 2), ou 2/3 da pena, e no mínimo 6 meses de prisão (n.º 3) ou 5/6 da pena, quando a pena for superior a 6 anos (n.º 4);
b) que o condenado consinta ser libertado condicionalmente (n.º 1).
Por seu turno, são
requisitos substanciais
(ou materiais) da concessão da liberdade condicional (excepto na situação do n.º 4):
a) que, de forma consolidada, seja de esperar, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer crimes, tendo-se para tanto em atenção as circunstâncias do caso, a sua vida anterior, a respectiva personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão (que constituem índices de ressocialização a apurar no caso concreto); e
b) a compatibilidade da libertação com a defesa da ordem e da paz social (excepto, também, na situação do n.º 3).
Ora, no que se reporta aos requisitos da liberdade condicional, é comummente aceite e lido que a alínea a) se reporta e assegura finalidades de prevenção especial, ao invés da alínea b), que antes visa finalidades de prevenção geral.
Como tal, dando o efectivo relevo ao fito de reinserção social por parte da liberdade condicional, vislumbrável através da condução de vida por parte do libertado condicional de modo socialmente responsável e sem cometer crimes, haverá para tanto que no caso em análise, para efeitos da alínea a) – no propósito de prevenção especial inerente – atender-se, fundadamente, a tais dimensões subjectivas pelas seguintes vias:
1)
circunstâncias do caso
: tal análise deve ser concretizada na valoração concreta dos crimes cometidos e pelos quais operou condenação em pena de prisão, o que se deve fazer por via da apreciação da natureza dos crimes e das realidades normativas que deram azo à efectiva determinação concreta da pena, face ao artigo 71.º do Código Penal e, por efeito inerente, à medida concreta da pena, assim se atendendo ao grau de ilicitude do facto, ao concreto modo de execução deste, bem como à gravidade das suas consequências e ao grau de violação dos deveres impostos ao agente; determinando a intensidade do dolo ou da negligência considerada; atendendo aos provados sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; acompanhando as condições pessoais do agente e a sua situação económica; atentando na conduta anterior ao facto e na posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; considerando a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta foi censurada através da aplicação da pena.
2)
consideração da vida anterior
: tal análise deve ser concretizada na valoração concreta do constante do certificado de registo criminal – simples existência, ou não, de antecedentes criminais.
3)
personalidade do condenado
: tal análise deve ser concretizada na valoração concreta, ainda que por via estatística, do passado criminal postulado nos existentes antecedentes criminais, elemento este que se pode revelar como fortemente indiciador de uma personalidade disforme ao direito e, como tal, não merecedora da liberdade condicional, tudo com o firme propósito de aquilatar e compreender se o determinado percurso criminoso do condenado se gerou em circunstâncias que o mesmo não controlou, ou não controlou inteiramente (a chamada culpa pela condução de vida).
4)
evolução da personalidade do condenado durante a execução da
pena de prisão:
tal análise deve ser concretizada na valoração concreta, não só pelos comportamentos assumidos institucionalmente pelo condenado no seio prisional (a vulgar esfera interna psíquica do condenado), mas essencialmente por via dos padrões comportamentais firmados de modo duradouro e que indiciem um concreto e adequado processo evolutivo de preparação para a vida em meio livre, sempre temperados nos limites da liberdade condicional.
Por seu turno, para efeitos da alínea b) – no propósito de prevenção geral inerente –, há que atender a tal dimensão subjectiva através do assegurar do funcionamento da sua vertente positiva, que a lei, outrossim, já prevê como uma das suas valências ao instituir que a mesma serve a defesa da sociedade (artigo 42.º, n.º 1 do Código Penal).
Por último, em termos de duração da liberdade condicional, fixa o n.º 5 do artigo 61.º do Código Penal, que esta tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena.
In casu, está em causa a segunda apreciação de viabilidade/possibilidade de concessão de liberdade condicional nestes autos, sendo que estamos em fase próxima aos 2/3 de cumprimento das presentes penas (a operar em 17/07/2024).
Perante a factualidade apurada com relevo para a decisão a proferir, no que se reporta aos pressupostos formais da concessão da liberdade condicional podemos concluir pelo seu preenchimento, porquanto o condenado já cumpriu mais de metade da pena de prisão em que se mostra condenado, tal qual declarou aceitar a aplicação da liberdade condicional.
Igualmente e no que se reporta aos requisitos substanciais da concessão da liberdade condicional, face à factualidade apurada com relevo para a decisão a proferir, diremos que no presente momento nos é permitido concluir por um juízo de prognose favorável no sentido de que o condenado conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes.
De facto, apesar da gravosidade inerente aos concretos crimes pelos quais se mostra recluso, situação reveladora do modo de ser (personalidade) do condenado, e, por outro lado, não deixando de valorar que as penas se situam dentro do limite baixo das respectivas molduras, e ainda que seja certo que o recluso possuía vida anterior aos factos com relevância penal, a evolução recente (que não significa curta, mas sim consolidada), é bastante positiva.
Com efeito, o recluso evoluiu dum inicial discurso dicotómico quanto aos factos em que apresentava ainda alguma incapacidade autocrítica quanto à sua situação, mais verbalizando alguma inicial postura de quase vitimização e desculpabilização e revelando ainda insuficiente interiorização dos danos causados, dificuldades de auto-reflexão bem como ainda insuficientes capacidades para se projectar no futuro e para delinear um projecto de vida socialmente adaptado e credível, o que tudo antes revelava um elevado potenciar de retoma da actividade criminosa, para um discurso em que de forma clara tende para o positivo no desenvolver da pena, sendo que reconhece e demonstra arrependimento quanto à prática do crime o que sempre gera atitude crítica quanto ao mesmo e à pena, com sentido de interiorização positivo.
Igualmente verbaliza que a conduta que o trouxe à reclusão não compensa a falta de liberdade, apresentando agora capacidade autocrítica quanto à sua situação, sentido de responsabilidade em crescendo, aptidão de auto-reflexão e evolução positiva na capacidade de projecção do futuro ao nível da estruturação e delineação de projecto de vida sólido, socialmente adaptado e credível, agora com motivação clara para tal, fruto do crescimento e amadurecimento pessoal.
Denota, também, personalidade que tende para um evoluir e consolidar responsável e de investimento socializador com vista a reinserção, sem laivos de relevância negativa que gerem impedimentos a tal nível, mantendo e exteriorizando comportamentos ao nível da reclusão que não transmitem evolução negativa da personalidade, valorando o seu comportamento disciplinar praticamente imaculado, do mesmo modo que se valora o sentido de relacionamento interpessoal.
Há ainda que valorar a abstinência aditiva que revela desde que está preso, sendo esta a problemática que estava na génese de todo o seu comportamento delituoso, a par das medidas de flexibilização da pena – aproximação ao meio livre – que vem cumprindo com sucesso.
Por último, não se descura o facto de o recluso ter consistente apoio familiar (diverso daquele que se verificava à data dos factos que o trouxeram à reclusão) e perspectiva de obtenção de trabalho, factores também essenciais para a sua retoma social plena.
Mostra-se, pois, preenchido o
requisito substancial
(ou material) da concessão da liberdade condicional de reporte às finalidades de prevenção especial.
Do acima exposto, sopesando, entendemos que os factos apurados nos permitem concluir, de forma consistente, que o recluso teve percurso ressocializador evolutivo positivo na sua personalidade e postura, o que nos deixa afirmar que é de esperar que, uma vez em liberdade, saberá conduzir a sua vida, de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes, pois inexistem indícios que tenda ao trilhar de caminho que o afaste de toda esta recuperação, ou que seja necessário, por via da sede de manutenção da privação de liberdade, ainda percorrer e continuar fase de consolidação de tal. Estando, como está, o recluso dotado de vontade séria e de suficiente capacidade para orientar a sua vida de forma correcta e socialmente útil, de forma a cumprir com êxito o percurso de readaptação a uma vida social normal, com abstinência de prática de crimes, corresponde, pois, este momento do cumprimento da pena com o tempo de dar uma oportunidade ao recluso, pois é positiva a prognose que se faz quanto à aprendizagem que a liberdade condicional terá no recluso até ao fito da liberdade definitiva.
Entendemos ainda ser de todo benéfico que o condenado tenha cerca de um ano e meio de «liberdade tutelada», atendendo às suas anteriores condenações. Não sendo agora concedida a liberdade condicional a pena seria cumprida quase até final, o que poderia, de outra parte, comprometer a bem-sucedida reinserção social que neste momento se antevê.
Em consequência, é de conceder a liberdade condicional.
A mesma, fica, contudo, nos termos de lei, sujeita a obrigações a cumprir pelo libertado condicionalmente (regras de conduta), obrigações as quais o tribunal tem por convenientes e adequadas à realização das finalidades específicas da liberdade condicional e na fixação das quais se pondera a sua situação pessoal e social»
3. Do recurso interposto
3.1. Do preenchimento dos requisitos de que depende a concessão da liberdade condicional.
Dispõe o n.º 2 do artigo 61º, do C.P. que «O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social.
O n.º 3 do mesmo normativo determina que: «O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior»
Uma vez que na situação em crise estão em causa os dois terços da pena, a concessão da liberdade condicional terá de assentar, somente, num juízo de prognose favorável de que, em liberdade, o condenado assumirá uma postura responsável e abstinente da prática de crimes.
Isto é, quando a concessão da liberdade condicional é apreciada aos dois terços da pena queda-se o pressuposto a que alude a al. b) do art.º 61º, n.º 2 do C.P., atinente às razões de prevenção geral, tendo o legislador presumido que a libertação neste marco já não é inconciliável com a defesa da ordem e da paz social.
«(…) a liberdade condicional constitui «uma modificação substancial da forma de execução da reação detentiva», assumindo «não um caráter gracioso, mas a natureza de um incidente da execução da prisão dirigido à ressocialização dos condenados», o que impõe que também o período de liberdade condicional seja computado na pena a cumprir.
A liberdade condicional, última fase de execução da pena, visa promover a «ressocialização social dos delinquentes condenados a penas de prisão de média ou de longa duração através da sua libertação antecipada — uma vez cumprida, naturalmente, uma parte substancial daquelas — e, deste modo, de uma sua gradual preparação para o reingresso na vida livre»
1
Como refere Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, pág. 528, «(…) foi uma finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização que conformou a intenção político-criminal básica da liberdade condicional desde o seu surgimento», ademais ressaltando que, no juízo de prognose a levar para efeitos de concessão da liberdade condicional «decisivo deveria ser, na verdade, não o
bom comportamento
prisional
em si
– no sentido da obediência aos (e do conformismo com) os regulamentos prisionais – mas o comportamento prisional na sua evolução, como índice de (re) socialização e de um futuro comportamento responsável em liberdade».
Não oferecendo controvérsia a verificação,
in casu,
do consentimento do condenado, a par do pressuposto objectivo de que se mostram cumpridos dois terços da(s) pena(s) de prisão aplicada(s), cumpre, então, indagar se estão ou não verificados, outrossim, os supostos subjectivos para a concessão da liberdade condicional.
Consabidamente, a formulação do juízo de prognose favorável, no sentido de que
o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes
deverá assentar numa ponderação conjunta de factores, designadamente, na personalidade do condenado e evolução desta durante a execução da pena, nas competências adquiridas no período de reclusão, no comportamento prisional, na capacidade crítica perante o crime cometido e nas necessidades de reinserção social,
maxime
as atinentes ao enquadramento familiar, social e profissional
2
.
«Toda a
prognose
é uma probabilidade, uma previsão da evolução futura de uma situação, fundada no conhecimento da evolução de situações semelhantes, sendo aplicáveis as mesmas condições, ou seja, fundada nas regras da experiência. Por isso que, na análise da concessão da liberdade condicional não seja nunca possível a formulação de um juízo de certeza. Na verdade, nenhuma decisão pode assegurar que não mais o condenado, uma vez em liberdade, voltará a delinquir.
Significa isto que, feita a conjugação e ponderação dos factores
supra
enunciados, a liberdade condicional deverá ser concedida quando o julgador conclua que o condenado reúne condições que, razoavelmente, fundam a expectativa de que, uma vez colocado em liberdade, assumirá uma conduta conforme às regras da comunidade. Inversamente, a liberdade condicional deverá ser negada quando o julgador conclua que o condenado não reúne tais condições, seja porque o juízo contrário se revela carecido de razoabilidade, seja porque se revela temerário.
Tudo isto sem esquecer que na decisão existe sempre, por um lado, uma margem de subjectividade do decisor, e por outro, a vantagem decorrente da imediação da prova designadamente, da audição do recluso (art.º 176º do CEPMPL), imediação de que o tribunal de recurso não comunga».
3
E, assim sendo, relembremos, antes de mais, as razões aduzidas pelo Sr. Juiz para a concessão,
in casu
, da liberdade condicional:
«(…) o recluso evoluiu dum inicial discurso dicotómico quanto aos factos em que apresentava ainda alguma incapacidade autocrítica quanto à sua situação, mais verbalizando alguma inicial postura de quase vitimização e desculpabilização e revelando ainda insuficiente interiorização dos danos causados, dificuldades de auto-reflexão bem como ainda insuficientes capacidades para se projectar no futuro e para delinear um projecto de vida socialmente adaptado e credível, o que tudo antes revelava um elevado potenciar de retoma da actividade criminosa, para um discurso em que de forma clara tende para o positivo no desenvolver da pena, sendo que reconhece e demonstra arrependimento quanto à prática do crime o que sempre gera atitude crítica quanto ao mesmo e à pena, com sentido de interiorização positivo.
Igualmente verbaliza que a conduta que o trouxe à reclusão não compensa a falta de liberdade, apresentando agora capacidade autocrítica quanto à sua situação, sentido de responsabilidade em crescendo, aptidão de auto-reflexão e evolução positiva na capacidade de projecção do futuro ao nível da estruturação e delineação de projecto de vida sólido, socialmente adaptado e credível, agora com motivação clara para tal, fruto do crescimento e amadurecimento pessoal.
Denota, também, personalidade que tende para um evoluir e consolidar responsável e de investimento socializador com vista a reinserção, sem laivos de relevância negativa que gerem impedimentos a tal nível, mantendo e exteriorizando comportamentos ao nível da reclusão que não transmitem evolução negativa da personalidade, valorando o seu comportamento disciplinar praticamente imaculado, do mesmo modo que se valora o sentido de relacionamento interpessoal.
Há ainda que valorar a abstinência aditiva que revela desde que está preso, sendo esta a problemática que estava na génese de todo o seu comportamento delituoso, a par das medidas de flexibilização da pena – aproximação ao meio livre – que vem cumprindo com sucesso.
Por último, não se descura o facto de o recluso ter consistente apoio familiar (diverso daquele que se verificava à data dos factos que o trouxeram à reclusão) e perspectiva de obtenção de trabalho, factores também essenciais para a sua retoma social plena.
(…) Do acima exposto, sopesando, entendemos que os factos apurados nos permitem concluir, de forma consistente, que o recluso teve percurso ressocializador evolutivo positivo na sua personalidade e postura, o que nos deixa afirmar que é de esperar que, uma vez em liberdade, saberá conduzir a sua vida, de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes, pois inexistem indícios que tenda ao trilhar de caminho que o afaste de toda esta recuperação, ou que seja necessário, por via da sede de manutenção da privação de liberdade, ainda percorrer e continuar fase de consolidação de tal. Estando, como está, o recluso dotado de vontade séria e de suficiente capacidade para orientar a sua vida de forma correcta e socialmente útil, de forma a cumprir com êxito o percurso de readaptação a uma vida social normal, com abstinência de prática de crimes, corresponde, pois, este momento do cumprimento da pena com o tempo de dar uma oportunidade ao recluso, pois é positiva a prognose que se faz quanto à aprendizagem que a liberdade condicional terá no recluso até ao fito da liberdade definitiva.
Entendemos ainda ser de todo benéfico que o condenado tenha cerca de um ano e meio de «liberdade tutelada», atendendo às suas anteriores condenações. Não sendo agora concedida a liberdade condicional a pena seria cumprida quase até final, o que poderia, de outra parte, comprometer a bem-sucedida reinserção social que neste momento se antevê».
E, na verdade, da factualidade assente resulta abreviadamente que: o recluso vem mantendo um comportamento prisional isento de processos disciplinares há mais de um ano; está em regime aberto voltado para o interior; beneficiou de licença de saída jurisdicional e saída de curta duração, sem notícia de anomalias ou incidentes; encontra-se a frequentar um curso de canalizador de dupla certificação, tendo concluído a parte teórica, com equivalência ao 9.º ano; beneficia de apoio familiar; mantém relação afectiva consistente e tem expectativa de emprego no exterior.
Acresce que, sabendo-se que, para efeitos de aferição das exigências de prevenção especial, o sentido crítico do agente quanto à própria conduta é factor relevante (embora não constitua pressuposto legal e/ou condição necessária), no caso, o recluso manifesta consciência crítica e arrependimento consistentes, tal qual, também, resulta da fundamentação de facto.
Assim sendo, ante a materialidade fáctica assente, tudo induz a verificação de um contexto atenuativo relativamente aos riscos de recidiva e ao enfraquecimento das exigências de prevenção especial a condescender a concessão da liberdade condicional, cumpridos que se mostram os dois terços da pena.
Vale tudo por dizer que, atentas as circunstâncias do caso e a materialidade em ponderação, é de consentir, tal qual decidido, que o recluso saberá conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.
Ademais, derradeiramente, como dá nota a decisão revidenda, afigura-se inolvidável a conveniência de um período de liberdade sob tutela. Com efeito, «(…) no decurso deste período o condenado poderá, gradualmente, adaptar-se à vida em liberdade, adequando a sua conduta aos padrões sociais, no que será apoiado, vigiado e fiscalizado pelos serviços competentes (DGRSP) o que, seguramente, terá resultados muito mais proveitosos, em termos das subsistentes necessidades de reinserção social, do que o cumprimento total da pena de prisão, e a consequente colocação do condenado em meio livre, sem qualquer período de apoio institucional»
4
.
Termos em que improcede o recurso interposto pelo Ministério Público.
III – DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
Negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, manter a decisão recorrida que concedeu a Liberdade Condicional.
Comunique e notifique, de imediato.
Lisboa, 16 Janeiro de 2025
Ana Marisa Arnêdo
Marlene Fortuna
Ana Paula Guedes (vencida, conforme declaração que segue)
Voto vencida a decisão, por considerar que deveria ter sido dado provimento ao recurso.
Na verdade, perante os elementos constantes dos autos, conjugando os tipos legais em causa, o extenso passado criminal e prisional do arguido, a sua personalidade, resulta, a nosso ver, que não é possível emitir um juízo de prognose favorável no sentido de que o condenado conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem praticar novos ilícitos criminais, tendo sido este o entendimento do Ex.mo Senhor Diretor do EP, da DGRSP, dos Serviços Prisionais e do Ministério Público.
O recluso, tem condenações por furto (várias), condução sem habilitação legal (várias), resistência e coação sobre funcionário, tráfico de estupefacientes, posse de estupefacientes para consumo, abuso sexual de menores, roubo e tráfico de estupefacientes de menor gravidade, cumprindo pena pela quinta vez.
Nada tem inibido o recluso de praticar de forma sucessiva e reiterada vários ilícitos criminais e nem a circunstância de ter cumprido penas efetivas de prisão o impediu da prática de novos ilícitos criminais.
Não são as circunstâncias do recluso manter há cerca de um ano um comportamento isento de processos disciplinares (obrigação de qualquer recluso) e de, neste momento, verbalizar arrependimento, que permitem, só por si, formular um juízo de prognose favorável.
Assim, mantendo-se, ainda, muito acentuadas as necessidades de prevenção especial, não deveria ter sido concedida a liberdade condicional.
_____________________________________________________
1. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24/1/2023, processo n.º 357/16.1TXEVR-J.E1, in
www.dgsi.pt
.
2. Art.º 173º, n.º 1 do C.E.P.M.P.L.
3. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/6/2019, processo n.º 3371/10.7TXPRT-M.C1, in
www.dgsi.pt
.
4. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/6/2019, processo n.º 3371/10.7TXPRT-M.C1, in
www.dgsi.pt
.
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/5b2840280259211480258c1c004b36e2?OpenDocument
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1,759,795,200,000
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REVOGADA A DECISÃO
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2340/24.4T8VNG.P1
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2340/24.4T8VNG.P1
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ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
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I – A adequação da forma do processo afere-se pela pretensão formulada pelo autor, ou seja, pelo pedido, concatenado com a respectiva causa de pedir.
II – Para se alcançar a finalidade própria do processo de inventário é frequentemente necessário apreciar e decidir previamente outras questões susceptíveis de influir na partilha, designadamente na definição dos direitos dos interessados na partilha e na determinação dos bens a partilhar.
III – O regime regulador do processo de inventário prevê que tais questões sejam aí apreciadas e decididas a título incidental (cfr. artigos 1104.º a 1108.º, 1110.º, n.º 1, al. a), 1118.º e 1119.º do CPC). Mas não impede que essas questões sejam apreciadas e decididas, a título principal, noutras acções. Pelo contrário, o referido regime prevê expressamente essa possibilidade, designadamente nos artigos 1092.º e 1093.º do CPC, a qual também pode decorrer do regime geral da prejudicialidade previsto no artigo 272.º do CPC.
IV – Isto significa que as questões passíveis de influir na partilha ou relacionação podem ser discutidas noutras acções, maxime em acções declarativas comuns, o que pode suceder por decisão do próprio juiz, com fundamento na inconveniência da decisão incidental da questão, mas pode suceder igualmente por força da opção dos interessados que solicitem a apreciação dessa questão em acção intentada previamente à instauração do inventário.
V – Porque os legatários que não sejam simultaneamente herdeiros carecem de legitimidade para requerer inventário para partilha da herança deixada pelo testador e porque os herdeiros não estão obrigados a fazê-lo, é inegável que aos primeiros assiste o direito de solicitar a apreciação da validade dos legados em acção por si intentada. Mas se estes o podem fazer, não se vislumbra qualquer razão plausível para que o mesmo não possa ser feito pelos herdeiros prejudicados com tais legados.
VI – Esta conclusão torna-se ainda mais clara nas situações em que, por não haver qualquer litígio entre os herdeiros ou por existir um único herdeiro, ocorra apenas um litígio entre o(s) herdeiro(s) e o(s) legatário(s). Nestes casos, não vemos como se possa recusar ao(s) herdeiro(s) a possibilidade de discutir(em) numa acção comum apenas os direitos dos legatários sobre bens que fazem parte da herança.
VII – A redução de liberalidades por inoficiosidade tanto pode ter lugar no âmbito do inventário pendente, ao abrigo do disposto nos artigos 1118.º e 1119.º do CPC, como em consequência de acção autónoma de redução, intentada ao abrigo do disposto no artigo 2178.º do CC.
VIII – Quando não seja admissível inventário, por não haver lugar a partilha, o interessado tem de instaurar ação comum para redução da liberalidade; estando pendente inventário, devem os interessados utilizar o incidente previsto nos artigos 1118.º e 1119.º do CPC; mas nada impede que a ação de inoficiosidade seja instaurada autonomamente antes do inventário.
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[
"HERANÇA",
"LEGADOS",
"REDUÇÃO DE LIBERALIDADE",
"LEGITIMIDADE ATIVA",
"AÇÃO COMPETENTE"
] |
Processo:
2340/24.4T8VNG.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
AA
, residente na ..., n.º ..., ..., ... ..., intentou a presente acção declarativa comum contra
BB
,
CC
, ambos residentes na Avenida ..., ..., ..., ... Vila Nova de Gaia, e
DD
, residente na Rua ...., ... Vila Nova de Gaia.
Alegou, em síntese, o seguinte: o autor foi casado com EE, no regime supletivo de comunhão de adquiridos, falecida no dia 01.10.2022; esta celebrou testamento, por via do qual legou aos réus, por conta da quota disponível, determinados bens imóveis, acrescentando que, “se falecer no estado de casada, institui únicos herdeiros do remanescente da quota disponível da sua herança, em comum e partes iguais”, os réus; nesse testamento a autora declarou que os referidos bens imóveis foram adquiridos “por título outorgado por si e por seu marido como adquirentes, mas o dinheiro utilizado na sua aquisição era bem próprio da ora testadora, facto bem conhecido do seu marido”; tal declaração é falsa, sendo os referidos bens imóveis comuns e não bens próprios da falecida, pelo que os legados são nulos, para além de serem inoficiosos, por excederem a quota disponível dos bens da falecida e a própria meação desta nos bens comuns do casal, lesando a meação do autor nesses bens e a sua quota indisponível como herdeiro legitimário da referida EE.
Concluiu deduzindo o seguinte pedido:
1.º- declarar-se o A como único herdeiro legitimário da falecida EE;
2.º- Declarar-se que a fração designada no testamento identificado em supra artigo 15º da presente peça, identificado pela testadora como “fração autónoma designada pela letra “C”, correspondente a habitação no segundo andar, que faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho do Porto, inscrita na matriz sob o artigo ......, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ..., da freguesia ....”, corresponde á fração supra identificada em artigo 3.º e artigo 19.º, verba 5 do ativo;
3.º- Declarar-se que a fração designada no testamento identificado em supra artigo 15.º da presente peça, identificado pela testadora como “fração autónoma, que constitui a sua habitação, que faz parte do referido prédio urbano sito na Rua ..., habitação ..., freguesia ..., concelho do Porto”, corresponde à fração autónoma designada pela letras “ET” correspondente à habitação ..., no segundo andar, e uma arrecadação com o nº 9, de 5 m2, na primeira cave, com entrada pelo nº ..., e um espaço para aparcamento com o nº ..., de 19,5 m2 na 1ª cave, com entrada pelo nº ... inscrita na matriz predial da freguesia ... sob o artigo ...-ET, e descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número dois mil seiscentos e sessenta e oito, da freguesia ... supra identificada em artigo 10.º e artigo 19.º verba 6 do ativo;
4.º- Declarar-se que, por via das compras e vendas celebradas e supra referidas em artigos 2.º a 8.º e 9.º a 13.º as frações “C” e “ET” constituem bens comuns do extinto casal formado pelo ora A e pela falecida EE, adquiridas na vigência do seu casamento, vigorando entre os mesmos o regime da comunhão de adquiridos;
5.º- Declarar-se nulas e sem quaisquer efeitos, as disposições testamentárias de EE prestada no testamento celebrado no dia sete de dezembro de dois mil e vinte, no Cartório de A..., Unipessoal, Lda, lavrado de folhas quarenta e oito a folhas quarenta e nove verso do respetivo livro número dezasseis de testamentos e escrituras de revogação de testamentos do mencionado Cartório Notarial, com excepção das que procedem à revogação das suas anteriores disposições testamentárias, e por via disso
6.º - Declarem-se nulos os legados feitos pela por EE aos RR. das frações designadas pelas letras “C” e “ET” supra identificadas, restituindo os legatários à herança da falecida EE as frações objeto de tais legados;
SEM PRESCINDIR e caso assim não se entenda, deverá:
7.º- Declararem-se nulos, quanto à substância, os legados atrás referidos de coisa certa e determinada, transformando-se ope legis, num legado de valor,
8.º- Fixar o valor da meação da falecida EE em € 74.870,51;
9.º- Fixar, o quinhão herditário/legítima do cônjuge sobrevivo, único herdeiro legitimário da herança aberta por óbito de EE, no valor de € 74.870,51;
10.º- Fixar a quota disponível da herança deixada por óbito de EE em € 37.435,25, tudo conforme cálculos referidos nos artºs 49.º a 54.º da presente peça;
11.º – Declarar-se, em consequência, que o valor dos legados deve ser reduzido ao valor da quota disponível, por exceder a meação e a legítima do cônjuge, e/ou ser reduzido na medida do necessário à eliminação do excesso que ofenda essa meação e legítima.
Os réus BB e CC apresentaram contestação onde, para além do mais, informam que a segunda requereu inventário para partilha da herança aberta por óbito de EE, que corre termos no J2 do mesmo Juízo Local Cível sob o n.º 5684/24.1T8VNG, e arguem a nulidade decorrente do erro na forma do processo.
Também a ré DD apresentou contestação, secundando a informação e a arguição antes mencionadas.
O autor pronunciou-se, pugnando pela improcedência do alegado erro na forma do processo.
Por decisão proferida em 26.02.2025, o Tribunal a quo julgou «verificada a nulidade de erro na forma de processo» e determinou «a anulação de todo o processado, incluindo a petição inicial».
*
Inconformado, o autor apelou desta decisão, concluindo assim a respectiva alegação:
«
1.º- O artigo 1092.º do Código do Processo Civil:
quando se estabelecem os critérios da suspensão da instância.
Como resulta da lei, a função específica do inventário é uma das indicadas no artigo 1082.º do CPC, a seguir enumeradas:
a) Fazer cessar a comunhão hereditária e proceder á partilha de bens;
b) Relacionar os bens que constituem objeto de sucessão e servir de base à eventual liquidação da herança, sempre que não haja de realizar a partilha da herança;
c) Partilhar bens em consequência da justificação da ausência;
d) Partilhar bens comuns do casal.
Acontece que, para se alcançar o desfecho das funções específicas do inventário pode ser necessário resolver previamente questões mais ou menos complexas, e são essas questões que justificam e legitimam a opção pelo processo comum em vez de um processo especial de inventário. Como efeito, se no processo de inventário se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devem ser incidentalmente decididas, o juiz determina a suspensão da instância, até que ocorra decisão definitiva, remetendo as partes para os meios comuns, logo que os bens se encontrem relacionados. Porém a suspensão da instância pode igualmente ser determinada se estiver pendente uma causa em que se aprecie uma questão com relevância para a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha. Pelo que resulta claramente das al. a) e b) do nº 1 do artigo 1092.º do CPC, que as questões prejudiciais á partilha se podem suscitar em dois momentos:
- no decurso do processo de inventário;
- numa outra ação autónoma onde se discutem questões prejudiciais à partilha.
2.º- O artigo 193.º do Código do Processo Civil:
Conforme supra explanado, o regime de conhecimento das questões incidentais que contendem com a partilha deixa claro que pese embora tais questões possam ser resolvidas no âmbito do processo de inventário, não é forçoso que tal assim aconteça, repita-se, por determinação do nº 1 al. a) do artigo 1092.º do CPC. Pelo que a opção por uma das formas do processo, não pode consubstanciar qualquer erro na forma de processo, até porque o processo de inventário não é obrigatório.
Nesse sentido, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto – processo 159/12.4TBALJ.P1, de 13/06/2013, in www.gde.mj.pt/trp:
“I- A acção com processo comum em que os herdeiros, sem terem ainda procedido à partilha dos bens ou instaurado inventário para o efeito, deduzem o pedido de declaração de invalidade quanto á substância de um legado deixado por testamento do de cujus, não enferma de erro na forma de processo.
II- O regime do artigo 1685.º do Código Civil aplica-se a todas as disposições mortis causa de bens certos e determinados integrados na comunhão conjugal do cônjuge disponente, nomeadamente nas situações em que o casamento já se dissolveu mas o património comum do casal, onde se integra o bem objeto da disposição, continua por partilhar, independentemente do testamento com a disposição ter sido celebrado antes ou depois da dissolução do casamento.”
3.º- O artigo 2178.º do Código Civil:
Dando por reproduzido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa – processo 6928/20.4T8ALM-A.L1-2, de 23/06/2022, in www.dgsi.pt/jtrl:
“No quadro legal vigente, não sendo a redução dos legados inoficiosos uma função específica do processo de inventário, mas incidental, e estando expressamente previsto no art. 2178.º do CC o direito de ação de redução de liberalidades inoficiosas, é inaceitável considerar que a redução de inoficiosidade apenas poderá ser peticionada e obtida, em toda e qualquer circunstância, mediante a instauração de processo de inventário.
II-Uma tal afirmação de princípio deve ser rejeitada, antes se impondo, numa interpretação sistemática e teleológica dos artigos 1028.º e 1119.º do CPC e 2174.º nº 2, e 2178.º do CC, proceder as uma análise casuística, a qual não pode deixar de apontar no sentido da possibilidade de uma ação declarativa comum ser intentadas pelos herdeiros legitimários com o propósito de redução de liberalidades inoficiosas.”
Dando Vª. Exª. provimento ao presente recurso de apelação, farão INTEIRA JUSTIÇA!»
Não foi apresentada resposta a esta alegação.
*
II. Fundamentação
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, a única questão a decidir consiste em saber se não ocorre um erro na forma do processo que determine a anulação de todo o processado.
*
Nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 2, do CPC, a todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação.
Este preceito – que visa assegurar e regular o acesso aos tribunais, mediante o exercício do direito de acção, no qual se compreende o recurso às acções declarativas, às acções executivas e aos procedimentos cautelares – tem implícito o princípio da legalidade da forma processual, desenvolvido nos artigos 546.º e seguintes do CPC.
De harmonia com o disposto neste artigo 546.º, o processo – declarativo ou executivo – pode ser comum ou especial, aplicando-se este aos casos expressamente designados na lei e aquele a todos os casos a que não corresponda processo especial. O processo comum tem, assim, um âmbito residual, aplicando-se quando a pretensão deduzia pelo autor não esteja compreendida no âmbito de alguma acção especial.
A idoneidade ou adequação da forma do processo afere-se pela pretensão formulada pelo autor (cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa,
Código de Processo Civil Anotado
, vol. I, Almedina, 2019, pp. 232 e 597), ou seja, pelo pedido, concatenado com a respectiva causa de pedir.
«Quando a lei define o campo de aplicação do processo especial respectivo pela simples indicação do fim a que o processo se destina, a solução do problema da determinação dos casos a que o processo é aplicável, está à vista: o processo aplicar-se-á correctamente quando se use dele para o
fim
designado pela lei.
E como o fim para que, em cada caso concreto, se faz uso do processo se conhece através da petição inicial, pois que nesta é que o autor formula o seu
pedido
e o pedido enunciado pelo autor é que designa o fim a que o processo se destina, chega-se à conclusão seguinte: a questão da propriedade ou impropriedade do processo especial é uma questão, pura e simples, de ajustamento do
pedido
da acção à
finalidade
para a qual a lei criou o respectivo processo especial.
Vê-se, por um lado, para que fim criou a lei o processo especial; verifica-se, por outro, para que fim o utilizou o autor. Há coincidência entre os dois fins? O processo especial está bem empregado. Há discordância entre os dois fins? Houve erro na aplicação do processo especial (Veja-se a
Revista de Legislação
, ano 63.º, págs. 324 e 325).
Este critério é de uma simplicidade extrema; e a sua exactidão não pode, razoàvelmente, ser posta em dúvida» (Alberto dos Reis,
Código de Processo Civil anotado
, vol. II, 3.ª ed., Coimbra, 1981, pp. 288 e 289).
O erro na forma do processo configura uma nulidade, nos termos e com os efeitos previstos no artigo 193.º do CPC, de conhecimento oficioso (cfr. artigo 196.º do CPC). Nos casos em que implica a anulação de todo o processado, consubstancia uma excepção dilatória e determina a absolvição do réu instância, nos termos previstos nos artigos 278.º, n.º 1, al. b), e 577.º, al. b), do CPC.
O processo especial de inventário está regulado nos artigos 1082.º e seguintes do CPC, cumprindo, entre outras, as seguintes funções:
a) Fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens;
b) Relacionar os bens que constituem objeto de sucessão e servir de base à eventual liquidação da herança, sempre que não haja que realizar a partilha da herança;
c) Partilhar bens em consequência da justificação da ausência;
d) Partilhar bens comuns do casal.
No presente caso, o Tribunal
a quo
julgou verificado um erro na forma do processo por entender que, por via desta acção, o autor pretende fazer a partilha dos bens deixados por EE, «desde logo atendendo aos pedidos que formula para ser declarado seu herdeiro legitimário, para se definirem os bens da herança (que descreve no articulado, assim como o passivo) e para fixar os quinhões que a cada herdeiro cabe do acervo hereditário, a si, por ser cônjuge e herdeiro legitimário, e aos restantes herdeiros legatários/testamentários», acrescentando que esta matéria «é da competência do processo de inventário (partindo do princípio que não existe acordo entre os interessados para a partilha correr na Conservatória), atento o disposto nos artigos 2002.º, 2, do CC e 1082.º, a) e b), do CPC.
Porém, analisados os pedidos deduzidos pelo autor, concatenados com a causa de pedir que os sustenta, não se afigura possível concluir que aquele pretende, por via desta acção, partilhar a herança aberta por óbito de EE.
Pretender que o Tribunal declare que é herdeiro legitimário da sua falecida mulher e que estabeleça a correspondência entre os bens legados por esta no testamento que outorgou e determinadas verbas da relação de bens que descreve no articulado, não se confunde nem, sequer, tem implícita a pretensão de partilha dos bens que integram aludida herança, pedido que o autor manifestamente não deduziu nestes autos.
Independentemente da utilidade destes pedidos – ou, melhor dizendo, do rigor formal da concreta formulação do pedido (prevista no artigo 552.º, n.º 1, al. e), do CPC), que se mostra tributária da prática, cada vez mais frequente, de incluir no próprio pedido a declaração dos seus requisitos ou pressupostos, que consideramos incorrecta, por ser perturbadora da clareza e da síntese que devem caracterizar a formulação do pedido –, julgamos ser de linear clareza que tais pedidos, tal como a descrição dos bens que integram o acervo hereditário constante do articulado, não visam a partilha da herança, mas apenas enquadrar e sustentar o pedido de declaração da natureza comum dos imóveis legados pela testadora e o pedido de declaração da nulidade das respectivas disposições testamentárias.
Quanto ao pedido de fixação do «quinhão hereditário/legítima» do autor e da «quota disponível da herança» (e não de fixação dos quinhões hereditários que cabem a cada herdeiro, como se refere na decisão recorrida), tendo os mesmos sido deduzido a título subsidiário, sempre seriam insusceptíveis de determinar a existência de um erro na forma do processo quanto ao pedido principal e, por conseguinte, a anulação de todo o processado.
De todo o modo, aqueles pedidos também não visam a partilha da herança nesta acção, mas apenas sustentar o pedido subsidiário de redução (por inoficiosidade) do valor dos legados.
Nestes termos, e em suma, nem os pedidos – principal e subsidiário – nem a causa de pedir se compreendem naquilo que é a finalidade principal do processo especial de inventário: fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha dos bens.
Acrescenta-se na decisão recorrida que «as declarações dos pedidos de nulidade dos legados não têm sentido, na medida em que ainda que se possa considerar que a testadora não era proprietária dos bens que legou, sendo estes bens comuns e não próprio, não deixou de os legar, podendo quanto muito haver lugar à transformação
ope legis
de uma disposição em substância num legado de valor nos termos dos artigos 1685.º, 2 e 2252.º, do Código Civil».
Mas esta questão prende-se com o mérito dos pedidos – de que, naturalmente, não cumpre aqui conhecer (e que, de resto, o recorrente teve em conta quando pediu, a título subsidiário, a transformação
ope legis
do legado nulo dos imóveis num legado de valor) – e não uma questão de regularidade processual.
Acrescenta-se ainda naquela decisão que «será sempre no processo de inventário que esta questão deve ser levantada e conhecida, porquanto será nesse processo que os bens devem ser relacionados, nessa altura se percebendo se os imóveis são relacionados como bens comuns ou próprios, parecendo estar aqui o autor a antecipar uma polémica que nem sequer se sabe se vai existir».
Não há dúvida de que, para se alcançar a finalidade própria do processo de inventário, é frequentemente necessário apreciar e decidir previamente outras questões susceptíveis de influir na partilha, designadamente na definição dos direitos dos interessados na partilha e na determinação dos bens a partilhar.
O próprio regime regulador do processo de inventário prevê que tais questões sejam aí apreciadas e decididas a título incidental (cfr. artigos 1104.º a 1108.º, 1110.º, n.º 1, al.
a)
, 1118.º e 1119.º do CPC).
Mas não impede que essas questões sejam apreciadas e decididas, a título principal, noutras acções. Pelo contrário, o referido regime prevê expressamente essa possibilidade, designadamente nos artigos 1092.º e 1093.º do CPC, a qual também pode decorrer do regime geral da prejudicialidade previsto no artigo 272.º do CPC.
Suscitando-se a questão no decurso do processo de inventário, a regra será a sua decisão incidental neste processo, a não ser que o próprio juiz decida remeter os interessados para os meios comuns, nos termos previstos nos artigos 1092.º, n.ºs 1, al. b), e 2, e 1093.º do CPC.
A regra será a contrária no caso de já estar pendente, no momento em que é intentado o processo de inventário, acção autónoma em que se aprecie uma
questão com relevância para a admissibilidade do processo ou para a definição de direitos de interessados diretos na partilha
, como decorre do disposto no artigo 1092.º, n.º 1, al. a).
Estando nesse momento pendente acção em que se aprecie
questão cuja resolução apenas condicione a determinação do património a partilhar
, importará ponderar a aplicação do da regra geral do artigo 272.º do CPC.
Isto significa que as questões passíveis de influir na partilha podem ser discutidas noutras acções,
maxime
em acções declarativas comuns.
Significa igualmente que tal pode suceder por decisão do próprio juiz, com fundamento na inconveniência da decisão incidental da questão, mas pode suceder igualmente por força da opção dos interessados que solicitem a apreciação dessa questão em acção intentada previamente à instauração do inventário.
No caso concreto, embora os réus aleguem ter sido instaurado um processo judicial de inventário para partilha da herança aberta por óbito de EE, não alegam que o fizeram antes da propositura desta acção comum e nem sequer demonstram a pendência desse processo de inventário.
Porém, o número que indicam como sendo o desse processo de inventário revela que foi intentado no mesmo ano, mas já depois de ter sido intentada esta acção comum.
Por outro lado, porque os legatários que não sejam simultaneamente herdeiros carecem de legitimidade para requerer inventário para partilha da herança deixada pelo testador (na medida em que, sucedendo em bens certos e determinados, não são interessados directos na partilha, cingindo-se a sua intervenção no processo de inventário às questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos e, quando haja herdeiros legitimários, aos «atos, termos e diligências suscetíveis de influir no cálculo ou determinação da legítima e de implicar eventual redução das respetivas liberalidades – cfr. artigo 1085.º, n.º 1, al.
a)
, e n.º 2, al.
a) e b)
, do CPC, e artigo 2101.º, n.º 1, do CC) e porque os herdeiros não estão obrigados a fazê-lo, podendo optar por manter a herança indivisa, é inegável que aos legatários assiste o direito de solicitar a apreciação da validade dos legados em acção por si intentada, sob pena de violação do direito constitucional de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Mas se estes o podem fazer, não se vislumbra qualquer razão plausível para que o mesmo não possa ser feito pelos herdeiros prejudicados com tais legados.
Esta conclusão torna-se ainda mais clara nas situações em que, por não haver qualquer litígio entre os herdeiros ou por existir um único herdeiro (casos em que o respectivo inventário nunca terá como finalidade partilhar a herança, mas apenas relacionar os bens que constituem objeto de sucessão e servir de base à
eventual
liquidação da mesma, nos termos previstos no artigo 1082.º, al.
b)
, do CPC, por isso se denominando inventário arrolamento), ocorra apenas um litígio entre o(s) herdeiro(s) e o(s) legatário(s).
Nestes casos, não vemos como se possa recusar ao(s) herdeiro(s) a possibilidade de discutir(em)
apenas
os direitos dos legatários sobre bens que fazem parte da herança. Ora, o processo de inventário não se mostra processualmente adequado para essa discussão, na medida em que não estejam aí em causa nenhuma das suas finalidades principais, nomeadamente fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens ou relacionar os bens que constituem objeto de sucessão e servir de base à eventual liquidação da herança (designadamente nas situações previstas no artigo 2102.º, n.º 2, alíneas
b)
e
c)
, e 2013.º do CC).
Voltando ao caso concreto, é manifesto que o pedido principal de declaração de nulidade dos legados não tem implícito nem pressupõe o pedido de cessão de comunhão hereditária e de partilha dos bens ou o pedido de arrolamento dos bens que integram o acervo hereditário para servir de base à eventual liquidação da herança, pelo que, quanto a esse pedido principal, é inquestionável a adequação da forma declarativa comum adoptada pelo autor.
Dúvidas apenas se poderiam suscitar quanto ao pedido subsidiário de redução dos legados por inoficiosidade. Mas a verdade é que este pedido também não tem implícito nem pressupõe nenhum daqueles pedidos antes mencionados.
O que o autor pretende, no caso de improcedência do pedido principal de declaração de nulidade dos legados e de restituição à herança dos imóveis objecto dos mesmos, é a sua transformação
ope legis
num legado de valor e a sua redução por inoficiosidade, nada sendo pedido relativamente aos demais bens que integram a herança.
Ora, há muito que a jurisprudência vem entendendo que a redução de liberalidades por inoficiosidade tanto pode ter lugar no âmbito do inventário pendente, como em consequência de acção autónoma de redução, intentada ao abrigo do disposto no artigo 2178.º do CC. Foi, de resto, por esta razão que o Decreto-Lei n.º 227/94, de 8 de Setembro, eliminou a referência que o anterior artigo 1398.º do CPC fazia ao inventário destinado apenas «à verificação de que não há disposição inoficiosa», não a transpondo para o novo artigo 1326.º, n.º 2, na versão introduzida por aquele diploma (cuja matéria está hoje regulada no artigo 1084.º do CPC) – cfr. Lopes do Rego,
Comentários ao Código de Processo Civil
, Vol. II, 2.ª ed., Almedina, 2004, p. 245.
Disso mesmo nos dá nota no ac. do TRL, de 23.06.2022, citado pela recorrente, onde se pode encontrar uma resenha da evolução jurisprudencial e doutrinal a respeito desta questão.
Sobre a forma como se conjugam o incidente de inoficiosidade previsto no regime jurídico do processo de inventário actualmente vigente, mais concretamente nos artigos 1118.º e 119.º do CPC, e a acção de redução de liberalidades inoficiosas prevista no artigo 2178.º do CC, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (
Código de Processo Civil Anotado
, vol. II, 2.ª ed., Almedina, 2022, p. 640) afirmam que «são equacionáveis as seguintes soluções: quando não seja admissível inventário, por não haver lugar a partilha (herdeiro único), o interessado tem de instaurar ação comum para redução da liberalidade (STJ 24-10-06, 06B2650, RG 14-1-16, 31/14); estando pendente inventário, devem os interessados utilizar este incidente, sendo este o procedimento próprio. Nesta última situação, a redução da inoficiosidade não está sujeita ao prazo do art. 2178 do CC, desde que seja deduzida contra beneficiários que, por serem também interessados na partilha da herança, têm intervenção no inventário como interessados diretos ou secundários (art. 1085º, nº 1, als. a) e b) e nº 2, als. a) e b); STJ 8-11-01, 02A740, RL 17-2-09, 10792/2008, RP 8-10-18, 2670/11; Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, 2020, p. 125)». Mas logo acrescentam que «[n]ada impede que a ação de inoficiosidade seja instaurada autonomamente antes do inventário (RC 18-2-21, 1095/19, RE 19-11-20, 867/19)».
No caso concreto, atento tudo o que ficou exposto, considerando que esta acção foi intentada antes do inventário alegadamente proposto por um dos réus, que o autor é o único herdeiro legitimário da herança aberta por óbito da sua mulher e que aquele pretende, a título principal, a declaração de nulidade das disposições testamentárias por via das quais a
de cujus
legou determinados imóveis aos réus, com a consequente restituição desses imóveis à respectiva herança, e, a título subsidiário, a conversão
ope legis
daquelas liberalidades em legados de valor e a sua redução por inoficiosidade, a referida acção mostra-se processualmente adequada, não ocorrendo qualquer erro na forma do processo.
Nestes termos, a decisão recorrida não pode subsistir, impondo-se revogá-la e determinar o prosseguimento os autos.
Na procedência da apelação, as respectivas custas serão suportadas pelos recorridos, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
*
Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
………………………………
………………………………
………………………………
*
III. Decisão
Pelo exposto, os Juízes da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto julgam procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida e determinam o prosseguimento da acção.
Custas da apelação pelos recorridos.
Registe e notifique.
*
Porto, 10 de Julho de 2025
Artur Dionísio Oliveira
Maria Eiró
João Ramos Lopes
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/036e616ab1cf20c680258cdc00336611?OpenDocument
|
1,738,195,200,000
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CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
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356/24.0T8ODM-A.E1
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356/24.0T8ODM-A.E1
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MANUEL BARGADO
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Tendo a ré sido citada para contestar a ação como se de uma ação não urgente se tratasse, tendo-lhe sido concedido o prazo de 35 dias para se defender, a não admissão da contestação por extemporaneidade, com o fundamento de que se trata de um processo urgente que corre em férias, constituiria uma violação inadmissível dos princípios da cooperação, da boa fé processual, da tutela da confiança, da igualdade e da auto responsabilização quer das instituições quer das partes.
|
[
"PROCESSO URGENTE",
"CONTESTAÇÃO",
"PRAZO",
"PRINCÍPIO DA CONFIANÇA",
"ARRENDAMENTO RURAL"
] |
Proc. nº 356/24.0T8ODM-A.E1
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO
AA
instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra
BB
, pedindo que se decida que o despejo põe em risco sério a subsistência do autor e do seu agregado, condenando-se a ré a assim o reconhecer.
Alega, em síntese, que a ré o notificou judicialmente da cessação por resolução do contrato de arrendamento rural celebrado pelas partes em 1976, intimando-o a abandonar o locado, no prazo de um mês a contar da data da sua notificação, retirando todas as benfeitorias, não se verificando, porém, os motivos invocados pela ré para operar tal resolução.
Os autos foram autuados como processo de natureza urgente.
Em 19.07.2024 foi expedida a citação da ré, na qual se fez constar, além do mais, que:
«a. Tem 35 dias para responder.
b. O prazo para responder começa a contar no dia a seguir à assinatura do aviso de receção desta carta. Conta-se em dias corridos, incluindo fins de semana e feriados.
c. A contagem só fica suspensa durante as férias judiciais:
i. Entre 22 de dezembro e 3 de janeiro
ii. Entre o domingo de Ramos e a segunda-feira de Páscoa
iii. Entre 16 de julho e 31 de agosto.
d. O/A seu/sua advogado/a poderá dar-lhe mais informações sobre a contagem dos prazos.
e. Se esta carta se dirige a uma pessoa e não a uma entidade e se o aviso de receção foi assinado por outra pessoa, o prazo aumenta 5 dias.
f. Se o prazo terminar num dia em que o tribunal esteja fechado, ainda pode entregar a sua resposta no dia útil seguinte.»
Em 24.07.2024, a ré foi citada, tendo a própria assinado o aviso de receção [cfr. aviso de receção de 29.07.2024].
Por despacho datado de 17.09.2024, o Tribunal considerou que os presentes autos não assumiam a natureza urgente, e determinou a alteração para não urgente, mandando aguardar pelo decurso do prazo de contestação.
Este despacho não foi notificado à ré.
Em 01.10.2024, a ré apresentou contestação.
Em 04.10.2024, foi proferido despacho no qual se consignou, além do mais, que «[m]elhor compulsados os autos, constata-se existir um lapso pelo qual nos penitenciamos, uma vez que, efetivamente os presentes autos assumem a natureza urgente, nos termos do artigo 35.º, n.º 2 do DL n.º 294/2009, de 13 de outubro, porquanto está em causa a oposição à denúncia do contrato de arrendamento, ou seja, uma situação de cessação do aludido contrato. Proceda à alteração, atribuindo carácter urgente aos presentes autos».
Nesse mesmo despacho, considerou-se a ré regularmente citada e consignou-se: «Considerando o que acima se determinou quanto à urgência dos presentes autos e ainda a data em que a Ré se considera citada, confira contraditório às partes quanto à tempestividade da contestação».
Observado o contraditório, veio o autor pugnar pela extemporaneidade da contestação, atenta a data da citação, por se tratar de um processo urgente e de ter decorrido o prazo de contestação, tendo a ré, por sua vez, alegado, em síntese, não poder ser prejudicada pelos eventuais erros da secretaria e do Tribunal.
Em 31.10.2024 foi proferida decisão que, após indicar a cronologia dos atos acima referidos e tecer considerações de natureza jurídica sobre a matéria, considerou tempestiva a contestação apresentada em 01.10.2024.
Inconformado, o autor apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que se transcrevem:
«a) O recorrente discorda do despacho que considerou tempestiva a apresentação da contestação;
b) Os presentes autos, nos termos do n.º 2 do Artigo 35.º do DL n.º 294/2009, de 13 de Outubro, seguem a forma de processo urgente, e por esse motivo os prazos que dai decorrem não se suspendem durante o período de férias judiciais;
c) Em momento anterior à propositura da presente ação, a ré constituiu mandatário por forma a notificar judicialmente o autor;
d) A secretaria judicial – e bem - citou a ré em conformidade, ou seja, durante o período de férias judiciais, em 24 de Julho de 2024 – cfr. referências Citius n.º 34648415 e 2808561;
e) Tendo a ré apresentado o seu articulado de contestação em 01 de Outubro de 2024, volvidos mais de 60 dias após ter sido devidamente citada;
f) Aquando da apresentação do seu articulado de contestação, a ré junta procuração forense, datada de 06 de Junho de 2023, que resulta de mandato anterior à data da propositura da presente ação judicial;
g) A ré e o seu mandatário tinham prévio conhecimento de toda a matéria controvertida que vem dar lugar aos presentes autos;
h) Pelo que ao contrário do entendimento do Tribunal “
a quo
” não foi criada qualquer expectativa – legitima – na esfera jurídica da ré, nem tão pouco existiu qualquer erro por parte da secretaria judicial que “
neminem laedere
;
i) Tendo o Tribunal “a quo”, admitido o articulado de contestação apresentado pela ré, viola o disposto no n.º 1 do Artigo 569.º do Código de Processo Civil e o n.º 1 do Artigo 138.º do mesmo código.
Termos em que deverá ser dado provimento ao recurso, declarando-se intempestiva a contestação apresentada pela ré e procedendo-se ao desentranhamento da mesma, com as legais consequências.»
A ré contra-alegou, defendendo a tempestiva a contestação apresentada e a consequente manutenção da decisão recorrida.
II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir é a de saber se deve ou não ser considerada tempestiva a contestação apresentada pela ré.
III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
A factualidade e a dinâmica processual a considerar para a decisão do recurso são as descritas no antecedente relatório.
O DIREITO
Não está em causa a natureza urgente destes autos, pois tratando-se de cessação/renovação de um contrato de arrendamento rural, como resulta do disposto no artigo 35º, nº 2, da LAR, estes processos “têm carácter de urgência e seguem a forma de processo sumário”
1
.
A questão que se suscita prende-se com o facto de o próprio Tribunal
a quo
ter inicialmente considerado o processo não urgente
2
, vindo depois “penitenciar-se” no despacho proferido em 04.10.2024, acima transcrito, no qual reconheceu o carácter urgente aos presentes autos, o que leva o recorrente a considerar que a contestação foi apresentada fora de tempo, mas sem razão, como veremos.
Seja como for, decorre da cronologia dos atos processuais acima referidos, que só com a notificação do despacho de 04.10.2024 é que a ré/recorrida toma conhecimento que o processo vai assumir carácter de urgente.
Com efeito, analisando a nota de citação acima transcrita, facilmente se vê que a ré não foi citada para contestar um processo urgente: «Tem 35 dias para se defender» (…); «O prazo para responder começa a contar no dia a seguir à assinatura do aviso de receção desta carta. Conta-se em dias corridos, incluindo fins de semana e feriados. A contagem só fica suspensa durante as férias judiciais: - entre 22 de dezembro e 3 de janeiro - entre o domingo de Ramos e a segunda-feira de Páscoa- entre 16 de julho e 31 de agosto»; «Se esta carta se dirige a uma pessoa e não a uma entidade e se o aviso de receção foi assinado por outra pessoa, o prazo aumenta 5 dias. Se o prazo terminar num dia em que o tribunal esteja fechado, ainda pode entregar a sua resposta no dia útil seguinte».
Resulta assim incontornável que a ré/recorrida foi citada para contestar a ação como se de uma ação não urgente se tratasse, tendo-lhe sido concedido o prazo de 35 dias para se defender, acrescido de uma dilação de 5 dias, sendo que a ré apresentou a contestação ao fim de 30 dias (01.10.2024)
3
, como se vê dos factos supra elencados.
Ora, se a secretaria do Tribunal prestou informação à ré/citanda, em formulário próprio, acompanhando o expediente de citação (com dimensão explicativa/informativa), sobre prazo para defesa/contestação e respetivo modo de contagem, apresentando-o como um prazo aumentado pela dilação, que se suspende em férias judiciais, então não é exigível ao destinatário prever que afinal o prazo não se suspende, o que é de molde a criar na ré a expetativa legítima de que se tratava de um prazo (processual) sujeito à suspensão durante as férias judiciais (cfr. arts. 138º, nº 1, e 142º, ambos do CPC).
Ora, se o tribunal concedeu à ré um prazo de 35 dias para contestar a ação, sem ter em consideração o caráter urgente do processo, a não admissão posterior da contestação por extemporaneidade, por se tratar de um processo urgente que corre em férias, como defende o recorrente, constituiria uma violação inadmissível dos princípios da cooperação, da boa fé processual, da tutela da confiança, da igualdade e da auto responsabilização quer das instituições quer das partes.
Veja-se, a este propósito, o acórdão da Relação do Porto de 15.12.2022
4
, com o seguinte sumário: «IV – Em todo o caso, tendo a secretaria assinalado na nota de citação um prazo de 35 dias para contestar, é este que deve ser considerado o prazo de contestação e não o previsto no art. 569.º CPC posto que os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes (art. 157.º, n.º 6 CPC).».
No mesmo sentido, o acórdão da Relação de Coimbra de 05.05.2015
5
, em cujo sumário se pode ler: «III - (…), se a secretaria funcionalmente dependente do juiz, remeteu ao patrono nomeado e ao próprio R a notificação de que o prazo para a apresentação da contestação se iniciou a partir de então, esse comportamento gerou no R. a legítima expectativa e a fundada confiança de que poderia praticar tal acto nesse prazo. IV – Ora, incumbindo aos tribunais, no exercício do essencial poder judicial do Estado, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, estes não esperam da sua parte qualquer afronta ao clima de boa-fé e de confiança em que têm o direito de acreditar na sua relação com todos os poderes públicos, porquanto as expectativas por eles legitimamente criadas, resultantes de comportamentos dos poderes públicos, impõem a previsibilidade da actuação destes, ínsita no princípio do estado de direito democrático, nas suas vertentes dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança».
Também no acórdão desta Relação de 19.03.2024
6
, se pode ler no respetivo sumário: «II - Tendo a ré sido citada para contestar a ação como se de uma ação não urgente se tratasse, tendo-lhe sido concedido o prazo de 30 dias para o efeito, acrescido de uma dilação de 5 dias, a não admissão posterior da réplica por extemporaneidade, com o fundamento de que se trata de um processo urgente que corre em férias, constituiria uma violação inadmissível dos princípios da cooperação, da boa fé processual, da tutela da confiança, da igualdade e da auto responsabilização quer das instituições quer das partes.»
Em processo com contornos idênticos aos dos autos, nos quais estava em causa a admissão de um recurso, escreveu-se no Acórdão do STJ de 17.05.2016
7
:
«O
fair trial
e/ou
due process
, integra vários vectores, sendo que o principal é enformado pela confiança dos interessados nas decisões de conformação ou orientação processual, não podendo os interessados sofrer quaisquer limitações, exclusão de posições ou direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem, sequer, vir a ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar, o que aconteceu na espécie, com o não conhecimento, inopinado, do objecto do recurso de Apelação, por extemporaneidade da apresentação das alegações, num processo que embora sendo urgente, até então, os prazos não haviam sido contabilizados em função de tal qualificação.»
Tanto basta, pois, para confirmar a decisão recorrida que não violou as normas invocadas pelo recorrente ou quaisquer outras.
Sumário
:
(…)
IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
*
Évora, 30 de janeiro de 2025
Manuel Bargado (relator)
Maria Adelaide Domingos
Elisabete Valente
(documento com assinaturas eletrónicas)
1. Com o novo CPC deixou de haver a forma sumária, pelo que os autos seguem a forma de processo comum.
↩︎
2. Despacho proferido em 17.09.2024.
↩︎
3. Considerando que o prazo esteve suspenso durante as férias judicias.
↩︎
4. Proc. 296/21.4T8PVZ-A.P1, in
www.dgsi.pt
.
↩︎
5. Proc. 50/14.0T8CNT.C1, in
www.dgsi.pt
.
↩︎
6. Proc. 274/22.6T8ETZ-A.E1, (do mesmo relator e 1ª adjunta) in
www.dgsi.pt
.
↩︎
7. Proc. 1185/13.1T2AVR.P1.S1, in
www.dgsi.pt
.
↩︎
|
TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/2e96a6f7110cecaa80258c2800385243?OpenDocument
|
1,745,798,400,000
|
REVOGADA PARCIAL
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807/22.8T8VCD.P1
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807/22.8T8VCD.P1
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FÁTIMA ANDRADE
|
I -
Estando as nulidades da sentença previstas de forma taxativa no artigo 615º do CPC é pacificamente aceite que estas respeitam a vícios formais decorrentes
“de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito”,
motivo por que nas mesmas se não incluem quer os erros de julgamento da matéria de facto ou omissão da mesma, a serem reapreciados nos termos do artigo 662º do CPC, quando procedentes e pertinentes, quer o erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito.
II -
Demonstrada não só a efetiva privação do uso do imóvel em consequência da sua ocupação ilícita, bem como demonstrada a perda das utilidades que o imóvel proporcionaria aos lesados, se não estivesse ocupado contra a vontade dos mesmos, reconhece-se a estes um direito indemnizatório, cujo valor será fixado com recurso a critérios de equidade, mas tendo por referência o valor locativo do imóvel.
|
[
"PRIVAÇÃO DE USO DE IMÓVEL",
"INDEMNIZAÇÃO",
"EQUIDADE"
] |
Processo nº. 807/22.8T8VCD.P1
3ª Secção Cível
Relatora – M. Fátima Andrade
Adjunta – Teresa Sena Fonseca
Adjunta – Ana Paula Amorim
Tribunal de Origem do Recurso – T J Comarca de Porto – Jz. Local Cível de Vila do Conde
Apelantes / AA e marido
Apelados / BB e outros
Sumário (artigo 663º n.º 7 do CPC).
………………………………
………………………………
………………………………
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I- Relatório
1. BB e marido CC;
2. DD, solteiro, maior, aqui representado por EE;
3. FF, solteira, maior, aqui representada por EE;
4. GG e mulher HH, aqui representados por EE; e
5. II e mulher JJ, aqui representados por KK,
instauraram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra
AA e marido LL.
Pela procedência da ação peticionaram os AA. a condenação dos RR. nos seguintes termos:
“1ª Serem os Réus condenados a reconhecer que os Autores são donos e legítimos possuidores de um prédio urbano destinado a habitação, composto por dois andares, interior com portão e com quintal. A confrontar do Norte com MM, do Sul com NN, do Nascente com terreno dos donos e do poente com Estrada, prédio inscrito na matriz predial urbana da extinta freguesia ..., atual União de freguesias ... e ... sob o artigo ..., descrito na conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o nº ...;
2ª Serem os Réus condenados a reconhecer que ocupam a casa, a título precário e por mera tolerância;
3ª- Serem os Réus condenados a entregar a casa livre de coisas e bens aos Autores;
4-ª Serem os Réus condenados a pagar aos Autores, uma indemnização pelos danos que estes tiverem que suportar, derivados do uso de privação da sua habitação e da eventual ocupação de outra casa, durante o tempo necessário que estiverem em Portugal, bem como todas as despesas designadamente judicias e outras que os Autores tenham que suportar em consequência da conduta omissa dos Réus, a liquidar em execução de sentença;
5ª- Serem os Réus condenados a pagar aos Autores, uma indemnização pelos danos de natureza não patrimonial causados em consequência da descrita conduta, bem como pelos danos de natureza idêntica que terão que suportar em consequência do agravamento das condições de salubridade e ou habitabilidade resultante da conduta omissiva dos Réus, a liquidar em execução de sentença;”
Para tal alegaram os AA., em síntese, serem os proprietários do imóvel descrito em 1º da p.i.
Propriedade que lhes adveio por aquisição celebrada por escritura pública de compra e venda em 20/01/2011, estando registada a seu favor na CRP, beneficiando por tal de presunção da titularidade do direito.
Tendo ainda invocado factualidade atinente à demonstração de que também por via da aquisição originária - usucapião, tal propriedade lhes pertence.
Mais alegaram que a R. e marido vivem no imóvel em causa, por mera cedência temporária desde 2017 concedida pelo procurador dos AA., Sr. GG, com a condição de estes pagarem a água e luz que consumissem naquela casa. Comprometendo-se os RR. a entregar a casa logo que para tanto fossem interpelados, livre e devoluta de pessoas e bens.
Casa que não tem condições de habitabilidade e que os AA. interpelaram a respetiva entrega, tendo os RR. a tal se recusado e exigido a realização de obras.
Bem sabendo os RR. que os AA. nunca quiseram arrendar a casa. Ali se mantendo sem o consentimento dos AA. e por isso de má-fé.
A atuação dos RR. é causa de prejuízos para os AA. nos termos que descriminaram na p.i., relativos quer a despesas suportadas e relacionadas com a atuação destes mesmos RR.; quer pela necessidade de recuperar a casa que se continua a degradar elevando, a não entrega das chaves, os prejuízos dos AA. nesta sede; quer pela não fruição da casa por parte dos AA.
A não entrega da casa aos Autores, constitui assim um ato suficientemente grave suscetível de gerar a obrigação de indemnizar pelos danos que já estão a provocar e pelos que no futuro lhes venham a provocar.
Danos cuja liquidação os AA. requereram fossem relegados para futura liquidação de execução de sentença.
Termos em que concluíram nos termos acima enunciados.
Citados os Réus, apresentaram comprovativo da apresentação do pedido de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento taxa de justiça e nomeação e pagamento de patrono.
Foi declarada a suspensão dos prazos em curso (vide artigo 24º nº 4 da Lei do Apoio Judiciário).
Em 15/02/2023 foi apresentada contestação/reconvenção pelos RR.
O que motivou resposta dos AA. em 21/03/2023.
Por decisão de 24/01/2024 (após prévio contraditório concedido por despacho de 27/11/2023), determinou o tribunal a quo “
o desentranhamento da contestação com reconvenção apresentada pelos Réus, por extemporânea, bem como a sua devolução aos apresentantes.
Notifique e, após trânsito, abra novamente conclusão.”
*
Em 13/03/2024, o tribunal a quo declarou confessados os factos e determinou o cumprimento do disposto no artigo 567º nº 2 do CPC.
Apresentaram os AA. alegações, concluindo pela procedência da ação.
*
Proferiu após o tribunal a quo sentença, decidindo, “(…)
julgar a presente ação parcialmente procedente e, em consequência:
a) Condenar os Réus a reconhecer que que os Autores são donos e legítimos possuidores de um prédio urbano destinado a habitação, composto por dois andares, interior com portão e com quintal, a confrontar do Norte com MM, do Sul com NN, do Nascente com terreno dos donos e do poente com Estrada, prédio inscrito na matriz predial urbana da extinta freguesia ..., atual União de freguesias ... e ... sob o artigo ..., descrito na conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o nº ...;
b) Condenar os Réus a reconhecer que ocupam a aludida casa a título precário e por mera tolerância;
c) Condenar os Réus a entregar a casa aos Autores, livre de pessoas e bens, no prazo de trinta dias contados da presente decisão;
d) Condenar os Réus a proceder ao pagamento aos Autores de uma indemnização a título de privação do uso, a determinar em liquidação de sentença e tendo por base critérios de equidade fundados no valor locativo do imóvel;
e) Condenar os Réus no pagamento aos Autores no valor global de € 180,96 (cento e oitenta euros e noventa e seis cêntimos) a título de danos patrimoniais; e
f) Absolver os Réus do demais peticionado.”
*
Do assim decidido apelaram os RR.,
oferecendo alegações e formulando as seguintes
“
Conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto pelos réus AA e marido versando sobre matéria de direito entendendo-se que a sentença recorrida enferma de nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. c) e d) do CPC, além de violar o disposto nos art.ºs 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, al. d), 557.º, n.º 2, artº final, e 558.º, al. c) e 628.º do CPC e art.º 483.º do CC, impondo-se reconhecer que nos presentes autos, a entrega da casa aos Autores apenas poderá ocorrer no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão e já não no prazo da decisão, assim como não poderão os réus ser condenados a pagar aos autores uma indemnização a título de privação de uso atenta a falta de alegação de factos que sustentem tal pedido e a alegação de outros indiciadores da inexistência de um qualquer dano a título da privação do uso.
2. No que em concreto respeita ao decidido em c) na sentença recorrida quanto ao prazo para entrega do prédio que os réus afetaram à sua habitação, decidiu-se que a entrega deveria verificar-se no prazo de trinta dias contados da decisão.
3. Ora a decisão aqui em causa está datada de 03/05/2024, a sua notificação às partes ocorreu via eletrónica na pessoa dos respetivos mandatários, sendo que tal notificação foi elaborada a 06/05/2024, considerando-se efetuada em 09/05/2024, sendo que nesse ínterim perdem-se “6 dias” do prazo estabelecido, sem que os réus sejam disso responsáveis Cfr. art.º 248.º do CPC.
4. Ademais, as decisões judiciais apenas se tornam definitivas com o respetivo trânsito em julgado, imposta, sobretudo, por razões de certeza e segurança nas relações jurídicas.
5. O preceituado no art.º 628.º do CPC o visa, assim, determinar, com rigor, o momento a partir do qual transita em julgado uma decisão judicial, isto é, quando essa decisão se torna, para o mundo jurídico, definitiva.
6. De tal normativo resulta que uma decisão judicial só possa considerar-se transitada em julgado depois de decorrido o prazo legalmente previsto para a interposição do recurso ou, não sendo admissível, para a arguição de nulidades ou dedução do incidente de reforma.
7. No caso concreto, atento o valor da ação (€ 18.000,00) é admissível o Recurso para o tribunal da Relação, o que significa que só após ter decorrido o prazo de 30 dias contados da notificação da decisão é que a sentença proferida em 03/05/2024 transitaria em julgado e desde que a mesma não fosse objeto de recurso em tal prazo.
8. No caso concreto o prazo legal para recorrer da decisão proferida em 03/05/2024, considerando que a notificação daa mesma apenas se considera feita a 09/05/2024 apenas terminaria no dia de hoje, mas o recurso agora interposto importa que não se verifique o seu transito.
9. Acresce ainda que estando em causa nos presentes autos a posse e a propriedade da casa de habitação dos réus, o presente recurso, por força da lei (art.º 647.º, n.º 3, al. b) do CPC) tem efeito suspensivo, no que respeita à decisão proferida.
10. Atento o supra exposto e se considerássemos que a obrigação de entrega da casa de habitação dos réus era efetivamente devida no prazo de trinta dias contados da decisão, a mesma impor-se-ia a 02/06/2024, portanto 24 dias apenas após a sua notificação aos réus e 9 dias antes do termo do prazo para recorrer da decisão proferida (!), havendo o risco, pelo menos em abstrato, da decisão ser revogada, alterada em sede de recurso.
11. Pelo que salvo melhor entendimento, o prazo de 30 dias para entrega pelos réus da sua casa de habitação as aqui autores terão de ser contados não da decisão (que não foi de imediato comunicada por facto não imputável aos réus, nem se torna de imediato exequível, podendo ser objeto de revogação ou modificação pelo Tribunal da Relação) mas antes do trânsito em julgado da decisão que a determine, na medida que só após o transito em julgado da decisão é que a sentença se torna definitiva e os seus efeitos se consolidam na esfera jurídica dos intervenientes.
12. Foram ainda os réus condenados a proceder ao pagamento aos autores de uma indemnização a título de privação do uso, a determinar em liquidação de sentença e tendo por base critérios de equidade fundados no valor locatício do imóvel.
13. Quando se consideram confessados os factos, por falta de contestação, a causa é julgada “conforme for de direito” (art.º 567.º, n.º 2, in fine do CPC) e esse julgamento pode conduzir ou não à procedência da ação, já que há confissão de factos, mas não do direito, estando-se perante o chamado efeito cominatório semipleno.
14. O efeito cominatório semipleno, decorrente da situação de revelia operante, apenas determina que se devam ter por confessados os factos que tenham sido efetivamente alegados pelo autor, os quais se podem revelar insuficientes, no momento da subsunção, tendo em vista a procedência do pedido. Neste sentido ver Ac. STJ de 18/03/2021, processo 572/19.6T80LH.E1.S1
15. Perscrutada a PI deduzida em juízo pelos autores contata-se que não obstante a formulação de um pedido de condenação dos réus ao pagamento de uma indemnização a título de privação de uso (Ponto 4.º do pedido), os autores não deduzem factos que sustentem tal pedido, nomeadamente não invocam que concretas privações, constrangimentos, danos, prejuízos padecem pelo facto dos réus lhe ocuparem o prédio, assim como não alegam que a utilização que os réus fazem de tal prédio é incompatível com a utilização que eles autores dele pretendem fazer, não alegam que concreta utilização pretendem fazer do prédio e que se encontra impedida ou condicionada pela utilização feita pelos réus, não indicam qual seja o valor locatício do imóvel, nem a data sequer a partir do qual alegadamente os réus se encontram em incumprimento na entrega (!).
16. Ora, o reconhecimento da existência de uma obrigação de pagamento, melhor, a condenação no pagamento de uma determinada indemnização, ainda que o seu quantitativo seja feito em incidente de liquidação de sentença, pressupõe que na primitiva ação declarativa em que é proferida tal condenação, sejam alegados e consequentemente dados como provados concretos factos que sustentem o pedido indemnizatório.
17. Perscrutada a PI o que resulta alegado é contrário à pretensão e/ou obstaculiza que lhes fosse deferido a indemnização pela privação do uso, pois alegam (facto dado como provado pela revelia) que a casa tem mais de 50 anos, não sofre obras de manutenção há mais de 20 anos, não se encontra em condições de habitabilidade, que eles autores se encontram todos emigrados, pouco usam a casa, o que apenas fazem em férias (embora não aleguem com que periodicidade venham de férias), e que não querem arrendar a casa. Cfr. art.º 26.º, 27.º, 31.º, 43.º da PI.
18. A ausência de concretos factos aptos a sustentar o pedido de indemnização pela privação do uso, conciliada com a alegação dos factos em 26.º, 27.º, 31.º e 43.º da PI impunha que se absolvesse os réus do pedido na condenação no pagamento de uma indemnização a título de privação de uso, por falta de alegação de dano.
19. A condenação no pagamento de um qualquer valor indemnizatório, ainda que o seu montante seja para liquidar em execução de sentença, pressupõe que previamente na ação primitiva sejam apurados determinados factos (com base na causa de pedir apresentada), com fundamento nos quais, por aplicação do pertinente enquadramento jurídico, se reconheça a existência de um credito indemnizatório, relegando-se apenas para incidente de liquidação a operação de mera quantificação de uma obrigação jurídica, i.e., a expressão pecuniária concreta em que o credito indemnizatório se traduz. Neste sentido ver Ac. STJ de 10/05/2021, proferido no processo 35505/12.1YIPRT.P1.S1., disponível e www.dgsi.pt.
20. Ora a mera privação do uso da coisa não é indemnizável, devendo o lesado alegar e provar a privação do uso da coisa por ato ilícito de terceiro e a existência de uma concreta utilização relevante da coisa, o que constitui entendimento jurisprudencial dominante e atual do STJ. Entre outros ver acórdão do STJ, processo 2875/10.6TBPVZ.P1.S1., de 12/07/2018, disponível em www.dgsi.pt
21. Não é suficiente a simples privação em si mesma: torna-se necessário que o lesado alegue e prove que a detenção ilícita da coisa por outrem frustrou um propósito real – concreto e efetivo – de proceder à sua utilização.
22. Com efeito, o uso pressupõe uma utilização e a impossibilidade concreta desta analisa-se ou numa diminuição patrimonial ou numa frustração de aumento do património; é nesta diferença patrimonial concreta e efetiva, resultante quer da diminuição, quer do não aumento, e que consiste o dano da privação do uso. Neste sentido ver Ac. STJ de 26/05/2022, Processo 12883/21.6T8SNT.L1-2, disponível em www.dgsi.pt
23. É entendimento dominante e recente do STJ que a mera possibilidade de uso não constitui um dano indemnizável só por si, desacompanhado da demonstração de concretas e efetivas utilizações que a coisa proporcionava ou era suscetível de proporcionar e que a ocupação fez frustrar, isto é, o dano.
24. Ora o dano só pode ser encontrado se o uso ou gozo tiver um valor material concreto, não um valor abstrato; ou seja, quando a privação se traduza num dano emergente (prejuízo causado) ou num lucro cessante (benefícios frustrados).
25. O uso pressupõe uma utilização e a impossibilidade (concreta) desta analisa-se ou numa diminuição patrimonial ou numa frustração de aumento de património; é nesta diferença patrimonial concreta e efetiva, resultante quer da diminuição, quer do não aumento, em que consiste o damo da privação do uso.
26. Logo, não havendo uso, isto é, aproveitamento das vantagens económicas proporcionadas pela coisa, inexistirá, obviamente dano da respetiva privação.
27. É que bem pode acontecer que alguém que seja titular de um bem móvel ou imóvel, e apesar de privado da possibilidade de o usar durante certo tempo não sofra com isso qualquer lesão por não se propor aproveitar das respetivas vantagens ou utilidades.
28. Assim ao ter condenado os réus no pagamento de uma indemnização pela privação do uso aos autores, a determinar em liquidação de sentença e tendo por base critérios de equidade fundados no valor locatício do imóvel incorre a sentença recorrida em nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. c) e d) do CPC, seja porque condena em valor superior ao peticionado, conhecendo de questões que não lhe foram colocadas, tanto assim que os autores não invocam no seu articulado o valor locatício do imóvel assim como não requerem em momento algum que a fixação da indemnização tenha por consideração o valor locatício do imóvel.
29. Aliás, do alegado na Pi resulta que o prédio qui em causa não tem condições de habitabilidade e salubridade, não é pretensão dos autores arrendá-lo e pouco ou nenhum uso fazem dele na medida em que se encontram emigrados, pelo que os concretos factos apurados importam um desvio à regra do valor locatício do imóvel, que de resto não foi requerido pelos autores.
30. Por outro lado, a decisão parece-nos ambígua, obscura e contraditória pois que apesar de se reconhecer na fundamentação a falta de alegação do valor locatício assim como da data de incumprimento de entrega, elementos essenciais a que se deferisse a pretensão na condenação no pagamento de uma indemnização pela privação do uso, ainda assim é proferida, inadvertidamente tal condenação.
31. Por fim a sentença recorrida viola o disposto nos art.ºs 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, al. d) e 558.º, al. c) do CPC e art.º 483.º do CC, atenta a ausência de alegação de concretos factos aptos a sustentar o pedido de condenação dos réus no pagamento de uma indemnização pela privação do uso aos autores, a determinar em liquidação de sentença e tendo por base critérios de equidade fundados no valor locatício do imóvel.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deverá o recurso interposto pelos Recorrentes ser julgado totalmente procedente e, consequentemente, a sentença recorrida ser revogada nos seguintes termos:
1. diferir o início do prazo de 30 dias para entrega da casa de habitação dos réus aos autores para o transito em julgado da sentença recorrida (Ponto c) da Sentença)
2. absolver os réus do pagamento de uma indemnização aos autores a título de privação do uso,
3. Em face da alteração requerida supra ser revista a proporção no decaimento em custas.
Como é de JUSTIÇA!”
***
Apresentaram os recorridos contra-alegações.
Em suma tendo pugnado pela manutenção da decisão recorrida, face ao bem decidido pelo tribunal a quo.
*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo.
Foram colhidos os vistos legais.
***
II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelos apelantes serem
questões a apreciar:
a)
Nulidade da sentença (vide conclusão 28);
b)
Erro na subsunção jurídica dos factos ao direito - em causa o decidido sob as als. c) e d) da sentença recorrida.
***
III- Fundamentação
Para a prolação da decisão, o tribunal a quo considerou em sede factual os
“factos articulados pelos Autores, nos termos do art.º 567.º do Cód. Proc. Civil, sendo, pois, a partir dos mesmos que se procederá à fundamentação jurídica e à respetiva decisão – cfr. art.º 567.º, n.º 3, do citado normativo.
Neste sentido vd. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/01/2019, proc. n.º 896/17.7T8PFR.P1, disponível in www.dgsi.pt.”
*
1) Cumpre em primeiro lugar apreciar da arguida nulidade da sentença recorrida.
Nos termos do artigo 615º, nº 1 do CPC:
“É nula a sentença quando:
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
Estando as nulidades da sentença previstas de forma taxativa no artigo 615º do CPC é pacificamente aceite que estas respeitam a vícios formais decorrentes
“de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito”
[1]
,
motivo por que nas mesmas se não incluem quer os erros de julgamento da matéria de facto ou omissão da mesma, a serem reapreciados nos termos do artigo 662º do CPC, quando procedentes e pertinentes, quer o erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito
[2]
.
A nulidade prevista na al. c) do nº 1 do artigo 615º do CPC, quando fundada em vício da contradição, reporta-se à contradição entre a decisão e seus fundamentos. E quando fundada na ininteligibilidade/obscuridade da decisão pressupõe a verificação de um vício expositivo da decisão alvo de censura, na medida em que devendo esta ser, num procedimento silogístico, a conclusão lógica deduzida de premissas anteriores, aquele se verifica quando os fundamentos antes expostos conduzirem a decisão oposta à seguida. Ou a mesma não for percetível.
Por sua vez, a nulidade por omissão ou excesso de pronúncia a que se reporta a al. d) do mesmo nº 1 do artigo 615º, respeita ao não conhecimento, ou conhecimento para além, de todas as questões que são submetidas à apreciação pelo tribunal. Ou seja, de todos os pedidos, causas de pedir ou exceções cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo conhecimento de outra(s) questão(ões). Não se confundindo questões com argumentos ou razões invocadas pelas partes em sustentação das suas pretensões.
Encontra este dever a sua consagração legal no disposto no artigo 608º nº 2 do CPC.
Sendo ainda de distinguir questões a resolver (para efeitos do artigo 608º nº 2 do CPC) da consideração ou não consideração de um facto em concreto que e quando se traduza em violação do artigo 5º nº 2 do CPC, deverá ser tratado em sede de erro de julgamento e não como nulidade de sentença
[3]
.
Finalmente a nulidade prevista na al. e) do artigo 615º é aferida em função do objeto da ação e pedido formulado pelo autor, o qual delimita a atuação do tribunal em respeito pelo princípio do dispositivo, verificando-se este vício quando o tribunal a quo na sua decisão condenatória não respeita o pedido, condenando em quantidade superior ou em objeto diferente do pedido formulado pelo autor.
Assim caraterizados estes vícios, cumpre apreciar se aos recorrentes assiste razão. Não obstante na conclusão 28 estes tenham apenas identificado as als. c) e d) do artigo 615º, facto é que afirmaram também ter ocorrido condenação em valor superior ao pedido, o que a verificar-se, configuraria a nulidade prevista na al. e) que assim vai também por nós analisada.
Analisado o pedido condenatório formulado pelos autores e o segmento decisório da sentença recorrida – ambos no relatório supra reproduzidos - é claro que a arguida nulidade de condenação ultra petitum – al. e) do artigo 615º - não procede.
A condenação constante do segmento decisório atacado pelos recorrentes e elencada sob a al. d) da decisão recorrida, está na integra contida no pedido formulado sob o ponto 4º do pedido condenatório formulado pelos AA. na sua p.i., sendo deste um minus. Note-se em especial que os recorridos sob o ponto 4º do seu pedido condenatório peticionaram precisamente a condenação dos RR. ao pagamento de uma indemnização pelos danos suportados
“derivados do uso de privação da sua habitação”
(entenda-se privação do uso da sua habitação).
E tal foi a condenação decidida pelo tribunal a quo, tendo julgado parcialmente improcedente o demais peticionado em tal ponto 4º, para além do que consta na al. e) do segmento decisório e que não vem impugnado.
Improcede como tal esta arguida nulidade.
Por outro lado, quanto às nulidades previstas nas als. c) e d), o que os recorrentes alegam para aquelas fundamentar é, em suma, que a factualidade alegada não é suficiente para suportar a decisão recorrida (vide conclusões 15 e seguintes). Mas este é argumento que nos reconduz a um imputado erro de julgamento na subsunção jurídica dos factos ao direito, não a uma qualquer contradição entre a decisão e seus fundamentos ou ambiguidade da mesma, sequer a um conhecimento para além das questões que foram colocadas à apreciação do tribunal a quo.
Motivo por que se impõe a conclusão de que a sentença recorrida não padece dos vícios que lhe são imputados.
Sendo em sede de apreciação da subsunção jurídica dos factos ao direito que cumpre apreciar se ocorreu erro no julgamento do direito.
Concluindo, improcedem as nulidades da sentença ao abrigo do disposto no artigo 615º nº 1 als. c) a e) do CPC suscitadas pelos recorrentes.
2- Do erro na subsunção jurídica dos factos a direito.
Por via do presente recurso, colocaram os recorrentes à nossa apreciação o decidido no segmento condenatório sob as als. c) e d) que aqui se deixam (de novo) reproduzidos:
“c) Condenar os Réus a entregar a casa aos Autores, livre de pessoas e bens, no prazo de trinta dias contados da presente decisão;
d) Condenar os Réus a proceder ao pagamento aos Autores de uma indemnização a título de privação do uso, a determinar em liquidação de sentença e tendo por base critérios de equidade fundados no valor locativo do imóvel;”
Nada tendo sido oposto aos demais segmentos da condenação e absolvição, transitaram os mesmos.
Quanto à al. c) insurgem-se os recorrentes apenas quanto ao segmento decisório final, relativo ao prazo para a desocupação do imóvel, que o tribunal a quo fixou em 30 dias contados da decisão.
Defendem os recorrentes que tal prazo – que em si não questionam - apenas dever ser contado após o trânsito da mesma. Para tanto invocando que se trata da sua casa de habitação e que por tal o recurso a interpor da decisão e que ora se aprecia tem efeito suspensivo, tal como veio a ser fixado pelo tribunal a quo.
A crítica dos recorrentes respeita, portanto, ao não condicionamento da ordenada entrega do imóvel ao trânsito da decisão.
Considerando que em causa está efetivamente a casa de habitação dos réus – tal qual foi alegado pelos autores na sua petição e que o tribunal a quo julgou confessado por efeito da revelia – ao recurso a interpor de tal decisão viria a ser fixado efeito suspensivo, ao abrigo do disposto no artigo 647º nº 3 al. b) do CPC.
Efeito suspensivo que impede a execução da decisão (vide sobre a exequibilidade da sentença o disposto no artigo 704º do CPC).
Nesta medida, resta-nos apenas reconhecer que aos recorrentes assiste razão e que assim o prazo de 30 dias fixado para a desocupação do imóvel – prazo em si não questionado - se contará a partir do trânsito da decisão.
Como segundo fundamento do recurso, vem apontada crítica pelos recorrentes à sua condenação no pagamento aos autores de uma indemnização a título de privação do uso do imóvel, a determinar em liquidação de sentença e tendo por base critérios de equidade fundados no valor locativo do imóvel.
Alegam para tanto os recorrentes (entre o mais) que os AA. não alegaram factos que sustentem a procedência da condenação em causa. Nomeadamente afirmando não terem os AA. invocado concretas privações, constrangimentos ou danos pela ocupação do prédio pelos RR., assim como não alegado que a utilização que de tal prédio fazem os RR. é incompatível com a utilização que deles pretendem os AA. fazer. Tão pouco alegando o valor locatício do imóvel, nem a data a partir da qual os RR. se encontram em incumprimento na entrega. Motivo, na perspetiva dos recorrentes para revogar a sua condenação nos termos que ora se analisa.
Analisando a decisão recorrida, da mesma extrai-se que o tribunal a quo, após ter enquadrado a relação contratual estabelecida entre as partes ao abrigo do qual os RR. ocupavam o imóvel no contrato de comodato e assinalar que nos termos do artigo 1137º nº 2 do CC estavam os mesmos obrigados à entrega logo que lhe fosse exigida, assim concluindo pela sua obrigação de os RR. procederem à restituição aos AA. dos imóvel pertença destes, assinalou que os AA. não especificaram a data em que os RR. tomaram conhecimento de tal pedido de restituição do imóvel, pelo que declarou que a
“fixação da indemnização terá como início a data da citação dos RR., momento em que os mesmos sem margem para dúvida, tiveram conhecimento da solicitação para restituição”
.
O mesmo é dizer que o argumento dos RR. quanto ao desconhecimento da data a partir do qual estão em incumprimento é sumariamente afastado.
Por outro lado quanto à não alegação do valor locativo do imóvel, é também na decisão recorrida reconhecido que tal valor não foi invocado, o que não obstou ao decidido. Nomeadamente e após concluir pela obrigação de os RR. procederem à restituição do imóvel, tendo o tribunal a quo concluído pela condenação dos RR. a proceder ao pagamento de uma indemnização pela privação do uso, pelos fundamentos que aqui se deixam reproduzidos:
“ IV.1 – Da indemnização pela privação do uso
Os peticionaram uma indemnização pela privação do uso do imóvel, a liquidar em execução de sentença.
Vem sendo entendimento jurisprudencial que a privação de uso de bem imóvel em caso de ocupação indevida é passível de indemnização, independentemente da utilização que se pretenderia dar ao mesmo. Neste sentido, o Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 20 de Janeiro de 2022, proc. n.º 6816/18.4T8GMR.G1.S1, disponível em
www.dgsi.pt
, determinou que:
“I. A privação do uso de um prédio urbano, de rés-do-chão, com cinco divisões e com um valor locativo de €460,00, decorrente de ato ilícito de quem, não tendo título legítimo para o ocupar, persiste nessa atuação, mesmo depois de interpelado para o entregar, representa para os proprietários um dano autónomo.
II. Do facto de não terem provado a vontade de arrendar o prédio não deve retirar-se que os autores não pretendam dele extrair, como bem entenderem, na qualidade de proprietários, as utilidades que aquele estará em condições de lhes facultar, não se tendo provado qualquer circunstância que, não fora a ocupação que se vem registando, revele que não o possam levar a efeito”.
Idêntico entendimento é perfilhado pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/09/2023, proc. n.º 14396/20.4T8LSB.L1-6, disponível em www.dgsi.pt.
Concorda-se com o aludido entendimento. Na verdade, independentemente da concreta vontade dos Autores em arrendar os imóveis, a mera ocupação pelos Réus coarta-lhes tal possibilidade o que, por si só, representa um prejuízo passível de indemnização.
A aludida jurisprudência mais vem referindo que, para efeitos de cálculo indemnizatório, deve recorrer-se à equidade, tendo por base, designadamente, o valor locativo do imóvel.
No caso em análise, os Autores não invocam o valor locativo do imóvel, nem a data a partir da qual os Réus, tendo tido conhecimento da intenção de restituição por parte dos Autores, não procederam à devida entrega.
Quanto ao segundo ponto, tal implica que a fixação da indemnização terá como início a data de citação dos Réus, momento em que os mesmos, sem margem para dúvida, tiveram conhecimento da solicitação para restituição.
No que concerne ao primeiro ponto, os Autores relegaram para liquidação de sentença a determinação de tal montante.
Nada obste a que este Tribunal, efetivamente, relegue para tal momento a determinação do valor indemnizatório. Não obstante, a respetiva liquidação não deixará de seguir critérios de equidade, tendo como ponto de partida o valor locativo do imóvel, nas suas condições atuais – neste sentido vd. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/12/2021, proc. n.º 970/18.2T8PFR.P1.S1, também disponível em www.dgsi.pt.”
Para análise da argumentação aduzida pelos recorrentes, importa aqui concretizar o que pelos AA. foi alegado (já que a decisão recorrida o fez por remissão para o articulado) com relevo para a questão que aqui se discute.
Após a alegação atinente à propriedade do imóvel em causa, bem como aos termos em que os RR. passaram a viver neste imóvel, alegaram os AA. na sua p.i., nos artigos 22º e seguintes:
“A cedência temporária e precária da casa aos Réus, teve como condição prévia e essencial que os mesmos entregassem a casa quando tal lhes fosse solicitado, devendo os mesmos entrega-la devoluta, isto é, livre de pessoas e bens.
(…)
Volvido algum tempo, após a sua instalação no imóvel supra identificação, chegou aos ouvidos dos Autores que os Réus seriam pessoas conflituosas.
(…)
Os vizinhos comentavam que o Réu marido é pessoa de caráter agressivo e que se envolve em zaragatas frequentes, sendo temido pela vizinhança.
(…)
A circunstância de a casa ter mais de 50 anos, e não ter sofrido obras de manutenção há mais de vinte anos, já que todos os Autores se encontram emigrados e pouco têm usado a casa, (só em férias)
(…)
Permitem concluir que a casa atualmente não se encontra em condições de habitabilidade, pese embora o aparente bom aspeto exterior que apenas encobre quer as deficiências construtivas de que a mesma possa padecer, quer a deterioração que tenha vindo a sofrer nos últimos anos, em resultado das alterações climáticas, designadamente das chuvas e do vento, que terão contribuído também para a sua deterioração. Daqui resultando ser inequívoco a ausência de condições de habitabilidade.
(…)
Aliás isto foi reconhecido pelos Réus, que após terem sido interpelados por um dos procuradores dos Autores para comparecer e conversar, responderam com a exigência de obras e ameaças de participação no Ministério do Ambiente (…)
(…)
Assim, embora os Réus saibam que o imóvel por si ocupado a titulo precário, precisa de obras de restauração interior, que com o tempo se vai degradando e deixando de ter condições de conforto e de salubridade como os Réus bem sabem,
(…)
Mantém-se a ocupar a casa sem consentimento dos Autores, e por isso, de Má-fé,
(…)
Impedindo o exercício do direito de propriedade dos Autores, de usarem e fruírem a coisa do modo que entenderem mais conveniente à conservação da mesma.
(…)
A conduta dos Réus gera sérios prejuízos aos Autores (…)
(…)
Os futuros custos financeiros serão mais elevados com a recuperação da casa, que continua a degradar-se e por isso a recusa da entrega das chaves, importará gastos financeiros mais elevados, num futuro,
(…)
Em virtude de terem agido sempre livre voluntária e conscientemente e com a intenção de prejudicar os Autores, já que bem sabem que ocupam a casa a título precário e que têm que a entregar aos donos,
(…)
Bem sabem que as suas condutas também impedem os Autores de usarem e fruírem da casa,
(…)
Pelo que, a não entrega da casa aos Autores, constitui um ato suficientemente grave suscetível de gerar a obrigação de indemnizar pelos danos que já estão a provocar e pelos que no futuro lhes venham a provocar,
(…)
Danos que são relegados, para futura liquidação de execução de sentença.”
Temos assim alegado pelos AA. não só que a não restituição do imóvel os impede de realizar obras de que a casa necessita, estando a deteriorar-se o que agrava os custos que mais tarde terão de suportar para o efeito, como igualmente alegaram que a ocupação do imóvel pelos RR., contra a sua vontade e sem título para tanto, os impede de usar e fruírem da casa, do modo que entenderem mais conveniente à sua conservação.
Não fruição que implica para os AA. não poderem do imóvel retirar todas as utilidades e benefícios que o uso e fruição normal de um imóvel que é sua propriedade aos mesmos pode proporcionar.
Ora a privação do uso e gozo de um imóvel causada por terceiro, a partir do momento em que se demonstra ocorrer contra a vontade do seu legítimo proprietário, constitui um ato ilícito
[4]
gerador da obrigação de indemnização pelo responsável do ato ilícito. Constituindo um dano patrimonial cuja indemnização, na impossibilidade da reconstituição natural, será fixada em dinheiro por referência às utilidades de que o lesado se viu privado, na sua avaliação sendo considerado o valor locativo do bem
[5]
.
Acresce que nas situações em que o dano ainda não se verificou, mas é previsível, ou se não for ainda possível fixar o seu quantum, deve o tribunal relegar para futura liquidação o que vier a ser apurado. Assim o determina o artigo 609º nº 2 do CPC, o qual dispõe que se aquando da prolação da sentença,
“não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que seja líquida”
.
Tendo todos os factos alegado sido julgados provados, vem provado que os AA. ficaram privados de fazer na casa obras de conservação para a tornar habitável, bem como de fruir e usar o imóvel e consequentemente dele retirarem todas as utilidades que o mesmo lhes permite, como bem entendessem.
A indemnização da privação do uso enquanto dano autónomo, desde que alegado e demonstrado pelo lesado que ficou impedido não só de utilizar o bem, como também de que de tal impedimento resultou uma efetiva impossibilidade de fruir das respetivas utilidades que esse bem lhe proporciona, tem sido defendida de forma maioritária pelo STJ, descartando assim a exigência de prova de danos concretos e específicos decorrentes de tal privação que a outra corrente jurisprudencial considera igualmente necessário. Entendimento maioritário que acompanhamos.
Tal como referido no Ac. STJ de 14/12/2016
[6]
, Relatora Fernanda Isabel Pereira, in
www.dgsi.pt
[e reportando-se ainda a posição já antes defendida em Ac. de 09/07/2015 pela mesma Relatora no mesmo sítio, no caso por referência à privação de uso de veículo automóvel na sequência de acidente de viação, mas com total aplicação à situação sub judice igualmente fundada em facto ilícito] este tribunal superior tem vindo maioritariamente a entender
“que a privação do uso de um veículo automóvel constitui um dano autónomo indemnizável na medida em que o seu dono fica impedido do exercício dos direitos de usar, fruir e dispor inerentes à propriedade, que o artigo 1305º do Código Civil lhe confere de modo pleno e exclusivo, bastando para o efeito que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava”.
Recorrendo à distinção que jurisprudencialmente tem sido realçada entre “privação do uso” e “privação da possibilidade do uso”, afere-se a exigida prova de que a privação gerou perda de utilidades que o bem proporcionava ao seu titular. Não bastando, no campo das possibilidades, a suscetibilidade de a coisa poder ser usada durante o período da privação.
E uma vez demonstrada a perda de utilidades (não a mera possibilidade) que decorrerá desde logo do demonstrado uso normal que o lesado fazia da coisa, reconhece-se demonstrado um efetivo prejuízo, porquanto só naquele caso fica demonstrada a privação como causa de prejuízo gerador de indemnização [cfr. nesse sentido Ac. TRP de 08/09/2014 Relator Alberto Ruço e Ac. TRP de 30/06/2014 Relator Manuel D. Fernandes; ainda Ac. TRP 30/01/2017, Relator O. Abreu e Ac. TRP de 18/05/2023, Relatora Judite Pires, todos publicados todos in
www.dgsi.pt/jtrp
].
Ou seja, e voltando à situação dos autos, demonstrada não só a efetiva privação do uso do imóvel em consequência da sua ocupação ilícita, bem como demonstrada a perda das utilidades que o imóvel proporcionaria aos lesados, se não estivesse ocupado contra a vontade dos mesmos, reconhece-se a estes um direito indemnizatório, cujo valor será fixado com recurso a critérios de equidade, mas tendo por referência o valor locativo do imóvel.
Como já referido, os ora recorridos alegaram (e o alegado vem julgado provado) que o imóvel está ocupado contra a sua vontade e que tal os impede de fruir e usar o imóvel como bem o entenderem, nomeadamente realizando no mesmo imóvel obras de conservação para o tornar habitável e o usarem e fruírem.
Sendo certo que tal uso e fruição foi pelos mesmo exercido, enquanto foi a sua vontade, por via da celebração do contrato de comodato que no entretanto cessou também por sua vontade, a partir de tal momento é legítimo decidir o destino do bem que entenderem. Seja dando-o em locação ou, como o alegaram, realizando nele obras de conservação para o tornarem, na sua perspetiva, habitável e o mesmo usarem e fruírem.
Nesta perspetiva vem provada a factualidade suficiente para julgar demonstrado o dano pela privação de uso que o tribunal a quo reconheceu aos recorridos
desde a citação
. Decidindo que seria liquidado futuramente tal dano e por referência ao valor locativo do imóvel, então a apurar – já que este não foi alegado.
Nada sendo oposto quanto à concreta decisão de relegar para futura liquidação, sobre a mesma nada nos cumpre dizer.
E quanto ao valor locativo é este o critério seguido como referência para depois e com recurso a critérios de equidade ser fixado o montante indemnizatório, nada obstando a que venha a ser apurado em sede de liquidação do dano.
Em suma, nenhuma censura merece o decidido neste campo.
Termos em que procede parcialmente o recurso interposto.
***
IV. Decisão.
Em face do exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente a apelação deduzida, consequentemente alterando o decidido sobre a al. c) da decisão condenatória, a qual passará a ter a seguinte redação:
“c) Condenar os réus a proceder a entregar a casa aos autores, livre de pessoas e bens, no prazo de 30 dias contados do trânsito da decisão proferida”.
No mais, mantém-se a decisão recorrida.
Custas do recurso pelos recorrentes e recorridos, na proporção de 1/2 para cada um.
***
Porto, 2025-04-28
Fátima Andrade
Teresa Fonseca
Ana Paula Amorim
________________
[1]
Cfr. Ac. STJ de 23/03/2017, nº de processo 7095/10.7TBMTS.P1.S1, in
www.dgsi.pt
[2]
Vide também Ac. STJ de 30/05/2013, nº de processo 660/1999.P1.S1, sobre a distinção entre nulidade da sentença (no caso por oposição entre os fundamentos e decisão) versus erro de julgamento; ainda Ac. TRP de 24/01/2018, nº de processo 19656/15.3T8PRT.P1 sobre a distinção entre erro ou vício da decisão de facto e nulidade de julgamento. Ambos in
www.dgsi.pt
[3]
Neste sentido Francisco Almeida in ob. cit., p. 371; Ac. STJ de 30-09-2010, Relator Álvaro Rodrigues, Ac. STJ de 06/12/2012, Relator João Bernardo e mais recentemente Ac. STJ de 23/03/2017, Relator Tomé Gomes (ambos in
www.dgsi.pt/jstj
), este último convocando o ensinamento de José Alberto dos Reis in CPC anotado, vol. V, 1981, p. 144-146 sobre a distinção entre erro de julgamento e nulidade de sentença nos seguintes termos (ainda por referência ao anterior 664º do CPC, hoje artigo 5º do CPC e no caso considerando o excesso de pronúncia, mas aplicável por identidade de razões à omissão): “(…) uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer.»
[4]
Vide Menezes Leitão in “Direito das Obrigações”, vol. I, edição Almedina, 16ª edição, p. 286/287, analisando a violação dos direitos subjetivos e a tutela das utilidades que o direito subjetivo violado proporciona ao seu titular.
[5]
Vide o mesmo autor in ob. cit., p. 331, onde afirma que “simples uso constitui uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano”, acrescentando na nota 750 que na avaliação do dano será considerado o valor locativo do bem.
[6]
Estando então em causa um acidente de viação, aplicam-se os argumentos invocados na integra ao caso sub judice na medida em que são analisados os pressupostos da indemnização em caso de privação de uso de bem por facto ilícito de terceiro; no mesmo sentido relevando ainda a própria jurisprudência citada na decisão recorrida.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/58f2597d2eed8fe280258c8300488746?OpenDocument
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1,736,726,400,000
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CONFIRMADA
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1173/14.0T2AVR-G.P1
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1173/14.0T2AVR-G.P1
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CARLOS GIL
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I - O apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e a nomeação e pagamento da compensação devida a patrono constitui um mecanismo legal destinado a permitir o acesso ao direito a todos aqueles que por razões de ordem económica se veriam impossibilitados de fazer valer as suas pretensões, se não lhes fosse concedido tal benefício.
II - O instituto do apoio judiciário não é um mecanismo facultado às partes num processo judicial para se eximirem ao pagamento das custas de uma lide já terminada, mas antes de um instrumento que lhes é concedido para que, sem constrangimentos de ordem económica, possam fazer valer as suas pretensões em juízo.
III - Se os recorrentes se conformaram com a liquidação de responsabilidade tributária pelas custas de recurso no Tribunal da Relação relativamente a uma conta de custas que posteriormente foi reformulada mantendo-se intocada essa liquidação, formou-se sobre essa matéria caso decidido, não podendo os recorrentes aproveitar a conta reformulada para suscitar questão que não levantaram perante a conta que foi alterada.
IV - Não deve ser conhecida em via de recurso questão que já foi anteriormente suscitada e decidida por acórdão deste Tribunal da Relação já transitado em julgado, pois que a tanto obsta o instituto do caso julgado.
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[
"APOIO JUDICIÁRIO",
"CONTA DE CUSTAS",
"LIDE JÁ TERMINADA"
] |
Processo nº 1173/14.0T2AVR-G.P1
Sumário do acórdão proferido no processo nº 1173/14.0T2AVR-G.P1 elaborado pelo relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
1. Relatório
Em 03 de novembro de 2021,
AA
e
BB
foram notificados mediante expediente eletrónico elaborado nesse dia da conta nº ..., referente à ação de processo comum nº 1173/14.0T2AVR, em que são identificados como responsáveis AA e BB, indicando-se, além do mais, as seguintes taxas aplicáveis:
- ao processo, com uma base tributável de € 5.759.376,70, a taxa devida é liquidada no montante de € 68.952,00, indica-se como taxa paga o montante de € 2.346,00 e como taxa em dívida o montante de € 66.606,00;
- ao recurso, com uma base tributável de € 1.495.072,02, a taxa devida é liquidada no montante de € 8.313,00, indica-se como taxa paga o montante de € 816,00 e como taxa em dívida o montante de € 7.497,00;
- a um incidente resultante de acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de janeiro de 2018, com uma base tributável de € 1.495.072,02, a taxa devida é liquidada no montante de € 102,00, indica-se como taxa paga o montante de € 0,00 e como taxa em dívida o montante de € 102,00;
- a “outro” com uma base tributável de € 1.210.564,82, a taxa devida é liquidada no montante de € 9.945,00, por força de decisão do Supremo Tribunal de Justiça que reduziu a taxa devida de € 19.890,00 em 50%, indica-se como taxa paga o montante de € 816,00 e como taxa em dívida o montante de € 9.129,00.
- computa-se o total das taxas de justiça pagas no montante de € 3.978,00;
- liquida-se o montante de € 34,54 a título de reembolso ao IGFEJ por adiantamentos;
- computa-se o montante global das taxas de justiça cíveis em € 87.312,00 e a taxa de justiça nos termos do nº 7 do artigo 26º do RCP no montante de € 15.860,74, totalizando o somatório destes dois montantes com o reembolso de € 34,54, o montante de € 103.207,28 que deduzido do montante de € 3.978,00 de taxas de justiça pagas dá o montante total a pagar de € 99.229,28.
Em 18 de novembro de 2021,
AA
e
BB
, invocando o disposto no nº 6 do artigo 7º do Regulamento das Custas Processuais vieram requerer a dispensa do pagamento do valor de € 87.312,00 relativa aos complementos das taxas de justiça, com a consequente reformulação da conta e vieram reclamar da conta que antes se resumiu, alegando lapso na indicação do montante de taxa de justiça paga no recurso de revista que foi de € 1.632,00 e não de apenas € 816,00, alegam que não foram condenados ao pagamento de custas no Supremo Tribunal de Justiça, pois não foram recorrentes, devendo desconsiderar-se que seja da responsabilidade dos reclamantes o pagamento da quantia de € 9.129,00, que, a entender-se que os reclamantes devem pagar taxa de justiça pelo recurso de revista, a taxa devida é de € 9.537,00 e não de € 9.945,00, como calculado pela secretaria que, para tanto, levou em conta a taxa de justiça que seria devida pela resposta ao recurso da autora, valor que os reclamantes nunca foram notificados para pagar e que, por isso, não deve ser agora liquidada, sendo deste modo a taxa de justiça em dívida no montante de € 7.905,00 e insurgem-se pela inclusão na conta do montante de € 15.860,74, ao abrigo do artigo 26º, nº 7 do Regulamento das Custas Processuais, pugnando por que tal valor seja desconsiderado na conta de custas da sua responsabilidade.
Em 26 de novembro de 2021, a Sra. Oficial de Justiça que elaborou a conta pronunciou-se nos seguintes termos:
“
Em 26-11-2021, vai prestar-se a seguinte informação (Ponto 2 infra) quanto à reclamação da conta notificada (...) aos 1.ºs réus BB e AA - Requerimento de 18-11-2021 REFª: 40209673 (fls. 2405-2417).
1. Previamente à informação sobre a reclamação da conta faço constar que nenhuma das contas, notificadas em 03-11-2021 - tanto aos 1.ºs réus como aos 2.º réu FGA e 3.º Réu A... - se mostram pagas. Encontram-se em mora desde 24-11-2021 as seguintes quantias que resultam das contas efetuadas e notificadas na sequência do ordenado no despacho de 29-10-2021: 1.º RR em dívida 99.229,28€, 2.º R em dívida 94.427,27€ e 3.º R em dívida 95.011,87€);
1.1. Aliás, tais contas podem vir a ser alteradas condicionadas com os pedidos de reembolso de custas de parte (artigo 26.º/6 do RCP) ainda pendentes de apreciação e agora também os pedidos de dispensa de remanescente (artigo 6.º/7 do RCP). Foram aqui apresentados os requerimentos dos réus - FGA de 15-11-2021 REF. 40457818 e A... de 16-141-2021 REF. 40473511. Requerem a dispensa do remanescente de taxa de justiça - Artigo 6.º/7 do RCP - que serão apreciados oportunamente e que apenas se ressalva o facto das contas elaboradas constar aplicada a taxa de justiça adicional à instância de recurso do STJ (Tabela 1C) reduzida a 50% pelo que ficou decidido pelo Acórdão de 19-08-2018, nos termos do regime do artigo 6.º n.º 5 do RCP.
2. Quanto à reclamação apresentada pelos 1.ºs réus BB e AA assenta, essencialmente, na questão da aplicação do n.º 7 do artigo 26.º do RCP (taxas de justiça devidas ao IGFEJ pelo benefício do apoio judicário que a autora beneficia) e da inconstitucionalidade orgânica da norma em causa;
2.1. A exposição efectuada em 05/11-03-2021 pela secretaria (Referência 115127553) termina com um resumo individual dos valores a considerar em conta dos seus responsáveis.
A conta agora posta em causa foi elaborada exatamente com os valores ali expostos (taxas de justiça 83.334,00€, reembolsos por adiantamentos 34,54€, aplicação do 26.º/7 15.860,74€, totalizando com a quantia de 99.229,28€ em dívida). Apenas não consta daquela os valores a reembolsar pelo IGFEJ nos termos do artigo 26.º/6 RCP - valor apurado na informação de 05-03-2021 (-53.045,00€) em substituição dos 196.899,37€ de custas de parte apresentados pelo requerimento dos réus de 26-08-2020 - por ainda não existir decisão definitiva sobre as custas de parte, para além da posição do Ministério Público de 24-03-2021 que se mantém.
2.2. Relativamente à inconstitucionalidade invocada, considera-se que a mesma não se verifica na medida em que o n.º 7 do artigo 26.º foi introduzido pela Lei n.º 27/2019, de 28 de março, em vigor desde 29-04-2019, ou seja, pelo órgão legislativo competente que é a Assembleia da República.
2.3. Já quanto à inclusão na conta dos valores apurados nos termos do artigo 26.º/7 e colocando-se a questão em saber se, mantendo-se inalterado o regime de elaboração da conta, previsto nos artigos 29.º e 30.º do RCP, existe margem interpretativa para defender, de forma a conferir-se sentido útil à norma, se nestes casos deve a secretaria elaborar a conta, nela abrangendo as quantias que devem reverter a favor do IGFEJ.I.P., em desvio à regra do artigo 30.º, n.º 1 da Portaria n.º 419- A/2009, diploma que regula o modo de elaboração, contabilização, liquidação, pagamento, processamento e destino das custas processuais, multas e outras penalidades e supra citado, e, conhecendo da divergência sobre esta matéria, foi considerado que a melhor solução e que é avançada no Guia Prático das Custas Judiciais – 5ª Edição, Ebook disponível no sítio da internet do Centro de Estudos Judiciários, sob pena da norma ficar esvaziada de sentido útil -, é a que permite fazer o que se fez no presente caso, ou seja, estando a parte vencedora desonerada de apresentar nota justificativa, caberá à secretaria proceder à elaboração da conta abrangendo as quantias que devem reverter a favor do IGFEJ I.P.
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Sendo a conta o meio através do qual o responsável pode exercer o seu direito, reclamando da mesma não fica limitado no exercício dos seus direitos processuais, o que se verificou no caso em apreço, apresento os autos à Exmª Magistrada do Ministério Público para apreciação, nos termos do n.º 4 do artigo 31 do RCP, com a presente informação.
”
Em 29 de novembro de 2021, a Digna Magistrada do Ministério Público promoveu o seguinte:
“
PROMOÇÃO RELATIVA AOS REQUERIMENTOS DE 15, 16 e 18 de novembro de 2021:
Os Réus vieram requerer, junto deste Juízo Central Cível de Aveiro, a dispensa do pagamento do montante de custas que excede o valor da taxa de justiça do processo, devida por referência à Tabela I do Regulamento de Custas Processuais.
Em causa está a decisão proferida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que fixou custas na proporção do respectivo decaimento pelos recorrentes vencidos e determinou que a taxa de justiça adicional do recurso é reduzida para 50% do valor tabelar em face da complexidade do processo, nos termos do regime artigo 6º, nº 5 do RCP.
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No entender dos RR, o Tribunal deverá dispensar o pagamento do remanescente de taxa de justiça calculado de acordo com o disposto na Tabela I, do Regulamento de Custas Processuais, para acções cujo valor da causa ultrapasse os 275.000,00€, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 7, in fine, do Regulamento de Custas Processuais, uma vez que, em súmula, “o julgado não revestiu uma especial complexidade”, “a conduta processual do ora requerente foi totalmente colaborante com o Tribunal” “clamorosa desproporcionalidade entre o serviço prestado e o custo a cobrar”.
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Dispõe o artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais que, “nas causas de valor superior a (euro) 275.000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.
Esta disposição legal prevê uma excepção à regra geral segundo a qual a taxa de justiça é fixada “em função do valor e complexidade da causa” (artigos 6.º, n.º 1 e 11.º, do Regulamento de Custas Processuais e 529º do Código de Processo Civil), através da ponderação das especificidades da situação concreta (utilidade económica da causa, complexidade do processado e comportamento das partes), ao permitir ao julgador a dispensa do remanescente da taxa de justiça nas acções de maior valor, face ao disposto na Tabela I que prevê que, para além dos 275.000€, ao valor da taxa de justiça acresce, a final, por cada (euro) 25.000 ou fracção, 3 UC, no caso da col. A, 1,5 UC, no caso da col. B, e 4,5 UC, no caso da col. C. (vide, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 04-05-2017, 27-04-2017).
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Antes de nos pronunciarmos sobre o mérito da requerida dispensa do remanescente de taxa de justiça, importa invocar a sua extemporaneidade.
Olvidou os requerentes que a decisão sobre custas reveste natureza jurisdicional, vincula a parte, e forma caso julgado, podendo a sua discordância ser objecto de recurso, para instância superior, ou quando não admissível, ser objecto de reclamação perante o Tribunal que proferiu a decisão.
Estando em causa uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça, em último grau de recurso, seria este Tribunal o hierarquicamente competente para conhecer da reclamação/reforma quanto a esse trecho decisório, nos termos do disposto nos artigos 69.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 613.º, 616.º, n.º 1, 666.º, por aplicação analógica, todos do Código de Processo Civil.
Sendo certo que o Supremo Tribunal de Justiça não se pronunciou expressamente quanto à verificação dos pressupostos legais e dispensa do pagamento do mencionado remanescente da taxa de justiça, os requerentes poderiam e deveriam, no prazo de 10 dias contados na notificação do Acórdão, requerer a esse Tribunal a reforma da decisão quanto a custas.
Os requerentes pedem agora a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça após o trânsito em julgado da decisão e já após a elaboração da conta pela secretaria.
A conta de custas é elaborada pela secretaria do tribunal que funcionou em 1.ª instância no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da decisão final (artigo 29.º, n.º 1 do Regulamento de Custas Processuais), de harmonia com o julgado em última instância, abrangendo as custas da acção, dos incidentes, dos procedimentos e dos recursos (artigo 30.º, n.º 1 do Regulamento de Custas Processuais).
A possibilidade de reclamação/reforma da conta de custas (artigo 31.º do Regulamento das Custas Processuais) aplica-se nas situações em que a conta elaborada está desconforme com a decisão judicial proferida ao nível das custas e/ou com as disposições legais aplicáveis.
Não se confundindo com a possibilidade de reforma da decisão (judicial) sobre as custas (artigo 616.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
Incidindo a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça sobre a decisão judicial sobre custas, os requerentes teriam de a requerer até ao trânsito em julgado da decisão e não depois.
Nas palavras do Conselheiro Salvador da Costa (in Regulamento das Custas Processuais, anotado, 2013, 5ª edição, pág. 201), “O juiz deve apreciar e decidir, na sentença final, sobre se se verificam ou não os pressupostos legais de dispensa do pagamento do mencionado remanescente da taxa de justiça. Na falta de decisão do juiz, verificando-se os referidos pressupostos de dispensa do pagamento, podem as partes requerer a reforma da decisão quanto a custas”, acrescentando posteriormente que “discordando as partes do segmento condenatório relativo à obrigação de pagamento de custas, deverão dele recorrer, nos termos do artigo 627º, n.º 1, ou requerer a sua reforma, em conformidade com o que se prescreve no artigo 616º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil. Passado o prazo de recurso ou de pedido de reforma da decisão quanto a custas, não podem as partes, por exemplo, na reclamação do ato de contagem, impugnar algum vício daquela decisão”.
A questão sub judice foi já objecto de um juízo de não inconstitucionalidade, pelo Tribunal Constitucional (Ac. 527/16):
“Não julgar inconstitucional a norma extraída do n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais, introduzida pela Lei n.º 7/2012, de 13 de fevereiro, na interpretação segundo a qual é extemporâneo o pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça apresentado no processo, pela parte que dele pretende beneficiar, após a elaboração da conta de custas”.
Foi também alvo de decisão pelo Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 13-07-2017, assim sumariado (destacado nosso):
“III. A dispensa do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do art. 6º, nº7, do RCP, decorre de uma decisão constitutiva proferida pelo juiz, podendo naturalmente inferir-se – se nada se disser sobre esta matéria na parte da sentença atinente à responsabilidade pelas custas – que ao pressupostos de que dependeria tal dispensa não se consideraram verificados, sendo consequentemente previsível para a parte, total ou parcialmente vencida, que a conta de custas a elaborar não contemplará seguramente essa dispensa:
IV. O direito a reiterar perante o juiz a justificabilidade da dispensa do remanescente deverá ser, por isso, exercitado durante o processo, nomeadamente mediante pedido de reforma do segmento da sentença que se refere sem excepções à responsabilidade das partes pelas custas da acção, não podendo aguardar-se pela elaboração da conta para reiterar perante o juiz da causa a justificabilidade da dispensa: na verdade, tal incidente destina se a reformar a conta que “não estiver de harmonia com as disposições legais” (art.º 31º nº 2 do RCP) ou a corrigir erros materiais ou a elaboração de conta efectuada pela secretaria sem obedecer aos critérios definidos no art.º 30º nº 3.
V. Não é inconstitucional a norma extraída do n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais, introduzida pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro, na interpretação segundo a qual é extemporâneo o pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça apresentado no processo pela parte que dele pretende beneficiar, após a elaboração da conta de custas.”
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Sem prescindir de tudo o aduzido, entende o Ministério Público não estarem verificados, in casu, os pressupostos para a dispensa do pagamento do remanescente de taxa de justiça, nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 7 do Regulamento de Custas Processuais.
Ao contrário do que defendem os requerentes, os presentes autos revelaram especial complexidade que justifica em pleno o pagamento de taxa de justiça nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas Processuais, tendo presente que os autos contam atualmente com 7 volumes, 3 apensos, contendo 2400 páginas, em que foram quatro sessões de audiência de discussão e julgamento em 1ª instância, interpostos, para o que aqui importa, um recurso para o Tribunal da Relação do Porto, um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e um recurso para o Tribunal Constitucional.
Acresce que, os requerentes já apresentaram notas discriminativas e justificativas de custas de parte, onde requereram, face à complexidade do processo, o complemento da taxa de justiça, nos termos da tabela I do RCP – cfr. requerimentos 26-08-2020, 08-09-2020 e 11-09-2020.
Além do mais, o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se no sentido dos presentes autos revestirem complexidade.
Resta ainda acrescentar, que a conduta das partes não foi especialmente colaborante com o Tribunal, certo é que as questões jurídicas decididas não poderão ser consideradas de fácil e rápida solução, como o demonstra o volume processual e os recursos para várias instâncias superiores.
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Em face do exposto, e em síntese, promovo:
a) Seja declarada a extemporaneidade do requerimento apresentado pelos Réus, por excepção do caso julgado, ao abrigo do disposto nos artigos 577.º, alínea i), 580.º, 616.º, n.º 1, 619.º a 624.º, 628.º, 666.º, todos do Código de Processo Civil;
b) Caso assim também não se entenda, seja indeferido o requerimento apresentado pelos Réus, por não estarem verificados os pressupostos a que alude o artigo 6.º, n.º 7 do Regulamento das Custas Processuais.
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Relativamente às notas discriminativas e justificativas de custas de parte apresentadas pelos Réus BB e AA, Fundo de Garantia Automóvel e A..., Lda:
O Ministério Público mantém a posição já assumida nos autos quanto a essa matéria e concorda-se na íntegra com o parecer elaborado pela secção.
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No mais, o Ministério Público concorda com a conta elaborada pela secretaria no que respeita aos RR AA e BB, promovendo o indeferimento do requerimento apresentado.
”
Em 16 de dezembro de 2021, foi proferido o seguinte despacho
[1]
:
“
O Fundo de Garantia Automóvel, a A... e AA e BB, todos Réus no processo, após a notificação da conta e para efetuar o pagamento dos valores referentes ao remanescente da taxa de justiça devida, ao abrigo do disposto no n.º 7 do artigo 6.º do RCP, vieram também à luz dessa norma requerer a dispensa desse pagamento.
O Ministério Público vem-se opor, alegando, em resumo, que:
A decisão sobre as custas reveste natureza jurisdicional. Ora, não tendo havido pronúncia expressa, por parte do Supremo Tribunal de Justiça, quanto à verificação dos pressupostos legais e dispensa de pagamento do mencionado remanescente da taxa de justiça, os requerentes poderiam e deveriam, no prazo de 10 dias contados da notificação do Acórdão, requerer a esse Tribunal a Reforma da decisão quanto a custas.
Fazê-lo apenas quando são notificados da conta de custas elaborada pela secretaria é extemporâneo - A conta é elaborada de acordo com o julgado em última instância, existindo já trânsito em julgado da decisão.
A possibilidade de reclamação/reforma da conta de custas aplica-se nas situações em que a conta elaborada está desconforme com a decisão judicial proferida ao nível das custas e/ou com as disposições legais aplicáveis, o que não é o caso.
Sem prescindir, entende o Ministério Público que, no caso, não estão verificados os pressupostos para a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça pois que os presentes autos tiveram uma tramitação complexa, os requerentes já apresentaram notas discriminativas e justificativas de custas de parte, onde requereram, face à complexidade do processo, o complemento da taxa de justiça, sendo que o Supremo Tribunal de Justiça também se pronunciou no sentido de os autos revestirem complexidade.
Cumpre decidir:
Quanto à extemporaneidade:
Estabelece o art. 6º n.º 7 do RCP que “Nas causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.”
O disposto nesta norma tem de ser conjugado com o estabelecido no fim da tabela 1 – “Para além dos 275.000,00 ao valor da taxa de justiça acresce, a final, por cada €25.000 ou fracção, 3 UC, no caso da col. A, 1,5 UC no caso da col. B e 4,5 UC, no caso da Col. C”.
Desde já se adiante que não se concorda com a posição do Ministério Público quanto à necessidade de a parte requerer a dispensa de pagamento, antes do trânsito em julgado, entendendo-se antes que a parte ainda o pode fazer, no momento em que é notificada da conta.
É a posição que mais se coaduna com o justo equilíbrio entre o montante de custas a pagar e a actividade desenvolvida pelo tribunal.
Acresce que só no momento da elaboração da conta é que a parte fica a conhecer o valor exato dos montantes a pagar.
Quanto a este aspecto refere-se no Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04 de Junho de 2020 - Processo 9677/15.1T8LSB-L1-2:
“É materialmente inconstitucional o regime decorrente do disposto no art.º 6.º n.º 7 do RCP, conjugado com o disposto no art.º 31.º do RCP, na medida em que tais normas negam à parte o direito de requererem a dispensa ou a redução da taxa de justiça remanescente, na sequência da notificação da conta de custas, mesmo em casos em que a taxa de justiça excede de forma gritante, intolerável, a proporção entre o serviço de justiça prestado pelo Estado e a contrapartida pecuniária exigível dos sujeitos processuais, assim violando o princípio da proporcionalidade (ou de proibição do excesso), decorrente do princípio do Estado de Direito (artigos 2.º e 18.º n.º 2, 2.ª parte, da CRP) e da tutela do direito de acesso à justiça (art.º 20.º da CRP).
Constatada, no caso concreto, a intolerável desproporção a que se refere o n.º II supra, deverá ser concedida, na sequência de requerimento deduzido após a notificação da conta de custas, a dispensa ou redução da taxa de justiça remanescente que ao caso couber, levando em consideração que se visa colocar a tributação em valores que obstem a uma desproporção gritante, justificativa de um juízo de inconstitucionalidade”.
Refere-se também no Acórdão do STJ de 02 de Março de 2021 – Processo 1939/15.4T8CSC.L1.S:
“A reforma da decisão quanto a custas, no quadro do n.º 1 do art. 616.º do CPC, tem a ver com o erro de decisão em matéria de custas (desconformidade com os critérios estabelecidos no art. 527.º e ss. do CPC).
II - A dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente, nos termos do n.º 7 do art. 6.º do RCP, não se integra nesse contexto, e daqui que não faz sentido requerer a reforma da decisão nos termos do n.º 1 do art. 616.º do CPC com vista à obtenção de uma tal dispensa.
(…)
Não compete ao STJ, ainda que tenha decidido em último grau, emitir pronúncia sobre o pedido de dispensa do pagamento das taxas de justiça remanescentes (referentes à 1.ª instância,
Relação e Supremo).
(…)
É ao tribunal da causa (o tribunal onde a ação foi proposta e para onde, em caso de recurso, o processo regressa definitivamente) que compete decidir, oficiosamente ou a requerimento da parte, sobre a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Por último refere-se no Acórdão do Tribunal de Guimarães de 10 de Julho de 2019 – Processo 797/12.5TVPRT-A.G2
“1 - A taxa de justiça é o valor que cada interveniente deve prestar, por cada processo, como contrapartida pela prestação de um serviço.
2 - A dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça devida depende da especificidade da situação processual, além da complexidade maior ou menor da causa e da conduta processual de cada uma das partes, por força do disposto no artº 6º, nº 7, do Regulamento de Custas Processuais (RCP).
3 - A teleologia da norma em causa não permite uma situação de intolerável desproporcionalidade entre a atividade judiciária despendida e o montante da taxa de justiça que é imputada ao requerente
4 - Nada tendo sido dito quanto a essa dispensa na sentença, pode a mesma ser decidida posteriormente, designadamente no momento em que se aprecie o requerimento de reclamação/reforma da conta de custas (sendo o erro na qualificação do meio processual corrigido oficiosamente pelo juiz)”.
Conclui-se, pois, pela tempestividade dos requerimentos relativos à dispensa de pagamento da taxa de justiça remanescente.
Vejamos agora se estão preenchidos os pressupostos materiais da dispensa de pagamento do remanescente, à luz do já citado art. 6º n.º 7 do RCP
Estabelece o art. 530 n.º 7 do CPC que “Para efeitos de condenação no pagamento de taxa de justiça, consideram-se de especial complexidade as acções e os procedimentos cautelares que:
a) - Contenham articulados ou alegações prolixas;
b) – Digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; ou
c) Impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas.
Ora, entende-se, face ao processado, que não será de dispensar, na sua totalidade, o pagamento da taxa de justiça remanescente.
De facto, os autos deram entrada em juízo em 2014 e só em 2020 foi proferida a última decisão.
O processo tem 7 volumes, com extensa documentação.
O julgamento teve quatro sessões.
Houve recurso para o Tribunal da Relação, para o Supremo Tribunal de Justiça e para o Tribunal Constitucional.
No entanto há a considerar que:
O valor da acção, fixado 5.715.954,68 € (ao que não será alheio o facto de a Autora litigar com apoio judiciário), não corresponde à complexidade efectiva do processo. Embora esteja em causa um acidente de viação, com discussão de ampla matéria factual e o processo tenha alguma complexidade, não foi especialmente complexo.
A conduta das partes pautou-se pela normalidade.
A autora viu fixada a indemnização em 1.171.485 €, valor que, embora alto, está longe do valor peticionado.
A esse valor acresce o valor atribuído ao Centro Hospitalar de 39.079,82 €.
Ora, atendendo ao trabalho efectivamente despendido pelo tribunal, ao valor do decaimento da Autora e à normal conduta processual das partes, entende-se adequado reduzir para ¼ a taxa de justiça remanescente a pagar.
Acrescente-se que o facto de as partes já terem pedido reembolso de custas de parte, considerando a taxa de justiça remanescente, não é impeditivo desta redução.
De facto, nos termos do art. 25º do RCP, as partes tinham de apresentar a sua nota discriminativa de custas de parte no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado.
Ora, não estando ainda dispensadas do pagamento da taxa de justiça remanescente, tê-la-iam de incluir.
Quanto ao facto de o STJ ter considerado estes autos complexos, há a realçar que reduziu para 50% o valor da taxa de justiça devida pelo recurso.
Por todo o exposto, reduz-se para ¼ a taxa de justiça remanescente a pagar.
Quanto à reclamação dos Réus BB e AA:
Pontos 14 a 17 e 26 a 28 da reclamação:
Constata-se que a 12 de Abril de 2018 e 26 de Abril, juntamente com a resposta aos recursos interpostos pelo Fundo de Garantia Automóvel, pela Autora CC e pela A..., os Réus BB e AA vieram pagar as taxas de justiça de 816 € cada uma (cf. fls. 1863 e fls. 1864 e 1877).
Tenha a secretaria em consideração estes pagamentos.
Não tem razão o reclamante quanto ao que alega nos pontos 26, 27, 28 da sua reclamação.
Não obstante (Pontos 18 a 22 da reclamação):
Os Réus BB e AA vêm insurgir-se por lhes estar a ser cobrada o complemento de taxa de justiça, relativamente aos recursos interpostos para o STJ, invocando que o Supremo Tribunal de Justiça determinou que as custas fossem pagas na proporção do decaimento pelos recorrentes vencidos, sendo que eles se limitaram a responder aos recursos interpostos pelo Fundo de Garantia Automóvel e pela Autora CC e pela A....
Não são, pois, recorrentes.
Conforme se afere da análise do processo, o Fundo de Garantia Automóvel recorreu para o STJ por o acórdão do Tribunal da Relação do Porto ter absolvido os Réus BB e AA. E, por isso, estes apresentaram contra-alegações.
Com igual fundamento recorre a A... e por isso contra-alegam os Réus BB e AA
Por sua vez, a Autora CC recorreu para o Supremo, relativamente ao valor da indemnização arbitrada, reduzida pela Relação por ter considerado existir culpa da Autora nos danos sofridos.
Também aqui os Réus BB e AA contra-alegaram. De facto, se fosse revertida a decisão da Relação quanto à sua absolvição (como de facto foi) a questão do montante indemnizatório não lhes era indiferente.
O Acórdão do STJ condenou os Réus BB e AA, solidariamente, com o FGA e a A... e considerou qua a Autora não contribui com a sua conduta para o agravamento dos danos, o que se reflecte, inelutavelmente, na posição destes Réus,
São, pois, recorridos e, nesta parte, vencidos.
No entanto o Supremo Tribunal de Justiça apenas condenou os recorrentes nas custas, não se pronunciando quanto à responsabilidade dos recorridos.
Assim, entende-se que cabe razão aos Réus na reclamação feita.
Pontos 22 a 29 da reclamação – Prejudicado o seu conhecimento, face ao que fica dito Pontos 30 a 42 da reclamação:
Vêm ainda estes Réus reclamar, alegando que não cabe à secretaria do Tribunal calcular um valor, inserido na conta de custas, como se se tratasse de uma nota discriminativa e justificativa de custas de parte por parte do IGFEJ e dirigida aos Réus, porque a lei não o prevê.
Alegam ainda que o art. 26º n.º 7 do RCP enferma de inconstitucionalidade orgânica Estabelece o art. 26º n.º 7 do Regulamento das Custas Processuais que:
“Se a parte vencedora gozar do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa
de taxa de justiça e demais encargos com o processo, as custas de parte pagas pelo vencido revertem a favor do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P”.
Esta norma foi inserida na Regulamento das Custas Processuais com a Lei n.º 27/2019, de 28 de março. É, pois, uma norma que emana da entidade competente, isto é, a Assembleia da
República, pelo que não se vislumbra como pode padecer de inconstitucionalidade orgânica.
Esta norma está prevista para os casos em que a parte vencedora, por litigar com apoio judiciário, não pagou as taxas de justiça devidas pelo impulso processual.
No entanto, se a parte as não pagou é porque estas foram suportadas pelo Estado.
É, pois, de clara e mediana justiça que o Estado possa vir a ser reembolsado dessas quantias pela parte vencida, o que se pretende com a introdução da norma atrás citada, através da reversão das quantias suportadas pelo Estado a favor do IGFEJ.
Aliás, não fora essa previsão legal, quem acabaria por gozar, em última análise, do apoio judiciário, seria a parte vencida,
De facto, o que aconteceria era que a parte vencedora por não ter pago custas não poderia, obviamente, pedir o seu reembolso.
O Estado que, efectivamente, as pagou, não poderia fazê-lo por falta de previsão legal.
No entanto, parece-nos que face à norma atrás citada, essa incongruência está ultrapassada.
A questão que se coloca e que o reclamante coloca é como, se poderá processar esse reembolso, mais concretamente, se esse reembolso se poderá processar através da inserção dessas quantias na conta elaborada pela secretaria do tribunal.
No caso, a secretaria liquidou as custas de parte que, não fosse a circunstância de a Autora gozar de apoio judiciário, seriam devidas a esta pelos Réus.
Conforme a norma atrás transcrita, o valor dessas custas reverte a favor do IGFEJ.
O art. 3º n.º 1 do RCP estabelece que “As custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte”.
Estabelece o art. 30º n.º 1 do RCP que “A conta é elaborada de harmonia com o julgado em última instância, abrangendo as custas da acção, dos incidentes, dos procedimentos e dos recursos.
O n.º 3 acrescenta que “A conta é processada pela secretaria, através dos meios informáticos previstos e regulamentados por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça, obedecendo aos seguintes critérios:
a) Discriminação das taxas devidas e das taxas pagas;
(…)
c) Discriminação dos reembolsos devidos ao Instituto de Gestão Financeira e das Infra- Estruturas da Justiça, I. P., ou de pagamentos devidos a outras entidades ou serviços;
(…)
Por sua vez o art. 30º n.º 1 da Portaria 419-A/2009 estabelece no seu art. 30º n.º 1 que “As custas de parte não se incluem na conta de custas”.
Face a esta norma, poderá a secretaria inserir na conta de custas os reembolsos de custas de parte ao IGFEJ?
Entende-se que sim.
De facto, esta norma da Portaria 419-A72009 não foi pensada para o caso previsto no art. 26º n.º 7 do RCP sendo, aliás, muito anterior.
A norma do art. 30º n.º 1 da Portaria 419-A/2009 foi pensada para os casos em que as custas de parte são discutidas entre quem, efectivamente, é parte no processo.
Ora o Estado, através da entidade responsável, o IGFEJ, embora se substitua à parte vencedora, no que se refere às custas, não é parte no processo.
Assim, entende-se que esta norma não se aplica ao caso concreto.
Não se aplicando esta norma, nada impede que as custas de parte que revertem para o IGFEJ (e note-se que nelas se incluem apenas o que, materialmente são custas processuais, isto é, as taxas de justiça e os encargos e já não a compensação por honorários), sejam incluídas na conta a elaborar pela secretaria, nos termos do art. 3º n.º 1 e 30º n.º 1 e 3 do Regulamento das Custas Processuais, sendo a forma mais óbvia de dar sentido prático ao disposto no art. 26º n.º 7 do RCP.
Pelo exposto, e nesta parte, indefere-se a reclamação.
Proceda-se à reformulação da conta em consonância com o determinado.
”
Em 08 de janeiro de 2022, inconformada com a decisão que precede, na parte em que julgou tempestivo o requerimento para dispensa de pagamento da taxa de justiça remanescente, a
Digna Magistrada do Ministério Público
interpôs recurso de apelação.
Em 12 de janeiro de 2022, também inconformados com o despacho que antecede
AA
e
BB
interpuseram recurso de apelação pretendendo a sua revogação na parte em que indeferiu a reclamação dos ora recorrentes, no sentido da desconsideração da taxa de justiça liquidada ao abrigo do disposto no nº 7 do artigo 26º do Regulamento das Custas Processuais.
A
Digna Magistrada do Ministério Público
respondeu ao recurso interposto em 12 de janeiro de 2022, pugnando pela sua improcedência.
AA
e
BB
responderam ao recurso interposto pela
Digna Magistrada do Ministério Público
pugnando pela sua improcedência.
Os recursos foram admitidos como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo e em 05 de abril de 2022 foi proferido acórdão deste Tribunal da Relação que julgou procedente o recurso interposto pelo
Ministério Público
e, por maioria, improcedente o recurso interposto pelos réus
AA
e
BB
.
Em 07 de dezembro de 2022, o tribunal
a quo
determinou que se procedesse à elaboração da conta e liquidação do julgado de acordo com o decidido pelo Tribunal da Relação do Porto.
Em 28 de fevereiro de 2023
AA
e
BB
foram notificados mediante expediente eletrónico elaborado nesse dia da conta nº ..., referente à ação de processo comum nº 1173/14.0T2AVR, em que são identificados como responsáveis AA e BB, indicando-se, além do mais, as seguintes taxas aplicáveis:
- ao processo, com uma base tributável de € 5.759.376,70, a taxa devida é liquidada no montante de € 17.511,39, indica-se como taxa paga o montante de € 2.346,00 e como taxa em dívida o montante de € 15.165,39;
- ao recurso, com uma base tributável de € 1.495.072,02, a taxa devida é liquidada no montante de € 6.708,61, indica-se como taxa paga o montante de € 816,00 e como taxa em dívida o montante de € 5.892,61;
- a um incidente resultante de acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de janeiro de 2018, com uma base tributável de € 1.495.072,02, a taxa devida é liquidada no montante de € 102,00, indica-se como taxa paga o montante de € 0,00 e como taxa em dívida o montante de € 102,00;
- computa-se o total das taxas de justiça pagas no montante de € 3.162,00;
- liquida-se o montante de € 34,54 a título de reembolso ao IGFEJ por adiantamentos;
- computa-se o montante global das taxas de justiça cíveis em € 24.322,00 e a taxa de justiça nos termos do nº 7 do artigo 26º do RCP no montante de € 8.073,33, totalizando o somatório destes dois montantes com o reembolso de € 34,54, o montante de € 32.429,87 que deduzido do montante de € 3.162,00 de taxas de justiça pagas dá o montante total a pagar de € 29.267,87.
Em 20 de março de 2023,
AA
e
BB
ofereceram o seguinte requerimento
[2]
:
“
A. Do apoio judiciário
1. Conforme referência Citius 113273528, de 24-07-2020, os RR. requereram nos presentes autos (processo principal) a concessão de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo.
2. Esse requerimento foi deferido pela Segurança Social, de acordo com o e-mail e despacho decisório que estão juntos aos autos e disponíveis sob a referência Citius 10959006, de 28-12-2020.
3. Por outro lado, os RR. beneficiam de apoio judiciário no Apenso B – facto que motivou os tais
recursos por parte da R. A..., Lda. e que foram decididos nos apensos E e F identificados na “Informação anexa à conta” os quais foram julgados totalmente improcedentes, mantendo-se a decisão de concessão do benefício do apoio judiciário aos RR.
4. Assim, quando não se entenda que o apoio judiciário concedido nos autos principais deve ter efeitos sobre as presentes custas – o que se concebe sem conceder – então, de todo o modo, dispõe o artigo 18º n.º 4 da Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais (Lei n.º 34/2004, de 29 de julho) que o apoio judiciário concedido em qualquer apenso é extensivo ao processo principal respectivo.
5. Conforme supra referido, está plenamente comprovado nos autos que os RR. beneficiam de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo por evidente incapacidade económica para suportarem as custas do processo.
6. Nestes termos, deve o apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo de que beneficiam os RR. ser efectivamente considerado, devendo a guia de pagamento n.º ... ser, consequentemente, anulada.
Sem prescindir,
B. Da nota discriminativa e justificativa de custas de parte
7. A 26-03-2021 este Tribunal proferiu Despacho com ref.ª 115392384 no qual decidiu que os RR. “não têm direito aos montantes peticionados a título de custas de parte, pelo que se indefere o requerido pagamento.” – isto na sequência da apresentação, pelos RR., de Nota Discriminativa e Justificativa de Custas de Parte na qual peticionavam do IGFEJ o reembolso da quantia €196.899,37.
8. O referido Despacho mereceu dos RR. a interposição de Recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o qual originou o apenso C destes autos, tendo vindo a ser proferida, em 07-09-2021, Decisão Sumária que anula aquele Despacho consignando: “Assim, em face do exposto, decido anular a decisão recorrida determinando que seja proferida nova decisão da qual conste decisão sofre os fundamentos da matéria de facto, ou seja, na qual se elenquem/especifiquem os factos considerados como assentes/provados que justificam/suportam a decisão.”
9. Nesta sequência, o Tribunal de 1ª instância proferiu Despacho, a 29-10-2021, determinando: “Notas discriminativas de custas de parte – Antes de mais proceda à elaboração da conta do processo.”
10. Quer isto significar que o Tribunal de 1ª instância, face à decisão do T.R.P., optou por ordenar, em primeiro lugar, a elaboração da conta do processo, antes de dar cumprimento àquela decisão.
11. Seguiu-se a elaboração da conta, como ordenado pelo Tribunal, da qual os RR. Foram notificados e apresentaram Reclamação, a 18-11-2021.
12. Sobre esta Reclamação recaiu o Despacho de 16-12-2021, tendo-se procedido à elaboração de uma nova conta em conformidade com o decidido nesse Despacho.
13. Essa nova conta é a que antecede o presente requerimento.
14. Salvo melhor opinião, entende-se que o Tribunal de 1ª instância não deu ainda cumprimento à Decisão Sumária do T.R.P., não tendo proferido decisão que especifique os fundamentos da matéria de facto que serviram de suporte à decisão de indeferimento da Nota Discriminativa e Justificativa de Custas de Parte apresentada pelos RR.
15. O Tribunal de 1ª instância ordenou que fosse elaborada a conta de custas do processo para depois se pronunciar nos termos da decisão do T.R.P. mas, como é bom de ver, a conta foi já notificada aos RR. para pagamento voluntário ou reclamação sem que o Tribunal se pronunciasse quanto à quantia, já há muito, peticionada pelos RR. a título de custas de parte.
16. Face ao exposto, requer-se a V. Exa. se digne dar cumprimento à Decisão Sumária do TRP proferida no apenso C destes autos e relativa à Nota Discriminativa e Justificativa de Custas de Parte apresentada pelos RR..
17. Em qualquer caso, à cautela e face à nova conta elaborada, vêm os RR. requerer a junção aos autos da Nota Discriminativa e Justificativa de Custas de Parte, que ora se junta, sem prejuízo de a mesma vir a ser alterada copnsoante o despacho que venha a ser proferido por este Tribunal nos termos ordenados pelo TRP.
18. Mais se requer, considerando que a A. beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, seja o IGFEJ notificado por V. Exa. para proceder ao reembolso da quantia ali indicada.
C. Do pagamento em prestações
19. Pese embora entendam os RR. que o apoio judiciário de que beneficiam implica a sua desresponsabilização pelo pagamento da conta de custas conforme se expôs supra, requer-se, subsidiariamente e por mera cautela de patrocínio aos dois pontos que antecedem, o seguinte:
20. A conta de custas imputa aos RR. a responsabilidade solidária pelo pagamento da quantia de € 29.267,87 até ao dia 28-03-2023.
21. Determina o artigo 33º n.º 1 al. b) do Regulamento das Custas Processuais que, caso o valor das custas ultrapasse 12 UC, o responsável pode requerer fundamentadamente o pagamento das custas em até 12 prestações mensais sucessivas não inferiores a 1 UC.
22. Ora, como é do conhecimento público e notório, Portugal tem registado uma subida generalizada e acentuada dos preços dos bens e serviços
[neste ponto figura a nota de rodapé nº 1, com o seguinte teor: “Segundo dados da Pordata, em Janeiro de 2023 a taxa de inflação em “alimentos” aumentou 20,6% relativamente ao mesmo mês do ano anterior; in
www.pordata.pt
”]
, a qual não é acompanhada da subida dos rendimentos da população, facto que tem aumentado brutalmente a taxa de esforço dos portugueses tendo em vista a sua subsistência.
23. Esta conjetura agrava a situação económico-financeira dos RR. que se vêm confrontados com a obrigatoriedade do pagamento de avultada quantia monetária (€ 29.267,87) até ao dia 28 de março de 2023, quantia de que não dispõe atualmente na totalidade – aliás, mesmo quando V. Exas. não atendam à concessão do apoio judiciário, saiba-se que são pessoas que estão em condições precárias que do mesmo PODERIAM BENEFICIAR.
24. Motivo pelo qual os RR. só conseguem cumprir a sua obrigação com recurso a pagamento prestacional.
25. Face ao exposto, requer-se a V. Exa., nos termos do artigo 33º n.º 1 al. b) do Regulamento das Custas Processuais, se digne admitir o pagamento das custas, na quantia total de € 29.267,87, em 12 prestações mensais de €2.438,99 (dois mil quatrocentos e trinta e oito euros e noventa e nove cêntimos) a liquidar nos termos do n.º 3 do artigo 33º do mesmo diploma legal.
”
Em 21 de março de 2023,
AA
e
BB
requereram a reformulação do requerimento de 20 de março de 2023 na parte em que se requer, subsidiariamente, o pagamento do valor da conta em prestações, atualizando o valor das 12 prestações mensais para € 1 685,09 (mil seiscentos e oitenta e cinco euros e nove cents).
Em 19 de janeiro de 2024, na ação declarativa comum de que estes autos foram extraídos foi proferido o seguinte despacho
[3]
:
“
Os Réus AA e BB vêm, no requerimento de 20 de março de 2023 com fundamento, no apoio judiciário concedido nestes autos, bem como nos autos apensos de liquidação, pedir que sejam anuladas as guias para pagamento das custas.
Vejamos:
A última decisão proferida nestes autos ocorreu em 25 de Junho de 2020 e foi proferida pelo Tribunal Constitucional, sendo notificada ao ilustre mandatário, através de carta registada a 01 de Julho de 2020 (cf. fls. 2287 dos autos).
Esta decisão já não era passível de recurso, pelo que inelutavelmente, transitou em julgado.
A 20 de Julho de 2020, isto é, numa altura em que o processo estava já definitivamente decidido, vieram os Réus pedir o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas, o que lhe veio a ser deferido a 28/12/2020, como se retira do Citius.
Ora, face à data em que foi requerido, é patente que este pedido de apoio judiciário não teve como objectivo assegurar o acesso à justiça, mas tão só obstar ao pagamento das custas.
Quanto a este ponto é clara a jurisprudência dominante, no sentido de não ser de atender ao apoio judiciário concedido.
A este propósito escreve-se, por exemplo no Acordão da Relação do Porto de 12 de janeiro de 2021, processo 5135/14.0TBVNG.P1:
“I - O apoio judiciário não existe para isentar os cidadãos com carências económicas do pagamento de custas, sem mais.
II – Nos termos do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, o instituto em causa pressupõe igualmente que o cidadão em causa queira aceder ao sistema de justiça, tenha um dado interesse processual em agir.
III – Quando o pedido de apoio judiciário é desencadeado apenas para lograr a “isenção de custas” relativamente a processos findos ou em que o requerente nada pretenda dos autos, o mesmo deve ser desconsiderado pelo tribunal, independentemente de a segurança social ter proferido decisão favorável quanto ao mesmo.
Assim, o apoio judiciário concedido nestes autos, não poderá ser atendido.
De igual forma, não deverá ser atendido o apoio judiciário concedido nos autos apensos de liquidação para isentar os Réus das custas deste processo.
De facto, o art. 18º n.º 4 da Lei de Acesso ao Direito estabelece que “O apoio judiciário mantém-se para efeitos de recurso, qualquer que seja a decisão sobre a causa, e é extensivo a todos os processos que sigam por apenso àquele em que essa concessão se verificar, sendo-o também ao processo principal, quando concedido em qualquer apenso”.
No entanto, o pressuposto é que todos os processos estejam ainda pendentes. Assim indica a expressão “os processos que sigam” Ora no caso, no momento em que foi requerido o apoio judiciário no apenso, o processo principal, isto é, os presentes autos estavam já findos.
Assim, também não se poderá considerar o apoio judiciário concedido nesse processo.
Passemos agora à reclamação da Conta de Custas dos Réus AA e BB, constante do requerimento de 21 de março
Pontos 6 a 9 da reclamação
Pretendem os Réus que, relativamente à 2ª instância, se considere que tiveram vencimento de 100%.
Vejamos:
Conforme resulta dos autos e se encontra explicitado na informação de 05 de março de 2021 o valor tributário da acção é de 5.759.376,70€, correspondente à soma do valor do pedido da autora 5.715.954,68€ e do pedido do Centro Hospitalar 43.422,02 €
Por sentença de 1ª instância foram os Réus BB e AA (juntamente com os outros Réus A... e FGA) condenados no pagamento à Autora do valor de 1.451.650,00 € e de 43.4222,02 € ao Centro Hospitalar.
Da decisão proferida recorreram todos os Réus, sendo o valor do recurso, no que se refere ao pedido da Autora, de 1.451.650,00 €.
O Tribunal da Relação do Porto reduziu o valor da indemnização a arbitrar à Autora para € 1.171.485,00 €.
Absolveu os Réus BB e AA do pedido contra eles formulado.
É este o dispositivo do acórdão:
“julgar a apelação interposta pelos réus BB e AA (na qualidade de herdeiros de DD) parcialmente procedente e consequentemente revogando a decisão recorrida, absolvem-se os mesmos dos pedidos contra si aduzidos pela autora;”
“Custas pelos recorrentes e recorridos, na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que a autora beneficia.”
Assim, não fora o caso de ter havido recurso dessa decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, até poderiam ter razão os Réus, ao entenderem que tiveram vencimento de 100%.
Acontece que houve recurso para o Supremo que, na parte da absolvição dos réus BB e AA, revogou a decisão da Relação.
É a seguinte a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, quanto à responsabilidade destes Réus:
“É concedida a revista da A... Lda, na parte em que se entende que os RR, herdeiros do condutor são responsáveis a título de responsabilidade por facto ilícito e culposo”
“É concedida a revista do FGA, quanto à questão dos herdeiros do condutor serem responsáveis civis”
Estes, os herdeiros do condutor (os agora reclamantes AA e BB) foram, assim, condenados, ao pagamento (de forma solidária com a A... e o FGA) da indemnização arbitrada.
Ora, tendo sido revertida a decisão do Tribunal da Relação quanto à responsabilidade dos Réus agora reclamantes, foi também, necessária e logicamente, revertida a sua proporção no vencimento que, obviamente, deixa de ser de 100%.
Os Réus passaram a ser condenados no valor fixado pelo Tribunal da Relação, isto é, foram condenados, mercê do Acordão do STJ, no valor de 1.171.485,00 €.
Ora considerando o valor do recurso (no que toca à indemnização a arbitrar à Autora –
451.650,00 €), tal acarreta (como se refere na informação da secretaria de 11 de Março de 2021) um decaimento, por parte dos Réus de 80,7002%.
Entende-se, pois que não cabe qualquer razão aos Réus.
Pontos 10 a 12 da reclamação – Os Réus BB e AA foram condenados, pelo Acórdão da Relação do Porto, nas custas do incidente, relativo à junção de documentos em sede de alegações.
Entendeu-se nesse acórdão que “carece de fundamento legal e não se mostra pertinente a requerida junção de documentos, motivo pelo qual se determina o seu desentranhamento e devolução aos respectivos apresentantes” (isto é, os Réus agora reclamantes).
Conclui-se, pois que o decaimento dos Réus, nesse incidente, foi de 100%.
Não podem, pois, pretender obter o reembolso da taxa de justiça relativa a esse incidente.
Improcede, pois, também este ponto da reclamação.
Ponto 13 a 15 da reclamação – Aplica-se mutatis mutandis o que ficou dito a propósito dos pontos 6 a 9 da reclamação.
Sendo o vencimento da Autora/decaimento dos Réus de 80,7002%, os Réus devem reembolsar o IGFEJ da taxa de justiça de recurso, nessa proporção.
Assim, também nesta parte, se indefere a reclamação.
Cumpre agora conhecer da nota discriminativa das custas de parte apresentada pelos Réus BB e AA, a 21 de março, por ser a ultima apresentada, na sequência da conta elaborada pela secção.
Ora, quanto a esta nota discriminativa há que considerar o seguinte:
Uma vez que a Autora tem apoio judiciário, não será a mesma a pagar as custas de parte que lhe poderiam ser imputadas.
De igual forma, os Réus também não lhe serão devedores de custas de parte.
O responsável pelo pagamento do que seria devido pela Autora será o IGFEJ, sendo este instituto também o beneficiário das custas que seriam devidas à autora, tudo nos termos do art. 26º n.º 6 e 7 do RCP.
Estabelece o art. 26º n.º 6 do RCP que “Se a parte vencida for o Ministério Público ou gozar do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o reembolso das taxas de justiça pagas pelo vencedor é suportado pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P.
Dispõe o n.º 7 que “Se a parte vencedora gozar do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, as custas de parte pagas pelo vencido revertem a favor do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P.."
Conclui-se, pois que:
- Os Réus serão reembolsados pelo IGFEJ das taxas de justiça pagas e dos encargos pagos na proporção do seu vencimento.
- Terão de reembolsar o IGFEJ das taxas de justiça devidas pela Autora e dos encargos devidos na proporção do seu decaimento.
Relativamente à primeira instância, a nota discriminativa das custas de parte encontra-se de acordo com a informação elaborada pela secção a 28 de fevereiro de 2023, nada havendo a alterar, pelo que se aceita a mesma.
Quanto à segunda instância:
Conforme já se referiu, no que se refere ao decaimento na Relação é de considerar que o decaimento dos Réus é de 80,7002% e não de 0%, como pretendem, concordando-se, pois, com a informação de 28 de Fevereiro, sendo o reembolso à parte de 1604,39 €, tal como se refere nessa informação e não o valor de 8.313,00 € como se refere na nota de custas de parte apresentada.
De igual forma, como já foi explicitado, não é devido o reembolso do valor de 102,00, relativo à tributação do incidente na Relação, por a parte ter decaído totalmente no mesmo
Assim, nos dois pontos expostos - decaimento na Relação e reembolso da taxa paga pelo incidente-, indefere-se a nota discriminativa apresentada, considerando-se apenas o valor indicado pela secretaria de 1604,39 €.
Note-se que o pagamento pelo IGFEG do valor constante da nota discriminativa pressupunha que a parte tivesse pago as taxas de justiça devidas (68.952,00 € em 1º instância e 8.313.00 € no Tribunal da Relação).
Por isso é que a lei fala em reembolso.
Ora, no caso, esse pagamento só aconteceu em parte. De facto, os Réus apenas pagaram 2.346,00 € em primeira instância e 816,00 € em segunda instância. Tais quantias não dão, sequer, para pagar o valor que é devido ao IGFEJ, na parte em que decaíram.
De facto, como resulta da conta apresentada pela secretaria e da informação de 28 de fevereiro, os Réus ainda são devedores de 29.267,87 €.
Operando-se, pois, a compensação, não têm direito a receber qualquer quantia.
Nos termos do art. 33º n.º 1 b) do RCP autorizo os Réus BB e AA bem como a Ré A... Lda a pagar as custas devidas em 12 prestações mensais e sucessivas de igual montante
Notifique.
”
Em 05 de fevereiro de 2024, inconformados com o despacho que precede,
AA
e
BB
interpuseram recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“
1. Foram os Réus notificados, em 28-02-2023, da Conta de Custas do processo segundo a qual é da sua responsabilidade o pagamento ao IGFEJ da quantia de 29.267,87€.
2. Em 20-03-2023 e em 21-03-2023, os Réus apresentaram a sua Reclamação pedindo a anulação da guia de pagamento daquela quantia em virtude de beneficiarem de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, decisão da Segurança Social que foi oportunamente junta aos autos.
3. Cautelarmente, os Réus juntaram aos autos a sua Nota Discriminativa e Justificativa de Custas de Parte pedindo que o IGFEJ (em substituição da Autora que beneficia de apoio judiciário) os reembolsasse da quantia de € 59.855,61 (cinquenta e nove mil oitocentos e cinquenta e cinco euros e sessenta e um cêntimos) e pediram ainda a rectificação da Conta de Custas uma vez que a que lhes foi notificada em 28-02-2023 atribuía aos Réus, no TRP, um decaimento de 19,2998% e à Autora um vencimento de 80,7002%, quando, no seu entendimento, a proporção de vencimento dos Réus é de 100% dado que foram, nessa instância, absolvidos dos pedidos contra si aduzidos pela A., tendo assim um vencimento total no recurso pelos próprios apresentado.
4. O Tribunal recorrido proferiu o despacho de 19-01-2024 – do qual ora se recorre – que indefere integralmente a Reclamação apresentada pelos Réus, concretamente, desconsiderando o apoio judiciário de que beneficiam os Réus e considerando que, não só não têm direito a receber qualquer quantia do IGFEJ, como, pelo contrário, têm ainda de pagar a quantia 29.267,87€.
5. Não podemos concordar com o entendimento do Tribunal recorrido segundo o qual pedido de apoio judiciário formulado pelos Réus não teve como objectivo garantir o acesso à justiça, mas apenas obstar ao pagamento das custas do processo, por ser descabido e infundado, que não assenta em pressupostos ou elementos objectivos dos quais se pudesse extrair tal conclusão.
6. O pedido de apoio judiciário formulado pelos Réus foi deferido pela Segurança Social a qual menciona na decisão que “A presente decisão é prolatada na sequência de uma comprovada situação de insuficiência económica superveniente ocorrida no decurso do processo.”
7. A insuficiência económica dos cidadãos que acedem à justiça pode verificar-se em momento posterior à primeira intervenção no processo e em qualquer fase do decurso do mesmo – sem que daí se possa retirar, como retirou o Tribunal recorrido, a conclusão ardilosa de que o que os Réus pretendem é simplesmente não pagar as custas do processo.
8. A insuficiência económica é uma situação de facto e objectiva dos Requerentes, cuja competência para apreciar compete à Segurança Social, que entendeu comprovada a incapacidade dos Réus para suportarem as custas, e não ao Tribunal recorrido, não podendo este vedar-lhes esse direito.
9. Tratando, a insuficiência económica, de uma situação de facto vivida pelos Réus, constatada pelo serviço competente, é inadmissível que venha o Tribunal recorrido justificar a negação do benefício por entender que os Recorrentes pretendem apenas não pagar as custas (repetimos, quando a Segurança Social veio confirmar que os Réus não têm condições para o fazer).
10. Por este motivo, sempre deverá ser atendido o apoio judiciário de que beneficiam os Réus, por se tratar de um benefício concedido face à situação de facto de insuficiência económica verificada que os impede, efectivamente, de suportar as custas, revogando-se o despacho recorrido e substituindo-o por um outro que determine a anulação da guia de pagamento das custas dada a incapacidade dos Réus para a liquidar.
11. Acresce que no Apenso B dos autos, respeitantes à Liquidação de Sentença, os Réus beneficiam de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, apoio que, de acordo com o artigo 18º n.º 4 da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, é extensível ao processo principal.
12. Não faz qualquer sentido entender-se que os Réus não têm capacidade para suportar as custas do apenso B, dado o deferimento do apoio judiciário por parte da Segurança Social, mas que já têm essa capacidade para suportar as custas dos autos principais, quando a decisão da Segurança Social se mantém.
13. O apoio judiciário, sendo contemporâneo com a pendência do litígio, produz os respectivos efeitos em todo o processo.
14. Nesse sentido, sempre deverá considerar-se que o apoio judiciário de que os Réus beneficiam no Apenso B deve ser extensível aos autos principais, por estar factualmente comprovada a incapacidade contemporânea de os Réus suportarem as custas de ambos os processos, que é na verdade, um único, revogando-se o despacho recorrido e substituindo-o por um outro que determine a anulação da guia de pagamento das custas dada a incapacidade dos Réus para a liquidar.
15. Ainda que assim não se entenda, não podem os Recorrentes aceitar o disposto na Informação da Sra. Oficial de Justiça – a qual serve de base ao despacho que condena os Réus no pagamento das custas – uma vez que no ponto 7 dessa Informação se consigna que, no Tribunal da Relação do Porto, aqueles tiveram um decaimento de 19,2998% no TRP e a Autora um vencimento de 80,7002%.
16. Considerou o Tribunal recorrido que tendo sido revertida a decisão do Tribunal da Relação (absolutória) quanto à responsabilidade dos Réus, pelo STJ, foi também, necessariamente, revertida a sua proporção no vencimento que deixa de ser de 100%.
17. Salvo melhor opinião, em termos de conta de custas, não só as instâncias de recurso são consideradas como processo autónomo, como também cada Réu - uma vez que estamos perante uma ação que tem para além dos ora Recorrentes mais dois Réus -, tem decaimentos distintos.
18. Isto porque o valor de indemnização fixado em primeira instância fora de €1.451.650,00, tendo o Tribunal da Relação do Porto condenado os Réus Fundo de Garantia Automóvel e A..., Lda. a pagar o montante de € 1.171.485,00 (um milhão cento e setenta e um mil quatrocentos e oitenta e cinco euros).
19. O decaimento calculado levou assim o Oficial de Justiça a elaborar uma espécie de conta de custas da responsabilidade dos Réus com base nesse decaimento, contudo olvidou-se que esse preciso decaimento, embora se aplique aos Réus Fundo de Garantia Automóvel e A..., Lda., porque foram condenados pelo Tribunal da Relação do Porto, nunca se poderia aplicar aos ora Recorrentes!
20. Fica assim claro que os Recorrentes tiveram um vencimento total quanto ao pedido formulado pela Autora, no Tribunal da Relação do Porto.
21. O disposto no artigo 30º n.º 1 do Regulamento das Custas Processuais não prejudica nem obsta à autonomia da acção e de cada um dos recursos para efeitos tributários reconhecidos a cada instância.
22. Os Recursos são processos autónomos para efeitos de tributação e as respectivas custas são devidas por quem neles fica vencido. Quer isto significar que, para efeitos de apuramento da responsabilidade por custas, as instâncias recursivas são apreciadas autonomamente, instância a instância e de acordo com o decaimento/vencimento em cada uma delas.
23. Nestes termos, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por um outro que tenha em consideração, relativamente aos aqui Réus, o vencimento de 100% no Tribunal da Relação do Porto, elaborando-se a conta de custas em conformidade.
24. Por outro lado, a quantia em dívida referida no despacho recorrido foi calculada igualmente através das custas de parte que os Réus teriam de pagar ao IGFEJ, no entender do Tribunal a quo, nos termos do artigo 26.º, n.º 7 do R.C.P., constando do parecer elaborado pelo Oficial de Justiça o cálculo do valor a reembolsar ao IGFEJ, como se tratando de uma nota discriminativa e justificativa de partes por parte do IGFEJ para os Réus.
25. Não compreendem os Réus, por um lado, como é que o Tribunal pretende peticionar valores pelo IGFEJ, respeitantes a custas de parte, pretendendo assim englobá-los na conta de custas do processo e, por outro lado, como é que é sequer possível ao IGFEJ peticionar valores a título de custas de parte.
26. Nunca poderia o Tribunal recorrido inserir valores na conta de custas da responsabilidade dos Recorrentes respeitantes ao artigo 26.º, n.º 7 do R.C.P., uma vez que o preceito legal se reporta a custas de parte e não a custas do processo que possam contabilizar-se na conta de custas que é paga a final por cada responsável.
27. Pelo que, novamente, alude o despacho recorrido a um valor em dívida mal calculado e sem sustento legal, não podendo ser exigido aos Recorrentes, no âmbito do mecanismo das custas de parte previsto no n.º 7 do artigo 26.º do R.C.P., qualquer valor, de acordo com a regra de custas a final.
28. Ademais, e concebendo sem se conceder, poderia ainda assim questionar-se se poderia a Autora, beneficiária de apoio judiciário, ou o próprio IGFEJ peticionar os valores hipoteticamente calculados pelo Tribunal recorrido.
29. Entendemos que se a parte vencedora litigou com apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, não pagou quantia alguma a esse título, pelo que, apesar de vencedora, não pode exigir da parte vencida qualquer importância no âmbito das custas de parte previstas nos artigos 529º, nº 4, 533º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b), ambos do CPC, e 26º, nº 3, alíneas a) e b), do Regulamento.
30. Também o IGFEJ, I.P. não tem direito, face à parte vencida, a exigir a esta o valor que a parte vencedora não pagou relativo à taxa de justiça e que pagaria se não fosse a concessão do apoio judiciário, porque a lei não o prevê.
31. Quanto aos encargos cujo pagamento o IGFEJ, I.P. tenha adiantado também os não pode exigir à parte vencida a título de custas de parte porque entram em regra de custas a seu favor na conta, à margem do instituto das custas de parte.”
32. Assim, o n.º 7 do artigo 26.º do R.C.P. não tem qualquer utilidade, configurando-se, aliás, contrário aos referidos artigos do C.P.C. e do R.C.P..
33. Destarte, por um lado, não pode o Tribunal a quo contabilizar custas de parte, quer porque não é parte na acção, quer porque não entram tais custas na conta a pagar a final pelo respectivo responsável e, por outro lado, nem sequer se vislumbra que pudesse a Autora, que beneficia de apoio judiciário, ou o IGFEJ, peticionar tais valores, na medida em que nada pagaram de taxas de justiça, não havendo qualquer preceito legal que possa conduzir à ficção de taxas de justiça a entrar no cálculo de custas de parte.
34. Pelo exposto, o Tribunal a quo, ao determinar que os Réus são devedores da quantia de 29.267,87€, com base na Informação da Sra. Oficial de Justiça constante da Conta notificada a 28-02-2023, emprega um decaimento com valores incorrectos para calcular o montante do reembolso a que os Recorrentes têm direito e contabiliza valores referentes a custas de parte que não lhes pode peticionar, violando assim o n.º 7 do artigo 26.º do R.C.P., devendo o despacho recorrido ser revogado na medida em que indefere o pagamento das custas de parte por entender que entre este, e as custas devidas, existe um excedente ainda por pagar, assente em cálculos errados e contrários aos preceitos legais acima identificados.
”
Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e no efeito meramente devolutivo.
Uma vez que o objeto do recurso tem natureza estritamente jurídica e que as questões decidendas se revestem de simplicidade, com o acordo dos restantes membros do coletivo dispensam-se os vistos, decidindo-se de seguida.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Do benefício do apoio judiciário;
2.2 Do vencimento na Relação;
2.3 Da inaplicabilidade do nº 7 do artigo 26º do Regulamento das Custas Processuais ao caso dos autos.
3. Fundamentos de facto
Os factos necessários e suficientes para conhecer do objeto do recurso constam do relatório deste acórdão e resultam do teor dos autos de que estes foram extraídos, autos que, nesta vertente estritamente adjetiva, têm força probatória plena.
4. Fundamentos de direito
4.1 Do benefício do apoio judiciário
Os recorrentes pugnam pela revogação da decisão recorrida porque beneficiam de apoio judiciário, tendo a entidade competente para a concessão do benefício comprovado a superveniente insuficiência económica dos recorrentes e consequentemente concedido apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo. Além disso, foi no apenso B concedido apoio judiciário aos recorrentes, benefício que é extensivo aos presentes autos.
O tribunal
a quo
fundamentou este segmento da decisão recorrida da forma que segue:
“
A última decisão proferida nestes autos ocorreu em 25 de Junho de 2020 e foi proferida pelo Tribunal Constitucional, sendo notificada ao ilustre mandatário, através de carta registada a 01 de Julho de 2020 (cf. fls. 2287 dos autos).
Esta decisão já não era passível de recurso, pelo que inelutavelmente, transitou em julgado.
A 20 de Julho de 2020, isto é, numa altura em que o processo estava já definitivamente decidido, vieram os Réus pedir o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas, o que lhe veio a ser deferido a 28/12/2020, como se retira do Citius.
Ora, face à data em que foi requerido, é patente que este pedido de apoio judiciário não teve como objectivo assegurar o acesso à justiça, mas tão só obstar ao pagamento das custas.
Quanto a este ponto é clara a jurisprudência dominante, no sentido de não ser de atender ao apoio judiciário concedido.
A este propósito escreve-se, por exemplo no Acórdão da Relação do Porto de 12 de janeiro de 2021, processo 5135/14.0TBVNG.P1:
“I - O apoio judiciário não existe para isentar os cidadãos com carências económicas do pagamento de custas, sem mais.
II – Nos termos do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, o instituto em causa pressupõe igualmente que o cidadão em causa queira aceder ao sistema de justiça, tenha um dado interesse processual em agir.
III – Quando o pedido de apoio judiciário é desencadeado apenas para lograr a “isenção de custas” relativamente a processos findos ou em que o requerente nada pretenda dos autos, o mesmo deve ser desconsiderado pelo tribunal, independentemente de a segurança social ter proferido decisão favorável quanto ao mesmo.
Assim, o apoio judiciário concedido nestes autos, não poderá ser atendido.
De igual forma, não deverá ser atendido o apoio judiciário concedido nos autos apensos de liquidação para isentar os Réus das custas deste processo.
De facto, o art. 18º n.º 4 da Lei de Acesso ao Direito estabelece que “O apoio judiciário mantém-se para efeitos de recurso, qualquer que seja a decisão sobre a causa, e é extensivo a todos os processos que sigam por apenso àquele em que essa concessão se verificar, sendo-o também ao processo principal, quando concedido em qualquer apenso”.
No entanto, o pressuposto é que todos os processos estejam ainda pendentes. Assim indica a expressão “os processos que sigam” Ora no caso, no momento em que foi requerido o apoio judiciário no apenso, o processo principal, isto é, os presentes autos estavam já findos.
Assim, também não se poderá considerar o apoio judiciário concedido nesse processo.
”
Cumpre apreciar e decidir.
De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
O apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e a nomeação e pagamento da compensação devida a patrono constitui um mecanismo legal destinado a permitir o acesso ao direito a todos aqueles que por razões de ordem económica se veriam impossibilitados de fazer valer as suas pretensões, se não lhes fosse concedido tal benefício.
Daí que se perceba, atenta a teleologia do instituto do apoio judiciário, que não se trata de um benefício facultado às partes num processo judicial para se eximirem ao pagamento das custas de uma lide já terminada, mas ante de um instrumento que lhes é concedido para que, sem constrangimentos de ordem económica, possam fazer valer as suas pretensões em juízo.
A dedução de um pedido de apoio judiciário numa causa já finda traduz-se na utilização de um instituto jurídico fora da finalidade que lhe cabe em verdadeira fraude à lei.
A finalidade pretendida pelos recorrentes com a obtenção de apoio judiciário nas referidas circunstâncias era a exoneração da obrigação de pagamentos das custas por que eram responsáveis, como é bem evidenciado por este recurso, pois que, entendendo-se que o apoio judiciário que lhes foi concedido abrangeria a obrigação de pagamento de custas constituída em data anterior à concessão daquele benefício, nada mais haveria a conhecer nestes autos.
O elemento racional a que acima se aludiu também obsta a que o apoio judiciário concedido em processo apenso possa produzir efeitos nestes autos, pois, como se disse e repete, o apoio judiciário não é expediente para alguém se ver livre da obrigação de pagamento de custas constituída em data anterior ao deferimento daquele apoio.
Pelo contrário, neste recurso, o apoio judiciário concedido aos recorrentes produz os seus efeitos próprios, operando a dispensa de pagamento de taxa de justiça que lhe é inerente, já que, nesta apelação, os recorrentes pretendem obter a revogação de uma decisão judicial que lhes foi desfavorável.
Assim, face ao exposto, improcede esta questão recursória.
4.2 Do vencimento na Relação
Os recorrentes pretendem a revogação da decisão recorrida na parte em que indeferiu a reclamação que deduziram pretendendo não terem que arcar quaisquer custas pelo recurso em segunda instância, dado que foram absolvidos do pedido pelo Tribunal da Relação e a tributação dos recursos na Relação e no Supremo Tribunal de Justiça é autónoma.
Cumpre apreciar e decidir.
A conta que merece a discordância dos ora recorrentes e que motivou os seus requerimentos de 20 e 21 de março de 2023 e a decisão recorrida proferida em 19 de janeiro de 2024 é mera reformulação da conta que lhes foi notificada em 03 de novembro de 2021.
Ora, nesta conta, aos ora recorrentes foi imputada responsabilidade tributária partilhada pelo recurso no Tribunal da Relação.
Os recorrentes não reclamaram contra a conta neste segmento.
Assim, a nosso ver, tendo-se os ora recorrentes conformado com a referida imputação, formou-se sobre essa questão caso decidido, não podendo agora aproveitar a conta reformulada para suscitar questão que não levantaram perante a conta que foi reformulada.
Por isso, com o referido fundamento, não se conhece do objeto do recurso nesta parte, já que sobre o mesmo se formou caso decidido, não podendo ser conhecida por este tribunal uma questão que se estabilizou processualmente por falta de oportuna reclamação dos interessados.
4.3 Da inaplicabilidade do nº 7 do artigo 26º do Regulamento das Custas Processuais ao caso dos autos
Repetindo argumentos que já esgrimiram no recurso interposto contra o despacho proferido em 16 de dezembro de 2021, os recorrentes, pugnam pela revogação da decisão recorrida na parte em que indeferiu a pretensão destes de que não seja liquidada qualquer importância a favor do IGFEJ, I.P. ao abrigo do disposto no nº 7 do artigo 26º do Regulamento das Custas Processuais.
Cumpre apreciar e decidir.
A questão que os ora recorrentes pretendem seja conhecida já foi suscitada na reclamação que deduziram contra a conta que lhes foi notificada em 03 de novembro de 2021 e no recurso interposto contra a decisão judicial proferida em 16 de dezembro de 2021, vindo a ser proferido acórdão em 15 de abril de 2022, neste Tribunal da Relação, que por maioria julgou improcedente esta pretensão dos recorrentes.
Neste contexto formou-se caso julgado sobre esta questão, o que obsta a que seja conhecido este segmento do objeto do recurso.
Deste modo, como o referido fundamento, não se conhece do objeto do recurso nesta parte.
Pelo exposto, improcede o recurso na parte relativa à pretendida dispensa de pagamento de custas por força do apoio judiciário concedido aos recorrentes e, na parte restante, não se conhece do objeto do recurso, seja com fundamento em caso decidido, seja com base em caso julgado, sendo a responsabilidade pelo pagamento das custas da responsabilidade dos recorrentes, pois que decaíram (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), mas sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por
AA
e
BB
na parte relativa à pretendida dispensa de pagamento de custas por força do apoio judiciário concedido aos recorrentes e, na parte restante, não se conhece do objeto do recurso, seja com fundamento em caso decidido, seja com base em caso julgado e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida proferida em 19 de janeiro de 2024, nos segmentos impugnados.
Custas a cargo dos recorrentes, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso, mas sem prejuízo do apoio judiciário de que os recorrentes beneficiam.
***
O presente acórdão compõe-se de vinte e seis páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.
Porto, 13 de janeiro de 2025
Carlos Gil
José Eusébio Almeida
Fátima Andrade
_______________
[1] Notificado às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 16 de dezembro de 2021.
[2] Concluem o requerimento pedindo: “Nestes termos e nos melhores de Direito, requer-se a V. Exa. se digne: a) Ordenar a anulação da guia de pagamento n.º ... uma vez que os RR. beneficiam de apoio judiciário na modalidade de taxa de justiça e demais encargos com o processo, conforme supra exposto, E b) Dar cumprimento à Decisão Sumária do TRP proferida no apenso C destes autos e relativa à Nota Discriminativa e Justificativa de Custas de Parte apresentada pelos RR; c) E quando não se entenda retirar as devidas consequências do apoio judiciário, atender à nova Nota Discriminativa e Justificativa de Custas de Parte, que ora se junta. Ainda que assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se concebe, sem conceder, d) Admitir o pagamento da conta de custas em 12 prestações mensais de €2.438,99 (dois mil quatrocentos e trinta e oito euros e noventa e nove cêntimos), nos termos do artigo 33º n.º 1 al. b) do RCP, a liquidar nos termos do n.º 3 do artigo 33º do mesmo diploma legal, pelos fundamentos supra expostos.”
[3] Notificado às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 22 de janeiro de 2024.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/be0e89ce83f3a01980258c19003bed34?OpenDocument
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1,748,390,400,000
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REVOGAÇÃO PARCIAL
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3313/22.7T9CBR.C1
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3313/22.7T9CBR.C1
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ISABEL GAIO FERREIRA DE CASTRO
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1 - Preenche o conceito legal de arma proibida o objecto, sem aplicação definida, constituído por um osso de animal que havia sido aguçado, assim obtendo efeito perfurante e consequente aptidão para ser usado como instrumento de agressão, ainda que o seu manuseio fosse feito sem encaixe no entalhe do pedaço de madeira.
2 - Com efeito, o que tem virtualidade de ser usado como meio de agressão, pela sua natureza perfurante e/ou cortante, é o osso pontiagudo, e não o pedaço de madeira no qual aquele iria encaixar, servindo como cabo, sendo que tal osso já havia sido aguçado, mostrando-se pronto a usar e a cumprir a função visada pelo recorrente.
3 - Ainda que a intenção do arguido fosse apenas a de utilizar o osso aguçado para intimidação, sempre seria de considerar que a sua posse era injustificada porquanto não tinha um propósito lícito.
4 - O arguido conhecia as características do objeto perfurante que detinha e que construiu, bem sabendo que o mesmo era suscetível de ser usado como arma de agressão e que a sua posse lhe estava vedada.
5 - Considerando a posse, pelo recorrente, de um pedaço de osso aguçado, construído com o único propósito de ser usado como arma de agressão – que integra a previsão de arma proibida, atenta a respectiva caraterização - e o dolo, mostram-se preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do crime de detenção de arma proibida.
|
[
"CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA",
"CRIME DE DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA",
"IMPUGNAÇÃO AMPLA DA MATÉRIA DE FACTO",
"CONCEITO LEGAL DE ARMA PROIBIDA",
"OSSO DE ANIMAL AGUÇADO E PERFURANTE"
] |
*
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. - RELATÓRIO
1. - No Juízo Local Criminal de Coimbra, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, no âmbito do processo comum que ali corre os seus termos sob o n.º 3313/22.7T9CBR, foi realizado julgamento, com intervenção de tribunal singular, tendo sido proferida
sentença
mediante a qual foi decidido [transcrição
[1]
]:
a)
Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artºs 153º, nº 1 e 155º, nºs 1, alíneas a) e c), ambos do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão e pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 2º, nº 5, alínea g), 3º, nº 2, alínea g) e 86º, nº 1, alínea d) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23/02, na pena de 12 (doze) meses de prisão;
b)
Operando o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido AA, decide-se condená-lo na pena única de 15 (quinze) meses de prisão, pela prática dos crimes de ameaça agravada e detenção de arma proibida;
c)
Condenar o arguido no pagamento das custas do processo (artº 8º do Regulamento Custas Processuais), fixando a de taxa de justiça em 2 UC – artºs 374º, n.º 4, 513º, n.º 1 e 514º, n.º 1 do Cód. Processo Penal.
2. - Não se conformando com o assim decidido, o arguido interpôs
recurso
, apresentando a respetiva motivação e formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«
A.
Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido nos presentes autos, tendo por objeto a matéria de facto e de direito, considerando que o Recorrente não se conforma com a sentença do tribunal
a quo,
por diferentes motivos, suscitando, respeitosamente, as seguintes questões: I - Do erro notório na apreciação da matéria de facto; II – Da falta de demonstração de requisitos necessários para a classificação dos objetos apreendidos como arma proibida; III – Da determinação da medida da pena aplicada;
I – Do erro na apreciação da matéria de facto
B.
O Recorrente põe em causa o seguinte facto dado como provado: ´
“2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, pelas 10 horas, no interior de sala de formação aí existente, o arguido tinha na sua posse um objeto perfurante, que construiu, com as seguintes características: instrumento artesanal e de construção manual com 21,5 centímetros de comprimento, vulgarmente conhecido na gíria da população prisional como “chino”, construído a partir de um pedaço de madeira com cerca de 16 centímetros de comprimento e 1,5 centímetros de espessura, no qual foi feito um entalhe e encaixado um pedaço de osso animal previamente aguçado.”
C. Concatenando a prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente a referida nos anteriores pontos 6 e 7 (transcrições das declarações do arguido, e depoimento da testemunha BB, respetivamente) cumpre invocar o erro de julgamento, por remissão para as supratranscritas provas produzidas, erroneamente apreciadas pelo tribunal recorrido.
D. Resulta, quer das declarações do arguido, quer do depoimento prestado pela única testemunha presente, que foram “apreendidos” dois objetos e não um objeto perfurante, construído pelo arguido, com 21,5 centímetros de comprimento, vulgarmente conhecido na gíria da população prisional como “chino”.
E. A concatenação das provas elencadas, impunha diversa apreciação, requerendo, o recorrente que o douto tribunal
ad quem
, se debruce sobre a prova produzida em 1.ª instância, que considera ter sido incorretamente apreciada.
F. O arguido não tinha em sua posse um artefacto finalizado com as características descritas naquele ponto 2 dos factos provados na Sentença, mas sim dois objetos, nomeadamente um pedaço de madeira e um pedaço de osso.
G. Pelo que, no que concerne ao ponto 2 dos factos dados como provados, deverá o referido facto ser alterado passando a constar que: 2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, pelas 10 horas, no interior de sala de formação aí existente, o arguido tinha na sua posse um osso de animal e um pedaço de madeira, no qual foi feito um entalhe apto a ser encaixado um pedaço de osso animal previamente aguçado.
H. O Recorrente põe também em causa, o seguinte facto dado como provado:
“3. Tal objeto não tem aplicação definida, tendo como único intuito a sua utilização como arma de agressão, não tendo o arguido justificada a sua posse.”
I. Conforme vimos de referir, foram apreendidos dois objetos ao arguido, justificando a posse dos ditos, para efeitos de contruir um objeto que pudesse utilizar para intimidar alguns reclusos em meio prisional, que já o haviam ameaçado, agredido e roubado.
J. Factualidade que, fácil e coerentemente, se extrai do teor do depoimento da Testemunha BB, articulado com as declarações prestadas pelo Arguido em audiência de julgamento, realizada em 03-12-2024, conforme exposto nas transcrições vertidas nos anteriores pontos 19, 20 e 22, da motivação.
K. O depoimento da testemunha e as declarações do arguido mostram-se alinhados quanto à factualidade atinente à existência de dois objetos, que diferentemente do que se deu como provado, não constituirão uma arma, nem tendo, no estado em que se encontravam, a virtualidade de ser utilizados como tal.
L. Pelo que, no que ao ponto 3 dos factos dados como provados, tange, deverá o referido facto ser alterado passando a constar que: “3. A posse de tais objetos teria como único intuito a sua utilização para preparar um utensílio com características de uma arma utilizada para intimidação.”
M. Invoca o Recorrente, que terá havido erro de julgamento da matéria de facto, patente que fica, a demonstração de que a convicção do tribunal recorrido sobre determinado o facto –
v.g. a apreensão de uma arma proibida
– é inadmissível, porque existem hipóteses decorrentes da prova produzida que impõem resposta contrária à adotada na decisão recorrida.
N. Considera o Arguido que houve erro de julgamento quanto à matéria de facto, também quanto ao vertido nos pontos 4, 5 e 6, dos factos provados, remetendo, para as declarações do Arguido e para o depoimento prestado pela Testemunha, BB, transcritas nos anteriores pontos 27 e 28, respetivamente.
O. Considerando a constante presença de vários reclusos, formadores e guardas, durante os períodos em que decorrem as formações, estranha-se que não tenha sido possível indicar uma testemunha que tivesse ouvido as expressões proferidas.
P. Não sendo crível que a testemunha BB tenha conseguido retirar pacificamente os objetos ao arguido, tendo oportunidade de os guardar no seu gabinete, e posteriormente regressado para junto dos formandos onde se encontrava o arguido, para só nesse momento o Arguido proferir as expressões ameaçadoras.
Q. Estamos perante uma situação de recorte de vida prisional do arguido, em cujo contexto, em termos de juízo de causalidade adequada, reagiria de imediato, quer fosse para evitar que tais objetos lhe fossem retirados, quer fosse para proferir as ameaças que, alegadamente, proferiu.
R. O próprio formador BB, quando questionado se teve receio pela sua integridade física, refere que sentiu receio, como sempre sente, apesar de, o arguido nada ter demonstrado que justificasse esse receio (transcrição do depoimento no ponto 40 da motivação).
S. Ou seja, a aceitar-se que o arguido ameaçou o ofendido nos termos dados como provados, ter-se à de aceitar também, que a própria testemunha não acreditou na possibilidade do perigo ou mal com que foi ameaçado, se vir a materializar, face às suas expressivas declarações (
Cfr
. transcrição do ponto 41 da motivação).
T. Considera o Arguido que deveriam ser valoradas positivamente as suas declarações não sendo dado como provados os factos constantes dos ponto 4 e 6.
U. Pugnando pela alteração da redação dos factos constantes do ponto 5, considerando, por identidade de raciocínio, o exposto quanto aos factos 2 e 3, no que tange à existência de dois objetos distintos, e não uma arma finalizada,
V. Não devendo ser dado como provado que o arguido detinha um objeto perfurante que construiu, quando a única testemunha presente, atesta que surpreendeu o arguido enquanto este preparava um pedaço de madeira (ou seja, em execução).
II – Da falta de demonstração de requisitos necessários para a consideração dos objetos apreendidos como arma proibida;
W. O recorrente considera que não estão presentes os requisitos para que os objetos apreendidos possam ser classificados como arma proibida, embora apreendidos no mesmo momento, tratava-se de um osso e um pedaço de madeira.
X. O Artigo 3.º n.º 2 al. g) e o Artigo 86.º n.º 1 al. d), ambos do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, recorre à terminologia
“construídos”
e não em construção, e
“que possam ser usados como arma de agressão”.
Y. A questão central reside na distinção entre um instrumento já construído e aquele que se encontra em processo de construção ou finalização.
Z. À luz da legislação aplicável, não se pode considerar que um pedaço de madeira e um osso, se enquadrem no conceito legal de arma proibida, pelo que, o recorrente não poderá ser punido pela posse desses objetos, dado que não preenchem os requisitos legais para tal classificação.
III – Da determinação da medida da pena aplicada;
AA. O critério legal para efeitos da determinação da medida da pena encontra-se previsto no art. 71º do C. Penal, devendo tal determinação, tomar em conta a moldura penal abstracta aplicável, através da ponderação das exigências de prevenção geral e especial, da medida da culpa do arguido e de todas as circunstâncias que, não sendo típicas, militem contra e a seu favor
maxime
, as enunciadas no n.º 2 do preceito.
BB. Seguimos de perto o entendimento vertido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo: 401/20.8PAVNF.S1 de 06/10/2021, que postula que o “
Critério decisivo é que as circunstâncias concorrentes, pela sua especial intensidade, configurem um caso de gravidade, tão acentuadamente diminuída, seja ao nível da ilicitude ou da culpa, seja ao nível da necessidade da pena, que escapa à previsão do que o legislador definiu e que, por isso, seria injusto punir dentro da respetiva moldura penal, já prevenidamente muito ampla”.
CC. Pelo que, afigura-se, salvo melhor opinião, que a pena aplicada ao Recorrente “peca” por excesso, devendo ser revogada e aplicada, uma pena que se aproxime dos limites mínimos, preferencialmente sendo reduzida para metade.
DD. A pena não pode, jamais, ultrapassar a medida da culpa, conforme resulta do disposto no n.º 2 do artigo 40.º do Código Penal.
EE. Valendo, nesta sede, as considerações acima elencadas, concluindo-se perante as circunstâncias mencionadas, que é manifesto que a pena aplicada é desproporcionada, devendo ser substituída por outra próxima dos mínimos legalmente previstos.
FF. A fundamentação precipitada pelo Acórdão é insuficiente, não determinando o grau de culpa com que atuou o Recorrente, nem as concretas circunstâncias fácticas, que justificam a aplicação de dosimetria no quíntuplo da moldura mínima, quanto ao crime de ameaça agravada, e no nônuplo da moldura mínima, quanto ao crime de detenção de arma proibida, sendo que, ao decidir da forma explanada no douto acórdão, violou a decisão recorrida o disposto nos artigos 40º e 71º do CP.
GG. Urgindo que, nestes termos, se dê provimento ao recurso da sentença e, consequentemente revogando-se a douta sentença proferida a quo, absolvendo o arguido da prática dos crimes por que foi condenado, com todas as demais e legais consequências
Termos em que, e nos mais de direito, cujo douto suprimento de V. Exªs., Srs. Desembargadores se roga, deverá ser dado provimento ao recurso da sentença, e, consequentemente, revogando-se a douta sentença proferida
a quo
, absolvendo o arguido da prática dos crimes por que foi condenado, com todas as demais e legais consequências, apenas assim se fazendo, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA.
Ou, caso assim não se entenda, que seja proferido douto Acórdão, que revogue a Sentença proferida e, em consequência seja proferido douto acórdão, que aplique uma pena adequada, proporcional e mais justa, ao aqui Recorrente, mais próxima dos limites mínimos legais, com as legais consequências.»
3. - O Ministério Público junto da primeira instância apresentou
resposta
ao recurso, na qual pugna pela improcedência do mesmo, concluindo:
«Com relevância para a decisão em causa, afere-se que o Tribunal a quo formou a sua convicção na conjugação dos factos trazidos a juízo pela acusação, alicerçada na prova produzida, assim como, nas próprias regras da experiência.
Pelo que, ponderadas as várias circunstâncias do caso concreto, é patente que a Escolha e medida da pena aplicada se revela adequada, proporcional e necessária às finalidades punitivas que se fazem sentir, quer quanto aos propósitos preventivos de estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, quer quanto às intenções ressocializantes e regeneradoras do arguido nessa mesma comunidade.
Critérios que foram assertivamente ponderados e fundamentados na sentença recorrida, a qual se afigura, assim, perfeitamente ajustada, devendo, em consequência, o recurso interposto ser declarado totalmente improcedente, por infundado, mantendo-se aquela integralmente.
Termos em que, e nos mais de direito,
deverá ser mantida a douta sentença
recorrida, com o que se fará JUSTIÇA!»
4. - Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Coimbra, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu fundamentado
parecer
no sentido da improcedência do recurso.
5. - Cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada
resposta.
6. - Colhidos os vistos e realizada a
conferência
, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, resultou a presente decisão.
*
II. – FUNDAMENTAÇÃO
1. – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Em consonância com o disposto no artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objeto dos recursos está delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes [cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15/04/2010:
“É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”
], sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão n.º 7/95, do Supremo Tribunal de Justiça,
in
DR, I Série - A, de 28/12/95).
São, assim, as conclusões da motivação que balizam o âmbito do recurso e devem, por isso, ser concisas, precisas e claras – se ficam aquém da motivação, a parte desta que não é ali resumida torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões e, se vão além da motivação, também não devem ser consideradas, porque são um resumo da motivação e esta é inexistente
[2]
.
Posto isto, no presente recurso, tendo em conta as conclusões formuladas pelo recorrente,
as questões a apreciar são as seguintes:
- Os pontos 2, 3, 4, 5 e 6 da factualidade provada foram incorretamente julgados?
- O arguido/recorrente deve ser absolvido do crime de ameaça agravada e do crime de detenção de arma proibida?
- As penas parcelares e a pena única são excessivas?
2. – DECISÃO RECORRIDA
A sentença alvo de recurso tem, no essencial, o teor que ora se transcreve:
«
II - Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 21/04/2023, o arguido AA cumpria pena no Estabelecimento Prisional de Coimbra.
2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, pelas 10 horas, no interior de sala de formação aí existente, o arguido tinha na sua posse um objeto perfurante, que construiu, com as seguintes características: instrumento artesanal e de construção manual com 21,5 centímetros de comprimento, vulgarmente conhecido na gíria da população prisional como “chino”, construído a partir de um pedaço de madeira com cerca de 16 centímetros de comprimento e 1,5 centímetros de espessura, no qual foi feito um entalhe e encaixado um pedaço de osso animal previamente aguçado.
3. Tal objeto não tem aplicação definida, tendo como único intuito a sua utilização como arma de agressão, não tendo o arguido justificado a sua posse.
4. Ao ser surpreendido na posse daquela arma pelo formador BB, que lha retirou e guardou, o arguido, gritando, disse-lhe:
“se eu apanhar algum castigo à sua pala, você nem sabe do que lhe sou capaz de fazer. Eu mato-o, mas é que o mato mesmo. Eu venho aqui à sala e mato-o. Não se esqueça que eu o mato mesmo”
.
5. O arguido conhecia as características do objeto perfurante que detinha e que construiu, bem sabendo que a mesma era suscetível de ser usado como arma de agressão e que a sua posse lhe estava vedada.
6. Ao proferir as expressões descritas, o arguido agiu com o propósito de, com o anúncio daquele mal, direta e necessariamente, provocar medo a BB, bem sabendo que para tal aquelas eram idóneas.
7. Para além de noutros processos, o arguido AA foi condenado nos seguintes processos em penas de prisão efetiva superior a 6 meses:
- No processo 1519/11...., do Juízo de Média Instância Criminal de Sintra, por sentença de 09/04/2014, transitada em julgado em 19/05/2014, pela prática, em 29/09/2011, de um crime de furto qualificado, na pena de 1 ano de prisão;
- No processo 345/15...., do Juízo Local Criminal de Alenquer, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, por sentença de cúmulo jurídico de penas de 13/12/2018, transitada em julgado em 11/02/2019, pela prática, em 31/08/2013, de um crime de detenção de arma proibida, e pela prática, em 30/05/2015, de um crime de dano qualificado, na pena única de 1 ano e 8 meses;
- No processo de Cúmulo Jurídico 2850/14...., do Juízo Central Criminal de Sintra do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, por acórdão de 21/04/2015, transitado em julgado em 22/05/2015, cumulando as penas aplicadas nos processos 1029/11.... e 1519/11...., pela prática de um crime de roubo qualificado em 29/09/2011, dois crimes de roubo qualificado em 03/10/2011, dois crimes de roubo qualificado em 04/10/2011, seis crimes de roubo qualificado em 05/10/2011, três crimes de roubo em 06/10/2011, dois crimes de roubo qualificado em 14/10/2011, um crime de roubo e um crime de roubo tentado em 26/10/2011, um crime de furto simples e um crime de furto qualificado em 27/10/2011, um crime de roubo qualificado em 27/10/2011, um crime de furto qualificado em 13/11/2011, na pena única de 16 anos de prisão.
8. Em cumprimento das penas de prisão em que foi condenado, o arguido esteve preso nos seguintes períodos:
- Entre 19/11/2011 até 04/07/2014, à ordem do Processo 1029/11....;
- Entre 04/07/2014 e 23/12/2015, à ordem do Processo 843/01....;
- Entre 23/12/2015 e 09/06/2023, à ordem do Processo 2850/14....;
- Desde 09/06/2023 até ao presente, à ordem do Processo 345/15.....
9. Não obstante as condenações supra-referidas, e estar ainda a cumprir pena de prisão, à data da prática dos factos acima descritos, o arguido não tinha interiorizado a advertência contida naquelas condenações, reincidindo na prática de ilícitos.
10. Agiu o arguido de forma deliberada, livre e consciente bem sabendo serem as descritas condutas proibidas e punidas por lei penal.
11. Preso desde 19.11.2011, AA encontrava-se no Estabelecimento Prisional de Coimbra desde 10.04.2019, onde permaneceu até à sua transferência para o estabelecimento prisional de Paços de Ferreira, em 26.05.2022, em cumprimento sucessivo da pena de 16 anos de prisão, em que foi condenado no âmbito do proc.º n.º 2850/14...., pela prática de crimes roubo qualificado, furto qualificado e furto qualificado na forma tentada, e da pena de 1 ano e 8 meses de prisão, em que foi condenado no âmbito do processo n.º 345/15...., pela prática dos crimes de dano qualificado e detenção de arma proibida, quando se encontrava no estabelecimento prisional de Vale dos Judeus, e que cumpre desde 09.06.2023, acrescidas de 1 ano, 5 meses e 19 dias, referentes à revogação da liberdade condicional, já cumprida.
12. Com historial de problemática aditiva iniciada por volta dos 15 anos com o consumo de haxixe, que viria a evoluir para o consumo de drogas de maior poder aditivo, o arguido registou uma tentativa de tratamento em Espanha, em contexto institucional, que, contudo, abandonou pouco tempo depois, integrando, há vários anos o programa de substituição com metadona, com acompanhamento nas especialidades de psicologia e psiquiatria, mas com indicadores de fragilidades a este nível, assinalando-se os despistes positivos para o consumo de cocaína e THC, em 20.09.2023, e THC em 21.02.2024, além do facto de o próprio assumir fragilidades no que concerne o consumo de haxixe que, contudo, desvaloriza.
13. Quando deu entrada no contexto prisional, AA estava habilitado apenas com o 4.º ano de escolaridade, concluído aos 14 anos de idade, após um percurso marcado pelo reduzido aproveitamento, que levou os progenitores a optarem pela sua saída do sistema de ensino e pela sua integração profissional, registando experiências laborais na área da construção civil e na área da restauração, ainda que com uma trajetória irregular e inconsistente, também neste âmbito.
14. No decurso da reclusão foi perdendo o contacto com o agregado familiar de origem e elementos da família alargada, situação que atribui ao seu percurso criminal e consequentes contactos com a justiça, desconhecendo o atual paradeiro.
15. Neste âmbito, importa assinalar, que o processo de desenvolvimento do arguido decorreu junto do agregado de origem, num contexto pautado por frequentes conflitos com os progenitores, a quem era atribuído um estilo educativo autoritário e rígido, nomeadamente como resposta aos comportamentos de rebeldia assumidos, desde cedo, pelo arguido.
16. Na sequência desta conflitualidade com as figuras parentais, aos 15 anos de idade o arguido optou por integrar o agregado familiar da avó materna, residente num meio comunitário considerado problemático, e priorizar o convívio com jovens conotados com comportamentos desviantes, começando a frequentar estabelecimentos noturnos, contexto no qual registou, além de consumos de estupefacientes, consumos abusivos de bebidas alcoólicas, comportamentos que a avó materna revelou incapacidade para gerir e conter.
17. Ao nível afetivo tem também evidenciado um percurso irregular, tendo estabelecido uma relação afetiva, da qual nasceu uma descendente (atualmente maior de idade), mas que viria a terminar, segundo o próprio cerca de 6 anos depois, tendo o arguido optado por regressar ao agregado de origem.
18. Contudo, encontrando-se numa fase de maior desorganização e dependência de estupefacientes, mantinha um estilo de vida desestruturado, sem qualquer ocupação estruturada, o que agudizou os conflitos com o progenitor e motivou novas ausências da habitação, durante as quais permanecia em paradeiro incerto.
19. Nesta fase surgiram os primeiros contactos com o sistema de justiça, nomeadamente uma condenação em pena de prisão suspensa na sua execução, que viria a ser revogada, além do cumprimento de uma pena de prisão, que não lograram alterar o seu percurso, pese embora um período em que beneficiou do apoio dos tios maternos e de uma namorada, cujo relacionamento viria também a cessar.
20. De referir que, no decurso da atual reclusão, em setembro de 2021, AA iniciou novo relacionamento afetivo e contraiu matrimónio, que viria, contudo, a cessar em 2023, tendo deixado de beneficiar do apoio desta e respetivos familiares, identificando, posteriormente, o início de um novo relacionamento afetivo, que refere manter atualmente, com uma reclusa do estabelecimento prisional de Tires com quem refere ter começado a trocar correspondência.
21. O arguido identifica atualmente apenas um amigo de referência, ex-recluso, que refere ter conhecido em contexto prisional, e que cumpriu também pena no estabelecimento prisional de Coimbra, que poderá constituir uma fonte de suporte em meio livre, contudo, não mantinha contacto com este desde que o mesmo saiu em liberdade, tendo, recentemente, segundo refere, recebido uma carta deste amigo.
22. Em contexto prisional tem evidenciado acentuadas dificuldades de ajustamento ao normativo institucional, patentes no registo de punições e na integração em secção de segurança entre junho de 2015 e novembro de 2017, salientando-se que, durante a permanência no estabelecimento prisional de Coimbra, evidenciou, inicialmente, uma evolução positiva ao nível comportamental, que, contudo, não conseguiu consolidar acabando por registar novas punições, além dos factos que motivaram o presente processo.
23. Também no que concerne a manutenção de uma ocupação, manteve atividade laboral entre 24.06.2019 e 22.03.2021, data em que passou a pronto, e frequentou o curso de manutenção hoteleira para equivalência ao 6.º ano de escolaridade, que não concluiu.
24. AA regista anteriores condenações, em pena de prisão suspensa na sua execução, que viria a ser revogada, e em penas de multa, além de anterior cumprimento de pena de prisão, entre 07.11.2003 e 16.03.2011, por crimes de roubo e contra a integridade física, tendo saído em liberdade condicional aos 5/6 da pena, medida que viria, contudo, a ser revogada.
25. Atualmente o arguido permanece no estabelecimento prisional de Paços de Ferreira, à ordem do processo n.º 345/15...., em cumprimento de 1 ano e 8 meses de prisão, pela prática dos crimes de dano qualificado e detenção de arma proibida, quando se encontrava no estabelecimento prisional de Vale dos Judeus.
26. Tem outros processos pendentes, também por factos ocorridos no decurso da presente reclusão.
27. Neste estabelecimento prisional frequentou o curso profissional de Tecelão, que não concluiu, tendo optado por ingressar num curso de assistente administrativo que o habilitou com o 2.º ciclo de escolaridade, encontrando-se, atualmente, inscrito no curso profissional de cozinha, de equivalência ao 3.º ciclo de escolaridade.
28. Pese embora a atual postura de maior investimento no desenvolvimento das suas qualificações escolares, mantém dificuldades de ajustamento ao normativo institucional, registando a última punição em Abril de 2024, por factos de Fevereiro de 2024, não tendo, até ao momento, beneficiado de medidas de flexibilização da pena que permitam aferir o seu comportamento em meio não controlado.
29. Neste estabelecimento prisional manteve a integração no programa de metadona, com acompanhamento nas especialidades de psicologia e psiquiatria, pese embora assuma fragilidades ao nível do consumo de haxixe.
30. Relativamente aos crimes pelos quais se encontra condenado, reconhece a sua ilicitude e censurabilidade, com referência às vítimas e, parcialmente, aos danos causados, e verbaliza arrependimento, assumindo, contudo, um discurso tendencialmente externalizador, ao contextualizar a sua prática nas necessidades económicas e de subsistência, apresentando, desta forma, necessidades subsistentes ao nível do sentido crítico.
31. Face ao presente processo, verbaliza recear um agravamento da sua situação jurídica e o respetivo impacto no futuro benefício de medidas de flexibilização da pena.
32. Refere ter retomado recentemente o contacto com uma irmã e com a filha, já adulta, segundo o próprio a residir na Alemanha, e identifica como principal elemento de suporte no exterior o amigo CC, conhecido no decurso da reclusão, além do suporte afetivo da namorada, em cumprimento de pena no estabelecimento prisional de Tires, com quem iniciou relacionamento afetivo no decurso da atual reclusão.
33. Do percurso de vida de AA emergem como principais vulnerabilidades as reduzidas qualificações escolares e a ausência de competências profissionais e hábitos de trabalho, bem como a problemática aditiva, com impacto nas diferentes áreas da sua vida.
34. Regista antecedentes criminais de relevo, dos quais se destaca o anterior cumprimento de pena de prisão e a revogação de liberdade condicional, evidenciando dificuldades em inverter a sua conduta desviante, o que a par das dificuldades de ajustamento ao normativo institucional, com registo de novas condenações e processos pendentes por factos ocorridos no decurso da atual reclusão constitui um indicador de instabilidade emocional e comportamental e de fragilidades na interiorização de valores juridicamente integrados.
35. No exterior apresenta um enquadramento que poderá também condicionar o seu processo de reinserção social.
36. Assim, emergem como principais necessidades de intervenção a manutenção de acompanhamento especializado direcionado para a resolução da problemática aditiva, a aquisição de competências formativas/profissionais promotoras da sua inserção laboral futura e consequente autonomia financeira, bem como a realização de uma intervenção que proporcione ao arguido uma efetiva interiorização do desvalor da sua conduta, tendo em vista a promoção de um estilo de vida pró-social e a concretização de um efetivo processo de mudança cognitiva e comportamental.
37. Do certificado do registo criminal do arguido constam as seguintes condenações:
- Processo Comum Singular nº 2381, do Tribunal Criminal de Lisboa – 6º Juízo – 1ª Secção, pela prática de um crime de introdução em casa alheia e ofensas corporais, por sentença datada de 11/05/1998, na pena única de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de Esc. 800$00 (oitocentos escudos);
- Processo Comum Colectivo nº 798/97...., do Tribunal Criminal de Lisboa – 5ª Vara – 2ª Secção, pela prática de um crime de roubo, na forma tentada, por acórdão datado de 15/12/1999, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos;
- Processo Comum Singular nº 612/96...., dos Juízos Criminais de Lisboa – 1º Juízo – 2ª Secção, pela prática de dois crimes de ofensa à integridade física simples, por sentença datada de 03/02/2000, na pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de Esc. 300$00 (trezentos escudos);
- Processo Comum Colectivo nº 573/01...., do Tribunal Judicial de Loures – 1º Juízo – Vara Mista, pela prática de um crime de roubo agravado, por acórdão datado de 29/04/2002, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos, com regime de prova;
- Processo Comum Singular nº 509/98...., do Tribunal Criminal de Lisboa – 1º Juízo – 3ª Secção, pela prática de um crime de dano, por sentença datada de 15/07/2002, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 1,50 (um euro e cinquenta cêntimos);
- Processo Comum Colectivo nº 843/01...., do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Loures – 1ª Vara de Competência Mista, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, um crime de coação, um crime de condução sem habilitação legal, um crime de sequestro e dois crimes de roubo, por acórdão datado de 02/12/2004, na pena única de 6 (seis) anos de prisão;
- Processo Comum Colectivo nº 1029/11...., do Tribunal de Lisboa – 8ª Vara Criminal, pela prática de 21 (vinte e um) crimes de roubo qualificado e três crimes de furto qualificado, por acórdão datado de 29/10/2012, na pena de 15 (quinze) anos de prisão;
- Processo Comum Singular nº 1519/11...., do Tribunal da Comarca de Grande Lisboa – Noroeste – Sintra – Juízo de Média Inst. Criminal – 2ª Secção – Juiz 4, pela prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, por sentença datada de 09/04/2014, na pena de 1 (um) ano de prisão;
- Processo Comum Singular nº 755/13...., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Alenquer – JL Criminal, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, por sentença datada de 25/11/2016, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
- Processo Comum Singular nº 345/15...., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Alenquer - JL Criminal, pela prática de um crime de dano qualificado, por sentença datada de 08/01/2018, na pena de 4 (quatro) meses de prisão.
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III - Factos não provados
Não se provou qualquer outra matéria com relevo para a decisão da causa.
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IV - Motivação da decisão de facto
Este Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base nas declarações do arguido na parte em que admitiu a prática dos factos no que se reporta à posse do objecto apreendido nos autos, estando ciente que não o poderia deter, bem assim quanto ao facto de ter sido surpreendido com tal objecto pela testemunha BB.
Foi também valorado o depoimento da testemunha BB, formador no Estabelecimento Prisional de Coimbra que, de uma forma coerente e credível, referiu que o arguido estava em formação na sala do depoente quando se ausentou para a sala ao lado, altura em que foi ver o que estava a fazer, estando o mesmo na posse do objecto apreendido, após o que lhe retirou, tendo aquele reagido proferindo a expressão mencionada em 4.
Considerou-se ainda o depoimento prestado pela testemunha DD, guarda prisional no Estabelecimento Prisional de Coimbra, que prestando também um depoimento coerente e credível, referiu que após ter sido alertada pelo responsável da formação para o objecto que o arguido transportava consigo, fez a participação da ocorrência.
Mais se consideraram o auto de notícia de fls. 4/5, o registo de ocorrência de fls. 7, a certidão do Processo Comum (Tribunal Singular) 345/15.... a fls. 95/103, a certidão do Processo de Cúmulo Jurídico 2850/14.... a fls. 85/93, o relatório pericial de fls. 42 e o certificado do registo criminal junto ao processo com a Refª 9186299.
No que se refere à situação sócio-económica e de permanência e integração no Estabelecimento Prisional foi considerado o relatório da DGRSP junto com a Refª 9365743.
Não se provou qualquer outra matéria para além da consignada supra, pois não se produziu mais nenhuma prova que permitisse acrescentar aos provados outros factos, além dos aludidos.
Com efeito, embora o arguido tenha negado ter dito ao ofendido BB que o matava, o Tribunal não atribuiu credibilidade às suas declarações nesta parte, dado que a testemunha BB prestou um depoimento que se afigurou credível, porquanto relatou a situação com pormenor, tendo referido que o arguido reagiu de forma exaltada por ter sido surpreendido com o objecto que tinha na sua posse, facto que o arguido também confirma, pelo que se considera que, tendo sido surpreendido na posse de um objecto que lhe poderia trazer problemas, por se tratar de uma arma de fabrico artesanal, reagiu da forma descrita, ameaçando o ofendido, no intuito de o amedrontar para que não comunicasse superiormente a situação.
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V - Enquadramento jurídico – penal
Vem o arguido acusado da prática, sob a forma consumada e em concurso real, de um crime de ameaça, p. e p. pelos artºs 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alíneas a) e c) do Cód. Penal e um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 2º, nº 5, alínea g), 3º, nº 2, alínea g) e 86º, nº 1, alínea d) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23/02, sendo o arguido punido como reincidente, nos termos dos artºs 75º e 76º, do Cód. Penal.
Pratica o crime de ameaças
“quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, (…) de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”
(artº 153º, nº 1)
.
São elementos essenciais deste tipo de ilícito, o anúncio de que o agente pretenda infringir a outrem um mal que constitua crime e que esse anúncio seja feito de forma adequada a provocar receio, medo ou inquietação ou lhe prejudique a sua liberdade de determinação e que o agente tenha actuado com dolo.
O bem jurídico protegido é a liberdade de decisão e de acção. As ameaças ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afectam naturalmente a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade.
No que respeita ao tipo objectivo de ilícito o conceito de ameaça é composto por três características fundamentais. São elas: a existência de um mal, esse mal deve ser futuro e a sua ocorrência deverá depender da vontade do agente. O objecto da ameaça tem de constituir um crime, ou seja, deverá configurar em si mesmo um facto ilícito típico que se encontra especificado no nº 1 do artº 153º do Cód. Penal, pois o crime, objecto da ameaça tem que ser
“contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor”.
Por outro lado, a conduta que integra o crime de ameaça tanto pode configurar uma acção como uma omissão.
Quanto ao anúncio desse mal, o mesmo não tem de ser dirigido ou proferido directamente à pessoa ameaçada, o essencial é que a ameaça chegue ao conhecimento da pessoa ameaçada, e o conhecimento pode chegar por qualquer meio, nomeadamente pelo relato de terceiro (neste sentido, Ac. Tribunal Relação Coimbra de 20/05/2015, disponível em
www.dgsi.pt
).
É ainda indiferente a forma que revista a acção que constitui a ameaça, podendo a mesma ser oral, escrita ou gestual. Ora, conforme refere o Conselheiro Maia Gonçalves (in
“Código Penal Português – Anotado e Comentado”
, 10ª Edição, 1996, pág. 527),
“o que se exige para preenchimento do tipo é que a acção reúna certas características, não sendo necessário que em concreto chegue a provocar o medo ou a inquietação. Por exemplo: preenche o tipo o indivíduo que ameaça outro com uma arma, embora este último esteja no interior de uma casa perfeitamente defendido da acção, pois tal acção é normalmente adequada quer do ponto de vista do agente quer do que é geralmente reconhecido.
As ameaças levadas a cabo por tais meios, quando não forem subsumíveis a incriminação mais gravosa (v.g. tentativa de homicídio) de modo a ficarem consumidas por tal incriminação, serão subsumíveis à previsão deste artigo.
Não é necessário que as ameaças causem medo ou inquietação ao visado, mas apenas que sejam meio adequado a provocar medo ou receio ou a prejudicar a liberdade de determinação do visado. Exige-se apenas que a ameaça seja susceptível de afectar, de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado. Deixou, assim, o crime de ameaça, após a Revisão de 1995, de ser um crime de resultado e de dano, passando a crime de mera acção e de perigo (cfr. Américo Taipa de Carvalho “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, pág. 348).
O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem-comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada. A ameaça adequada é, assim, a que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado.
Não se exige, hoje, a ocorrência do dano (efectiva perturbação da liberdade do ameaçado), mas também não basta a simples ameaça da prática do crime, exigindo-se, ainda, que esta ameaça seja, na situação concreta, adequada a provocar medo ou inquietação. Estamos perante um crime de perigo concreto (neste sentido,
vide
, entre outros, Ac. Relação de Évora, de 24/04/2001, CJ, 2001, T. 2, pág. 270; Ac. Relação de Coimbra, de 16/03/2000, CJ, 2000, T. 2, pag. 45; e Ac. Relação Lisboa, de 09/02/2000, T. 1, pág. 149).
No que se refere ao tipo subjectivo de ilícito o crime de ameaça exige o dolo, manifestando-se este na consciência da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado.
Vem também o arguido acusado da prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 2º, nº 5, alínea g), 3º, nº 2, alínea g) e 86º, nº 1, alínea d) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23/02.
Dispõe a alínea d) do n.º 1 do art.º 86º que,
“Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo: (…)
d) Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática ou ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, artigos de pirotecnia, exceto os fogos-de-artifício das categorias F1, F2, F3, T1 ou P1 previstas nos artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 135/2015, de 28 de julho, e bem assim as munições de armas de fogo constantes nas alíneas q) e r) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias;”
.
O artº 2º, nº 1, alínea m) da mencionada lei dá-nos a definição de
«Arma Branca»
todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, as estrelas de lançar ou equiparadas, os cardsharp ou cartões com lâmina dissimulada, os estiletes e todos os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões”
, referindo o artº 3, nº 2, alíneas f) e g) que
“2 - São armas, munições e acessórios da classe A: f) As armas brancas sem afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objeto de coleção; g) Quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão (…)
.
Preceitua o art. 3º, nº 1 da Lei 5/2006 que
“As armas e munições são classificadas nas classes A, B, B1, C, D, E, F e G, de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização”
.
O artº 2º do mesmo Diploma legal aclara no n.º 5 outras definições como a que se transcreve com especial relevo para o caso dos autos: “
g) «Detenção de arma», o facto de ter em seu poder ou disponível para uso imediato pelo seu detentor
”.
Estamos perante um crime de perigo comum e abstracto, não lesando, assim, de forma directa e imediata qualquer bem jurídico, apenas implicando a probabilidade de um dano contra um objecto indeterminado, dano esse que a verificar-se será não raras vezes gravíssimo.
Com este tipo legal o legislador pretendeu evitar toda a actividade idónea a perturbar a convivência social pacífica e garantir através da punição destes comportamentos potencialmente perigosos, a defesa da ordem e segurança públicas contra o cometimento de crimes, em particular contra a vida e integridade física.
Procedendo agora à analise da matéria dada como provada nos presentes autos, ficou demonstrado que no dia 21/04/2023, o arguido AA cumpria pena no Estabelecimento Prisional de Coimbra. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, pelas 10 horas, no interior de sala de formação aí existente, o arguido tinha na sua posse um objeto perfurante, que construiu, com as seguintes características: instrumento artesanal e de construção manual com 21,5 centímetros de comprimento, vulgarmente conhecido na gíria da população prisional como “chino”, construído a partir de um pedaço de madeira com cerca de 16 centímetros de comprimento e 1,5 centímetros de espessura, no qual foi feito um entalhe e encaixado um pedaço de osso animal previamente aguçado. Tal objeto não tem aplicação definida, tendo como único intuito a sua utilização como arma de agressão, não tendo o arguido justificado a sua posse.
Ao ser surpreendido na posse daquela arma pelo formador BB, que lha retirou e guardou, o arguido, gritando, disse-lhe:
“se eu apanhar algum castigo à sua pala, você nem sabe do que lhe sou capaz de fazer. Eu mato-o, mas é que o mato mesmo. Eu venho aqui à sala e mato-o. Não se esqueça que eu o mato mesmo”
.
Mais se provou que o arguido conhecia as características do objeto perfurante que detinha e que construiu, bem sabendo que a mesma era suscetível de ser usado como arma de agressão e que a sua posse lhe estava vedada. Ao proferir as expressões descritas, o arguido agiu com o propósito de, com o anúncio daquele mal, direta e necessariamente, provocar medo a BB, bem sabendo que para tal aquelas eram idóneas.
Mais resulta que, em face das noções supra mencionadas, a objecto que o arguido detinha, instrumento construído exclusivamente para agressão, é arma da classe A.
No que se reporta ao crime de ameaça, verificamos que a expressão dirigida pelo arguido ao ofendido, é apta a preencher o tipo legal do crime de ameaça, porque apta a provocar naquela receio e temor. Com efeito ao mencionar que
“se eu apanhar algum castigo à sua pala, você nem sabe do que lhe sou capaz de fazer. Eu mato-o, mas é que o mato mesmo. Eu venho aqui à sala e mato-o. Não se esqueça que eu o mato mesmo”
, quer com estas expressões significar que o matava.
Cumpre, então, analisar se, quanto à expressão proferida,
in casu
se verifica a agravação do tipo legal do crime de ameaça prevista no artº 155º, nº 1, alíneas a) e c) do Cód. Penal e também constante da acusação deduzida.
O artº 155º, nº 1, alíneas a) e c) do Cód. Penal, estabelece que a conduta é agravada, quando ocorram as seguintes circunstâncias:
“quando os factos previstos nos artigos 153º a 154º-C forem realizados: a) por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos; (…) c) contra uma das pessoas referidas na alínea l) do nº 2 do artigo 132º, no exercício das suas funções ou por causa delas; (…) o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, nos casos dos artigos 153º e 154º-C, com pena de prisão de 1 a 5 anos, nos casos do nº 1 do artigo 154º e do artigo 154º-A (…)”
.
A alínea l) do art.º 132º do Cód. Penal estipula que é susceptível de revelar a especial censurabilidade e perversidade a circunstância de o agente
“praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das regiões autónomas, Provedor de Justiça, governador civil, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ou ministro de culto religioso, jornalista, juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas”
.
Perante a matéria dada como provada, verificamos que a conduta do arguido preenche a agravação do tipo legal de crime em análise, pois aquele ao proferir as expressões supra mencionadas, está a anunciar que a mata e proferiu tais expressões ciente que o ofendido era formador no estabelecimento prisional e por causa do desempenho dessas funções, integrando o crime na forma agravada.
Incorre, assim, o arguido, na prática de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelos artºs 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alíneas a) e c), ambos do Cód. Penal e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 2º, nº 5, alínea g), 3º, nº 2, alínea g) e 86º, nº 1, alínea d) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23/02.
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VI - Determinação da pena concreta aplicável
Para determinação da medida da pena aplicável no caso concreto impõe-se, em primeiro lugar, considerar a moldura penal prevista pelo tipo legal respectivo. O crime de ameaça agravada, p. e p. pelo artº 155º, nº 1, alíneas a) e c), do Cód. Penal, é punível com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias e o crime de detenção de arma proibida, previsto pelo artº 86º, nº 1, alínea d) da Lei nº 5/2006, de 23/02, é punível com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.
O arguido encontra-se acusado da prática destes crimes como reincidente, pelo que a demonstrarem-se os requisitos da reincidência, nos termos do artº 76º do mesmo Cód. Penal o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado, sendo que a agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores.
Assim, a moldura penal a considerar em caso de reincidência será de 1 (um) mês e 10 (dez) dias de prisão a 2 anos de prisão ou pena de multa de 13 (treze) a 240 (duzentos e quarenta) dias, quanto ao crime de ameaça agravada e de 1 (um) mês de 10 (dez) dias de prisão a 4 (quatro) anos de prisão ou pena de multa de 13 (treze) a 480 (quatrocentos e oitenta) dias, quanto ao crime de detenção de arma proibida.
Uma vez fixada a moldura penal que cabe em abstracto ao caso, temos que encontrar a pena que concretamente caberá à conduta do arguido.
A determinação da pena em sentido estrito tem como princípios regulativos essenciais a culpa e a prevenção, conforme o preceituado no art.º 71º, n.º 1 do Código Penal, sendo que o modo como estes princípios regulativos irão influir no processo de determinação do
quantum
da pena é determinado pelo programa político-criminal em matéria dos fins das penas, que, resumidamente, se reconduz a dois postulados ou pressupostos: o de que as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e na reintegração do agente na comunidade, e o de que toda a pena há-de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta cuja medida não poderá em caso algum ultrapassar (art.º 40º, nºs 1 e 2 do Código Penal).
As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. A culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas.
Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve, em toda a sua extensão, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade.
Como factores concretos da medida da pena, deverão ser levadas em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (princípio da proibição da dupla valoração), deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente os factores elencados no art.º 71º, n.º 2 do Código Penal.
Consideramos, em primeiro lugar, os factores que relacionam com a execução do facto e que abrangem o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência e ainda os sentimentos manifestados na preparação do crime e os fins e motivos que o determinaram (art.º 71º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do Cód. Penal).
Em segundo lugar, há que considerar os factores relativos à personalidade do agente, como sejam as suas condições pessoais e económicas, a sensibilidade à pena e susceptibilidade de ser por ela influenciado ou as qualidades da personalidade manifestadas no facto (alíneas d) e f) do n.º 2 do art.º 71º citado).
Por último, o art.º 72º, n.º 2, alínea e) põe em relevo os factores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime.
Em matéria de escolha da pena, rege o princípio geral da preferência pela pena alternativa não privativa da liberdade, a qual deverá ser aplicada sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, se revele adequada e suficiente á realização das finalidades da punição, de acordo com o disposto no art.º 70º do Código Penal.
Assim, desde que imposta ou aconselhada, face às exigências de prevenção especial de socialização, só não será de aplicar a pena alternativa não detentiva se a pena de prisão se mostrar indispensável para que não seja irremediavelmente posta em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.
No caso concreto a pena de multa não satisfaz de forma suficiente e adequada as finalidades da punição, designadamente as exigências de reprovação e prevenção do crime, estando, pois, indicada uma pena de prisão. Com efeito, como decorre dos factos assentes, o arguido já tem antecedentes criminais pela prática de diversos tipos legais de crime, num total de 10 condenações, com uma condenação pela prática de um crime de detenção de arma proibida em pena de prisão efectiva, persistindo com a prática deste crime, mesmo após já sido condenado em pena de prisão efectiva.
No que se refere à medida concreta da pena, esta é fixada de acordo com os critérios gerais do art.º 71º do Cód. Penal, com base nas seguintes directivas já enunciadas: o princípio da culpa que funciona como limite máximo da pena, as exigências de prevenção geral positiva ou de integração que funcionam como limite mínimo da pena e as exigências de prevenção especial de ressocialização que, dentro dos limites máximos e mínimos referidos, actua, determinando, em último termo, a medida da pena.
Ora, no caso concreto verifica-se que levando em conta a intensidade do dolo, no que se refere quer ao tipo-de-ilícito, quer ao tipo-de-culpa, tal intensidade é elevada, pois o arguido agiu com dolo directo.
No que diz respeito à ilicitude dos factos esta é também elevada, por referência ao bem jurídico violado e às consequências emergentes da conduta ilícita, pois estamos perante uma conduta que se traduz numa ofensa à liberdade de decisão e de acção e uma conduta adequada a perturbar a convivência social pacífica, traduzindo-se num comportamento potencialmente perigoso, em particular contra a vida e integridade física.
As exigências de prevenção geral positiva são de um nível bastante elevado, tendo em conta a necessidade de desincentivar eficazmente a comissão de crimes dos tipos daqueles que nos autos estão em consideração.
As exigências de prevenção especial são muito elevadas, pois do CRC junto aos autos constata-se que a arguido tem diversas condenações pela prática de diversos tipos legais de crime, tendo uma condenação pela prática de um crime de detenção de arma proibida em pena de prisão efectiva, demonstrando uma personalidade desconforme ao direito, sendo que as anteriores condenações, algumas das quais em pena de prisão efectiva não o demoveram da prática de crimes em geral e destes em particular.
Vem o arguido acusado da prática destes crimes como reincidente.
Dispõe o artº 75º, nº 1 do Cód. Penal, que
“é punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime”
, estabelecendo o artº 76º do mesmo Diploma que, em caso de reincidência, o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado, sendo que a agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores.
São, assim, pressupostos da reincidência os seguintes:
a) Formais: o cometimento de um crime doloso que deva ser punido com prisão efetiva superior a seis meses; a condenação anterior, com trânsito em julgado, de um crime doloso, em pena de prisão superior a seis meses e o não decurso de mais de 5 anos entre o crime anterior e a prática do novo crime.
b) Material: que se mostre que, segundo as circunstâncias do caso, a condenação ou condenações anteriores não serviram ao agente de suficiente advertência contra o crime.
O preenchimento do pressuposto material tem de assentar em factos concretos, não bastando a mera menção ao certificado de registo criminal. Torna-se necessário explicitar, designadamente da motivação para a prática dos factos, de ausência voluntária de hábitos de trabalho e sobre a personalidade do arguido, que permitam concluir que entre os crimes pelos quais cumpriu prisão e o crime em apreciação, existe uma íntima conexão, nomeadamente a nível de motivos e forma de execução, relevantes do ponto de vista da censura e da culpa, que permita concluir que a reiteração radica na personalidade do arguido, onde se enraizou um hábito de praticar crimes, e a quem a anterior condenação em prisão efetiva não serviu de suficiente advertência contra o crime, e não um simples multiocasional na prática de crimes em que intervêm causas fortuitas ou exógenas (cfr. Ac. Tribunal Relação de Coimbra de 30/05/2012,
in
www.dgsi.pt
).
No caso dos autos, o pressuposto material da reincidência encontra-se alegado tendo por referência as condenações constantes do CRC do arguido e foi dado como provado que o arguido, para além de noutros processos, o arguido foi condenado nos seguintes processos em penas de prisão efetiva superior a 6 meses: no processo 1519/11...., do Juízo de Média Instância Criminal de Sintra, por sentença de 09/04/2014, transitada em julgado em 19/05/2014, pela prática, em 29/09/2011, de um crime de furto qualificado, na pena de 1 ano de prisão; no processo 345/15...., do Juízo Local Criminal de Alenquer, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, por sentença de cúmulo jurídico de penas de 13/12/2018, transitada em julgado em 11/02/2019, pela prática, em 31/08/2013, de um crime de detenção de arma proibida, e pela prática, em 30/05/2015, de um crime de dano qualificado, na pena única de 1 ano e 8 meses; no processo de Cúmulo Jurídico 2850/14...., do Juízo Central Criminal de Sintra do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, por acórdão de 21/04/2015, transitado em julgado em 22/05/2015, cumulando as penas aplicadas nos processos 1029/11.... e 1519/11...., pela prática de um crime de roubo qualificado em 29/09/2011, dois crimes de roubo qualificado em 03/10/2011, dois crimes de roubo qualificado em 04/10/2011, seis crimes de roubo qualificado em 05/10/2011, três crimes de roubo em 06/10/2011, dois crimes de roubo qualificado em 14/10/2011, um crime de roubo e um crime de roubo tentado em 26/10/2011, um crime de furto simples e um crime de furto qualificado em 27/10/2011, um crime de roubo qualificado em 27/10/2011, um crime de furto qualificado em 13/11/2011, na pena única de 16 anos de prisão.
Em cumprimento das penas de prisão em que foi condenado, o arguido esteve preso nos seguintes períodos: entre 19/11/2011 até 04/07/2014, à ordem do Processo 1029/11....; entre 04/07/2014 e 23/12/2015, à ordem do Processo 843/01....; entre 23/12/2015 e 09/06/2023, à ordem do Processo 2850/14.... e desde 09/06/2023 até ao presente, à ordem do Processo 345/15.....
Também o pressuposto material foi alegado e dado como provado, pois não obstante as condenações supra-referidas, e estar ainda a cumprir pena de prisão, à data da prática dos factos acima descritos, o arguido não tinha interiorizado a advertência contida naquelas condenações, reincidindo na prática de ilícitos.
Pelo exposto, será o arguido condenado como reincidente, dado que a pena concreta a aplicar será sempre de prisão efectiva e superior a seis meses.
Assim, nos termos do art.º 71º do Cód. Penal, aplica-se ao arguido uma pena de 6 (seis) meses de prisão pela prática de um crime de ameaça agravado e 1 (um) ano de prisão pela prática do crime de detenção de arma proibida.
Ora, tendo o arguido praticado dois crimes importa fazer referência ao concurso de crimes. Para determinar a medida da pena que caberá ao concurso, em primeiro lugar, o tribunal tem de determinar a pena que concretamente caberia a cada um dos crimes do concurso, como se de crimes singulares se tratasse para tanto seguindo o procedimento normal de determinação da pena. No presente caso encontramos, então, uma pena de 6 (seis) meses de prisão e uma pena de 12 (doze) meses de prisão para cada um dos crimes que o arguido praticou.
A moldura penal do concurso terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (art.º 77º, n.º 2 do Cód. Penal). Desde logo, porém, tem limites absolutos, pois o máximo da moldura penal do concurso não poderá ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa. Quanto ao limite mínimo, também se encontra estabelecido no n.º 2 do mesmo art.º 77º, e considera-se a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
No presente caso, aplicando este critério, encontramos uma moldura penal situada entre os 12 (doze) e os 18 (dezoito) meses de prisão, pelos crimes ameaça agravada e detenção de arma proibida.
Estabelecida a moldura penal do concurso importa determinar, dentro dos limites daquela, a medida da pena conjunta do concurso, que se encontrará em função das exigências gerais de culpa e de prevenção. Neste caso, a lei fornece ao tribunal, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art.º 71º, n.º 1, um critério especial estabelecido no n.º 1 do art.º 77º que estabelece que na determinação concreta da pena referente ao concurso serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Assim, afigura-se-nos adequado e proporcional aplicar ao arguido uma pena de 15 (quinze) meses de prisão, resultante do concurso dos crimes de ameaça agravada e detenção de arma proibida.
O artº 50º do Código Penal dispõe que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 (cinco) anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias dele, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, sendo que o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.
No caso concreto, tendo em atenção que o arguido já tem um elevado número de condenações (10), entre eles, por crimes de idêntica natureza ao que está em consideração nos autos, demonstrando uma personalidade desvaliosa e indiferente às anteriores condenações que lhe foram aplicadas, incluindo as penas de prisão efectiva, persistindo com este tipo de conduta, consideramos que a suspensão da pena não se mostra adequada no caso concreto, dado que não é possível efectuar um juízo de prognose favorável no sentido de que a aplicação desse instituto surtisse o efeito desejado, nomeadamente dissuadindo o arguido da prática de futuros crimes.
Por todo o exposto, afigura-se-nos adequado e proporcional aplicar ao arguido AA a pena única de 15 (quinze) meses de prisão, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artºs 153º, nº 1 e 155º, nºs 1, alíneas a) e c), ambos do Código Penal e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs 2º, nº 5, alínea g), 3º, nº 2, alínea g) e 86º, nº 1, alínea d) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23/02.
*
Dispõe o art° 109° n° 1 do Código Penal que
“são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem o sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”
.
No caso dos autos, a arma apreendida e descrita nos factos provados, pela sua natureza, oferece o risco de ser utilizada para a prática de factos ilícitos típicos, motivo pelo qual se declara perdida a favor do Estado.».
3. - APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1- - Os pontos 2, 3, 4, 5 e 6 da factualidade provada foram incorretamente julgados?
O arguido, ora recorrente, não se conforma com a matéria de facto dada como provada, decorrendo de forma clara da alegação recursiva que pretende impugnar a mesma.
A impugnação da decisão da matéria de facto em sede de recurso pode processar-se por uma de duas vias: mediante a arguição de vício de texto prevista no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal – dispositivo que consagra uma forma de reexame da matéria de facto mais restrita, comummente designada de
revista alargada
– ou através de recurso amplo ou efetivo da matéria de facto, previsto no artigo 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma, a denominada a
impugnação ampla da decisão da matéria de facto
.
Na primeira hipótese, a discordância do recorrente traduz-se na invocação de vício(s) da decisão recorrida contemplado(s) no artigo 410º, n.º 2, e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; optando pela segunda hipótese, o recorrente terá de socorrer-se de provas contidas nos autos e examinadas em audiência, que deverá especificar nos moldes prescritos no artigo 412º, n.ºs 3 e 4.
Concretizando melhor:
Estatui o artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal que
«[m]esmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.»
Os elencados vícios constituem defeitos estruturais e intrínsecos da decisão, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte patenteada pelo respetivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando, por isso, excluída a possibilidade de consideração de outros elementos extrínsecos ou exógenos, ainda que constem do processo, emergentes de prova constituída ou advinda do próprio julgamento
[3]
.
No âmbito da análise dos vícios decisórios, contrariamente ao que sucede com a
impugnação ampla da matéria de facto
, o tribunal de recurso não aprecia a matéria de facto – no sentido da
reapreciação da prova
–, limitando a sua atuação, num exercício de exegese hermenêutica, à deteção dos vícios que a decisão recorrida evidencia e, não sendo possível saná-los, determina a remessa do processo para novo julgamento, em consonância com o preceituado no artigo 426º do Código de Processo Penal.
A matéria de facto que padeça dos sobreditos vícios está «(…) ostensivamente divorciada da realidade das coisas, quer por ser insuficiente, quer por ser contraditória, quer por erroneamente apreciada»
[4]
, razão pela qual, ainda que não sejam invocados, são de conhecimento oficioso – cfr. acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95
[5]
.
Por seu turno, dispõe o artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal:
“3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Trata-se de mecanismo adequado a tentar reverter o erro de julgamento e obter a modificação da decisão sobre a matéria de facto nos termos consentidos pelo artigo 431º, al. b), do Código de Processo Penal. É a denominada
impugnação ampla
, visando uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal
a quo
relativamente aos concretos “pontos de facto” que o recorrente considera incorretamente julgados, através da (re)avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.
O recurso interposto com esse desiderato poderá ter como fundamento:
- A atribuição, pelo tribunal recorrido, aos meios de prova convocados como suporte da decisão, de conteúdo diverso daquele que efetivamente têm ou daquele que foi realmente produzido em audiência; ou
- A violação de critérios legais de valoração e apreciação da prova (incorporada nos autos ou produzida oralmente em audiência): pela valoração de meios de prova ilegais ou nulos; pela violação de critérios de apreciação da prova vinculada (vg. prova documental e pericial); pela violação de princípios gerais de apreciação da prova, designadamente o princípio da livre apreciação previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal e o princípio
in dubio pro reo
[6]
.
Contudo, cumpre sublinhar que, como vem reiteradamente assinalando a doutrina
[7]
e a jurisprudência
[8]
, nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento sobre a matéria impugnada, antes constituindo um mero remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros
in judicando
ou
in procedendo
que o recorrente deverá expressamente indicar.
Por isso, recai sobre o recorrente o ónus de proceder a uma tríplice especificação conforme estipulado no artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal: o
s concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados
[al. a)];
as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida
[al. b)];
as provas que devem ser renovadas
[al. c)].
A especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
Por seu turno, a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado
[9]
.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430º do mesmo diploma).
Havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo aquele indicar concretamente as passagens [das gravações] em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes, em consonância com o estabelecido nos nºs 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal. Na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações, bastará, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão n.º 3/2012
[10]
,
«a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente».
Volvendo ao caso dos autos, lida a motivação do recurso e as conclusões desta extraídas, conquanto o recorrente comece por aludir ao «erro notório na apreciação da matéria de facto», constata-se que o mesmo não pretende convocar o vício decisório de
erro notório na apreciação da prova
, previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, por reporte ao texto da sentença, mas, antes, ao erro de julgamento quanto aos pontos 2, 3, 4, 5 e 6 da factualidade provada, com fundamento na incorreta valoração dos meios de prova que indica, pelas razões que aduz, o que nos remete para a impugnação ampla da matéria de facto, nos termos delineados no artigo 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
O recorrente indicou os concretos pontos da matéria de facto sobre os quais julga ter existido erro de julgamento e mencionou as concretas provas que, no seu entender, impõem decisão diversa da recorrida, procedendo para o efeito à indicação das concretas passagens – que transcreveu – das suas declarações e do depoimento da testemunha BB, explicitando o seu raciocínio, observando, assim, o antedito ónus de especificação.
Convém, porém, ter presente que na tarefa de reapreciação da prova pelo tribunal de recurso intrometem-se necessariamente
fatores como a ausência de imediação e da oralidade – dado que o “contacto” com as provas se circunscreve ao que consta das gravações –, sendo que, como é sobejamente sabido, a imediação e a oralidade constituem princípios estruturantes do direito processual penal português. Por isso, há que dar a devida relevância à perceção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador do tribunal
a quo
. Como decorrência, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode censurá-la se resultar demonstrado que tal opção é de todo em todo inadmissível face às regras da lógica e da experiência comum.
Outrossim, importa sinalizar que o tribunal de segunda instância só poderá alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente
impuserem
decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem, ou seja, se resultar demonstrada à saciedade a imperatividade da modificação do decidido.
Em suma, o tribunal de recurso só pode (e deve) alterar aquela decisão se da análise que faz das provas documentadas indicadas pelo recorrente, em concatenação com as regras da experiência comum e da lógica, concluir que o juízo probatório levado a cabo pelo tribunal
a quo
é, à luz daqueles elementos, insustentável, indefensável (porque decidiu claramente sem prova ou em indiscutível contradição com as preditas regras), revelando-se, por isso, imperioso decidir de forma distinta. Mas, se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a “tornam necessária” ou racionalmente “obrigatória”, então deve manter a decisão da primeira instância tal como está
[11]
.
Retornando ao caso dos autos, analisemos se assiste razão ao recorrente.
Consigna-se que, para melhor perceção dos argumentos aduzidos pelo recorrente e dos fundamentos da motivação do tribunal
a quo
no que respeita à sua convicção, procedemos à audição integral das declarações prestadas em audiência de julgamento pelo arguido e pela testemunha BB [gravações disponíveis no sistema informático
citius – media studio
], pois só assim se consegue perceber o contexto em que se inserem os excertos indicados e transcritos pelo recorrente e se existem outros que os contrariem ou, até, infirmem, consabido que é que os relatos raramente são unívocos desde o início até ao fim.
Posto isto, vejamos:
O recorrente insurge-se, desde logo, contra o facto dado como provado sob o ponto 2, com o seguinte teor:
«
2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, pelas 10 horas, no interior de sala de formação aí existente, o arguido tinha na sua posse um objeto perfurante, que construiu, com as seguintes características: instrumento artesanal e de construção manual com 21,5 centímetros de comprimento, vulgarmente conhecido na gíria da população prisional como “chino”, construído a partir de um pedaço de madeira com cerca de 16 centímetros de comprimento e 1,5 centímetros de espessura, no qual foi feito um entalhe e encaixado um pedaço de osso animal previamente aguçado.»
Sustenta o recorrente, em síntese, que resulta dos excertos que transcreveu, quer das suas declarações, quer do depoimento prestado pela única testemunha presente, BB, que foram “apreendidos” dois objetos, e não um objeto perfurante, com 21,5 centímetros de comprimento, vulgarmente conhecido na gíria da população prisional como “chino”, que não tinha em sua posse um artefacto finalizado com as características descritas naquele ponto 2 dos factos provados, mas sim dois objetos, nomeadamente, um pedaço de madeira e um pedaço de osso, pelo deverá o referido facto ser alterado passando a constar que:
2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, pelas 10 horas, no interior de sala de formação aí existente, o arguido tinha na sua posse um osso de animal e um pedaço de madeira, no qual foi feito um entalhe apto a ser encaixado um pedaço de osso animal previamente aguçado.
Apreciando, dir-se-á que da concatenação da globalidade das declarações prestadas pelo recorrente e do depoimento prestado pela testemunha BB com a prova documental constante dos autos conclui-se que assiste razão ao primeiro.
Efetivamente, a testemunha e o recorrente convergem quanto ao facto de a primeira ter intercetado o segundo quando este efetuava, no torno, um entalhe num pedaço de madeira com o objetivo de nele encaixar um osso pontiagudo, previamente aguçado, que tinha na mão, o que resulta igualmente do auto de notícia/participação de fls. 7 dos autos.
É inquestionável que se tratava, então, de duas peças separadas. E a tal conclusão não obsta o teor do relatório de exame de fls. 42, efetuado pela PSP, quando refere que
«Foi presente a exame um instrumento artesanal e de construção manual (Foto 1), apreendido no Estabelecimento Prisional de Coimbra, vulgarmente conhecido na gíria da população prisional, como "chino", construído a partir de um pedaço de madeira com cerca de 16 cm de comprimento e cerca de 1,5 cm de espessura, no qual foi feito um entalhe e encaixado um pedaço de osso animal previamente aguçado, de forma a tornar este objeto com cerca de 21,5 cm de comprimento total, num objeto perfurante»
, e do qual constam duas fotografias do objeto com as duas sobreditas peças encaixadas, a primeira da vista geral e a segunda da ponta perfurante.
Com efeito, as duas peças terão sido unidas numa só para verificar se o osso aguçado encaixava no entalhe que o recorrente estava a fazer com vista a construir uma espécie de faca, tal como o próprio recorrente admitiu, tendo assim permanecido após e sido apresentado a exame.
Destarte,
impõe-se a modificação da redação do ponto 2, a qual passará a ser a seguinte
:
2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, pelas 10 horas, no interior de sala de formação aí existente, o arguido fez um entalhe um pedaço de madeira, com cerca de 16 centímetros de comprimento e 1,5 centímetros de espessura, apto para nele encaixar um pedaço de osso animal previamente aguçado, com aproximadamente 5,5 cm de comprimento, que tinha na sua posse.
O recorrente sustenta que também o ponto 3 da factualidade provada – «3. Tal objeto não tem aplicação definida, tendo como único intuito a sua utilização como arma de agressão, não tendo o arguido justificado a sua posse» – se encontra incorretamente julgado porquanto o depoimento da testemunha e as suas declarações, cujos excertos salienta, se mostram alinhados quanto à existência de tais objetos que, diferentemente do que se deu como provado, não constituirão uma arma, nem tinham, no estado em que se encontravam, a virtualidade de serem utilizados como tal, pelo que deve passar a ter a seguinte redação:
“3. A posse de tais objetos teria como único intuito a sua utilização para preparar um utensílio com características de uma arma utilizada para intimidação”
.
É evidente que há que coadunar o ponto n.º 3 com a alteração do ponto n.º 2, com o qual está interligado, quanto à existência de dois objetos que se encontravam separados, ainda que o recorrente pretendesse uni-los, como o próprio admitiu. Todavia, o que tem relevância para o objeto do processo é a natureza perfurante do osso que havia sido aguçado para o efeito e a sua aptidão para ser usado como instrumento de agressão, ainda que o seu manuseio se tornasse mais fácil e, eventualmente, mais eficaz quando encaixado no entalhe do pedaço de madeira.
Apesar de o recorrente reiteradamente referir que a sua intenção era apenas ameaçar [naturalmente, com a parte do osso aguçado] outros reclusos que já o haviam ameaçado, agredido e roubado, não é crível, em face das regras da experiência comum, que não o destinasse, essencialmente, a ser usado como instrumento de agressão, fosse em ação de defesa, de retaliação ou de outra natureza. Mas, ainda que apenas fosse para intimidação, sempre seria de considerar que a sua posse era injustificada porquanto não tinha um propósito lícito. Contudo, como se assinalou, ressuma das declarações do próprio recorrente na sua globalidade, e não apenas dos excertos que transcreveu no recurso, que, atentas as caraterísticas intrínsecas do osso aguçado e o contexto de vivencia prisional em que aquele o fez, o destinava a ser usado como meio de agressão.
Como decorrência, harmonizando o
ponto 3 dos factos provados
com o ponto 2, aquele
passará a ter a seguinte redação
: 3. Tais objetos não têm aplicação definida, tendo como único intuito a utilização do osso aguçado como arma de agressão, não tendo o arguido justificado a sua posse.
Mais à frente, sustenta o recorrente que deverá ser alterada a redação do facto constante do ponto 5 em conformidade, considerando o anteriormente exposto quanto aos factos 2 e 3, nomeadamente, no que tange à existência de dois objetos distintos, e não uma arma finalizada.
Tal ponto tem o seguinte teor: «5. O arguido conhecia as características do objeto perfurante que detinha e que construiu, bem sabendo que a mesma era suscetível de ser usado como arma de agressão e que a sua posse lhe estava vedada.»
Ora, na senda do que vimos explicando, a concretização de que se tratava de dois objetos que se encontravam separados, mas que se destinavam a ser unidos pelo recorrente, apenas foi determinada por uma questão de precisão factual em consonância com a prova produzida, sem qualquer repercussão prática porque o que releva para o apuramento da responsabilidade criminal do recorrente no que tange ao crime de detenção de arma proibida é o pedaço de osso aguçado, de natureza perfurante, e a sua aptidão para ser usado como arma de agressão, do que aquele, aliás, estava ciente como ressuma das suas declarações –
“…estou bastante arrependido pelo facto cometido, de ter esse bocadinho de osso, …”
. Assim, ainda que os pontos 2 e 3, com a redação que ora lhes foi dada, aludam a dois objetos, o ponto 5 dos factos provados, reportando-se ao “objeto perfurante”, mostra-se consonante com aqueles, referindo-se, precisamente, ao objeto criminalmente relevante – o osso aguçado – ali mencionado.
Assim, apenas há que proceder à correção do lapso de escrita detetado – em vez de “a mesma”, deveria ter-se escrito “o mesmo”.
A redação do ponto 5 passará, pois, a ser a seguinte
: 5. O arguido conhecia as características do objeto perfurante que detinha e que construiu, bem sabendo que o mesmo era suscetível de ser usado como arma de agressão e que a sua posse lhe estava vedada.
Finalmente, considera o recorrente que houve erro de julgamento quanto à matéria de facto também quanto ao vertido nos pontos 4 e 6 dos factos provados, que têm o seguinte teor:
«4. Ao ser surpreendido na posse daquela arma pelo formador BB, que lha retirou e guardou, o arguido, gritando, disse-lhe:
“se eu apanhar algum castigo à sua pala, você nem sabe do que lhe sou capaz de fazer. Eu mato-o, mas é que o mato mesmo. Eu venho aqui à sala e mato-o. Não se esqueça que eu o mato mesmo”
.
6. Ao proferir as expressões descritas, o arguido agiu com o propósito de, com o anúncio daquele mal, direta e necessariamente, provocar medo a BB, bem sabendo que para tal aquelas eram idóneas.»
Com base nas suas declarações e no depoimento prestado pela testemunha BB, que transcreveu nos pontos 27 e 28, respetivamente, da motivação do recurso, o recorrente manifesta a sua perplexidade perante a circunstância de, considerando a constante presença de vários reclusos, formadores e guardas, durante os períodos em que decorrem as formações, não tenha sido possível indicar uma testemunha que tivesse ouvido as expressões proferidas, e afirma que não é crível que a testemunha BB lhe tenha conseguido retirar pacificamente os objetos, tendo oportunidade de os guardar no seu gabinete e, posteriormente regressado para junto dos formandos onde aquele se encontrava, para só nesse momento proferir as expressões ameaçadoras, pois, naquele contexto, de acordo com um “juízo de causalidade adequada”, reagiria de imediato, quer fosse para evitar que tais objetos lhe fossem retirados, quer fosse para proferir as ameaças que, alegadamente, proferiu.
Mais alega o recorrente que, conforme decorre do excerto do depoimento da testemunha BB transcrito no ponto 40 da motivação, quando este foi questionado se teve receio pela sua integridade física, referiu que sentiu receio, como sempre sente, apesar de o arguido nada ter demonstrado que justificasse esse receio e que, «a aceitar-se que o arguido ameaçou o ofendido nos termos dados como provados, ter-se à de aceitar também, que a própria testemunha não acreditou na possibilidade do perigo ou mal com que foi ameaçado se vir a materializar, face às suas expressivas declarações», que transcreveu do ponto 41 da motivação.
Conclui que os pontos 4 e 6 deveriam ser considerados não provados.
Não assiste, porém, razão ao recorrente, que apenas transcreveu os excertos das suas declarações e do depoimento da testemunha BB que eram favoráveis à sua tese. Contudo, ouvido na íntegra o depoimento de BB, constata-se que este relata, de forma objetiva, escorreita e coerente a dinâmica dos factos, revelando-se seguro quanto ao teor das expressões que o recorrente lhe dirigiu, que afirmou ter ouvido bem porque este falou alto, o que se mostra consonante com o facto de estar exaltado como a testemunha referiu e o próprio recorrente admitiu. Com efeito, nas declarações que prestou, o recorrente começou por referir
“…o senhor BB, que era o formador, já andava a implicar comigo há algum tempo”
e
“… disse algo que não me agradou (…) fiquei indignado ao ouvir aquilo….”
, só depois relatando a sua versão do sucedido. Considerando tal contexto, e em face da intervenção do BB, ao retirar ao arguido os objetos, privando-o dos mesmos, e atentas as previsíveis repercussões, designadamente, disciplinares, daí decorrentes, as expressões proferidas pelo recorrente e o propósito com que o fez exarados como provados surgem como perfeitamente verosímeis. E é isso, precisamente, que está plasmado nos pontos de facto em causa, nada se referindo sobre como o BB se sentiu em consequência de tais expressões.
Impõe-se, porém, harmonizar a redação do
ponto 4
com o decidido quanto aos pontos de facto antecedentes e expurgá-lo do termo conclusivo “arma”,
passando a ter a seguinte redação
: 4. Ao ser surpreendido na posse daqueles objetos pelo formador BB, que lhos retirou e guardou, o arguido, gritando, disse-lhe:
“se eu apanhar algum castigo à sua pala, você nem sabe do que lhe sou capaz de fazer. Eu mato-o, mas é que o mato mesmo. Eu venho aqui à sala e mato-o. Não se esqueça que eu o mato mesmo”
.
A redação do ponto 6 permanece inalterada.
Procede, pois, parcialmente a impugnação da matéria de facto.
3.2 - O arguido/recorrente deve ser absolvido do crime de ameaça agravada e do crime de detenção de arma proibida?
Conquanto a alegação recursiva não seja muito clara, depreende-se da sua análise global, concatenada com o pedido formulado a final, que o recorrente entende que deve ser absolvido do crime de ameaça porque, na sua ótica, não deveriam ser considerados provados os factos descritos nos pontos 4 e 6 da factualidade provada.
Todavia, como decorre da análise da questão anterior, apesar da alteração da primeira parte do ponto 4, esta reporta-se apenas ao facto de o recorrente ter sido surpreendido na posse de dois objetos, em vez de um, que é inócua, mantendo-se, porém, o que era relevante – que aquele proferiu as expressões em causa no circunstancialismo que haviam sido dados como provados.
O recorrente não coloca em crise a subsunção jurídico penal de tais factos efetuada pelo tribunal
a quo
, tendo pugnado tão somente pela consideração dos mesmos como não provados e, consequentemente, pela absolvição do crime a que respeitavam.
Tendo soçobrado a pretensão do recorrente no que respeita àqueles factos, fica irremediavelmente prejudicada a visada absolvição do crime de ameaça.
Já no que concerne ao crime de detenção de arma proibida, o recorrente ancora a pretensão de absolvição do mesmo na modificação da matéria de facto provada no sentido que propugnou e na argumentação de que, atenta essa alteração, não se pode considerar que os objetos apreendidos consubstanciem arma proibida.
Concretizando melhor, alega o recorrente, em síntese, que os objetos apreendidos, no mesmo momento, mas com existências individuais, eram um osso e um bocado de madeira; que o artigo 3º n.º 2 al. g) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº5/2006, de 23/02, recorre à terminologia “construídos” e não em construção, resultando do artigo 86.º n.º 1 al. d), do citado diploma legal, as expressões “
quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão (…) outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão
”, pelo que é evidente que a verdadeira questão radicará no elemento diferenciador do instrumento já construído, daquele que está ainda em processo de construção e finalização; que à luz daquele diploma, não se permitirá classificar um bocado de madeira e um bocado de osso (ainda que o objetivo fosse a criação de um instrumento que pudesse ser utilizado como arma [de intimidação, como invoca]) como preenchendo o conceito legal de arma proibida e, nessa medida, não poderá ser punido pela posse daqueles objetos.
Ora, pese embora a pretensão do recorrente de mutação do teor dos pontos 2, 3 e 5 tenha tido parcial acolhimento, não é de molde a ter repercussão na subsunção jurídico penal efetuada neste âmbito.
Com efeito, o recorrente elabora o seu raciocínio sobre a premissa de que o pedaço de madeira e o osso aguçado apenas poderiam ser usados como arma de agressão se já estivessem acoplados um ao outro, mas como não estavam, embora fosse esse o seu objetivo, não formavam, ainda, um instrumento construído, mas antes em construção.
Todavia, assim não é, pois o que tem virtualidade de ser usado como meio de agressão, pela sua natureza perfurante e/ou cortante, é o osso pontiagudo, e não o pedaço de madeira no qual aquele iria encaixar, servindo como cabo. E aquele osso já havia sido aguçado, mostrando-se pronto a usar e a cumprir a função visada pelo recorrente.
Como assinala o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto no seu parecer «aquele osso, tendo por ele sido previamente aguçado, constituía em si mesmo, um instrumento construído exclusivamente com o fim de ser utilizado como arma de agressão, pois que foi por ação do arguido que uma simples peça anatómica animal se transformou num objeto capaz de, quando utilizado para esse fim, perfurar o corpo de outra pessoa, sendo o cabo de madeira apenas um acrescento que facilitaria a sua utilização, mas que a impedia caso não fosse aplicado, não lhe alterando as caraterísticas físicas ou funcionais.
Para melhor ilustrar a conclusão anterior, pensemos numa lâmina metálica pontiaguda que, embora se apresente normalmente encaixada num cabo de madeira, ninguém duvida que também pode ser utilizada para cortar ou espetar mesmo sem esse cabo, ainda que o seu manejo, dessa forma, possa ser mais difícil ou desconfortável – assim, quer se trate de um osso previamente aguçado, quer se trate de uma lâmina metálica pontiaguda, se construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, fazem incorrer o seu detentor no
crime de detenção de arma proibida
, p. e p. pelo art.º 86º, 1, al. d), por referência ao art.º 3º, 2, al. g), ambos da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro».
Ademais, como deflui da fundamentação de direito da sentença recorrida, nesta, apesar de se ter em perspetiva um único objeto, formado por duas partes – o pedaço de madeira e o pedaço de osso animal –, valorou-se a natureza «perfurante», que se reporta, obviamente, ao osso que tinha sido «previamente aguçado», bem como a circunstância de não ter aplicação definida, tendo sido construído com o único intuito de ser usado como arma de agressão.
Significa isto que, apesar da modificação da matéria de facto provada nos moldes
supra
determinados, permanece o facto essencial – a posse, pelo recorrente, de um pedaço de osso aguçado, construído com o único propósito de ser usado como arma de agressão – que integra a previsão de arma proibida, atenta a caraterização desta
supra
efetuada, mostrando-se preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do crime de detenção de arma proibida.
Improcede, assim, a pretensão do recorrente de ser absolvido, quer do crime de ameaça agravada, quer do crime de detenção de arma proibida.
3.3 - As penas parcelares e a pena única são excessivas?
O recorrente insurge-se, ainda, contra a pena que lhe foi irrogada, peticionando que lhe seja aplicada «uma pena adequada, proporcional e mais justa», o que aponta para a pena única, «mais próxima dos limites mínimos legais», o que indicia que se refere às penas parcelares. Aliás, se atentarmos na motivação do recurso, constatamos que o recorrente alude aos critérios de determinação da medida concreta da pena, nomeadamente, os previstos no artigo 71º do Código Penal e às molduras [abstratas] mínimas dos crimes em causa [cfr., a título exemplificativo, os pontos 54 e 64], sem qualquer referência expressa à pena única e aos critérios de determinação desta contidos no artigo 77º do Código Penal.
Em face desta ambiguidade, terá que se entender que o recorrente discorda das penas parcelares e da pena única resultante do cúmulo jurídico daquelas.
Todavia, a doutrina mais representativa e a jurisprudência, incluindo do Supremo Tribunal de Justiça
[12]
, têm sufragado o entendimento de que a sindicabilidade da medida da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respetivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos fatores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do
quantum
exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada».
[13]
Assim, o tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, «apenas quando detetar incorreções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na deteção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do
quantum
exato da pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada.»
[14]
Ora, no caso em apreço, o tribunal
a quo
explanou na sentença, de forma minuciosa e assertiva, os critérios legais que presidem às operações de escolha e determinação da medida concreta das penas parcelares, tendo em conta os pressupostos da reincidência, e da pena única, atenta a situação de concurso efetivo de crimes, tudo analisando em função da factualidade provada nos autos.
O recorrente não coloca em causa os critérios adotados pelo tribunal
a quo
, não se insurge quanto à sua condenação como reincidente, apenas discordando da valoração efetuada no que concerne às exigências de prevenção geral, alegando a falta de indicação do grau de culpa com que atuou e de outras circunstâncias fácticas, que não concretiza, divergindo da dosimetria das penas aplicadas por cada um dos crimes e da pena única.
Contudo, o recorrente apenas concretiza os motivos da sua discordância quanto àquele primeiro parâmetro, alegando que não se «pode considerar que as exigências de prevenção geral são muito elevadas considerando o sentimento comunitário de afetação de valores no caso em apreço (incidentes desta natureza ocorridos em meio prisional), cuja gravidade, para todos os efeitos, e face a este tipo de crime, não é das mais elevadas», ao contrário do entendido pelo tribunal
a quo
, que as considerou de «nível bastante elevado, tendo em conta a necessidade de desincentivar eficazmente a comissão de crimes dos tipos daqueles que nos autos estão em consideração». Afigura-se-nos, porém, que não assiste razão ao recorrente, na medida em que a sua análise é parcial, tendo em perspetiva tão somente o meio restrito [prisional] em que ocorreram os ilícitos. Mas, ainda que apenas tal fosse de considerar, sempre seriam de considerar elevadas as exigências de prevenção geral, atenta a necessidade de reafirmar a validade das normas jurídicas violadas.
No que concerne ao grau de culpa, o recorrente apenas refere que o tribunal
a quo
não o determinou, o que não corresponde à verdade porquanto foi expressamente considerado – e bem, refira-se – de
intensidade elevada
, pois aquele
agiu com dolo direto
.
O recorrente alega, outrossim, que não foram referidas pelo tribunal
a quo
«as concretas circunstâncias fácticas que justificam a aplicação de dosimetria no quíntuplo da moldura mínima, quanto ao crime de ameaça agravada, e no nônuplo da moldura mínima, quanto ao crime de detenção de arma proibida», o que também não corresponde à verdade, pois, como ressuma da análise da fundamentação da sentença neste conspecto, foram expressamente ponderadas, além da culpa e das exigências de prevenção geral já mencionadas, o grau de ilicitude dos factos e as exigências de prevenção especial, considerados de grau elevado e muito elevado, respetivamente. Aliás, o próprio recorrente afirma-se ciente de que as exigências de prevenção especial são «de índice superior, considerando precisamente as suas circunstâncias pessoais».
Destarte, não se descortinando a violação de qualquer princípio ou comando legal, mostrando-se respeitado o binómio culpa-prevenção, a fixação das penas parcelares praticamente no primeiro quarto das molduras correspondentes mostra-se bastante parcimoniosa, para não dizer benevolente. E a pena única – fixada em 15 meses –, atenta a moldura de 12 meses a 18 meses e considerando a imagem global dos factos e a personalidade evidenciada pelo recorrente, também se mostra perfeitamente proporcionada.
Em suma, afigura-se-nos inexistir fundamento para intervenção corretiva, por parte deste tribunal
ad quem,
quanto à concreta medida das penas parcelares e da pena única resultante do cúmulo jurídico daquelas.
Ante o exposto, improcede esta última questão.
*
III. – DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos
supra
expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em:
A) – Determinar que os pontos 2, 3, 4 e 5 passem a ter a seguinte redação:
2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, pelas 10 horas, no interior de sala de formação aí existente, o arguido fez um entalhe um pedaço de madeira, com cerca de 16 centímetros de comprimento e 1,5 centímetros de espessura, apto para nele encaixar um pedaço de osso animal previamente aguçado, com aproximadamente 5,5 cm de comprimento, que tinha na sua posse;
3. Tais objetos não têm aplicação definida, tendo como único intuito a utilização do osso aguçado como arma de agressão, não tendo o arguido justificado a sua posse;
4. Ao ser surpreendido na posse daqueles objetos pelo formador BB, que lhos retirou e guardou, o arguido, gritando, disse-lhe:
“se eu apanhar algum castigo à sua pala, você nem sabe do que lhe sou capaz de fazer. Eu mato-o, mas é que o mato mesmo. Eu venho aqui à sala e mato-o. Não se esqueça que eu o mato mesmo”
;
5. O arguido conhecia as características do objeto perfurante que detinha e que construiu, bem sabendo que o mesmo era suscetível de ser usado como arma de agressão e que a sua posse lhe estava vedada;
B) – No demais, confirmar a sentença recorrida.
Não é devida tributação [artigo 513º, n.º 1,
a contrario
, do Código de Processo Penal].
*
*
(Elaborado e revisto pela relatora, sendo assinado eletronicamente pelas signatárias – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
*
Coimbra, 28 de maio de 2025
Isabel Gaio Ferreira de Castro
[Relatora]
Cândida Martinho
[1.ª Adjunta]
Maria José Guerra
[2.ª Adjunta]
[1]
Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correção de erros de escrita e as alterações da formatação do texto, da responsabilidade da relatora.
[2]
Neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336.
[3]
Neste sentido, cfr. Maia Gonçalves,
Código de Processo Penal Anotado
, 15.ª edição, página 822; Germano Marques da Silva,
Curso de Processo Penal
, vol. III, 2.ª edição, Editorial Verbo, página 339; e Leal-Henriques e Simas Santos,
Recursos em Processo Penal
, 6.ª edição, 2007, Rei dos Livros, página 77.
[4]
Cfr. Conselheiro Pereira Madeira,
in
Código de Processo Penal Comentado, Almedina, págs. 1356.
[5]
Publicado no DR, I-A, de 28 de dezembro de 1995
[6]
Cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19.03.2014, processo 811/12.4JACBR.C1, acessível em
http://www.dgsi.pt
[7]
Cfr., entre outros, Damião Cunha, «O caso Julgado Parcial», 2002, pág. 37; Paulo Saragoça da Matta, A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença - Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais - pág. 253.
[8]
Vide
, neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2005 e de 09-03-2006, acessíveis em
www.dgsi.pt
[9]
Cfr. acórdão
do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11.07.2017, disponível para consulta no sítio da internet
http://www.dgsi.pt
[10]
In
D.R. n.º 77, Série I, de 18-04-2012
[11]
Neste sentido, a título meramente exemplificativo, vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015, processo 159/11.5PAPTL.G1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/03/2011, processo 288/09.1GBMTJ.L1-5, de 18/07/2013, processo 1/05.2JFLSB.L1-3, de 21/05/2015, processo 3793/09.6TDLSB.L1-9, e de 08/10/2015, processo 220/15.3PBAMD.L1-9; e do Tribunal da Relação de Évora de 19.05.2015, processo 441/10.5TABJA.E2, todos disponíveis em
www.dgsi.pt
.
[12]
Cfr. os acórdãos do STJ de 09-05-2002,
in
CJ do STJ, 2002, Tomo II, pág. 193, de 14-2-2007 (relatado por Santos Cabral), de 11-10-2007 (relatado por Carmona da Mota), 27-05-2009 e de 16-6-2010 (relatados por Raúl Borges), acessíveis em
www.dgsi.pt
[13]
Figueiredo Dias,
in
Direito Penal Português, As Consequências Jurídica do Crime, 1993, §254, p. 197. Cfr., também, Anabela M. Rodrigues, A determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade, 1995, págs. 97-106.
[14]
Cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.09.2017, disponível para consulta no sítio da internet
http://www.dgsi.pt
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TRC
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https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/93e4492109678f9780258ca7005473aa?OpenDocument
|
1,751,587,200,000
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PROCEDENTE
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2496/23.3T8VNG-C.P1
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2496/23.3T8VNG-C.P1
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GERMANA FERREIRA LOPES
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I – A ação especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento é apenas aplicável aos casos em que haja despedimento assumido formalmente como tal e individual, comunicado por escrito, e nas seguintes circunstâncias: (i) por facto que seja imputável a um concreto trabalhador; (ii) por extinção do seu posto de trabalho ou (iii) por inadaptação (cfr. alíneas c), e) e f) do artigo 340º do Código do Trabalho), sendo que «todas as demais situações continuam a seguir a forma de processo comum e ficam abrangidas pelo regime de prescrição previsto no n.º1 do artigo 337.º do Código do Trabalho» (Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 295/2009).
II – Nessa ação especial o despedimento deverá estar demonstrado, tendo por base uma comunicação/declaração inequívoca de despedimento e que tem, necessariamente, que assumir a forma escrita, pelo que será já de aplicar o processo comum quando é controvertida a questão do momento e forma de cessação do contrato (em que não está assente que haja despedimento assumido formalmente como tal).
III - O despedimento traduz-se na rutura da relação laboral, por ato unilateral da entidade patronal, consubstanciado em manifestação de vontade de fazer cessar o contrato de trabalho, sendo um ato de caráter recetício, pois, para ser eficaz, implica que o atinente desígnio seja levado ao conhecimento do trabalhador.
IV – Quando não está assente, antes sendo controvertido, que a comunicação do despedimento tenha sido feita pela entidade empregadora à trabalhadora por forma escrita, tendo sido invocado que em data anterior à cessação do contrato nunca tinha sido recebida pela trabalhadora comunicação escrita nesse sentido, para impugnar o despedimento deve o trabalhador lançar mão do processo comum, por ser o meio processual adequado.
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[
"AÇÃO ESPECIAL DE IMPUGNAÇÃO DA REGULARIDADE E LICTUDE DO DESPEDIMENTO",
"ERRO NA FORMA DO PROCESSO",
"QUESTÃO CONTROVERTIDA DE SABER SE A COMUNICAÇÃO DO DESPEDIMENTO ASSUMIU A FORMA ESCRITA"
] |
Apelação/Processo nº 2496/23.3T8VNG-C.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo do Trabalho do Porto – Juiz 1
4ª Secção
Relatora: Germana Ferreira Lopes
1ª Adjunta: Rita Romeira
2ºAdjunto: António Luís Carvalhão
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
AA
(Autora)
instaurou ação de processo comum contra
A..., Lda. (Ré)
, formulando o seguinte pedido:
“(…) deve a presente acção ser julgada provada e procedente e em consequência:
A) Ser declarado que o contrato celebrado entre Autor e Ré é um contrato sem termo por ter sido celebrado de forma verbal;
B) Ser declarado que a Ré despediu ilicitamente a Autora já que o despedimento da Autora não foi precedido de qualquer prévio processo disciplinar e/ou prévio processo com vista à extinção do posto de trabalho;
C) Condenar a R. a reconhecer a ilicitude do despedimento e condenar a R. pagar à Autora uma indemnização por antiguidade, em substituição da reintegração, nunca inferior a trinta dias de retribuição base por cada ano e fração de antiguidade;
D) Condenar a R. a emitir e entregar à A. declaração de tempo de serviço prestado, com discriminação dos anos completos de serviço e com menção discriminada do tempo de serviço prestado a crianças da faixa etária dos 03 a 5 anos, assim como menção aos anos letivos, data de início e termo de cada ano letivo, horas letivas semanais e dias de férias, com cominação de valor de multa diário por cada dia de atraso na entrega da declaração;
E) Condenar a R. a pagar à Autora uma indemnização por danos morais, em valor não inferior a € 1000,00;
F) Condenar a R. a pagar à A. juros de mora sobre as quantias supra indicadas e contados desde a citação, à taxa legal civil, e até efetivo e integral pagamento; e
G) Condenar a R. no pagamento das custas e demais encargos do processo.”
Fundamentou o peticionado, alegando, em síntese, o seguinte: a Autora foi admitida ao serviço da Ré para lhe prestar trabalho sob as suas ordens, direção e fiscalização, através de contrato de trabalho verbal, com início de funções em 5-09-2011 e a categoria de educadora de infância; em data que não consegue precisar, mas seguramente em data posterior à constante da missiva, foi comunicado pela Ré à Autora da decisão de proceder ao despedimento da Autora com data de 30-04-2022, em consequência da necessidade de extinguir o posto de trabalho, conforme decorre do documento junto e cujo conteúdo deu como integralmente reproduzido (doc. 7); no dia 3-05-2022, a Ré entregou à Autora o modelo para fundo de desemprego; na data da cessação do contrato, em 30-04-2022, a Autora auferia uma retribuição base de € 947,27; em 30-04-2022, a Ré apenas pagou à Autora a quantia de € 2.311,22 referente a férias não gozadas, subsídio de férias e subsídio de Natal; aquando da cessação do contrato de trabalho e pese embora a solicitação da Autora nesse sentido, a Ré não lhe entregou qualquer declaração do tempo de serviço.
Sustentou, em substância, que o despedimento da Autora configura um despedimento ilícito já que não foi precedido de qualquer processo disciplinar e não se encontram observados os requisitos formais e substanciais exigidos por lei para o despedimento por extinção do posto de trabalho.
O documento junto com a petição inicial como documento 7, ao qual a Autora alude e dá como reproduzido, tem o seguinte teor:
Na diligência de audiência de partes (refª citius 447312867), sem obtenção de acordo, o Tribunal
a quo
proferiu decisão com o seguinte teor:
“Nos presentes autos peticiona a A., AA, a condenação da R A..., Ld.ª, no pagamento de indemnização por despedimento ilícito e de créditos salariais.
Alegou para tanto, em suma, que a R. lhe comunicou, por escrito datado de 1 de fevereiro de 2022, o seu despedimento.
Dispõe o art.º 98.º-C do C. P. do Trabalho que, no caso em que seja comunicada por escrito ao trabalhador a decisão de despedimento individual, seja por facto imputável ao trabalhador, seja por extinção do posto de trabalho, seja por inadaptação, a ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento inicia-se com a entrega pelo trabalhador, junto do tribunal competente, de requerimento em formulário eletrónico ou em suporte de papel, do qual consta declaração do trabalhador de oposição ao despedimento.
Regula o Código de Processo de Trabalho, nos art.ºs 98º-B e seguintes, a ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, à qual cumpre lançar mão sempre que se verifique que a decisão de despedimento individual, seja por facto imputável ao trabalhador, seja por extinção do posto de trabalho, seja por inadaptação, é comunicada por escrito.
No caso dos presentes autos, alega a A. um despedimento comunicado por escrito, pelo que a forma do processo a seguir é o processo especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, e não o processo comum.
O uso duma forma processual quando a lei prevê outra determina erro na forma de processo (art.º 193.º do C. P. Civil), o qual implica apenas a anulação dos atos que não possam ser aproveitados e a prática dos que sejam estritamente necessários para que o processo se aproxime, tanto quanto possível, da forma legal.
Atento o princípio da adequação formal previsto no art.º 547.º do C. P. Civil, e uma vez que a petição inicial contém todos os elementos que a apresentação do requerimento em formulário deve conter, entendemos que, ainda que verificado o erro na forma de processo, é possível convolar este último para a forma que devia ter sido utilizada, sem que tal diminua as garantias de defesa da R.
Pelo exposto, determino que a presente ação passe a seguir os termos do processo especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento.
Em consequência, descarregue da primeira espécie e carregue na segunda das mencionadas no art.º 21.º do C. P. do Trabalho.
Autue em conformidade.
Fica a Empregadora notificada para, no prazo de 15 dias, apresentar articulado motivador do despedimento e juntar os documentos comprovativos do cumprimento das formalidades exigidas para o despedimento, sob pena de ser imediatamente declarada a ilicitude do despedimento (…).”
Não se conformando com o decidido, a Autora interpôs recurso de tal decisão, que subiu em separado e deu origem ao apenso B (processo 2496/23.3T8VNG-B.P1).
Também a Ré interpôs recurso da referida decisão proferida na audiência de partes, na parte em que decidiu aproveitar a petição inicial e convolar a ação de processo comum instaurada para a forma especial, pugnando nesse recurso a Ré pela nulidade de todo o processado com a respetiva absolvição da instância. Tal recurso deu origem ao apenso A (processo 2496/23.3T8VNG-A.P1).
A Ré/Empregadora apresentou articulado refª citius 35472042.
A Autora/Trabalhadora apresentou contestação (refª citius 35611922) ao referido articulado.
Os recursos de apelação, entretanto, foram admitidos e subiram em separado e com efeito meramente devolutivo.
Por despacho com a refª citius 450886632 foi fixado o valor da causa em € 5.000,01.
No recurso de apelação que subiu em separado no apenso B, foi proferido Acórdão transitado em julgado, no qual foi considerado que a decisão recorrida estava ferida de nulidade e se impunha a sua anulação, “
com as consequências que desta resulta para atos que tenham sido praticados posteriormente, devendo ser dado adequado cumprimento prévio ao disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, assegurando-se às partes o direito ao contraditório, em termos de poderem alegar, se o entenderem, o que tiverem por pertinente, sendo que só depois, cumprido que tenha sido esse contraditório, deve ser proferida nova decisão, a respeito da questão do erro na forma de processo, com as questões que daí possam resultar”.
Nessa decorrência, foi decidido no Acórdão em referência o seguinte:
“Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, na procedência do recurso, em anular a decisão recorrida, para que o Tribunal de 1.ª instância dê adequado cumprimento ao disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, assegurando às partes o direito ao contraditório, nos termos mencionados no presente acórdão, devendo ser proferida, depois, então sim, nova decisão.”.
Por sua vez, no recurso de apelação que subiu em separado no apenso A, foi proferido Acórdão transitado em julgado, no qual foi considerado que a exceção de caducidade não é de conhecimento oficioso, dependendo de invocação expressa pela parte interessada, o que só aconteceu no recurso e não previamente ao momento em que foi proferida a decisão recorrida, pelo que o recurso foi julgado totalmente improcedente.
Foi proferida a decisão com a refª citius 454392091 com o seguinte teor:
“Considerando a decisão proferida no apenso B, anulando a decisão proferida 11-4-2023, deverá a forma dos presentes autos ser revertida para ação de processo comum, em conformidade com o indicado na petição inicial que deu origem aos autos.
Mais importa, em conformidade com o doutamente ordenado pelo Tribunal da Relação do Porto no âmbito do apenso B dos presentes autos, dar cumprimento ao disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, assegurando às partes o direito ao contraditório em termos de poderem alegar, se o entenderem, o que tiverem por pertinente a respeito da questão do erro na forma do processo, o que faremos de seguida.
*
Resulta da consulta dos presentes autos, maxime da petição inicial que deu origem aos mesmos, que a Autora peticiona a condenação da Ré, A..., Ld.ª, no pagamento de indemnização por despedimento ilícito e de créditos salariais.
Fê-lo através de interposição de ação de processo comum.
Invoca no entanto a referida Autora, mais concretamente no ponto 9º da petição que “Em data que não consegue precisar, mas seguramente em data posterior à constante da missiva, foi comunicado pela R. à A. da decisão de proceder ao despedimento da A. com data de 30/04/2022, em consequência da necessidade de extinguir o posto de trabalho, conforme decorre do documento ao diante junto e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido (Doc 7)”.
Em função de tal alegação, e considerando o disposto nos arts. 98º-C e 98º-D do CPT, afigura-se, em conformidade com o já comunicado pelo anterior titular dos autos, que estamos aqui perante um erro na forma de processo utilizada pela Autora, pois que tendo sido comunicado o despedimento da Autora por escrito, escrito esse onde se fez menção dum despedimento por extinção de posto de trabalho, o presente processo deveria ter sido interposto sob a forma de ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, através da apresentação de formulário processualmente previsto.
Entendemos ainda que apesar de tal erro na forma de processo, é possível convolar este processo para a forma que devia ter sido utilizada, sem que tal diminua as garantias de defesa da Ré.
Não obstante, e antes de mais, importa dar cumprimento ao disposto no art. 3º, n.º 3 do CPC, pelo que determino a notificação das partes quanto ao teor do presente despacho a fim de se pronunciarem quanto ao aqui exposto nos termos que tiverem por convenientes.”
Nessa sequência, a Autora apresentou o requerimento com a refª citius 37496149, referindo que tal como resulta da causa de pedir e do pedido constante da petição inicial, prefigura a ação como ação de processo comum de despedimento ilícito, por não precedida de processo disciplinar e de qualquer processo prévio tendente à extinção do posto de trabalho, sendo que a única carta remetida pela Ré à Autora data de 1-02-2022 mas apenas foi remetida por email dirigido à Autora em 3-06-2022, já após o termo do vínculo laboral, pelo que quando cessa o vínculo laboral a Autora apenas tem um despedimento verbal. Mais sustentou que a carta remetida pela Ré não é a carta de “despedimento” propriamente dita, mas uma mera comunicação prévia sem que haja qualquer sequência, concluindo que quando a Ré em 30-04-2022 faz cessar o vínculo da Autora fá-lo ao abrigo de um despedimento verbal e não ao abrigo de qualquer processo de extinção do posto de trabalho, que inexiste e inexistiu. Sustentou ainda que o pedido de condenação da Ré na emissão e entrega à Autora de declaração de tempo de serviço apenas é possível em sede de ação de processo comum, o que a prosseguir a ação como processo especial se traduziria numa violação de um direito constitucional da Autora.
Terminou pugnando pela inexistência de qualquer erro na forma de processo e, sem prescindir, a entender-se pela sua verificação requereu que o conhecimento da exceção de caducidade fosse relegada para sede de sentença após julgamento e efetivo apuramento se verificou ou não despedimento verbal.
A Ré, por seu turno, apresentou o requerimento refª citius 37496149, no qual referiu aderir ao entendimento no sentido da verificação de erro na forma de processo e aplicação
in casu
da ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, divergindo já no que respeita à possibilidade de aproveitamento da petição inicial e convolação do processo comum para o processo especial. Argumentou que é inequívoca que está em causa nos autos um despedimento comunicado por escrito que determina a única opção pelo processo especial de impugnação do despedimento e já não o processo comum, o que importa a verificação do erro na forma de processo. Mais defendeu que tal erro determina a nulidade de todo o processado e a absolvição do Réu da instância, nos casos em que a própria petição inicial não possa ser aproveitada para a forma de processo adequada, como no caso vertente, por não ter sido distribuída no prazo legal de sessenta dias, previsto no artigo 387.º, n.º 2, do Código do Trabalho, a determinar a caducidade, como é o caso dos autos, caducidade essa que refere invocar e pretender ver declarada e não legitima o aproveitamento do articulado.
Na sequência da sobredita pronúncia das partes, foi proferida a decisão refª citius 455459260 com o seguinte teor:
“Do compulsar dos autos resulta que a Autora peticiona a condenação da Ré, A..., Ld.ª, no pagamento de indemnização por despedimento ilícito e de créditos salariais.
Fê-lo através de interposição de ação de processo comum.
Pelos fundamentos constantes do despacho que antecede, e na sequência do ordenado pelo Tribunal da Relação do Porto, foram as partes notificadas para se pronunciarem quanto a eventual erro na forma do processo por força do uso de tal forma processual ao invés de ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, através da apresentação de formulário processualmente previsto.
Pronunciaram-se ambas as partes.
Cumpre apreciar e decidir.
Ora, mantém este Tribunal o entendimento que a petição inicial apresentada inquina os autos de erro na forma de processo, porquanto a causa de pedir que é por si configurada em tal articulado – e que, salvo o devido respeito por entendimento contrário, é aquela que tem de valer para fixar a forma processual aplicável, por ali se conformar a causa de pedir, não podendo ser dado sem efeito o ali referido em requerimentos ou articulados posteriores.
Como já se referiu invoca a Autora no ponto 9º da petição inicial que “Em data que não consegue precisar, mas seguramente em data posterior à constante da missiva, foi comunicado pela R. à A. da decisão de proceder ao despedimento da A. com data de 30/04/2022, em consequência da necessidade de extinguir o posto de trabalho, conforme decorre do documento ao diante junto e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido (Doc 7)”.
Dos demais factos alegados na petição inicial não decorre que o despedimento tenha sido meramente verbal, pois que se no ponto 18º da petição inicial é referido que “o despedimento do A. configura um despedimento ilícito já que não foi precedido de qualquer processo disciplinar e não se encontram observados os requisitos formais e substanciais exigidos por lei para o despedimento por extinção do posto de trabalho”, tal não significa que o despedimento operado tenha sido meramente verbal, mas tão só que não foi formalmente válido (o que pode ser invocado em ação de impugnação
judicial da regularidade e licitude do despedimento).
Tanto assim é que no ponto seguinte da petição inicial a Autora volta a alicerçar o despedimento na carta mencionado no ponto 9º, referindo que “decorre da carta remetida pela Ré que esta justifica a cessação do contrato de trabalho por necessidade de extinção do posto de trabalho da A.”.
Ou seja, toda a petição inicial conforma o despedimento operado como um despedimento por extinção de posto de trabalho por escrito, comunicado por via da missiva junta como doc. 7, e não como um despedimento verbal.
A menção a despedimento verbal anterior surge apenas depois, em requerimentos e articulados osteriores à decisão proferida por este Tribunal a 11-4-2023.
Pelo que conformada a ação na petição inicial como uma ação fundada num despedimento por escrito fundado em extinção de posto de trabalho, se impunha e impõe que os presentes autos corram termos sob a forma de processo de ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, nos termos dos art. 98º-C e 98º-D do CPT.
E a mesma solução impunha-se e impõe-se mesmo a entender-se e a provar-se a existência dum despedimento verbal no período temporal agora indicado pela Autora.
Perante um eventual despedimento verbal em data anterior à missiva junta como doc. 7 à petição inicial, como alegado pela Autora, sempre o envio posterior do email em apreço, com cópia da missiva, que configura, validamente ou não, uma efetiva declaração de despedimento efetivo por escrito dirigida à Autora, envio esse anterior à interposição da presente ação, assumiria preponderância face ao despedimento verbal anterior, convolando-o em despedimento por escrito, e, como tal, sujeito a forma especial.
Ou seja, ainda que se comprove, como referido pela Autora, que a mesma foi despedida verbalmente antes da data de receção de tal email – por si invocada como correspondendo a 3-6-2022 – sempre a receção do mesmo antes da entrada em juízo da presente ação, a 21-3-2023, determinaria, em qualquer caso, a imposição de forma especial ao presente processo, considerando o disposto nos arts. 98º-C e 98º-D do CPT.
Afigura-se assim, em conformidade com o já comunicado pelo anterior titular dos autos, que estamos perante um erro na forma de processo utilizada pela Autora, pois que tendo sido comunicado o despedimento da Autora por escrito, escrito esse onde se fez menção dum despedimento por extinção de posto de trabalho, o presente processo deveria ter sido interposto sob a forma de ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, através da apresentação de formulário processualmente previsto, e isto ainda que se considerasse que em data anterior a tal escrito havia sido comunicado de forma meramente verbal o despedimento da Autora.
Ocorre assim um erro na forma de processo conferida pela Autora à ação, nos termos do art. 193º do CPC, o qual implica apenas a anulação dos atos que não possam ser aproveitados e a prática dos que sejam estritamente necessários para que o processo se aproxime, tanto quanto possível, da forma legal.
Atento o princípio da adequação formal previsto no art.º 547.º do C. P. Civil, e uma vez que a petição inicial contém todos os elementos que a apresentação do requerimento em formulário deve conter, entendemos que, ainda que verificado o erro na forma de processo, é possível convolar este último para a forma que devia ter sido utilizada, sem que tal diminua as garantias de defesa da Ré.
Consignando-se que a questão referente à caducidade ou não dos direitos que a Autora pretende fazer valer é questão que apenas em sede de despacho saneador sentença – se os autos contiverem já os elementos necessários para o efeito – ou em sede de sentença – se tal questão carecer da produção de prova - pode ser apreciada.
Mais é certo que tal questão depende também da determinação definitiva da forma de processo aplicável aos presentes autos, que ainda não ocorreu, pelo que sempre se impõe aguardar pelo trânsito em julgado do presente despacho antes de retirar quaisquer outras consequências da forma processual que foi aqui dada aos mesmos – e que pode eventualmente ser revertida por Tribunal superior.
Pelo exposto, determino que a presente ação siga os termos de processo especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento.
De forma a evitar a prática de atos processuais inúteis - ou até contrários à justa composição do litígio -, atenta a importância que a forma processual dos autos assume para decisão dalgumas das questões invocadas nos articulados apresentados, determino que o processo aguarde, antes de mais, pelo trânsito em julgado do presente despacho, aferindo-se após das diligências posteriores a encetar nos mesmos.
Notifique.”.
Inconformada com esta decisão, a
Autora interpôs recurso de apelação
(refª citius 37935934), formulando as seguintes
CONCLUSÕES
[que se transcrevem
[1]
- consigna-se que se procede à transcrição das conclusões aperfeiçoadas apresentadas no requerimento com a refª citius 390543 na sequência do convite formulado pela Relatora no despacho com a refª citius 18068223]:
“1ª -Vem o presente recurso impugnar o despacho proferido aos 08/01/2024, com a referência 455459260, pelo qual o Mmº Juiz a quo decidiu determinar “… que a presente ação siga os termos de processo especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento.”.
2ª - São três as questões em que se alicerça a discordância da apelante com o despacho identificado em 1º supra, ora impugnado: a) incorreta apreciação da causa de pedir e dos diversos pedidos formulados pela recorrente em sede de PI, sendo que perante os mesmos a forma de processo a seguir deveria ser a comum; b) incorreta valoração e apreciação da missiva remetida pela entidade empregadora (missiva datada de 01-02-2022 mas apenas enviada em 03-06-2022) e, inerente, incorreta qualificação do tipo de despedimento levado a cabo pela entidade empregadora; e c) incorreta aplicação da lei, ao considerar que toda e qualquer missiva, ainda que posterior, derroga prévio despedimento verbal.
3ª - Tal como resulta da causa de pedir e pedido constante da PI, a A. prefigura a ação como ação de processo comum de despedimento ilícito, por não precedida de processo disciplinar e/ou não precedida de qualquer processo prévio tendente à extinção do posto de trabalho (Cfr, artº 30º da PI e pedido constante da al. D) do Pedido de PI.
4ª - A única peça remetida pela R. à A. foi enviada em 03-06-2022, apesar de datada de 01-02- 2022, por email dirigido à A. (isto é: já após termo do vínculo laboral), conforme resulta do documento n.º 7 do Requerimento da A. junto aos autos em 12/05/2023, requerimento cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
5ª - Desde logo, refira-se que a missiva entregue à A. como doc 7 junto com a PI não é sequer uma qualquer decisão final, no sentido de culminar de um processo prévio com cumprimento, pelo menos parcial, do iter próprio do processo de despedimento por extinção do posto de trabalho, inadaptação ou disciplinar, já que da mesma consta que in fine "Mais informamos que poderá emitir parecer fundamentado no prazo de 10 dias a contar da presente comunicação.".
6ª - Portanto mesmo que a carta tivesse sido entregue na data aposta – o que não sucedeu e apenas se coloca por mera hipótese de raciocínio - nunca poderia uma comunicação inicial com vista à pronúncia da trabalhadora, ser vista como comunicação de decisão final de um processo de extinção do posto de trabalho, tanto mais nunca cumpriria o aviso prévio legalmente exigido, no caso de 75 dias, atenta a antiguidade da trabalhadora (nos termos do art 363º n.º 1 al. d) do Código do Trabalho).
7ª - Sendo que, segundo António Monteiro Fernandes, in Direito do trabalho, Almedina, 2012 (16ª Edição), pág. 512 "O vínculo só cessa quando todo o prazo se esgote".
8ª - Portanto, no dia 30-04-2022, mesmo que a carta tivesse sido entregue na data aposta – que não foi – sempre teríamos um despedimento verbal ilícito porque não precedido de processo disciplinar, face à inexistência de comunicação final nos termos do art 371º do Código do Trabalho;
9ª - A missiva entregue à A. como doc 7 junto com a PI visou apenas dar simples aparência formal da realização da comunicação imposta pelo art 369º do CT, o que equivale à sua omissão/falta, facto que gera a inexistência de qualquer comunicação válida e fere de nulidade qualquer despedimento, nulidade que deve ser conhecida ex officio pelo Mmo Tribunal, nulidade que se invoca para os devidos e legais efeitos;
10ª - Por outro lado, como se alegou no artigo 14º do requerimento apresentado pela A., em 12/05/2023, "… na data da cessação do contrato (30/04/2022), a trabalhadora não tinha qualquer documento que fundamenta-se a extinção do contrato por extinção de posto de trabalho, o que não é de estranhar, atento se tratar de despedimento verbal.";
11ª - Pelo que nunca a ação poderia ser de impugnação da licitude e regularidade de despedimento, já que por facto imputável à R. aquando do termo do contrato, a A. nada podia juntar nessa ação por só ter tido acesso a missiva escrita, aliás meramente para efeitos do art 369º do CT, em 03/06/2022.
12ª - Ou ainda: segue entendimento da jurisprudência – AC RL PORTO, Processo 2613/16.0T8MTS-A.P1, data: 30-05-2018, Relator: Jerónimo Freitas” que “I - A acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento regulada no artigo 98.º B e seguintes do CPT, aplica-se apenas aos casos em que o trabalhador vem impugnar uma decisão de despedimento que lhe tenha sido comunicada por escrito e que seja fundada em despedimento disciplinar, inadaptação ou extinção do posto de trabalho (art.º 98.º C/1).”, in DGSI.
13ª - O mero envio de email, tardio e desconforme ao cumprimento do direito laboral, não poderá ter o condão de conferir legalidade ou valor processual a despedimento verbal já realizado, como porém ocorre nos autos … !!!
Refira-se, ainda:
14ª - Do pedido constante da PI decorrem diversos pedidos, designadamente: condenação da R. na emissão e entrega à A. de declaração de tempo de serviço, tudo conforme al. D) do Pedido constante da PI.
15ª - Ora o pedido formulado na al. D) do Pedido, decorrência de uma recusa de emissão, por parte da R., afecta o direito ao trabalho constitucionalmente previsto no art 58º da Constituição da República Portuguesa, já que, a A. em todos os concursos entra como sem anos de experiência, não se podendo (seja no público, seja no provado, seja no social) candidatar a cargos de coordenadora pedagógica, malgrado a experiência de que beneficia e dispõe, antiguidade que em Tribunal ora requer seja reconhecida e declarada, porquanto devida, mas que, mantendo-se despacho sob recurso, ficará por conhecer.
16ª - O peticionado em sede da al. D) da PI, é essencial à A., em sede de candidaturas a emprego, mas trata-se de pedido não cognoscível numa ação de licitude e regularidade de despedimento, pedido que indicia ocorrer obstáculo à coligação, nos termos do art 37º n.º 1 - 1º parte do CPC, caso o processo prossiga como processo especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento.
Ainda, sem prescindir, refira-se o seguinte:
17ª - Por outro lado, de acordo com o referido art.º 387º, nsº 1 e 2, a regularidade e licitude do despedimento só pode ser apreciada por tribunal judicial, podendo o trabalhador visado opor-se a essa desvinculação contratual mediante apresentação de requerimento em formulário próprio, no prazo de 60 dias, contados a partir da receção da comunicação de despedimento ou da data da cessação do contrato, se posterior.
18ª - Na vertente adjetiva, os arts.º 98º-B e ss. do C.P.T., aditados pelo Dec.-Lei nº 295/2009, de 13/10, vieram regular a tramitação do processo especial que para aquele efeito foi instituído, e que é aplicável nos casos em que seja comunicada por escrito ao trabalhador a decisão de despedimento individual, seja por facto a ele imputável, seja por extinção do posto de trabalho, seja por inadaptação (cfr. art.º 98º-C, nº 1).
19ª - Ora, da missiva junta aos autos decorre inexistir qualquer decisão de despedimento individual, mas apenas e tão somente comunicação tendente a pronúncia da trabalhadora, ie nos termos do art 369º do CT.
20ª - Ou seja: o que há é uma trabalhadora despedida verbalmente.
21ª - Mais, mesmo que se entendesse que a mera comunicação efetuada pela entidade empregadora tinha a virtualidade de constituir decisão final de processo de extinção de posto de trabalho – o que não se admite e apenas se coloca por mera hipótese de raciocínio – atendendo aos pedidos efetuados, em particular o pedido constante da al. D) do Pedido, sempre o processo teria que seguir a forma de processo comum, já que: seja a reclamação dos créditos laborais, seja o reconhecimento de violação de direitos dos trabalhadores e, inerente, condenação da entidade patronal não pode, em caso algum ser afetada, pelo eventual cumprimento (ou não) do prazo de 60 dias, já que não estão sujeitos ao referido prazo de 60 dias previstos no n.º 2 do artigo 388º do C.T., mas ao prazo prescricional de um ano previsto no art.º 337º, nº 1, do C.T.
22ª - Ora, o entendimento sufragado pelo Mmo Juiz a quo no despacho recorrido, em particular ao entender que uma mera comunicação ao abrigo do 369º CT tem a virtualidade de constituir, para efeitos legais, decisão de despedimento de extinção por posto de trabalho e derroga prévio despedimento verbal, viola o princípio da tutela jurisdicional dos direitos, acolhido no art.º 2º, nº 2, do Código de Processo Civil e que é regra estruturante e basilar de um Estado de Direito, além de abrir a caminho a uma “perversão” do sistema laboral e princípios fundamentais, já que abriria caminho a que todas as entidades patronais lograssem sanar despedimentos verbais nulos com o mero envio de uma missiva (contendo aliás qualquer coisa) e, dessa forma, encurtar o prazo de um ano legalmente previsto para impugnar despedimentos verbais para 60 dias.
Uma vez mais e sem prescindir:
23ª - Como bem segue e resulta da doutrina, o processo especial de regularidade e licitude do despedimento "… está vocacionada à impugnação do despedimento individual promovido pelo empregador — seja ele por causa subjectiva (como sucede com o despedimento com fundamento em justa causa) seja ele por causa objectiva (como sucede com o despedimento por extinção do posto de trabalho e com o despedimento por inadaptação) —, o que significa que o seu âmbito de aplicação se mostra delimitado por três factores cumulativos: em primeiro lugar, o carácter laboral do vínculo haverá que revelar-se inequívoco; em segundo lugar, a cessação do vínculo laboral haverá que reconduzir-se ou ser subsumível a qualquer uma das figuras previstas no art. 340.º, als. c), e) e f), do CT 9; finalmente, a comunicação do despedimento tem, necessariamente, que assumir a forma escrita … ", cfr. Susana Cristina Mendes Santos Martins da Silveira, in “A nova ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento”, Revista Julgar 15, pp 83 e ss.
24ª - Como anota a supra citada Autora, fica de fora do referido processo especial, o despedimento verbal por inexistência de procedimento válido, como ocorre no caso.
25ª - Na verdade, atendendo a que no último dia de trabalho (30/04/2022) nenhuma missiva havia sido entregue à trabalhadora e, à data da entrada da ação, a inexistência de decisão final, mas apenas e tão somente uma mera comunicação passado mais de um mês, revela estarmos perante um despedimento ilegal, com a natureza de despedimento verbal, a ser como tal tratado e lido, com a devida fixação de indemnização, conforme sucede no caso.
26ª - Nos autos, a conduta da Ré segue tudo menos conclusiva, sendo, crê-se, altamente controversa a forma de cessação, que aliás a A. entende ilegal e violadora de seus direitos.
27ª - Como bem segue exposto in "Acção Impugnação da Regularidade de e Licitude do Despedimento", coleção formação inicial CEJ, pág. 36 e ss a "… ação especial não é forma de processo adequada quando é controvertida a questão do momento e forma de cessação do contrato …";
28ª - O despacho sob recurso viola, entre outros, o previsto nos arts 58º da CRP; as disposições constantes dos arts 363º, nº. 1 al. d); 337 n.º 1; 369º e 371 todos do CT; as processuais previstas no art 2º, nº 2 do CPC.”
Termina dizendo que deve ser julgado procedente o recurso e revogado o despacho recorrido, com as demais consequências legais.
A Ré apresentou resposta, sem formular conclusões, invocando, em síntese: a petição inicial apresentada inquina os autos de erro na forma de processo, porquanto a causa de pedir que é por si configurada em tal articulado é aquela que vale e prevalece para determinar a forma processual adequada e aplicável, por ali se conformar a causa de pedir, não podendo ser dado sem efeito o ali referido em requerimentos ou articulados posteriores, como pretende a Recorrente; toda a petição inicial conforma o despedimento operado como um despedimento por extinção do posto de trabalho por escrito, comunicado por via da missiva junta como documento 7, já não como um despedimento verbal; a falta de cumprimento dos prazos e formalidades legais importa a ilicitude do despedimento por extinção do posto de trabalho, mas não tem a virtualidade de converter o mesmo num despedimento verbal; quanto ao pedido da alínea d) da petição inicial, o mesmo pode ser feito em reconvenção nos termos do artigo 98.º-L, n.º 3, do Código de Processo do Trabalho já que emerge do contrato de trabalho e da sua cessação; na consideração que a petição inicial contém todos os elementos que a apresentação do requerimento em formulário deve conter, é possível convolar para a forma que devia ter sido utilizada, sem diminuição das garantias de defesa da Recorrida.
Conclui que a decisão recorrida realizou a correta interpretação e aplicação da lei adjetiva e substantiva, a impor que seja negado provimento ao recurso interposto, com a confirmação dessa decisão.
Foi proferido despacho pelo Tribunal
a quo
a admitir o recurso de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
O Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto junto deste Tribunal de recurso emitiu o parecer a que alude o artigo 87.º, n.º 3, do CPT, no qual consta, além do mais, o seguinte:
“[…]
Na resposta a Recorrente vem dizer que não há erro na forma de processo pois a “a A. prefigura a ação como ação de processo comum de despedimento ilícito, por não precedida de processo disciplinar e não precedida de qualquer processo prévio tendente à extinção do posto de trabalho.
Por outro lado, a única carta remetida pela R. à A. data de 01-02-2022, mas apenas foi remetida em 03-06-2023 por email dirigido à A. (já após termo do vínculo laboral), conforme resulta do documento n.º 7 do Requerimento da A. junto aos autos em 12/05/2023, requerimento cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
A missiva entregue à A. como doc. 7 junto com a PI visa apenas dar simples aparência formal da realização da comunicação imposta pelo art 369º do CT, o que equivale à sua omissão/falta, facto que gera a inexistência de qualquer comunicação válida e fere de nulidade qualquer despedimento.”
E que, “na data da cessação do contrato (30/04/2022), a trabalhadora não tinha qualquer documento que fundamentasse a extinção do contrato por extinção de posto de trabalho, o que não foi de estranhar atento se tratar de despedimento verbal."
4.2. Entende-se que, na verdade, assiste razão à recorrente. Com efeito, como se lê no Preâmbulo do Decreto-Lei 295/2009 de 13 de Outubro, “para tornar exequíveis as modificações introduzidas nas relações laborais com o regime substantivo introduzido pelo Código do Trabalho – CT -, prosseguindo a reforma do direito laboral substantivo, no seguimento do proposto pelo Livro Branco sobre as Relações Laborais e consubstanciado no acordo de concertação social entre o Governo e os parceiros sociais para reforma das relações laborais, de 25 de Junho de 2008, cria-se agora no direito adjectivo uma acção declarativa de condenação com processo especial, de natureza urgente, que admite sempre recurso para a Relação, para impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, sempre que seja comunicada por escrito ao trabalhadora decisão de despedimento individual. Nestes casos, a acção inicia-se mediante a apresentação pelo trabalhador de requerimento em formulário próprio, junto da secretaria do tribunal competente, no prazo de 60 dias previsto no n.º 2 do artigo 387.º do CT.
E, como, também, citada pela autora, a Doutrina, assim vem entendendo. Como refere Susana Silveira, (in “A nova ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento”, Revista Julgar 15, pp 83 e ss.), o processo especial de regularidade e licitude do despedimento "… está vocacionada à impugnação do despedimento individual promovido pelo empregador — seja ele por causa subjectiva (como sucede com o despedimento com fundamento em justa causa) seja ele por causa objectiva (como sucede com o despedimento por extinção do posto de trabalho e com o despedimento por inadaptação) —, o que significa que o seu âmbito de aplicação se mostra delimitado por três factores cumulativos: em primeiro lugar, o carácter laboral do vínculo haverá que revelar-se inequívoco; em segundo lugar, a cessação do vínculo laboral haverá que reconduzir-se ou ser subsumível a qualquer uma das figuras previstas no art. 340.º, als. c), e) e f), do CT 9; finalmente, a comunicação do despedimento tem, necessariamente, que assumir a forma escrita” … "
E ainda, que a Acção de Impugnação Judicial da Regularidade e Licitude do Despedimento, acção com processo especial, não é a forma de processo adequada quando é controvertida a questão do momento e da forma de cessação do contrato – (AIJRLD, CEJ, p. 36 e segs.).
Ora alegando a Recorrente/autora que, apesar da carta junta como doc. 7 estar datada de 01.02.2022, para valer a partir de 30.04.2022, só foi recebida a 03.06.2022, mais de 60 dias depois da data em que deveria ter efeito o despedimento, e alegando que, antes, havia sido já despedida verbalmente, entende-se que na verdade esta forma de processo especial não é, não pode ser aplicável, neste caso, precisamente porque falta um dos requisitos cumulativos que é o de a comunicação do despedimento ter, necessariamente, que assumir a forma escrita.
Também a jurisprudência, assim vem decidindo, como pode ler-se no sumário do acórdão do TRP, de 30.05.2028, Processo n.º 2613/16.0T8MTS-A.P1, “A acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento regulada no artigo 98.º B e seguintes do CPT, aplica-se apenas aos casos em que o trabalhador vem impugnar uma decisão de despedimento que lhe tenha sido comunicada por escrito e que seja fundada em despedimento disciplinar, inadaptação ou extinção do posto de trabalho (art.º 98.º C/1).”
4.3. Não é verdade, nem faz, também, sentido que se diga que “perante um eventual despedimento verbal em data anterior à missiva junta como Doc. 7 à petição inicial, como alegado pela Autora, sempre o envio posterior do email em apreço, com cópia da missiva, que configura, validamente, ou não, uma efectiva declaração de despedimento efectivo por escrito dirigido à Autora, envio esse anterior à interposição da presente acção, assumiria preponderância face ao despedimento verbal anterior, convolando-o em despedimento por escrito, e, como tal, sujeito a forma especial.”
O despedimento verbal e o despedimento por escrito e em datas distintas são formas diferentes de despedimento, ainda que a entidade empregadora invoque, em ambas, o mesmo motivo.
Podia até a Autora/recorrente ser despedida verbalmente pela Recorrida alegando a extinção do posto de trabalho, não o fazendo por escrito, não se verifica este requisito cumulativo.
Só o fazendo mais tarde, passados mais de 60 dias da data em faria efeito, a data de cessação do contrato, e aceitando como boa e válida esta comunicação, então ficava aberto o caminho aos empregadores para invocar sempre a caducidade da acção que, por via disso só podia ser iniciada decorridos mais de 60 dias sobre a data de cessação do contrato.
Em caso semelhante, bem se concluiu, também, no Ac. do TRP, de 25.06.2012, processo n.º 247/11.4TTGMR.P1, “O CPT2010 criou a acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, que segue os termos do processo especial previsto no artigo 98º-B a artigo 98.º-P, todos do Código de Processo do Trabalho. O processo especial é aplicável aos casos em que o despedimento tenha sido comunicado ao trabalhador, por escrito - Art.º 98.º-C, n.º 1 do mesmo diploma. Se o empregador despediu o trabalhador verbalmente e, posteriormente, declarou despedi-lo através de carta, o despedimento ocorreu com a declaração verbal. Por isso, nestas circunstâncias, para impugnar o despedimento, deve o trabalhador lançar mão do processo comum, por ser o meio processual adequado.
*
5. Termos em que, ressalvando sempre diferente e melhor opinião, se emite parecer, no sentido de ser dado provimento ao recurso da Autora.”
A Autora apresentou resposta ao dito parecer, dando conta da sua adesão integral ao mesmo.
A Ré apresentou resposta, em que manifesta a sua divergência em relação ao parecer emitido, reiterando no essencial a posição sufragada na resposta ao recurso da Autora.
Procedeu-se a exame preliminar, tendo sido proferido despacho a convidar a Recorrente a reformular as suas conclusões.
Nessa sequência, a Recorrente apresentou novas conclusões (já acima transcritas – refª citius 390543.
A Ré veio responder, dizendo entender não satisfeito o convite o que em seu entender tem como consequência a rejeição e não conhecimento do recurso à luz do disposto no artigo 693.º, n.º 3,
in fine
, do Código de Processo Civil. Sem prescindir, posicionou-se sobre as conclusões apresentadas, pugnando para que seja negado provimento ao recurso.
Foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
*
II – Questão prévia
- da existência de causa para o não conhecimento/rejeição do recurso [questão suscitada na resposta apresentada pela Ré].
Refere a Recorrida/Ré que, cotejadas as novas conclusões apresentadas pela Recorrente, subsiste a sua convicção de que as mesmas não observam o disposto no n.º 1 do artigo 639.º do CPC, continuando prolixas e não satisfazendo o despacho que a convidou a sintetizar aquelas, pelo que não tendo o convite sido satisfeito tem como consequência a rejeição e o não conhecimento do recurso à luz do disposto no artigo 639.º, n.º 3,
in fine
do CPC.
Prevê o artigo 639.º do CPC, sob a epígrafe “Ónus de alegar e formular conclusões” que:
“1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 – Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas não se tenha procedido às especificidades a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
(…)”.
Por seu turno, o artigo 641.º, n.º 2, alínea b), do CPC, estabelece que o requerimento [de interposição de recurso] é indeferido quando não contenha a alegação do recorrente ou quando esta não tenha conclusões.
Tenha-se ainda presente que, nos termos do n.º 4 do artigo 635.º do CPC, nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objeto inicial do recurso.
O Supremo Tribunal de Justiça tem apreciado diversas situações onde se questiona a validade e admissibilidade das conclusões apresentadas, afastando soluções meramente formalistas e apontando para uma aferição casuística, com apelo ao princípio da proporcionalidade, disso sendo exemplo o Acórdão desse Tribunal superior de 16-12-2020
[2]
.
Como se sintetiza no sumário deste último Acórdão:
«
I.
O ónus de formulação de conclusões recursórias tem em vista uma clara delimitação do objeto do recurso mediante enunciação concisa das questões suscitadas e dos seus fundamentos, expurgadas da respetiva argumentação discursiva que deve constar do corpo das alegações, em ordem a melhor pautar o exercício do contraditório, por banda da parte recorrida, e a permitir ao tribunal de recurso uma adequada e enxuta enunciação das questões a resolver.
II.
“A falta de conclusões” a que se refere a alínea b), parte final, do n.º 2 do artigo 641.º do CPC, como fundamento de rejeição do recurso, deve ser interpretada num sentido essencialmente formal e objetivo, independentemente do conteúdo das conclusões formuladas, sob pena de se abrir caminho a interpretações de pendor subjetivo.
III.
Assim, a reprodução do corpo das alegações nas conclusões não se traduz na falta destas, impondo-se, quando muito, o convite ao aperfeiçoamento das mesmas, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 639.º do CPC.
IV.
De todo o modo, a orientação no sentido de fazer equivaler a reprodução integral do corpo das alegações nas conclusões - que aqui não se acolhe - não deverá prescindir de uma aferição casuística em ordem a ponderar, à luz do principio da proporcionalidade, a repercussão que essa reprodução, mais ou menos integral, possa acarretar, em termos de inteligibilidade das questões suscitadas, em sede do exercício do contraditório e da delimitação do objeto do recurso por parte do tribunal.».
Não vislumbramos razões para nos afastarmos desta orientação, sendo certo que, como se dá nota no mesmo Acórdão, se verifica a nível jurisprudencial uma «tendência expressiva no sentido de considerar que a reprodução no corpo das alegações nas conclusões não se traduz na falta destas, impondo-se, quando muito, o convite ao aperfeiçoamento das mesmas, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 639.º do CPC»
[3]
.
António Santos Abrantes Geraldes
[4]
, a propósito desta temática, refere o seguinte:
«Embora seja claramente errada a reprodução no segmento das conclusões do teor da motivação, tal não corresponde a uma situação de “
falta de conclusões
”. Mais se ajusta considerar que se trata de conclusões excessivas ou prolixas, dirigindo ao recorrente um despacho de convite ao aperfeiçoamento, sem embargo da aplicação de alguma sanção sustentada na violação clara de um ónus processual. Esta é, aliás, a jurisprudência consistente do Supremo que superintende a aplicação das regras de direito, não se descortinando razões sérias para a afirmação da solução oposta que ainda continua a emergir em alguns arestos das Relações, com manifesta inconsideração dos efeitos negativos que isso determina na celeridade e eficiência dos mecanismos processuais (…)».
Revertendo ao caso dos autos, temos que foi formulado um convite ao aperfeiçoamento nos termos do artigo 639.º, n.º 3, do CPC, para a Recorrente reformular as conclusões no sentido da sua sintetização, sendo que tal convite foi aceite com apresentação de novas conclusões.
As conclusões apresentadas não deixam de cumprir a função de delimitação do objeto do recurso, percebendo-se por forma clara e objetiva as questões suscitadas e os seus fundamentos essenciais. Comparando as anteriores conclusões com as novas conclusões apresentadas, verifica-se que a Recorrente fez um esforço no sentido da sintetização que lhe foi apontada no convite formulado por este Tribunal.
É certo que as novas conclusões não primam, em termos técnicos, pelo rigoroso cumprimento pela Recorrente do ónus de síntese conclusiva dos fundamentos por que pede a revogação da decisão proferida.
No entanto, fazendo a necessária aferição do caso à luz do princípio da proporcionalidade, afigura-se que não ficou dificultada a identificação das questões suscitadas e dos seus fundamentos essenciais, e muito menos o resultado pretendido, em contraposição, com a decisão recorrida. A Recorrida, aliás, em sede de resposta identificou tais questões, rebatendo-as. Não se repercutiu, pois, em termos de inteligibilidade das questões suscitadas, em sede do exercício do contraditório e da delimitação do objeto do recurso por parte do Tribunal.
Pelo exposto, não pode afirmar-se que a Recorrente não logrou dar cumprimento ao convite que lhe foi efetuado nos termos prescritos no n.º 3 do artigo 639.º do CPC, não sendo por isso de rejeitar o recurso e nada obstando ao seu conhecimento.
***
III - OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação apresentada, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado e das que se não encontrem prejudicadas pela solução dada a outras [artigos 635.º, n.º 4, 637.º n.º 2, 1ª parte, 639.º, n.ºs 1 e 2, 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil
[5]
, aplicáveis por força do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho
[6]
].
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinam-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
Assim, a questão objeto de recurso e a decidir consiste em saber se ocorre erro na forma de processo.
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO
1)
Fundamentação de facto
Os factos relevantes para a decisão resultam do relatório supra.
*
2)
Apreciação/conhecimento
A questão objeto de recurso e a decidir consiste, como vimos, em saber se ocorre erro na forma de processo.
Na decisão recorrida foi considerado que ocorre erro na forma de processo e determinado que a ação instaurada como ação de processo comum seguisse os termos de processo especial de ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, com a fundamentação já acima transcrita.
A Recorrente não concorda com essa decisão pelos fundamentos que já resultam das conclusões que se transcreveram, defendendo que não se verifica o apontado erro na forma de processo e que os autos deverão prosseguir os seus termos como ação de processo comum tal como foi instaurada.
A Recorrida defende o julgado com a argumentação constante da sua resposta, já sintetizada no relatório supra.
Por sua vez, o Exmo Senhor Procurador-Geral Adjunto entende que deverá ser dado provimento ao recurso, conforme parecer emitido e já acima transcrito.
Vejamos.
Dispõe o artigo 387.º, n.º 2 do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro
[7]
que “o trabalhador pode opor-se ao despedimento, mediante apresentação em formulário próprio, junto do tribunal competente, no prazo de 60 dias, contados a partir da receção da comunicação de despedimento ou da data de cessação do contrato, se posterior …”.
Por sua vez, o CPT na versão aprovada pelo Decreto-Lei n.º 295/2009, de 13 de outubro, dando resposta processual às alterações introduzidas em matéria de despedimento pela reforma do Código do Trabalho operada pelo CT/2009, criou em sede adjetiva uma nova ação declarativa de condenação, sob a forma de processo especial, qual seja a ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, regulada nos artigos 98º-B a 98º-P do CPT.
A propósito desta ação, procurando tornar claras as razões que levaram à solução consagrada, o legislador proclama na exposição de motivos do citado Decreto-Lei o seguinte:
«Para tornar exequíveis as modificações introduzidas nas relações laborais com o regime substantivo introduzido pelo CT, prosseguindo a reforma do direito laboral substantivo, no seguimento do proposto pelo Livro Branco sobre as Relações Laborais e consubstanciado no acordo de concertação social entre o Governo e os parceiros sociais para reforma das relações laborais, de 25 de Junho de 2008, cria-se agora no direito adjectivo uma acção declarativa de condenação com processo especial, de natureza urgente, que admite sempre recurso para a Relação, para impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, sempre que seja comunicada por escrito ao trabalhador a decisão de despedimento individual. Nestes casos, a acção inicia-se mediante a apresentação pelo trabalhador de requerimento em formulário próprio, junto da secretaria do tribunal competente, no prazo de 60 dias previsto no n.º 2 do artigo 387.º do CT. (…) Todas as demais situações continuam a seguir a forma de processo comum e ficam abrangidas pelo regime de prescrição previsto no n.º 1 do artigo 337.º do CT.».
Assim, na concretização desse propósito, dispõe o n.º 1 do artigo 98º-C do CPT, que nos
«termos do artigo 387.º do Código do Trabalho, no caso em que seja comunicada por escrito ao trabalhador a decisão de despedimento individual, seja por facto imputável ao trabalhador, seja por extinção do posto de trabalho, seja por inadaptação, a ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento inicia-se com a entrega, pelo trabalhador, junto do juízo do trabalho competente, de requerimento em formulário eletrónico ou em suporte de papel, do qual consta declaração do trabalhador de oposição ao despedimento, sem prejuízo do disposto no número seguinte”.
Tal ação inicia-se com a entrega, pelo trabalhador, junto do tribunal competente, de requerimento, em formulário que veio a ser aprovado pela Portaria 1460-C/2009, de 31-12, do qual consta a declaração do trabalhador de oposição ao despedimento e à qual deverá juntar a decisão escrita de despedimento (cfr. artigos 98.º-D e 98.º-E do CPT).
Daqui decorre que, ao contrário do que parecia resultar do CT/2009, nem todos os despedimentos estão sujeitos à nova ação de impugnação de despedimento.
Na verdade, esta nova ação é apenas aplicável aos casos em que haja despedimento assumido formalmente como tal e individual, comunicado por escrito, e nas seguintes circunstâncias: (i) por facto que seja imputável a um concreto trabalhador; (ii) por extinção do seu posto de trabalho ou (iii) por inadaptação (cfr. alíneas c), e) e f) do artigo 340º do Código do Trabalho), sendo que «todas as demais situações continuam a seguir a forma de processo comum e ficam abrangidas pelo regime de prescrição previsto no n.º1 do artigo 337.º do Código do Trabalho» (Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 295/2009).
Ora, sendo assim um pressuposto da aplicabilidade desta ação de impugnação a existência de um despedimento individual comunicado por escrito, daí decorre que a ocorrência do despedimento não pode ser uma das questões a decidir na ação, devendo o mesmo ser inequívoco
[8]
.
Com efeito, a ação especial em referência é apenas aplicável aos casos em que haja despedimento “
assumido formalmente enquanto tal
”, na expressão de Albino Mendes Batista
[9]
.
Também Pedro Furtado Martins
[10]
, disso dá nota, ao dizer que “(…)
A decisão a entregar pelo trabalhador juntamente com o formulário tem de conter uma declaração inequívoca de despedimento”.
O despedimento deverá estar demonstrado, não podendo o mesmo ser fundamento do litígio
[11]
.
Foi, aliás, com esse fundamento que no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-10-2012
[12]
se decidiu que a ação especial em referência não é forma de processo adequada quando é controvertida a questão do momento e forma de cessação do contrato. De facto, conforme entendimento seguido neste Acórdão, com o qual concordamos, a ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude de despedimento regulada nos artigos 98º-B e seguintes do Código de Processo do Trabalho, não é a forma de processo adequada quando é controvertida a questão do momento e forma da cessação do contrato, não estando assente que haja despedimento assumido formalmente enquanto tal.
No mesmo sentido os Acórdãos desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 30-05-2011
[13]
e de 17-04-2023
[14]
.
Em suma, estão abrangidas pela ação especial em referência situações em que o despedimento individual se apresenta como inequívoco, em que a própria ocorrência do despedimento não é uma das questões a decidir na ação (não é fundamento do litígio), tendo sido essa a vontade que o legislador manifestou ao afirmar que a nova ação é aplicável “sempre que seja comunicada por escrito ao trabalhador a decisão de despedimento individual” e que “todas as demais situações continuam a seguir a forma de processo comum”.
A razão de ser desta opção, criando um processo especial destinado a ser aplicável apenas aos casos em que há comunicação escrita do despedimento, assenta no pressuposto de que nestes casos o despedimento é indiscutível, pelo que o que se discutirá é a sua regularidade e licitude, sem que o trabalhador necessite já de fazer prova do despedimento, sendo bastante a junção da comunicação de despedimento por escrito.
Revertendo ao caso dos autos, salvo o devido respeito por opinião divergente, consideramos que a questão do momento e da forma de cessação do contrato não é questão assente perante a petição inicial apresentada e a comunicação escrita que foi junta pela Autora como documento 7.
Importa sublinhar que a decisão de erro na forma de processo teve por base a petição inicial apresentada e a comunicação escrita junta com essa peça processual como documento 7.
Se atentarmos na petição inicial, verificamos que a Autora invocou o seguinte:
- “
Em data que não consegue precisar, mas seguramente em data posterior à constante da missiva, foi comunicado pela R. à A. da decisão de proceder ao despedimento da A. com data de 30-04-2022, em consequência da necessidade de extinguir o posto de trabalho, conforme decorre do documento ao diante junto e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido (doc 7)” –
artigo 9.º.
- “
No dia 03 de maio de 2022, a R. entregou à A. modelo para fundo de desemprego” –
artigo 10.º
;
- “Em 30/04/2022, a R. apenas pagou à A. a quantia de € 2.311,22, referente a férias não gozadas, subsídio de férias e subsídio de Natal (Ut. doc. 8) -
artigo 13.º;
- “
Aquando da cessação do contrato de trabalho e pese embora a solicitação da A. nesse sentido, a R. não entregou à A. qualquer declaração de tempo de serviço (doc. 9) –
artigo 14.º;
- “
Por carta datada e enviada em 21/10/2022, recebida pela R. em 31/10/2022, a A. interpelou a R. para, no prazo de 08 dias, proceder à emissão e envio de declaração de tempo de serviço da A., conforme decorre do documento ao diante junto e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido (doc. 10) –
artigo 15.º;
-
“
O despedimento do A. configura um despedimento ilícito já que não foi precedido de qualquer processo disciplinar e não se encontram observados os requisitos formais e substanciais exigidos por lei para o despedimento por extinção do posto de trabalho” –
artigo 17.º;
- “No caso sub judice, na comunicação efetuada pela R. e junta como doc. 7, a R., omite, por completo as menções obrigatórias referenciadas no art. 369.º, n.º 1 do CT, impedindo, assim, por parte da A., a confirmação (porque totalmente omitidos) da veracidade dos fundamentos da extinção do posto de trabalho” –
artigo 23.º;
- “
Por outro lado, em data anterior à cessação do contrato de trabalho, nunca foi remetida à Autora carta de decisão com as menções obrigatórias referidas no art. 371º do CT”; –
artigo 24.º.
A Autora, para além do mais, peticiona que seja declarado que a Ré despediu ilicitamente a Autora já que o despedimento não foi precedido de qualquer prévio processo disciplinar e/ou prévio processo com vista à extinção do posto de trabalho.
Ora, lida a petição inicial na sua totalidade e o documento escrito junto com a mesma, salvo o devido respeito por opinião divergente,
não é inequivoco
que a decisão de despedimento lhe tenha sido comunicada pela Ré por escrito, muito menos que tenha sido comunicado por escrito em data anterior à data invocada como data da cessação do contrato de trabalho (30-04-2022).
O documento 7 tem o teor já acima transcrito no relatório, sem que tenha sido junta com a petição inicial qualquer documentação atinente a um qualquer envio dessa comunicação escrita pela Ré à Autora – v.g. por correio, via email –, nem constando de tal comunicação qualquer aposição/menção referente à sua receção por entrega pessoal à Autora e respetiva data.
A petição inicial deixa algumas coisas em aberto, nomeadamente a invocação contida no artigo 9.º quanto à data em que foi comunicado pela Ré à Autora a decisão de proceder ao seu despedimento, sendo certo que, como vimos, invoca ainda que em data anterior à cessação do contrato nunca lhe foi remetida carta de decisão do despedimento.
Daí que se perceba que a Autora em sede de exercício do contraditório antes da prolação da decisão recorrida tenha vindo invocar que a única carta que lhe foi remetida data de 1-02-2022, mas apenas lhe foi remetida em 3-06-2022 por email dirigido à Autora já após termo do vínculo laboral conforme documento que entretanto juntou aos autos em 12-05-2023. Isto porque essa data tinha efetivamente ficado em aberto na petição inicial, ainda que a Autora tenha dito na petição inicial que em data anterior à cessação do contrato nunca lhe foi remetida carta de despedimento.
Do mesmo passo, se compreende a afirmação da Autora, também em sede de exercício do contraditório, de que “na data da cessação do contrato (30/04/2022), a trabalhadora não tinha qualquer documento que fundamentasse a extinção do contrato (…)”.
Sublinhe-se que, não contendo o Código do Trabalho uma definição de despedimento, podemos dizer, segundo a doutrina e a jurisprudência, que o mesmo se traduz na rutura da relação laboral, por ato unilateral da entidade patronal, consubstanciado em manifestação da vontade de fazer cessar o contrato de trabalho, ato esse de caráter recetício (ou seja, para ser eficaz deve ser obrigatoriamente levado ao conhecimento do trabalhador)
[15]
. O efeito extintivo do contrato verifica-se depois de recebida pelo trabalhador ou de ser dele conhecida a decisão de despedimento (artigo 224.º do Código Civil), tornando-se tal decisão irrevogável a partir do momento em que é recebida.
Recorrendo às palavras de Pedro Furtado Martins
[16]
, “
(…)
o despedimento configura-se como uma declaração de vontade, recipienda (ou receptícia), vinculada e constitutiva, dirigida à contraparte, com o fim de cessar o contrato de trabalho para o futuro”.
O referido documento n.º 7 junto com a petição inicial, salvo melhor opinião, não constitui, por si e sem mais, uma declaração inequívoca de despedimento, nem do mesmo se pode retirar sequer que tal comunicação escrita tenha sido levada ao conhecimento da Autora em data anterior à da invocada cessação do contrato.
Atente-se que tal comunicação, datada de 1-02-2022, tem uma primeira parte em que refere comunicar a decisão de proceder ao despedimento da Autora com data de 30-04-2022, em consequência da necessidade de extinguir o posto de trabalho da Autora, mas também refere logo de seguida que a comunicação é nos termos do artigo 369.º, n.º 1, do CT/2009.
Este último normativo refere-se às comunicações a efetuar em caso de despedimento por extinção do posto de trabalho, entre as quais figura a comunicação ao trabalhador envolvido da necessidade de extinguir o posto de trabalho e da necessidade de despedir o trabalhador afeto ao posto de trabalho a extinguir, sendo que nos dez dias posteriores a tal comunicação o trabalhador envolvido pode transmitir ao empregador o seu parecer fundamentado, nomeadamente sobre os motivos invocados, os requisitos previstos no artigo 368.º, n.º 1, do CT/2009 ou os critérios a que se refere o n.º 2 do mesmo artigo, bem como as alternativas que permitam atenuar os efeitos do despedimento (artigo 370.º, n.º 1, do CT/2009).
A verdade é que a comunicação junta como documento 7 termina nos seguintes termos: “
Mais informamos que poderá emitir parecer fundamentado no prazo de 10 dias a contar da data da presente comunicação
”.
O que reforça a ideia de comunicação prévia a que alude o artigo 369.º, n.º 1, do CT/2009, e isto independentemente de aferir se tal comunicação cumpre ou não a referência às menções obrigatórias previstas nesse normativo.
Nessa decorrência, nem sequer se pode afirmar que o documento em causa fosse suficiente para, por si só e sem mais, instruir o formulário para instauração da ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento.
Em conclusão, face à petição inicial apresentada e documentação junta, não pode considerar-se que a presente situação consubstancie uma situação em que o próprio despedimento está demonstrado, uma vez que nos autos não está assente, antes estando controvertido, que a comunicação do despedimento tenha sido feita pela Ré à Autora por forma escrita (atente-se na noção de despedimento atrás enunciada, em que a comunicação do despedimento é uma declaração recetícia).
Assim, e face às considerações atrás tecidas no que respeita ao âmbito de aplicação da ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, considera-se que, na verdade, no presente caso, não é aplicável tal ação com forma de processo especial, antes sendo o processo comum o meio processual adequado. Ou seja, a trabalhadora, a fim de fazer valer os seus direitos emergentes da invocada cessação do seu contrato de trabalho, nomeadamente por cessação ilícita, tinha que ter lançado mão, como lançou, da ação com processo comum.
Por último, importa dizer que não nos revemos minimamente nas considerações tecidas na decisão recorrida quando refere o seguinte:
“
Perante um eventual despedimento verbal em data anterior à missiva junta como doc. 7 à petição inicial, como alegado pela Autora, sempre o envio posterior do email em apreço, com cópia da missiva, que configura, validamente ou não, uma efetiva declaração de despedimento efetivo por escrito dirigida à Autora, envio esse anterior à interposição da presente ação, assumiria preponderância face ao despedimento verbal anterior, convolando-o em despedimento por escrito, e, como tal, sujeito a forma especial.
Ou seja, ainda que se comprove, como referido pela Autora, que a mesma foi despedida verbalmente antes da receção de tal email – por si invocado como correspondendo a 3-6-2022 – sempre a receção do mesmo antes da entrada em juízo da presente ação, a 21-3-2023, determinaria, em qualquer caso, a imposição de forma especial ao presente processo, considerando o disposto nos arts. 98º-C e 98º-D do CPT.”.
Chamamos aqui à colação as considerações supra efetuadas àcerca da definição do despedimento.
Reitere-se que o despedimento configura uma declaração unilateral e recetícia, tornando-se eficaz, produzindo os seus efeitos, a partir do momento em que é recebida ou se torna cognoscível pelo destinatário, no caso, a trabalhadora, nos termos do artigo 224.º do Código Civil.
No caso de ter sido feita à trabalhadora uma comunicação de despedimento verbal, ou seja, caso a trabalhadora tenha recebido essa comunicação por declaração verbal da Ré, mesmo alegando a extinção do posto de trabalho, essa decisão tornou-se irrevogável com a sua receção/conhecimento pela trabalhadora, acarretando que uma eventual comunicação escrita ulterior da Ré no mesmo sentido seja inócua e despida de eficácia jurídica.
Sobre uma situação semelhante veja-se o Acórdão desta Secção Social de 25-06-2012
[17]
, convocado no parecer do Exmo Procurador-Geral Adjunto, em cujo sumário se pode ler:
“I – O CPT 2010 criou a acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, que segue os termos do processo especial previsto nos Art.ºs 98.º-B a 98.º-P.
II – O processo especial é aplicável aos casos em que o despedimento tenha sido comunicado ao trabalhador, por escrito - Art.º 98.º-C, n.º 1 do mesmo diploma.
III – Se o empregador despediu o trabalhador verbalmente e, posteriormente, declarou despedi-lo através de carta, o despedimento ocorreu com a declaração verbal.
IV – Por isso, nestas circunstâncias, para impugnar o despedimento, deve o trabalhador lançar mão do processo comum, por ser o meio processual adequado.”
Não é, pois, pelo facto de a trabalhadora ter recebido posteriormente à produção de efeitos do despedimento verbal uma comunicação escrita de despedimento, ainda que em momento anterior à instauração da ação em tribunal, que ditaria a imposição da aplicação da ação com processo especial para impugnação do despedimento.
Em síntese, o presente recurso é procedente e a decisão recorrida deve ser revogada com o prosseguimento dos autos na sua normal marcha processual, enquanto processo comum.
***
*
V – DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto,
em julgar procedente a apelação
com a consequente revogação da decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que ordene o prosseguimento normal da tramitação dos autos, enquanto processo comum.
Custas do recurso pela Ré/Recorrida.
Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC, anexa-se o sumário do presente acórdão, da responsabilidade da relatora.
Notifique e registe.
(texto processado e revisto pela relatora, assinado eletronicamente)
Porto, 7 de abril de 2025
Germana Ferreira Lopes
Rita Romeira
António Luís Carvalhão
________________
[1] Consigna-se que em todas as transcrições será respeitado o original, com a salvaguarda da correção de lapsos materiais evidentes e de sublinhados/realces que não serão mantidos.
[2] Processo n.º 2817/18.0T8PNF.P1.S1, Relator Conselheiro Tomé Gomes, acessível in www.dgsi.pt, local onde se mostram disponíveis os demais Acórdãos infra a referenciar, desde que o sejam sem menção expressa em sentido adverso.
[3] Neste sentido, vejam-se, entre outros, os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: de 5-07-2018 (processo n.º 131/16.5T8MAI-A.P1.S1., Relator Conselheiro Abrantes Geraldes); de 27-11-2018 (processo n.º 28107/15.2T8LSB.L1.S1, Relator Conselheiro Júlio Gomes); de 19-12-2018 (processo n.º 10776/15.5T8PRT.P1.S1, Relator Conselheiro Henrique Araújo); de 2-05-2019 (processo n.º 7907/16.1T8VNG.P1.S1, Relator Conselheiro Bernardino Domingos), de 9-11-2022 (processo n.º 539/22.7T8STS.P1.S1, Relator Luís Espírito Santo) e de 25-06-2024 (processo n.º 197/09.4TYVNG-BI.P1.S1, Relatora Maria Olinda Garcia).
[4] In “Recursos em Processo Civil – Recursos nos Processos Especiais, Recursos no Processo do Trabalho”, Almedina, 7ª edição atualizada, 2022, pág. 187, nota de rodapé 321, 2.º parágrafo.
[5] Adiante CPC.
[6] Adiante CPT.
[7] Adiante CT/2009.
[8] Cfr. Paulo Sousa Pinheiro, “Ação da Impugnação Judicial da Regularidade e Licitude do Despedimento”, in “Direito do Trabalho+Crise=Crise do Direito do Trabalho?”, Coimbra, 2011, pág. 194); Susana Silveira, “Nova Acção da Impugnação Judicial da Regularidade e Licitude do Despedimento”, in Julgar, nº 15, set-dez 2011, ASJP, Coimbra Editora, págs. 83 e seguintes.
[9] In A nova acção de impugnação do despedimento e a revisão do Código de Processo do Trabalho, Coimbra Editora, pág. 73.
[10] In Cessação do Contrato de Trabalho, 3.ª edição, págs. 398/399.
[11] Cfr. Acção de Impugnação da Regularidade e Licitude do Despedimento, Coleção Formação Inicial, Jurisdição do Trabalho e da Empresa, abril de 2015, Centro de Estudos Judiciários, pág. 36; Almeida, José Eusébio, “A nova acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento”, in Prontuário de Direito do Trabalho, nº 85, jan-abr 2010, CEJ/Coimbra Editora, pág. 102-103.
[12] Processo nº 315/11.2TTFIG.C1, relatado pelo hoje Juiz Conselheiro Ramalho Pinto - acessível in www.dgsi.pt, local onde se mostram disponíveis os demais Acórdãos infra a referenciar, desde que o sejam sem menção expressa em sentido adverso.
[13] Processo n.º 1078/10.4TTGDM.P1, Relator Desembargador Manuel Joaquim Ferreira da Costa.
[14] Processo n.º 2175/22.9T8PNF.P1, relatado pela hoje Juíza Conselheira Paula Leal de Carvalho.
[15] Cfr., na jurisprudência, o Acórdão do Supremo Tribunal de 17-03-2016, processo nº 216/14.2TTVRL.G1.S1, Relator Conselheiro António Leones Dantas e, na doutrina, Bernardo da Gama Lobo Xavier, Curso de Direito do Trabalho, 2.ª Edição, Verbo, Lisboa, 1996, pág. 478.
[16] In Despedimento ilícito, Reintegração na Empresa e Dever de Ocupação Efectiva, Suplemento de “Direito e Justiça” – Revista da FDUCP, 1992, pág. 37.
[17] Processo n.º 247/11.4TTGMR.P1, Relator Desembargador Manuel Joaquim Ferreira da Costa.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/f8e705dabb0e69bf80258c6f003c8ec0?OpenDocument
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1,738,195,200,000
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IMPROCEDENTE
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135249/23.2YIPRT.L1-8
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135249/23.2YIPRT.L1-8
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TERESA SANDIÃES
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A obrigação é ilíquida quando não se encontra determinada em relação à sua quantidade, carecendo da efetivação de cálculos aritméticos ou do apuramento de factos que permitam a sua quantificação.
A divergência das partes em relação ao valor da obrigação não confere automaticamente à obrigação um carácter ilíquido.
Apenas as prescrições presuntivas se fundam na presunção de cumprimento (artº 312º do CC), pelo que, estando em causa prescrição extintiva, é irrelevante que a R. não tenha alegado o pagamento.
Em relação a custos de cobrança dois regimes são aplicáveis, dependendo da respetiva origem: o do artº 7º do DL 62/2013 de 10 de maio e o do regime de custas de parte. Importa, assim, distinguir entre custos de cobrança extrajudicial (de natureza administrativa ou outra) e custos de cobrança judicial (honorários com advogados, etc.), sendo exigível a alegação da sua origem.
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[
"OBRIGAÇÃO ILÍQUIDA",
"VALOR DA OBRIGAÇÃO",
"DIVERGÊNCIA ENTRE AS PARTES",
"PRESCRIÇÃO EXTINTIVA",
"PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO",
"CUSTOS DE COBRANÇA"
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Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa
Em 23/11/2023 Metropolitano de Lisboa, E.P.E. intentou procedimento de injunção, posteriormente transmutado em ação de processo comum, contra Ar Telecom – Acessos e Redes de Telecomunicações, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 463.382,93, a título de capital em dívida, acrescido de juros de mora vencidos, no valor de € 28 511,01, e vincendos. Mais peticionou a condenação da R. no pagamento das quantias de € 40,00 a título de custos de cobrança, e de € 153,00, a título de taxa de justiça.
Alegou, em síntese, que entre requerente e requerida (anteriormente denominada por JAZZTEL Portugal – Serviços de Telecomunicações, S.A.) foi celebrado um contrato de aluguer de fibra ótica escura e de prestação de serviços de manutenção, em 25/10/2001, por um período de 5 anos (termo a 25.10.2006). No âmbito da referida transação comercial a requerente alugou fibra ótica escura e prestou os serviços de manutenção, sendo devido pela requerida o pagamento do preço definido a ser pago antecipada e trimestralmente, entre os dias 1 e 15 do primeiro mês de cada trimestre, com prazo de pagamento de 30 dias após emissão da fatura. Após várias interpelações para liquidar as faturas - entre as quais a última enviada por carta registada com AR a 10/10/2023 -, a requerida não respondeu nem liquidou a dívida titulada pelas faturas vencidas, no total de € 463.382,93. Nos termos do contrato são devidos juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, calculados à taxa Euribor de um mês acrescida de 1%, conforme estabelecido no n.º 3 da cláusula 5.ª do Contrato, referentes aos últimos 5 anos, conforme estabelecido no art. 310.º d) do Código Civil.
A R., notificada em 12/12/2023, deduziu oposição. Alegou, em síntese, que em 01.04.2003, o requerente e a requerida firmaram uma adenda ao contrato, reduzindo temporariamente, entre 01.04.2003 a 31.12.2003, os troços de fibra ótica escura alugados, bem como as infraestruturas cedidas e os serviços prestados pelo ML e, consequentemente, o custo associado. Findo este período, a requerida desde logo propôs a realização de reuniões com o objetivo de proceder a uma atualização do contrato, através da análise e revisão das condições comerciais em vigor e consequente implementação de novas condições ajustadas à realidade praticada no mercado da fibra. Após a realização de algumas reuniões em 25.10.2004 e 13.01.2005, em que o requerente se mostrava disponível para rever as condições contratuais, a requerida dirigiu várias missivas ao requerente no sentido de concretizar e formalizar o novo acordo, às quais aquele nunca respondeu. A requerida não aceitou os valores faturados pela requerente e procedeu à devolução das faturas emitidas, por as mesmas se encontrarem em desacordo com os preços em discussão pelas partes desde o início de 2005. Ao caso é aplicável o prazo de prescrição de 5 anos quanto às rendas ou alugueres e aos inerentes serviços de manutenção (artº 310º, als. b) e g) do CC), pelo que na data em que o requerimento de injunção foi proposto, os créditos reclamados mostravam-se prescritos. A exigência do pagamento das referidas prestações é atentatória da boa-fé, consubstanciando um abuso de direito na modalidade de
venire contra factum proprium
. A renegociação e estipulação de novas condições contratuais no âmbito do contrato de aluguer de fibra ótica escura celebrado criou expectativas e uma situação de confiança na requerida, por parte do requerente, frustrando as expectativas criadas na requerida e quebrando a legítima confiança depositada, violando os deveres de boa-fé e de lealdade que se lhe impunham, valendo-se da prolação apenas e só por si causada e mantendo-se inertes até ao fim do contrato para continuar a faturar. Mais alegou que não são devidos os valores reclamados a título de custos de cobrança e de taxa de justiça.
A A., notificada para responder à matéria de exceção, pugnou pela sua improcedência, tendo alegado que emitiu as faturas ao abrigo do contrato e pelo preço estipulado na cláusula 5ª e anexo 5, tal como temporariamente, a redução do preço ao abrigo do Adicional 1, prazo após o qual, de acordo com o invocado pela R, iniciaram as partes conversações no sentido da renegociação e estipulação de novas condições contratuais. Mais alegou que a requerida confessou no artº 18º da oposição que é devedora do preço, tendo devolvido as faturas por estarem em desacordo com o preço entretanto estipulado. A R. alegou a existência de modificações substanciais da relação contratual firmada com repercussões no preço, impendendo sobre a R., que invoca o facto modificativo, a obrigação de promover tal apuramento, tendo o ónus de o quantificar. Aduziu que, tratando-se de dívida ilíquida, a prescrição só começará a correr, assim que o direito puder ser exercido, ou seja, quando a dívida se tornar líquida, pelo que, nos termos do disposto no art.º 306.º n.º 1 do Código Civil, o direito do A. não se encontra prescrito porquanto ilíquido.
Com dispensa de realização de audiência prévia foi proferido despacho saneador sentença, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgo a presente ação improcedente e, consequentemente, decido absolver a Ré do pedido.
Custas pela Autora.”
A A. interpôs recurso da sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
“A. A Recorrente impugna a Sentença Judicial em que, tendo sido julgada “a presente ação totalmente procedente por provada”, em virtude de não terem sido dados como provados alguns factos que o deveriam ter sido e a mesma aplicar erroneamente o Direito a esses mesmos factos não tendo valorado devidamente os mesmos.
Com efeito,
B. Deverá ser tomado em consideração, e aditado à matéria de facto provada o artigo 3.º da fundamentação do Requerimento de Injunção, porquanto a Recorrente não se manteve inactiva desde o vencimento da dívida até ao momento da propositura da injunção, tendo ao longo dos anos interpelado extrajudicialmente a Recorrida para pagamento das faturas em dívida, facto este que não foi contestado em sede de oposição à injunção, nem a montante valorado na Sentença Judicial em crise.
C. Deste facto a aditar à matéria de facto provada decorre que a Recorrente não se encontra em abuso de direito na vertente venire contra factum proprium, porquanto sempre foi relembrando a Recorrida da existência da sua dívida.
D. Acresce que a Recorrida justificou a falta de pagamento das faturas alegando que o respetivo valor correto não se encontra ainda fixado invocando a existência de negociações entre as partes para a fixação do valor do montante devido à Recorrente.
E. O artigo 306.º do Código Civil determina no seu n.º 1 que “O prazo de prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido” o que, no caso presente, apenas ocorre quando a dívida for líquida.
F. Acresce que, na presente ação, a Recorrida veio invocar expressamente a iliquidez da dívida afirmando que os valores reclamados pela Recorrente na ação encontravam-se pendentes de um acordo e de negociações entre as partes.
G. A alegação da iliquidez e inexigibilidade da dívida pela Recorrida traduz uma situação de venire contra factum proprium e, nessa medida, mostra-se incompatível com a alegação da prescrição da dívida.
H. Ou seja, não é lícito ao devedor alegar simultaneamente a prescrição da dívida e a sua inexigibilidade.
I. Pelo que a sentença proferida pelo tribunal, ao considerar prescrita a dívida, quando a Recorrida alega a sua inexigibilidade violou o disposto no n.º 1 do artigo 310.º do Código Civil.
J. A Recorrente tem o direito a ser ressarcida pelos custos de cobrança nos termos do disposto no art. 7º do DL nº 62/2013, de 10 de maio - diploma que estabelece medidas contra os atrasos de pagamento de transações comerciais, transpondo a Diretiva 2011/7/EU -, ao prever uma indemnização de 40 euros a título de indemnização pelos custos de cobrança da dívida, de caráter automático, e autónomo em relação às taxas de justiça.
K. Aliás, reforce-se: em nenhum articulado foi referido pela Recorrida que havia procedido ao pagamento.
L. Ora, as negociações invocadas e o suposto valor delas resultante configuram um facto novo, trazido aos autos pela Recorrida, que configura um facto modificativo. Ora, a prova do facto incumbe à parte que o invoca, logo daqui decorre que se o valor é outro que não o peticionado pela ora Recorrente, é àquela que incumbe indicar e provar.
M. Assim, não se pode considerar a dívida em causa nos autos como líquida e por conseguinte não se pode ter como iniciada a contagem do prazo prescricional de 5 anos, não estando reunidos os pressupostos para a verificação da prescrição de tais créditos.
N. Ademais, não poderá igualmente ser a Recorrente condenada ao pagamento dos “custos de cobrança” por não ter provado os mesmos. Como supra referido os custos de cobrança (que pressupõe o aditamento do facto provado referido em B.) em valor mínimo de 40,00€ são devidos independentemente de prova. Estes são de caráter automático, e autónomo em relação a eventuais taxas de justiça que se venham a peticionar ao abrigo do disposto no art. 7.º do DL n.º 62/2013, de 10/05, constituindo parte integrante do formulário do requerimento de injunção entregue tratando-se de uma estatuição legal que garante um valor mínimo compensatório à parte lesada que pode ter incorrido em despesas que não as teria, se não fosse o incumprimento – incumprimento este que foi admitido por confissão, e independentemente de ganho de causa.
Nestes termos e nos demais de Direito julgados aplicáveis, deverá ser concedido provimento ao presente Recurso de Apelação interposto pela Recorrente e, em consequência ser revogada a Sentença Judicial proferida em 10.09.2024, na parte em que julgou verificada a exceção perentória de prescrição e, em consequência absolveu a Requerida do pedido, e substituída por outra, que julgue improcedente a exceção invocada, sendo a Requerida condenada no pagamento dos valores peticionados em sede de requerimento de injunção.
A R. apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, sem que tenha formulado conclusões.
*
A decisão recorrida considerou como provada a seguinte matéria de facto:
“
1. A Requerida é uma sociedade que tem por objeto a atividade de operador de redes de telecomunicações e de prestação de serviços de telecomunicações no território nacional.
2. A Requerente é uma empresa pública que tem por objetivo manter e desenvolver o funcionamento regular do serviço público de transporte coletivo fundado essencialmente no subsolo da cidade de Lisboa e zonas limítrofes.
3. Entre Requerente e Requerida (anteriormente denominada por JAZZTEL Portugal – Serviços de Telecomunicações, S.A.) foi celebrado o contrato n.º 72/2021- ML - Contrato de Aluguer de Fibra Óptica Escura e de Prestação de Serviços de Manutenção, em 25.10.2001, por um período de 5 anos.
4. Nos termos da Cláusula Terceira do Contrato, o objeto englobava (i) o aluguer de fibra ótica escura, com a utilização das calhas técnicas existentes, condutas de ventilação e outros acessos, e a ocupação de espaços de salas técnicas e (ii) os serviços de manutenção à estrutura de rede.
5. Como contrapartida, a Requerida obrigou-se ao pagamento trimestral, entre os dias 1 e 15 do primeiro mês de cada trimestre, dos valores constantes da Tabela de Preços junta como Anexo 5 ao Contrato.
6. A Autora emitiu e enviou à Ré as seguintes faturas:
- Fatura n.º 25341, no montante de € 63 630,00, emitida a 14.10.2005 e vencida a 13.11.2005, referente ao 4.º trimestre de 2005;
- Fatura n.º 25343, no montante de € 190 892,23, emitida a 24.10.2005 e vencida a 23.11.2005, referente ao 1.º, 2.º e 3.º trimestre de 2005;
- Fatura n.º 26091, no montante de € 128 016,60, emitida a 28.04.2006 e vencida a 28.05.2006, referente ao 1.º, 2.º trimestre de 2006;
- Fatura n.º 26177, no montante de € 64 008,30, emitida a 21.07.2006 e vencida a 20.08.2006, referente ao 3.º trimestre de 2006;
- Fatura n.º 26266, no montante de € 16 835,06, emitida a 19.10.2006 e vencida a 18.11.2006, referente ao 4.º trimestre de 2006.
7. Nos termos da Cláusula 5ª, nº 3, do Contrato, os juros de mora são calculados à taxa Euribor de um mês acrescida de 1%.
8. Em 01/04/2003, as partes firmaram uma adenda ao referido Contrato, reduzindo temporariamente, entre 01/04/2003 a 31/12/2003, os troços de fibra ótica escura alugados, bem como as infraestruturas cedidas e os serviços prestados.
9. Prazo após o qual iniciaram as partes conversações no sentido da renegociação e estipulação de novas condições contratuais.
10. Após a realização de algumas reuniões em 25/10/2004 e 13/01/2005, a Ré dirigiu várias missivas à Autora no sentido de concretizar e formalizar o novo acordo, às quais a Autora nunca respondeu.
11. A Ré não aceitou os valores faturados pela Autora e procedeu à devolução das faturas emitidas, por as mesmas se encontrarem em desacordo com os preços em discussão pelas partes desde o início de 2005.
*
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e das que forem de conhecimento oficioso (arts. 635º e 639º do NCPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do NCPC).
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1. Do aditamento aos factos provados
2. Da iliquidez e inexigibilidade dos créditos reclamados/da prescrição
3. Dos custos de cobrança
*
1.
Do aditamento aos factos provados
A apelada pugnou pela rejeição do recurso da decisão de facto por não ter sido observado o disposto no artº 640º do CPC, concretamente a especificação dos concretos meios de prova.
A apelante pretende que seja aditado aos factos provados o constante do ponto 3 do requerimento de injunção, por não ter o mesmo sido impugnado na oposição. Entende decorrer de tal factualidade que não se manteve inativa desde o vencimento da dívida até ao momento da propositura da injunção, tendo ao longo dos anos interpelado extrajudicialmente a Recorrida para pagamento das faturas em dívida, daqui concluindo que não se encontra em abuso de direito na vertente de
venire contra factum proprium
.
Para o efeito invocou o disposto o artº 567.º, n.º 1, do CPC – preceito manifestamente inaplicável, pois a R. apresentou oposição, pelo que cremos que a sua indicação decorre de lapso material, pretendendo-se invocar o disposto no artº 574º, nº 2, 1ª parte, atenta a fundamentação apresentada (facto admitido por acordo, porquanto não impugnado).
Dispõe o artº 574º, nº 2 do CPC que “consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior”.
A pretensão da apelante deve ser apreciada ao abrigo do disposto nos artºs 607º, nº 4, 2ª parte (ex vi do artº 663º, nº 2) e 662º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais a Relação, mesmo oficiosamente, pode e deve “tomar em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência” – e não no âmbito da impugnação de facto, nos termos do artº 640º do CPC.
O ponto 3 do requerimento de injunção é do seguinte teor:
“Após várias interpelações para liquidar as faturas abaixo elencadas - entre as quais a última enviada por carta Registada com AR a 10.10.2023 -, a Requerida não respondeu nem liquidou a divida titulada pelas seguintes faturas vencidas: (…)”
A R. não impugnou especificadamente o facto em causa. Todavia, a alegação de
“várias interpelações para pagamento das faturas”
encontra-se em oposição com o conjunto da peça processual oposição apresentada pela R., em particular com o teor dos artºs 42º a 46º, pelo que não há que considerar admitida por acordo a factualidade constante do ponto 3 do requerimento de injunção.
A apelante labora em equívoco ao pretender, por esta via, afastar o abuso de direito que lhe foi imputado pela R.. É que a decisão recorrida não conheceu deste fundamento invocado pela defesa, tendo a ação sido julgado improcedente com fundamento na prescrição.
Pelo exposto, não se procede ao pretendido aditamento à matéria de facto provada.
*
2. Da iliquidez e inexigibilidade dos créditos reclamados/da prescrição
Defende a apelante que, alegando a R. que o crédito da A. é ilíquido e inexigível, o prazo da prescrição apenas começa a correr quando a dívida for líquida, nos termos do disposto no artº 306º, nº 1 do CC. Mais aduziu que estando em causa prescrição presuntiva, não pode a mesma proceder uma vez que a R. não alegou o pagamento. Entende, ainda, que as negociações invocadas e o suposto valor delas resultante configuram um facto novo, trazido aos autos pela R., que configura um facto modificativo, cuja prova incumbe à parte que o invoca; se o valor é outro que não o peticionado pela ora A., é àquela que incumbe indicar e provar.
Dispõe o artº 306º do CC que:
“1. O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição.
2. A prescrição de direitos sujeitos a condição suspensiva ou termo inicial só começa depois de a condição se verificar ou o termo se vencer.
3. Se for estipulado que o devedor cumprirá quando puder, ou o prazo for deixado ao arbítrio do devedor, a prescrição só começa a correr depois da morte dele.
4. Se a dívida for ilíquida, a prescrição começa a correr desde que ao credor seja lícito promover a liquidação; promovida a liquidação, a prescrição do resultado líquido começa a correr desde que seja feito o seu apuramento por acordo ou sentença passada em julgado.”
É o nº 4 que regula a contagem do prazo da prescrição no caso de dívida ilíquida.
Importa, pois, determinar se está em causa dívida ilíquida.
”A obrigação é ilíquida quando não se encontra determinada em relação à sua quantidade, carecendo da efetivação de cálculos aritméticos ou do apuramento de factos que permitam a sua quantificação. “
[i]
“I – A mera circunstância de ser controvertido o valor da obrigação – por força de desacordo ou divergência das partes relativamente à verificação ou interpretação de determinados factos ou circunstâncias – não é bastante para conferir à obrigação um carácter ilíquido.
II – Para que se possa falar em obrigação ilíquida é necessário que o seu valor não esteja apurado ou não seja conhecido das partes (ou, pelo menos, do devedor), quer porque está dependente de factos ou operações adicionais que ainda não ocorreram ou não foram realizadas, quer porque esses factos ou operações ainda não foram levados ao conhecimento do devedor, de tal forma que este não está em condições de saber qual o exacto conteúdo da sua obrigação.
III – Se a indefinição do valor da obrigação resulta apenas da circunstância de as partes estarem em desacordo acerca do preço previamente contratado, não estamos perante uma obrigação ilíquida, ainda que, por efeito da prova produzida acerca do facto controvertido, a obrigação venha a ser fixada pelo tribunal em valor inferior àquele que era peticionado pelo credor.”
[ii]
A A./apelante não alegou nem peticionou a condenação da R. em dívida ilíquida, antes formulou pedido líquido, em conformidade com as faturas discriminadas no requerimento de injunção, cada uma delas com montante determinado. Por seu turno, a R. não aceitou os valores das referidas faturas, discordando dos mesmos, alegando que decorreram negociações para alteração dos valores devidos, sem resultado firmado.
Não só não foi peticionada dívida ilíquida, como a R. nunca assim a qualificou.
Em suma, os créditos reclamados são líquidos.
A A. e a R. celebraram um contrato de aluguer de fibra ótica escura, com a utilização das calhas técnicas existentes, condutas de ventilação e outros acessos, e a ocupação de espaços de salas técnicas e serviços de manutenção à estrutura de rede, incumbindo à R. o pagamento trimestral, entre os dias 1 e 15 do primeiro mês de cada trimestre, dos valores constantes da Tabela de Preços junta como Anexo 5 ao Contrato.
Os créditos reclamados pela apelante respeitam a alugueres, serviços de manutenção e juros. Os serviços de manutenção constituem uma prestação periodicamente renovável. Como referido na sentença “surgem no âmbito de obrigações duradouras cuja exigibilidade surge reiterada e periodicamente ao longo da duração do contrato respetivo mas com autonomia entre a prestação periódica e a relação jurídica unitária de onde deriva.”
O artº 310º do CC estabelece que:
“Prescrevem no prazo de cinco anos:
a) As anuidades de rendas perpétuas ou vitalícias;
b) As rendas e alugueres devidos pelo locatário, ainda que pagos por uma só vez;
c) Os foros;
d) Os juros convencionais ou legais, ainda que ilíquidos, e os dividendos das sociedades;
e) As quotas de amortização do capital pagáveis com os juros;
f) As pensões alimentícias vencidas;
g) Quaisquer outras prestações periodicamente renováveis.
“As razões justificativas das prescrições de curto prazo do artº 310º, do C.C. são a da protecção da certeza e segurança do tráfico, a conveniência de se evitarem os riscos de uma apreciação judicial a longa distância, principalmente quando se requeira a prova testemunhal dos factos e, “last but not the least”, evitar que o credor deixasse acumular excessivamente os seus créditos, para proteger o devedor da onerosidade excessiva que representaria, muito mais tarde, a exigência do pagamento, procurando-se obstar a situações de ruína económica”
[iii]
Ao invés do defendido pela apelante é aplicável aos alugueres, serviços de manutenção e juros o prazo de prescrição de 5 anos previsto no artº 310, als. b), d) e g) do CC.
Trata-se de prescrição extintiva e não presuntiva. A esta referem-se os artigos 312º a 317º do CC.
Apenas as prescrições presuntivas se fundam na presunção de cumprimento (artº 312º do CC), pelo que é absolutamente irrelevante que a R. não tenha alegado o pagamento.
E não restam dúvidas de que, nos termos do disposto no artº 306º, nº 1 do CC, o prazo da prescrição dos alugueres e serviços de manutenção começou a correr na data do vencimento/exigibilidade de cada uma das faturas, ou seja, em 13/11/2005, 23/11/2005, 28/05/2006, 20/08/2006 e 18/11/2006.
Os juros reclamados estão também sujeitos ao prazo prescricional de 5 anos (alínea d) do artº 310º).
O artº 323º do CC estabelece que:
”1. A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.
2. Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias.
3. A anulação da citação ou notificação não impede o efeito interruptivo previsto nos números anteriores.
4. É equiparado à citação ou notificação, para efeitos deste artigo, qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do ato àquele contra quem o direito pode ser exercido.”
O requerimento de injunção deu entrada em 23/11/2023 e a R. foi notificada em 12/12/2023, pelo que nesta última data já tinham decorrido 17 anos sobre a data de vencimento da última fatura.
A apelante alega que, em resposta à exceção deduzida pela R. na oposição, aceitou, por confissão, o reconhecimento por parte daquela, da dívida em apreço, resultante do vertido no artigo 18 da oposição, e do facto de a mesma, em local algum ter referido que tinha pago ou liquidado as referidas faturas. A alegação prende-se com a tese defendida de que está em causa uma prescrição presuntiva, fundamento já apreciado.
O artº 18º da oposição é do seguinte teor: “
A Requerida não aceitou os valores faturados pela Requerente e procedeu à devolução das faturas emitidas, por as mesmas se encontrarem em desacordo com os preços em discussão pelas partes desde o início de 2005.”
Sobre o reconhecimento do direito dispõe o artº 325º do CC que:
1. A prescrição é ainda interrompida pelo reconhecimento do direito, efetuado perante o respetivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido.
2.
O reconhecimento tácito só é relevante quando resulte de factos que inequivocamente o exprimam.”
Ainda que do artº 18º da oposição fosse possível extrair o reconhecimento do direito, não tinha o mesmo a virtualidade de interromper a prescrição, porque quando a oposição foi apresentada (em 08/01/2024) já se mostrava exaurido o prazo de 5 anos. As causas de interrupção da prescrição apenas relevam se verificadas no decurso do respetivo prazo prescricional e não depois de esgotado o mesmo.
Salienta-se que no requerimento de injunção a A. peticionou os juros de mora
“referentes aos últimos 5 anos, conforme estabelecido no art. 310.º d) do Código Civil
”. Tais juros mostram-se prescritos, nos termos do disposto no artº 310º, al. d) do CC.
Conclui-se, assim, pela verificação da prescrição em relação a todas as quantias referentes a alugueres, serviços de manutenção e juros, mostrando-se prejudicados os demais argumentos expendidos, designadamente a existência de uma situação de
venire contra factum proprium
decorrente da alegação da iliquidez e inexigibilidade da dívida pela R., por se mostrar incompatível com a alegação da prescrição da dívida.
3.
Do custo de cobrança
Apenas em sede do presente recurso veio a apelante defender que o custo de cobrança de € 40,00 peticionado é devido, nos termos do disposto no artº 7º do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, sendo automático e autónomo em relação a eventuais taxas de justiça, não dependendo de prova.
Dispõe o preceito citado que “quando se vençam juros de mora em transações comerciais, nos termos dos artigos 4.º e 5.º, o credor tem direito a receber do devedor um montante mínimo de 40,00 EUR (quarenta euros), sem necessidade de interpelação, a título de indemnização pelos custos de cobrança da dívida, sem prejuízo de poder provar que suportou custos razoáveis que excedam aquele montante, nomeadamente com o recurso aos serviços de advogado, solicitador ou agente de execução, e exigir indemnização superior correspondente.”
Nos termos do disposto no artº 3º, al. a) “para efeitos do presente diploma, entende-se por «atraso de pagamento», qualquer falta de pagamento do montante devido no prazo contratual ou legal, tendo o credor cumprido as respetivas obrigações, salvo se o atraso não for imputável ao devedor;”
Perante a factualidade provada não se tem por assente o “atraso no pagamento”, tal como definido, ao que acresce que, havendo que distinguir entre custos de cobrança extrajudicial (de natureza administrativa ou outra) e custos de cobrança judicial (honorários com advogados, etc.), impunha-se que a A./apelante tivesse discriminado em que consistia o custo reclamado, pois dois regimes são aplicáveis, dependendo da origem do custo: o do artº 7º do DL 62/2013 e o do regime de custas de parte.
Ora, no requerimento de injunção a única alusão a tal custo é efetuada no ponto 5, nos seguintes termos: “
A estes valores acresce o pagamento de €40,00 a título de custos de cobrança e taxa de justiça no montante de € 153,00
”, o que é manifestamente insuficiente para que tal verba possa ser considerada devida ao abrigo do diploma citado.
Como se refere no acórdão da Relação de Lisboa de 22/02/2024
[iv]
: ”Relevante para a interpretação da norma em causa importa ainda ter presente o previsto no preâmbulo do DL n.º 62/2013, de 10 de Maio, a saber: “Os credores devem ser ressarcidos de forma justa dos custos suportados com a cobrança de pagamentos em atraso, incluindo os custos administrativos e internos associados com essa cobrança. Conforme previsto na directiva, é estabelecido um valor fixo de 40,00 EUR a título de indemnização pelos custos administrativos e internos associados à cobrança dos pagamentos em atraso, que acresce aos juros de mora devidos, sem prejuízo de o credor poder exigir indemnização superior por danos adicionais resultantes do atraso de pagamento do devedor ou pelos custos incorridos pelo credor com o recurso a serviços de advogado, solicitador ou agente de execução”.
E à luz da letra deste preceito, bem como do que consta do respectivo preâmbulo deste Decreto-Lei, é também nosso entendimento que da compatibilização da norma do art. 7º com o regime relativo às custas de parte, somos forçados a concluir que os “custos de cobrança” aludidos naquela só podem respeitar à cobrança extrajudicial – por exemplo, quando o credor contrata os serviços de um advogado, solicitador ou agente de execução para interpelar o devedor, mas tais custos em nada têm haver com os honorários respeitantes à acção propriamente dita e que só em sede de custas de parte são exigíveis. O mesmo ocorre com os encargos igualmente previstos nas custas de parte, mas que não se reportam a honorários, estes reportar-se-ão aos devidos na acção e não aos eventualmente ocorridos em sede extrajudicial. (…)
Porém, não basta a Autora invocar tal preceito para lhe ser devido tal montante, pois no caso também não alega a que se reportam tais custos, por forma a aferir da sua razoabilidade e por último, já havia indicado no âmbito das facturas peticionadas despesas com cobrança. Por fim, os eventuais custos para a instrução do processo podem efectivamente integrar as custas de parte ( cf. artº 25ºdo RCP) e como tal serão tidas em conta.”
Era no requerimento de injunção que a A. devia ter alegado a origem/natureza dos referidos custos, para que aos mesmos se aplicasse o respetivo regime legal. Não o tendo feito no momento oportuno, precludiu-se o direito de o fazer posteriormente.
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da apelante.
Lisboa, 30 de janeiro de 2025
Teresa Sandiães
Maria Teresa Lopes Catrola
Vitor Manuel Leitão Ribeiro
_______________________________________________________
[i]
Ac. STJ de 30/10/2023, proc. nº 569/22.9T8CHV-B.G1.S1,
www.dgsi.pt
[ii]
Ac. RC de 23.10.2012, proc. nº 2073/10.9T2AVR.C1, in www.dgsi.pt
[iii]
Ac. R.L. de 09/05/06, proc. nº 1815/2006-1, in www.dgsi.pt
[iv]
proc. nº 28180/22.7T8LSB.L1-6, in www.dgsi.pt
|
TRL
|
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/34aad1793de35f9f80258c2a0056d194?OpenDocument
|
1,754,352,000,000
| null |
659/23.0T8SSB.E1
|
659/23.0T8SSB.E1
|
SÓNIA MOURA
|
1. Em ação fundada em acidente de viação, a circunstância dos dois condutores terem praticado infrações estradais não implica que devam automaticamente ser considerados ambos responsáveis pelo acidente, havendo que apurar se essas infrações foram determinantes da sua ocorrência
.
2. Quando se frustre o acordo entre o lesado e a companhia de seguros do lesante e o caso siga para tribunal, não é aqui aplicável o artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08, que rege a formulação de uma proposta razoável na fase extrajudicial, antes deve a indemnização ser arbitrada à luz das regras gerais enunciadas nos artigos 562.º e 566.º do Código Civil
.
3. A esta luz, o conceito de referência é a excessiva onerosidade, a qual não se afere com base na mera comparação do valor venal do veículo com a estimativa do custo de reparação, devendo ser ponderado o valor de uso do veículo para o lesado, de modo que só deve ser recusada a indemnização
in natura
quando a desproporção entre aqueles dois valores seja de tal modo sensível que ofenda o princípio da boa fé.
(Sumário da Relatora)
|
[
"ACIDENTE DE VIAÇÃO",
"CONTRA-ORDENAÇÃO CAUSAL",
"VEÍCULO AUTOMÓVEL",
"VALOR VENAL",
"USO"
] |
Apelação n.º 659/23.0T8SSB.E1
(1ª Secção)
Sumário:
(…)
(Sumário da responsabilidade da Relatora, nos termos do artigo 663.º, n.º 7
,
do Código de Processo Civil)
***
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório
1. (…) intentou a presente ação comum contra (…) Seguros, SA, pedindo a condenação da R. a pagar ao A. o valor de € 15.763,31, a título de danos patrimoniais, a que acrescem juros de mora cíveis vincendos desde a data da citação até efetivo e integral pagamento e o valor de € 4.000,00, a título de danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora cíveis vincendos desde a data da citação até efetivo e integral cumprimento, pelos danos sofridos em consequência do acidente de viação em que o segurado na R. teve culpa exclusiva.
2. Citada regularmente, a R. contestou, pedindo a sua absolvição do pedido.
3. Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“
Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente e decido condenar a R. (…) Seguros, S.A., a pagar ao Autor (…) no montante de € 2.570,50 (dois mil e quinhentos e setenta euros e cinquenta cêntimos), ao que acrescem os juros de mora a contar do transito em julgado, os quais serão calculados à taxa supletiva vigente para os juros civis contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento; e a pagar ao Autor, a título de danos patrimoniais, a quantia de € 1.000,00 (mil euros), ao que acrescem os juros de mora a contar do transito em julgado, os quais serão calculados à mesma taxa supletiva vigente, até efetivo e integral pagamento
.”
4. Inconformado com a sentença, o A. interpôs recurso da mesma, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“
I. A sentença recorrida julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência condenou a R. (…) Seguros, S.A. a pagar ao A. a quantia de € 2.570,50 (dois mil, quinhentos e setenta euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros, calculados à taxa supletiva legal civil, desde o trânsito em julgado até efectivo e integral pagamento bem como ao pagamento ao A., a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 1.000,00 (mil euros).
II. Das declarações de parte do A. e da análise dos documentos juntos aos autos, não podem deixar de resultar como não provados os factos constantes no ponto 23 na parte em que refere
“
com o acordo e conhecimento da 3ª R.
”
e no ponto 25 dos factos assentes da sentença.
III. O Recorrente impugna o quesito 18 dos factos provados bem como impugna os quesitos 1, 5, 9, 11, 13.
IV. O quesito 18 dos factos provados é contraditado quer pelo quesito 1 dado como provado bem como pela documentação junta pela Ré na sua contestação. Já os quesitos 1, 5, 9, 11, 13 dados como não provados são contraditados quer pelo que o Recorrente alegou e não foi contraditado pela Ré, por documentos e bem assim por prova testemunhal produzida na audiência de discussão e julgamento.
V. Há ainda a considerar que factos determinados como não provados apenas o foram pelo Tribunal a quo considerar que a alegação dos mesmos em sede de Petição Inicial não é suficiente, necessitando que a mesma fosse corroborada por declarações de parte, mesmo quando a Ré impugnou mas não contraditou os ditos factos.
VI. Face à errónea qualificação dos factos provados e não provados, é natural que a conclusão de facto e a aplicação do Direita esteja ela própria enfermada de erro.
VII. Desde logo, na fundamentação de facto, entendeu a douta sentença que haveria uma repartição de responsabilidade, colocando o Recorrente e o condutor do veículo seguro pela Ré no mesmo patamar.
VIII. Contudo, como resulta da prova testemunhal, conjugada com a prova documental e bem assim a aplicação das normas legais e regras de experiência, o facto ilícito que determina a existência de danos e que é a mudança de direção promovida pelo condutor da viatura segura pela Ré.
IX. Pese embora se considere que o Recorrente circulava em excesso de velocidade, não é determinado o referido excesso de velocidade. Mas ainda que esse excesso se admita, por mero dever de patrocínio, as condições e extensão da via não oferecem outro resultado que o condutor do veículo seguro pela Ré mudou de direção mesmo tendo a possibilidade de evitar essa ação.
X. O condutor da viatura segura pela Ré agiu com o cuidado e diligência que lhe era exigido, tendo provocado por sua única e exclusiva culpa o sinistro.
XI. Ao invés da aplicação de uma repartição de responsabilidade, a qual carece até de fundamentação, deveria a decisão considerar o condutor do outro veículo, e consequentemente, a Ré, como o único ou responsável maioritário do sinistro.
XII. Mais, determinou o tribunal a quo que o valor venal da viatura do Recorrente seria o referencial para o quantum indemnizatório.
XIII. Não cuidando de considerar que o referido valor venal se encontra enfermado de erro e que é dado como facto assente a estimativa de reparação da própria Ré.
XIV. Deveria a decisão ser enquadrada na aplicação dos artigos 562.º e 566.º, ambos do Código Civil, e que determina que não sendo a reconstituição natural possível, deve ser a indemnização em dinheiro, tendo em conta o dano sofrido.
XV. Em suma, a decisão deveria ser diversa da que ora se impugna, atendendo a errónea qualificação de factos em que assenta a mesma e enferma a fundamentação de facto e direito de erro que influem decisivamente numa tomada de decisão que não se coaduna com o Direito.
Nestes termos, e nos demais de Direito aplicáveis, deverá a decisão ora recorrida ser revogada, devendo ser substituída por outra que condene a R. (…) Seguros, S.A. em todos os pedidos contra si formulados
.”
5. A R. apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
6. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Questões a Decidir
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1
,
do Código de Processo Civil).
Não se encontra também o Tribunal
ad quem
obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3
,
do Código de Processo Civil).
Assim, o A. impugna a decisão da matéria de facto, aludindo, no ponto II. das suas conclusões, aos factos assentes na sentença sob 23 e 25.
Porém, só existem 19 factos provados na sentença, e em nenhum deles se encontra a menção “
com o acordo e conhecimento da 3ª R.
” contida naquele ponto das conclusões, aliás, inexiste 3ª R. nestes autos.
Deste modo, a impugnação da matéria de facto restringe-se ao facto provado 18, e aos factos não provados 1, 5, 9, 11 e 13, conforme enunciado no ponto III das conclusões.
Consequentemente, no caso em apreço importa decidir se deve ser alterada a decisão da matéria de facto e se deve ser alterada a decisão de direito, no sentido de condenar a Ré em todos os pedidos formulados pelo Autor.
III – Fundamentação de Facto
1. No n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, norma atinente à “
modificabilidade da decisão de facto
”, prescreve-se que “
a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
E no artigo 640.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “
ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto
”, estabelece-se que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
2. O Tribunal
a quo
julgou provados e não provados os seguintes factos:
“
III. Factos Provados.
Com interesse para a decisão da causa está provado que:
1. O Autor é proprietário do veículo de matrícula (…), marca Seat, modelo Leon, edição limitada (…);
2. No dia 29 de março de 2022, pelas 16h15m, o Autor deslocava-se, no veículo de matrícula (…), marca Seat, modelo Leon, na Rua dos (…), em Sesimbra;
3. Era uma reta, havia boa visibilidade e assim como as condições meteorológicas eram boas;
4. Existe um sinal de trânsito vertical na Rua dos (…);
5. O Autor circulava a mais de 50 quilómetros por hora, sendo que a velocidade máxima no local 50km/hora;
6. Quando o Autor se encontrava já a poucos metros do entroncamento para a Rua dos (…), (…) faz avançar o seu veículo, de forma a entrar na referida Rua dos (…) mudando a sua direção de marcha à sua esquerda;
7. Em ato contínuo, o Autor colocou o pé ao travão de forma a evitar o embate, algo que se revelou infrutífero;
8. O Autor não conseguiu evitar o embate da zona frontal do seu veículo automóvel com a lateral direita do veículo segurado pela Ré;
9. Após o embate o Autor e o condutor do outro veículo imobilizaram os referidos automóveis;
10. Fruto do embate, o veículo propriedade do Autor sofreu diversos danos na zona frontal, designadamente, no para-brisas, chapa e na direção, além do embate ter provocado a utilização dos airbags;
11. O Autor tem, até aos dias de hoje, receio em abordar entroncamentos quando vem algum veículo no sentido oposto;
12. Tal é o receio que por vezes tem de parar o veículo, atendendo o estado de nervosismo em que fica estando assim limitado no que á condução diz respeito;
13. Após o referido acidente de viação, o Autor colocou o seu veículo na (…) – Reparação de Automóveis, Lda., com sede na Azinhaga (…), Lote 1, 1600-774 Lisboa;
14. Entre a Ré, na qualidade de seguradora, e (…) Jardins, Lda. na qualidade de tomadora, foi celebrado contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel sobre o veículo de matrícula (…), titulado pela apólice n.º (…) e regulado pelas condições particulares juntas ao presente processo;
15. No entroncamento entre a Rua dos (…) e a Rua dos (…), em Sesimbra, concelho de Setúbal, o limite de velocidade no local é de 50km/h;
16. Os danos do veículo do Autor foram vistoriados por parte dos serviços técnicos da Ré que concluíram estarmos perante uma perda total;
17. A estimativa de reparação ascendia a € 11.924,35.
18. O valor venal da viatura rondaria entre os € 8.360,00 e os € 8.500,00;
19. O salvado, segundo a R., mereceu a proposta de aquisição no valor de € 3.359,00.
*
IV. Factos Não Provados.
Com interesse para a decisão da causa resultou não provado:
1. Desde que o Autor contornou a última curva até ao entroncamento de entrada na referida rotunda, dista cerca de 345 metros;
2. E desde a entrada da Rua dos (…), de quem circula da rotunda, e o entroncamento para a entrada da Rua dos (…), dista 37 metros;
3. O referido sinal de trânsito vertical, trata-se de um triângulo a obrigar ao A. a ceder a passagem na rotunda;
4. O referido sinal de trânsito vertical, trata-se de um triângulo a obrigar ao A. a ceder a passagem no entroncamento;
5. O Autor circulava a cerca de 50 quilómetros por hora;
6. Continuando a aproximar-se, e atendendo o veículo conduzido por (…) se encontrar parado, o Autor seguia seguro que poderia continuar a sua marcha;
7. Também derivado do embate, o Autor foi transportado para o Centro Hospitalar de Setúbal, onde teve alta por volta das 21 horas e 51 minutos;
8. Nos dias seguintes, o Autor experienciou bastantes dores no corpo, designadamente na zona clavicular direita e no rosto;
9. Atualmente ainda sente algumas dores na zona cervical, quando está sentado durante longos períodos de tempo;
10. Como consequência direta destes episódios, o Autor sente-se deprimido, tendo contado com o apoio de familiares que o ajudaram a debelar essa mesma depressão;
11. Ainda hoje o Autor não pode deixar de se sentir profundamente triste e até como uma pessoa incapaz, em alguns momentos;
12. O orçamento para a reparação do veículo, o qual atinge o valor de € 15.763,31 (quinze mil e setecentos e sessenta e três euros e trinta e um cêntimos);
13. O Autor necessita de conduzir diariamente para o seu local de trabalho, não tendo alternativas em termos de transportes públicos para realizar tais movimentos pendulares
.”
3. a) Passando a apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, insurge-se o A. contra o
facto provado sob 18
,
aduzindo que sendo o seu veículo uma edição especial, como resultou provado sob 1, o seu valor venal é superior ao que foi julgado provado sob 18, o que decorre do doc. 11 junto com a cont..
Ora, compulsando o referido doc. 11 verificamos que do mesmo nada consta relativamente a veículos que constituam edições especiais, nem o A. concretiza o reflexo dessa característica se reflete na avaliação do veículo, não apontando o valor que reputa adequado para o mesmo.
No mais, aquele doc. 11 integra uma pesquisa relativa a veículos com características semelhantes ao veículo sinistrado, com base na qual a R. apurou o seu valor venal, aí se enunciando os seguintes três veículos Seat Leon:
- “Seat leon 2.0 170cv”, por € 8.500,00
- “Seat Leon Fr 2.0 Tdi 170cv”, por € 10.750,00
- Seat Leon 1p Fr 170cv”, por € 11.000,00
Advoga o A. que o primeiro veículo indicado, que foi aquele que suportou o valor máximo referido no intervalo plasmado no facto 18, não é semelhante ao veículo sinistrado, porquanto este não é um 2.0.
Porém, na comunicação de perda total também contida no evidenciado doc. 11 junto com a cont. surge a descrição completa do veículo do A. nos seguintes termos: “Seat Leon FR 2.0 TDI 170CV”.
E analisado o “certificado de matrícula” do veículo do A. junto com a p.i., constata-se que no campo correspondente à “cilindrada” está anotado “(…)”, o que foi vertido no boletim de perda total contido também no doc. 11 junto com a cont., significando que se trata de um veículo com uma cilindrada padrão de 2.0.
Assim, a comparação com o primeiro veículo enunciado na pesquisa é correta, sob a perspetiva de que se trata de um veículo com a mesma cilindrada do veículo sinistrado.
Acentua adicionalmente o A. que o seu veículo é um “Fr”, o que, efetivamente, corresponde à menção contida na comunicação de perda total em apreço, e sublinha que na aludida pesquisa aparecem valores mais elevados para veículos com a especificação “Fr”, o que, efetivamente, também sucede.
Deve, no entanto, assinalar-se que também o primeiro veículo enunciado é um “Fr”, como se retira da leitura da sua descrição pormenorizada, vertida, de igual modo, naquele doc. 11 junto com a contestação.
Deste modo, tanto quanto se pode extrair do teor desse doc. 11 junto com a cont., dos três veículos aí descritos, o mais distinto do veículo do A. é o terceiro, porquanto possui apenas duas portas, enquanto o veículo do A. possui quatro portas.
Por outro lado, apesar de na comunicação de perda total surgir a indicação de um intervalo a respeito do valor venal do veículo do A., lido o boletim de perda total constata-se que daí consta apenas um valor, precisamente aquele que corresponde ao primeiro veículo pesquisado, € 8.500,00, não se encontrando suporte para o outro valor contido no intervalo, € 8.360,00.
Acresce que se desconhecem todas as características do segundo veículo indicado na pesquisa, mas decorre do teor do referido doc. 11 junto com a p.i. que a quilometragem do primeiro veículo pesquisado – 217.855 – é praticamente igual à quilometragem do veículo do A. – 218.876.
Ou seja, o primeiro veículo pesquisado é aquele que maior semelhança apresenta com o veículo do A., e atendendo a que foi esse o critério adotado pela R. para o apuramento do valor venal, deve julgar-se provado que o valor venal do veículo do A. é de € 8.500,00,
conforme resulta do boletim de perda total.
Em face de todo o exposto deve ser alterado o facto 18, estimando-se o valor venal do veículo em € 8.500,00.
b) Quanto ao
facto não provado 1
,
sustentou o Tribunal
a quo
que não se mostra documentado e que não foi afirmado pelas testemunhas ouvidas.
Ex adverso
, alega o A. que o facto descrito sob 1 foi afirmado na sua petição inicial e não foi contraditado pela R., para além de que o mesmo “
seria de fácil subsunção pelo Tribunal
” com base no doc. 4 junto com a cont. (ponto 5 do corpo das alegações),
pelo que deveria ser julgado provado.
Ora, o facto em apreço consta do artigo 4º da p.i., porém, no artigo 1º da cont. a R. não declara aceitar o facto aludido, e no artigo 2º da cont. a R. declara impugnar os factos que não enunciou no artigo 1º, onde se integra, portanto, o facto constante do artigo 4º da p.i..
Ou seja, o facto constante do artigo 4º da p.i. mostra-se controvertido, atento o disposto no artigo 574.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, onde se estabelece que se consideram admitidos por acordo os factos que não forem impugnados.
Sublinhe-se que a distinção vertida pelo A. nas suas alegações de recurso entre impugnar um facto e contraditar um facto não encontra suporte legal, pelo contrário, resulta claro do teor do artigo 571.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que os dois verbos reportam a mesma realidade: “
o réu defende-se por impugnação quando contradiz os factos articulados na petição”.
A impugnação consiste, assim, na negação do facto, isto é, o réu impugna o facto quando “
se opõe à versão da realidade apresentada pelo autor
” (Lebre de Freitas, Isabel Alexandre,
Código de Processo Civil Anotado
, vol. 2º, 3ª ed., Coimbra, 2017, pág. 557).
Por outro lado, o doc. 4 junto com a cont. integra, efetivamente, uma fotografia aérea da qual consta a indicação de uma escala, mas o A. não explica de que forma extrai daquela escala o facto alegado no artigo 4º da p.i..
Advoga ainda o A. que não pode entender-se que a prova de um facto apenas pode ser feita por declarações de parte (ponto 8 do corpo das alegações), contudo, não é isso o que se diz na motivação da decisão de facto, onde o Tribunal
a quo
se limitou a assinalar que “
O acidente de viação em análise não foi presenciado pelas testemunhas inquiridas no julgamento, à exceção do condutor Valdemar Gaspar Pinhal Caiado, sendo que o autor não prestou declarações de parte.”
Deve, consequentemente, manter-se inalterado o facto não provado 1.
c) Relativamente aos
factos não provados 5, 9, 11 e 13
,
o A. aludiu apenas de forma vaga, no ponto IV. das conclusões, ao que “
o Recorrente alegou e não foi contraditado pela Ré, por documentos e bem assim por prova testemunhal produzida na audiência de discussão e julgamento
”.
Os factos referidos provêm, respetivamente, dos artigos 8º, 24º, 29º e 27º da petição inicial.
Porém, no artigo 1º da cont. a R. não declara aceitar os factos aludidos, e no artigo 2º da cont. a R. declara impugnar os factos que não enunciou no artigo 1º, onde se integram, portanto, aqueles factos, os quais devem, consequentemente, julgar-se controvertidos, conforme se explanou já a respeito do facto não provado 1.
No mais, resulta evidente de todo o exposto que o A. não cumpriu as regras impostas no artigo 640.º do Código de Processo Civil para a impugnação da decisão de facto, pois não indicou os meios de prova que determinariam decisão diversa, pelo que nesta parte deve ser rejeitada a impugnação.
Devem, consequentemente, manter-se inalterados os factos não provados 5, 9, 11 e 13.
B) Fundamentação de Direito
1. No caso em apreço cura-se de um acidente de viação, pretendendo o A. ser indemnizado pelos danos dele decorrentes, com fundamento na culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na R. na sua ocorrência.
Na sentença decidiu-se, porém, repartir a meio essa responsabilidade, “
porquanto o A. circulava com excesso de velocidade e o condutor segurado na Ré, cortou o trajeto do A. que tinha prioridade de passagem, mudou de direção à sua esquerda num entroncamento
.”
O dissentimento do A. relativamente à sentença diz respeito a este aspeto da repartição de responsabilidades entre os dois condutores intervenientes no acidente, considerando o A. que não circulava em excesso de velocidade, mas ainda que assim não se entenda, que em virtude de não estar provada a dimensão do excesso de velocidade, deve entender-se ser a responsabilidade do condutor do veículo seguro na R. de 100% ou, pelo menos, de 80%.
A questão em apreço respeita, assim, ao nexo de causalidade, pressuposto da responsabilidade civil versado no artigo 563.º do Código Civil, onde se estabelece que “
a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão
”.
Henrique Sousa Antunes (
Comentário ao Código Civil: direito das obrigações, das obrigações em geral,
coord. de José Brandão Proença, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2018, pág. 555) discorre nos seguintes termos sobre esta matéria:
“
A doutrina da causalidade adequada (…) qualifica como causa de um dano o facto que, sendo em concreto uma condição necessária do resultado, é suscetível de produzir aquele prejuízo, segundo o curso normal dos acontecimentos. (…) Nas hipóteses de responsabilidade civil por factos ilícitos, o facto só não constitui uma causa do dano se for de todo em todo indiferente à produção daquele, verificando-se o resultado pela intervenção de circunstâncias anómalas ou excecionais (formulação negativa, de Enneccerus-Lehmann).”
No Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.03.2011 (Jorge Arcanjo) (Processo n.º 1187/05.1TBACB.C1, in
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) teceram-se as seguintes considerações sobre o mesmo tema:
“A teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa, não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, admitindo não só a ocorrência de outros factos condicionantes, como ainda a chamada causalidade indirecta, na qual é suficiente que o facto condicionante desencadeie outro que directamente suscite o dano.
Noutra perspectiva, e a propósito da imputação, Claus Roxin refere que quando o legislador permite, à semelhança do que sucede em outras manifestações da vida moderna, ocorra um risco até certo limite, apenas poderá haver imputação se a conduta do autor significa um aumento do risco permitido (Problemas Fundamentais de Direito Penal, pág. 152).
O princípio do incremento do risco adopta o seguinte método: deve, em primeiro lugar, examinar-se qual a conduta que não se poderia imputar ao agente como violação do dever de acordo com os princípios do risco permitido; depois, estabelecer-se uma comparação entre ela e a forma de actuar do agente, para se comprovar, então, se, na configuração dos factos submetidos a julgamento, a conduta incorrecta do autor fez aumentar a probabilidade de produção do resultado em comparação do risco permitido.”
Revertendo ao caso concreto, verificamos que o veículo seguro na R. efetuou uma manobra de mudança de direção à esquerda, entrando no entroncamento do qual se aproximava o A., que se apresentava, assim, pela direita do veículo seguro na R. (facto provado 6).
Ocorreu, então, o embate, apesar do A. ter travado, após avistamento do veículo seguro na R. a entrar no entroncamento (facto provado 7).
Está ainda provado que o A. seguia a uma velocidade superior a 50 km/h, que constituía o máximo permitido no local (facto provado 5).
Ou seja, o veículo seguro na R. não cedeu a passagem ao veículo que se apresentava pela sua direita, infringindo, deste modo, o disposto no artigo 35.º, n.º 1, do Código da Estrada.
Por sua vez, o A. infringiu o disposto nos artigos 25.º, n.º 1, alínea h) e 27.º, n.º 1, do Código da Estrada, por circular acima do limite máximo de velocidade fixado para o local, a que acresce a circunstância de, por se tratar de um entroncamento, ser especificamente imposto aos condutores que moderem especialmente a velocidade.
A diretriz basilar, em matéria de velocidade, que enforma os demais preceitos, está contida no n.º 1 do artigo 24.º do mesmo diploma legal, onde se estabelece que “
O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”
No entanto, a circunstância dos dois condutores terem praticado infrações estradais não implica que devam automaticamente ser considerados ambos responsáveis pelo acidente, havendo que apurar se essas infrações foram determinantes da sua ocorrência.
Desde logo, afigura-se evidente que o acidente foi provocado pelo veículo seguro na R., que cortou a linha de marcha do A., frustrando a sua prioridade de passagem.
A questão seguinte reside em saber se também o excesso de velocidade do A. foi causador do acidente, por haver impedido uma reação atempada destinada a evitá-lo, ou se, pelo contrário, ainda que o A. circulasse dentro dos limites legais de velocidade impostos no local, não lhe teria sido possível impedir o acidente, em virtude das circunstâncias em que o veículo seguro na R. lhe surgiu, não tendo, por isso, a conduta do A. constituído causa adequada do acidente.
Está provado que o veículo seguro na R. fez avançar o seu veículo “
quando o Autor se encontrava já a poucos metros do entroncamento
” (facto provado 6) e que “
em ato contínuo, o Autor colocou o pé ao travão de forma a evitar o embate
” (facto provado 7), mas não logrou obstar à colisão entre a parte frontal da sua viatura e a lateral direita do veículo seguro na R. (facto provado 8).
Por outro lado, ambos os veículos se imobilizaram após a colisão (facto provado 9).
Conjugando estes factos, podemos estimar que o excesso de velocidade do A. não foi substancial, pois, de outro modo, atenta a distância de poucos metros a que avistou o veículo seguro na R., não teria logrado imobilizar o seu veículo após a colisão, mesmo considerando que travou de imediato.
Ainda assim, nada consta da matéria de facto provada que nos permita calcular a velocidade exata a que o A. circulava, o que nos impede de afirmar que o excesso foi indiferente para o resultado, mas as demais circunstâncias permitem concluir que a contribuição do A. para o evento foi significativamente menor do que a contribuição do veículo seguro na R..
Por outro lado, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20.02.2024 (Luís Filipe Pires de Sousa) (Processo n.º 211/21.5T8ALM.L1-7, in
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) efetua-se a distinção entre a culpa na produção do acidente e a contribuição para os danos:
“
Ocorrendo uma situação de concorrência de culpas de ambos os condutores na produção do acidente (concausalidade necessária), para efeitos de fixação da responsabilidade dos intervenientes, há que averiguar se existe diferença de grau entre a culpa do lesante e o facto culposo do lesado, sendo certo que não existe correlação direta entre a amplitude dos danos e a gravidade da culpa: nem sempre a culpa mais intensa provoca os danos mais extensos.”
Tudo visto, entendemos que da matéria de facto provada decorre que também no plano da contribuição para os danos produzidos pelo embate não podemos afirmar ser equivalente a contribuição dos dois condutores, sendo mais intensamente lesiva a atuação do condutor do veículo seguro na R..
Em conclusão, afigura-se mais adequada a repartição de responsabilidades na proporção de 10% para o A. e 90% para o veículo seguro na R..
2. a) A alteração da decisão atinente à repartição de responsabilidades repercute-se necessariamente na fixação das indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais.
No que tange aos danos patrimoniais, foi modificada a redação do facto provado 18., em consequência da impugnação efetuada em sede de recurso, do qual passou, assim, a constar o seguinte:
“
18. O valor venal da viatura rondaria os € 8.500,00
”.
O valor venal constituiu um dos vetores ponderados pela R. para concluir pela perda total do veículo do A. e para formular a correspondente proposta extrajudicial de indemnização ao A., nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08.
Segundo o n.º 2 do referido do artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.08, “
o valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente.”
No entanto, como sublinha Ricardo J. Marques («A perda total do veículo e os limites da sua indemnização: Entre a restauração natural e a indemnização em sucedâneo»,
Revista Julgar
, n.º 49 (janeiro-abril 2023), pág. 234), “
o legislador continua a não estabelecer os exactos parâmetros a atender na determinação desse valor”.
Sem prejuízo, tem vindo a sedimentar-se a prática de identificar, no mercado de usados, veículos automóveis para venda que possuam características semelhantes ao sinistrado, o que, para o mesmo Autor, constitui uma abordagem correta do valor venal enquanto valor de substituição (
ibidem)
.
Porém, a jurisprudência tem entendido que quando se frustre o acordo entre o lesado e a companhia de seguros do lesante e o caso siga para tribunal, não é aqui aplicável o normativo indicado, antes deve a indemnização ser arbitrada à luz das regras gerais enunciadas nos artigos 562.º e 566.º do Código Civil, como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08.02.2018 (Madeira Pinto) (Processo n.º 3385/15.0T8PNF.P1, in
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):
“IV - É jurisprudência firme e que se aceita, que os limites previstos na alínea c) do artigo 41.º do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, poderão servir de ponto de partida e como limite mínimo para a análise da questão aqui colocada. Mas, o regime previsto no artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08, vale apenas para os procedimentos a adoptar pelas empresas de seguros na fixação de prazos com vista à regularização rápida de litígios e do estabelecimento de princípios base na gestão de sinistros com vista à apresentação de um “proposta razoável”, mas já não na fase judicial, em que regem as regras e princípios gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, podendo quando muito tais normativos considerarem-se como elementos de referência não vinculativos.”
(no mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.01.2012 (Carlos Querido), Processo n.º 153/11.2TJCBR.C1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.12.2017 (Manuel Rodrigues), Processo n.º 4495/15.0T8LSB.L1-6; do Tribunal da Relação de Guimarães de 18.03.2021 (Barroca Penha), Processo n.º 2970/19.6T8VCT.G1; e do Supremo Tribunal de Justiça de 12.12.2023 (António Magalhães), Proc. n.º 393/17.0T8PVZ.P1.S1, todos in
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).
Assim, a questão deve ser equacionada nos termos do artigo 566.º, n.º 1, do Código Civil, nos termos do qual “
a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.”
Na situação vertente ficou provado que a reparação é possível (facto provado 17), pelo que remanesce a dimensão da excessiva onerosidade.
O legislador não define este conceito, que tem sido trabalhado pela jurisprudência, mostrando-se presentemente consensual que não se afere com base na mera comparação do valor venal do veículo com a estimativa do custo de reparação, antes deve ser ponderado também o valor de uso do veículo para o lesado, de modo que só deve recusada a indemnização
in natura
quando a desproporção entre aqueles dois valores seja de tal modo sensível que ofenda o princípio da boa fé.
Neste sentido pronunciou-se, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.10.2023 (Adeodato Brotas) (Processo n.º 7233/20.1T8LRS.L1-6, in
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):
“2- Os tribunais, lançando mão do regime do artigo 566.º do CC, vêm entendendo que a onerosidade excessiva tem de ter em conta não só o valor venal do veículo, mas ainda o valor que, em concreto, esse veículo teria para o seu proprietário. No fundo, o valor do uso, visto que um valor venal diminuto pode corresponder a uma grande utilidade para o utilizador.
3- Sendo a reparação do veículo excessivamente onerosa, desproporcionada e, apurando-se que as necessidades de uso e de utilização do veículo pelo lesado ficam igualmente asseguradas mediante o pagamento de uma indemnização que lhe possibilite adquirir um outro veículo idêntico ou similar ao acidentado, não pode condenar-se o obrigado (seguradora) a proceder à reparação (excessivamente onerosa), mas tão-só a indemnizar o lesado por equivalente.”
Na situação abordada neste aresto a reparação do veículo sinistrado ascendia, pelo menos, a € 69.977,50, sendo possível adquirir um veículo com características semelhantes por € 21.776,66, pelo que se considerou que a indemnização devia corresponder ao montante necessário para adquirir um veículo semelhante, por se revelar abusiva e contrária à boa fé solução diversa.
No Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01.07.2021 (Rosália Cunha) (Processo n.º 1135/20.9T8VCT.G1, in
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) decidiu-se que “
Nada mais se tendo provado para além de que o veículo tem o valor de € 850,00 e a sua reparação custa € 2.153,34 não se pode concluir que esta seja excessivamente onerosa para o devedor, devendo a seguradora, de acordo com o princípio geral, ser condenada a proceder à indemnização mediante reconstituição natural.”
No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04.05.2022 (Carlos Portela) (Proc. 107/22.3YRPRT, in
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), entendeu-se assistir ao lesado o direito a ser indemnizado pelo valor da reparação, que se estimou em € 4.275,00, correspondendo o valor venal a € 1.000,00, e estando provado que “
com o acidente o (...) deixou de poder circular, sendo este o único veículo da Reclamante utilizado, diariamente, nos seus afazeres, quer profissionais, quer pessoais.”
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.02.2025 (Afonso Henrique) (Processo n.º 43/22.8T8PFR.P1.SI, in
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), perante um caso em que se provou que a reparação do veículo ascendia a € 27.996,80, que na data do acidente o veículo valia € 27.450,00, e que o lesado usava o veículo para efetuar viagens de lazer e as viagens necessárias à gestão do seu dia-a-dia familiar, entendeu-se que “
a demonstração do valor de mercado do veículo é, assim, insuficiente para permitir a afirmação da excessiva onerosidade, o que significa que deve ter aplicação a regra geral da reconstituição natural com a condenação da seguradora no pagamento da quantia devida pela reparação.
Acresce não se vislumbrar uma desproporção grave entre o sacrifício imposto ao devedor e o benefício do credor, na medida em que o pagamento do valor de reparação € 27.996,80 importará a manutenção, na esfera do credor, de um veículo com um valor de mercado de € 27.450,00.”
Na situação vertente importa considerar, para além do valor venal do veículo acima indicado, que a reparação foi estimada em € 11.924,35 (facto provado 17), e o salvado foi avaliado em € 3.359,00 (facto provado 19).
Nada ficou demonstrado sobre a utilização que o A. dava ao seu veículo, não se tendo julgado provado que o conduzisse diariamente para o seu local de trabalho (facto não provado 13).
Dos factos expostos decorre que a diferença entre o valor venal do veículo e o custo estimado da reparação é reduzida, não podendo falar-se em desproporção sensível ou significativa, pelo que mesmo sem se ter demonstrado o uso concreto que o A. dava ao seu veículo, atenta a preferência legal pela reconstituição natural, deve a indemnização corresponder ao valor de reparação.
Considerando, todavia, a repartição de responsabilidades acima estabelecida, a indemnização cifra-se em 90% de € 11.924,35, ou seja, € 10.731,91.
b) O Tribunal
a quo
arbitrou uma indemnização no valor de € 2.000,00, com respeito aos danos não patrimoniais, o que não foi impugnado em sede de recurso.
Assim, operando a redução desse valor em função da repartição de responsabilidades, conclui-se que deve a R. ser condenada no pagamento, ao A., de € 1.800,00.
c) No mais, isto é, quanto à questão dos juros, mantém-se a decisão sindicada, que não foi, nesta parte, objeto de recurso.
C) Custas
A responsabilidade pelas custas do recurso recai sobre ambas as partes, na proporção do respetivo decaimento (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
IV – Dispositivo
Em face do exposto e tudo ponderado, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, alterando a decisão recorrida, pelo que condenam a R. (…) Seguros, S.A., a pagar ao A. (…), o montante de € 10.731,91, a título de indemnização por danos patrimoniais, ao que acrescem os juros de mora a contar do trânsito em julgado, os quais serão calculados à taxa supletiva vigente para os juros civis contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento; e a quantia de € 1.800,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, ao que acrescem os juros de mora a contar do trânsito em julgado, os quais serão calculados à mesma taxa supletiva vigente, até efetivo e integral pagamento.
Custas pelas partes, na proporção do respetivo decaimento.
Évora, 08 de Maio de 2025
Sónia Moura (Relatora)
António Fernando Marques da Silva (1º Adjunto)
Ana Pessoa (2ª Adjunta)
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/476df16f8012bce980258c9f0052dd30?OpenDocument
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1,757,894,400,000
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REVOGADA PARCIAL
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83620/21.2YIPRT.P1
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83620/21.2YIPRT.P1
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TERESA PINTO DA SILVA
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I – No contrato de empreitada de consumo, embora os direitos conferidos ao dono da obra apresentem o mesmo conteúdo que os previstos nos art. 1221º a 1223º do Código Civil, perante o regime constante do D.L. 67/2003, os direitos do dono da obra-consumidor são de exercício livre, segundo a opção deste, não estando sujeitos a qualquer hierarquia e relação de subsidiariedade.
II – É legítima a resolução realizada pelo Réu, atenta a recusa da Autora em fornecer as peças ainda em falta necessárias para concluir a reparação de um veículo, estando-se assim perante a alegação e prova por parte do Réu do incumprimento definitivo do contrato por parte da Autora, - que não iria fornecer mais peças - o que dispensa a interpelação admonitória prévia do artigo 808º do Código Civil tendente a propiciar a conversão de uma situação de atraso na realização da obra numa situação de incumprimento definitivo, pois que aquela situação configura uma situação de abandono, uma declaração tácita de recusa em acabar a obra, que deve qualificar-se como incumprimento definitivo.
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[
"EMPREITADA DE CONSUMO",
"DIREITOS DO DONO DA OBRA/CONSUMIDOR",
"RESOLUÇÃO DO CONTRATO",
"INCUMPRIMENTO DEFINITIVO"
] |
Processo nº 83620/21.2YIPRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Oliveira de Azeméis
Relatora: Des. Teresa Pinto da Silva
1ª Adjunta: Des. Ana Olívia Loureiro
2ª Adjunta: Des. Carla Fraga Torres
*
Acordam as juízas subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto
I – RELATÓRIO
Em 6 de setembro de 2021, a sociedade A... Unipessoal, Lda intentou procedimento de injunção contra AA, pedindo a notificação do Requerido a fim de lhe pagar a quantia de €8.666,11, sendo €7.973,42 de capital, €590,69 de juros e €102,00 a título de taxa de justiça, fundamentando o pedido no não pagamento pelo Requerido do preço de bens e serviços relativo aos trabalhos de reparação do veículo de matrícula ..-PT-.., da marca Audi, propriedade do Requerido, o qual ascendeu ao valor global de €20.973,42, com IVA incluído, conforme acordado entre Requerente e Requerido, tendo este, ao longo dos trabalhos, entregue à Requerente valores, por conta daquele preço, que totalizaram €13.000,00, vindo a viatura a ser entregue devidamente reparada ao Requerido em Outubro de 2019, que a aceitou, sem nunca ter reclamado ou comunicado qualquer defeito, data em que a Requerente comunicou ao Requerido o valor em falta no pagamento, de €7.973,42, tendo-se relegado a emissão da respetiva fatura aquando do pagamento total do seu valor, sem que o Requerido tenha até à data procedido ao pagamento daquele valor em falta, não obstante ter sido interpelado por diversas vezes para o efeito.
Notificado, o Requerido apresentou oposição em 30 de setembro de 2021, referindo nada dever à Requerente, porquanto procedeu à resolução do contrato, por incumprimento da Autora, através de carta registada com aviso de receção datada de 2 de setembro de 2019, após o que contratou a sociedade B..., Lda, para concluir a reparação, no que despendeu a quantia de €12.943,43.
Deduziu ainda reconvenção, peticionado a condenação da Requerente a pagar-lhe a quantia de €9.172,00, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
Alegou, para o efeito, que a Requerente, nos serviços que prestou, apenas despendeu a quantia de €7.828,00 e recebeu do Requerido €13.000,00, pelo que o património da Requerente encontra-se enriquecido injustificadamente na quantia de €5172,00, a qual, por isso, deve devolver ao Requerido.
Mais alegou ter sofrido danos resultantes da privação do seu veículo, peticionando, a este título, o pagamento de uma indemnização de €2.500,00, bem como danos morais decorrentes de toda a atribulação que o subjugou que, por força da gravidade que revestem, deverão merecer ressarcimento condigno, reclamando pelos mesmos, a título de indemnização, uma quantia nunca inferior a €1.500,00.
Por fim, requereu a condenação da Requerente como litigante de má-fé, em multa e indemnização a seu favor.
Nos termos do disposto no artigo 16.º, n.º 1, do anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 01 de Setembro, foram os presentes autos remetidos à distribuição.
Por despacho de 10 de novembro de 2021 foi ordenada a notificação da Requerente para tomar posição quanto ao pedido reconvencional, o que aquela veio a fazer por requerimento de 25 de novembro de 2021, concluindo pela improcedência das exceções do incumprimento do contrato e da resolução invocadas pelo Requerido e pela não admissão do pedido reconvencional, por falta de fundamento legal, ou, caso assim não se entenda, pela improcedência da reconvenção, por não provada, bem como pela improcedência do pedido de condenação como litigante de má-fé contra ela deduzido.
Peticionou ainda a condenação do Requerido como litigante de má-fé em quantia nunca inferior a €3.000,00 e em multa.
Em 9 de março de 2022 foi proferido despacho a admitir o pedido reconvencional e a determinar a alteração da distribuição para ação declarativa sob a forma de processo comum.
Na sequência de despacho proferido em 1 de abril de 2022, a ordenar a notificação da Autora para, querendo, apresentar réplica, veio esta a fazê-lo em 19 de abril de 2022, pugnando pela improcedência do pedido reconvencional e pela condenação do Réu como litigante de má-fé, em multa e indemnização a favor da Autora, em quantia nunca inferior a €5.000,00.
Em 7 de outubro de 2022 realizou-se a audiência prévia, no âmbito da qual foi tentada a conciliação entre as partes, que se frustrou, e, a pedido destas, concedido o prazo de 10 dias para alterarem os respetivos requerimentos probatórios.
Em 25 de dezembro de 2022 foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, que veio a ter início em 23 de novembro de 2023 e se prolongou por mais três sessões (7 de dezembro de 2023; 11 de janeiro de 2024 e 8 de março de 2024).
Em 17 de outubro de 2024 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, decide-se:
- julgar parcialmente procedente a acção, condenando-se o Réu a pagar à Autora a quantia de €2.024,75 (dois mil e vinte e quatro euros e setenta e cinco cêntimos), acrescida de juros, desde 07.06.2021 e até efectivo e integral pagamento, à taxa legal comercial em vigor -– cfr. arts. 559º, 804º, 805º e 806º, nº 1, do Código Civil e arts. 2º e 102º n.º 5 do Código Comercial, absolvendo-se o Réu do demais peticionado;
- julgar totalmente improcedente a reconvenção, absolvendo-se a Autora/Reconvinda do pedido reconvencional.
Mais se decide condenar a Autora e o Réu como litigantes de má-fé, em multa, que se fixa em 4 U.C. para cada um, e em indemnização a pagar pela Autora ao Réu e pelo Réu à Autora, em montante a fixar.
As custas serão suportadas por Autora e Réu em função do respectivo decaimento – cfr. art. 527º do CPC.
Valor: o já fixado no saneador.
Registe e notifique.
*
Nos termos previstos no art. 543º do CPC, notifique Autora e Réu para se pronunciarem quanto à indemnização a fixar».
*
Por requerimento de 31 de outubro de 2024, veio o Réu, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 543º, do Código de Processo Civil, requerer que a Autora seja condenada a pagar-lhe, a título de indemnização como litigante de má-fé, quantia nunca inferior a €3.100,00.
Em 4 de novembro de 2024 veio a Autora pugnar pela condenação do Réu /reconvinte em indemnização a seu favor nunca inferior a 4.000,00, atenta a litigância de má-fé daquele.
Em 22 de novembro de 2024, pelo Tribunal a quo foi proferida a seguinte decisão:
«Em complemento da sentença proferida sob a refª 132028477, importa fixar a indemnização devida nos termos previstos no art. 543º do CPC.
Estabelece o art. 543º do CPC que:
“1 - A indemnização pode consistir:
a) No reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos;
b) No reembolso dessas despesas e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência direta ou indireta da má-fé.
2 - O juiz opta pela indemnização que julgue mais adequada à conduta do litigante de má-fé, fixando-a sempre em quantia certa.
3 - Se não houver elementos para se fixar logo na sentença a importância da indemnização, são ouvidas as partes e fixa-se depois, com prudente arbítrio, o que parecer razoável, podendo reduzir-se aos justos limites as verbas de despesas e de honorários apresentadas pela parte.
4 - Os honorários são pagos directamente ao mandatário, salvo se a parte mostrar que o seu patrono já está embolsado.”
Veio o Réu requerer a fixação de uma indemnização, a seu favor, de valor não inferior a € 3.100,00, para ressarcimento das despesas que teve e terá de despender.
Por sua vez, a Autora veio pugnar pela fixação de uma indemnização, a seu favor, nunca inferior a € 4.000,00, para ressarcimento das despesas suportadas e a suportar.
Cumpre apreciar.
Produzida a prova, foi proferida sentença que:
- julgou parcialmente procedente a acção, condenando-se o Réu a pagar à Autora a quantia de € 2.024,75 (dois mil e vinte e quatro euros e setenta e cinco cêntimos), acrescida de juros;
- julgar totalmente improcedente a reconvenção.
Conforme aí se referiu:
“No caso decidendo, afigura-se-nos que ficou demonstrado que quer a Autora, quer o Réu litigaram de má-fé.
Ambos alegaram factos que bem sabiam serem falsos e que eram relevantes para a decisão da causa.
A Autora sabia que apenas forneceu parte das peças constantes do orçamento e, ainda assim, veio exigir o pagamento de valor até superior ao orçamentado.
O Réu tinha conhecimento que a reparação seria assumida pela Autora A..., com o que concordou, e que a reparação estava a ser realizada na oficina da sociedade B..., Lda.
Alegou que tudo foi tratado pelo mediador BB na sua ausência, o que se veio a verificar não corresponder à verdade.
Sabia o Ré, ainda, que o veículo lhe foi entregue após a inspecção realizada em 31.10. 2019 e não em Abril de 2021, conforme expressamente alegou.”
O decaimento da Autora ascendeu a mais de 75%.
Já o decaimento do Réu foi total.
O valor da acção ascende a € 8.564,11 e o da reconvenção a € 9.172,00.
Foi a Autora que deu início aos presentes autos, peticionando quantias que, bem sabia, não lhe serem devidas, por não ter fornecido parte das peças constantes do orçamento.
Determinou que o Réu tivesse de constituir Mandatário, atento o valor da acção, para apresentar contestação.
Por seu turno, o Réu deu início à instância reconvencional, peticionando o pagamento de quantia que sabia não lhe ser devida, mormente a indemnização relativa à privação do uso.
Não se encontra demonstrado qual o concreto valor pago pelas partes a título de honorários, nem que as partes suportaram outras despesas.
Impõe-se, assim, o recurso à equidade na fixação da indemnização devida.
Ponderando os decaimentos de cada uma das partes, apenas na parte em que os mesmos decorrem directamente do que foi falsamente alegado pelas partes nos respectivos articulados, afigura-se-nos ser de fixar em:
- €300,00 a indemnização devida pelo Réu à Autora;
- €750,00 a indemnização devida pela Autora ao Réu.
Pelo exposto, em complemento da decisão proferida sob a refª 132028477, nos termos previstos no art. 543º do CPC, decide-se:
- condenar a Autora a pagar ao Réu uma indemnização que se fixa em €750,00 (setecentos e cinquenta euros);
- condenar o Réu a pagar à Autora uma indemnização que se fixa em €300,00 (trezentos euros)».
*
Da sentença proferida em 17 de outubro de 2024 e da decisão que constitui seu complemento, datada de 22 de novembro de 2024, recorreram ambas as partes.
*
A Autora, no recurso que interpôs, formulou as seguintes conclusões:
(…)
O Apelado não apresentou contra-alegações.
*
Por sua vez, no recurso que interpôs, o Réu/Apelante pugna pela revogação da decisão proferida, no sentido de a Autora ser condenada a restituir ao Réu tudo quanto o mesmo pagou em excesso, bem como no pagamento de indemnização a favor do Réu por força dos danos morais que o mesmo sofreu e pela paralisação do seu veículo, não devendo o Réu ser condenado como litigante de má-fé, concluindo do seguinte modo:
1. O presente recurso visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto que, com base na mesma, a ação foi julgada parcialmente procedente e, em consequência decidiu: “- julgar parcialmente procedente a ação, condenando-se o Réu a pagar à Autora a quantia de € 2.024,75 (dois mil e vinte e quatro euros e setenta e cinco cêntimos), acrescida de juros, desde 07.06.2021 e até efetivo e integral pagamento, à taxa legal comercial em vigor - cfr. arts. 559º, 804º, 805º e 806º, nº 1, do Código Civil e arts. 2º e 102º nº 5 do Código Comercial, absolvendo-se o Réu do demais peticionado;
- julgar totalmente improcedente a reconvenção, absolvendo-se a Autora/Reconvinda do pedido reconvencional.
Mais se decide condenar a Autora e o Réu como litigantes de má-fé, em multa, que se fixa em 4 U.C. para cada um, e em indemnização a pagar pela Autora ao Réu e pelo Réu à Autora, em montante a fixar.”
Assim como impugnar a decisão relativamente ao valor indemnizatório a pagar pelo Réu à Autora, fixado por despacho complementar (Refª Citius 135845105, datado de 22/11/2024).
2. A douta decisão de primeira instância, quanto à matéria de facto, padece de incorreções de julgamento, insuficiência e interpreta defeituosamente a factualidade apurada.
3. Atenta a prova produzida em sede de audiência e julgamento, nomeadamente os depoimentos das testemunhas BB e CC (cujos depoimentos se encontram gravados no programa "Habilus Media Studio" do dia 07/12/2023), bem como da testemunha DD (cujo depoimento se encontra gravado no programa "Habilus Media Studio" do dia 07/12/2023), o tribunal “a quo” devia ter decidido de forma diferente relativamente aos pontos 9, 11 e 16 da matéria dada como provada, bem como às alíneas d), j), i) e h) da matéria dada como não provada, conforme flui do supra exposto.
4. Devia ainda, o tribunal “a quo” ter condenado a Autora, a restituir ao Réu a quantia que o mesmo pagou em excesso no valor de € 209,00 (duzentos e nove euros), bem como uma indemnização por força de danos morais por este sofridos e pela paralisação do veiculo do mesmo.
5. Decidiu mal o tribunal “a quo” ao ter condenado o pagamento de juros à taxa comercial em vigor uma vez que “in casu” não se aplica o disposto no Decreto Lei nº 62/2013, de 10 de Maio, dado não se tratar de remunerações de transações comerciais e o Réu ser um consumidor.
6. Sem prejuízo da modificação, ou não, da decisão sobre a matéria de facto, no caso em apreço, o Tribunal “a quo” fez uma errada aplicação e interpretação da lei, bem como das orientações jurisprudenciais, ao ter condenado o Réu aqui Apelante em multa e em indemnização a pagar à Autora, como litigante de má-fé.
7. Dos autos não resulta qualquer prejuízo que a Autora tenha tido em consequência da conduta considerada de má fé por parte do Réu.
8. Não se encontra preenchido o estatuído nas alíneas a) e b), do nº 1, do Art. 543º, do Cód. Proc. Civil.
9. Além disso, importa ainda ter presente que, a presente acção foi julgada procedente, apenas parcialmente, tendo a Autora sido, igualmente, condenada como litigante de má-fé, devendo-se o presente processo, de igual modo, à conduta incumpridora e de litigância de má-fé, por parte da mesma.
A Apelada contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso interposto pelo Réu /Reconvinte e a confirmação da sentença recorrida, alegando, em síntese, que:
- Não tendo o recorrente observado os ónus impugnatórios, deverão as alegações apresentadas pelo Réu quanto à reapreciação da decisão de facto pugnada pelo Recorrente ser rejeitadas, por violação do disposto no artigo 640º nº 1 als. a) e c) do CPC, e bem ainda, do artigo 639º, n.º1, al. a) do CPC.
- Caso assim não se entenda, se verifique que as alterações e aditamentos à matéria de facto peticionados pelo Réu não têm qualquer fundamento legal e de facto, não havendo que alterar os mesmos no sentido peticionado pelo Réu nas suas alegações recursivas, devendo por isso, no que concerne à impugnação da matéria de facto, a mesma ser improcedente, por não provada.
- Também em matéria de direito não assiste qualquer razão ao Réu, devendo por isso nestas questões, nomeadamente quanto à indemnização peticionada em sede de reconvenção, quanto ao valor peticionado pela Autora e quanto à condenação do Réu como litigante de má-fé, as mesmas improceder por falta de fundamento legal e de facto.
*
Foi proferido despacho no qual se consideraram os recursos interpostos por Autora e Réu tempestivos e legais e se admitiram os mesmos como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e com efeito devolutivo.
*
Recebido o processo nesta Relação, emitiu-se despacho que teve os recursos como próprios, tempestivamente interpostos e admitidos com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
Delimitação do objeto dos recursos
O objeto de cada um dos recursos é delimitado pelas conclusões vertidas pelos Recorrentes nas suas alegações (arts. 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2,
in fine
, aplicável
ex vi
do art. 663.º, n.º 2,
in fine
, ambos do Código de Processo Civil).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais prévias, destinando-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não à prolação de decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido.
Mercê do exposto, da análise das conclusões vertidas pelos Recorrentes nas suas alegações decorre que o objeto dos presentes recursos está circunscrito às seguintes questões:
1ª Se a sentença recorrida padece de alguma das nulidades previstas nas alíneas b) e c), do nº1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil e, em caso negativo,
2ª Da impugnação da decisão da matéria de facto
3ª Da repercussão da eventual alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso e, independentemente disso, se ocorreu erro de julgamento do Tribunal
a quo
, fundamentando os factos provados e o direito decisão de procedência da ação e/ou da reconvenção.
4ª Se se verificam ou não os pressupostos de condenação dos Apelantes como litigantes de má-fé.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
É o seguinte o teor da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida:
Factos provados
Com interesse para a boa decisão da causa, ficou provado que:
1. A sociedade A... Unipessoal, Lda. dedica-se à actividade de reparação e manutenção de veículos automóveis.
2. Mostra-se registada, desde 07.02.2020, a favor de AA a propriedade do veículo de matrícula ..-PT-.., da marca Audi.
3. O veículo de matrícula ..-PT-.. esteve envolvido num acidente de viação, ocorrido em 13.01.2018.
4. A reparação ao veículo acidentado foi orçada pela C..., S.A. em € 20.906,04, IVA incluído, tendo concluído esta seguradora pela perda total do veículo, dando-se por reproduzido o relatório junto sob Doc. n.º 2 com o requerimento refª 40585387 / 12270501.
5. A reparação referida em 4. foi, inicialmente, adjudicada pelo Autor à sociedade D..., Lda., tendo sido, posteriormente, assumida, com o conhecimento e consentimento do Autor, pela sociedade A... Unipessoal, Lda.
6. Por conta dos trabalhos a realizar, AA transferiu para a sociedade A... Unipessoal, Lda., em 28.03.2018, a quantia de €13.000,00.
7. Os trabalhos realizados/prestados pela Requerente consistiram na substituição do para-choques traseiro, amortecedores, braços de suspensão, airbags, tablier, porta, sensores, farolins, depósito, encostos, batentes, vidros, caixas de roda, cinto de segurança, elevador, resguardos, punhos, pegas, chapas, luzes, bem como todo o material necessário para a sua substituição, como tampas, parafusos, ilhargas, suportes, apoios, revestimento, porcas, guias, elemento, chaparia, pintura, e respectiva mão de obra.
8. A sociedade A... Unipessoal, Lda. solicitou à sociedade B..., Lda. que procedesse à reparação do veículo, ficando a cargo da A... Unipessoal, Lda. o fornecimento das peças necessárias, com excepção do material de pintura.
9. AA teve conhecimento que a reparação estava a ser realizada pela sociedade B..., Lda., a isso nunca se tendo oposto.
10. A Autora emitiu e remeteu ao Réu a factura n.º ..., datada de 07.06.2021, junta sob Doc. n.º 28 com a refª 40585387 / 12270501, no valor de €20.973,42, sendo €9.451,56 a título de peças, €5.500,00, a título de pintura e chapeiro, €2.100,00, a título de serviços internos e €3.921,86, a título de IVA, à taxa de 23%.
11. A sociedade A... Unipessoal, Lda. entregou à sociedade B..., Lda, as peças identificadas na factura n.º ..., datada de 07.06.2021, com excepção de uma porta, um punho e sensores, no valor global de €836,32, acrescido de IVA, à taxa de 23%.
12. O veículo referido em 3. foi entregue na oficina da sociedade B..., Lda. no estado em que se encontrava na sequência do acidente.
13. Após ter sido informado que a Autora não iria fornecer mais peças, por carta datada de 02.09.2019 e recebida pela Autora em 06.09.2019, o Réu comunicou o seguinte:
14. Após o referido em 13., o Réu solicitou à sociedade B..., Lda. que concluísse a reparação do veículo com a matrícula ..-PT-.., tendo liquidado àquela sociedade, em 16.04.2021, a quantia de €12.943,43.
15. O veículo ficou em condições de circular e de ser entregue ao Réu em 31.10.2019, tendo realizado inspecção nessa data, na qual foi aprovado sem deficiências/anotações.
16. Por causa desta situação, o Réu sentiu-se enganado e angustiado.
17. Quando foi sujeito à inspecção, em 31.10.2019, o veículo apresentava 32.309 kms e quando foi sujeito a inspecção, em 12.03.2021, o veículo apresentava 43.998 kms.
18. Pelos serviços prestados, a sociedade B..., Lda. facturou à Autora a quantia de €3.600,00 + IVA, à taxa de 23%.
*
2.1.2. Factos não provados
Não se provou que:
a) A reparação do veículo supra identificado não foi contratada por AA, mas sim por BB, agente de seguros.
b) EE referiu ser gerente da sociedade A... Unipessoal, Lda.
c) Antes do referido em 13., o Réu interpelou a Autora para concluir a reparação do veículo, concedendo-lhe um prazo para o efeito.
d) O Réu desconhecia e não consentiu que a reparação fosse realizada na oficina da sociedade B..., Lda.
e) O único material que a Requerente entregou à sociedade comercial B..., Lda., juntamente com o veículo com vista à reparação do mesmo, foi dois painéis, um kit de airbag, uma porta, um para choques e um farolim, no valor de € 3.400,00.
f) AA nunca reclamou dos serviços prestados pela Autora.
g) O diferencial existente entre os valores referidos em 6. e 10. deveria ter sido pago em meados de Outubro de 2019.
h) O Réu não pôde utilizar o veículo entre Novembro de 2019 e Abril de 2021.
i) O Réu temeu que nunca mais viesse a usufruir do veículo, devidamente reparado e em condições de segurança.
j) Foi acordado entre Autora e Réu um prazo para a conclusão da reparação em causa nos autos.
k) O Réu comprometeu-se a entregar à Autora, em Agosto de 2018, um reforço de €5.000,00.
l) Todas as peças necessárias à reparação do veículo e referidas no orçamento referido em 4. foram adquiridas pela Autora e entregues à sociedade B..., Lda.
m) Foi acordado entre Autora e Réu que a reparação seria concluída até finais de Outubro de 2019.
n) O Réu sempre referiu que não tinha pressa na reparação do veículo.
*
Fundamentação de direito
1ª Se a sentença recorrida padece de alguma das nulidades previstas nas alíneas b) e c), do nº1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil
As nulidades da sentença tipificadas no artigo 615º, do Código de Processo Civil, são vícios formais, reportando-se à estrutura, à inteligibilidade e aos limites da decisão.
Não podem ser confundidas com erros de julgamento de facto nem com erros de aplicação das normas jurídicas aos factos.
Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas e/ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto. Esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, antes ao mérito da relação material controvertida, nela apreciada, não a inquinam de invalidade.
Diferentemente, as nulidades previstas no artigo 615º, do Código de Processo Civil, são aquelas que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer por essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”
[1]
ou condenar
ultra petitum,
tendo o julgador de limitar a condenação ao que, concretamente, vem peticionado, em obediência ao princípio do dispositivo.
Os referidos vícios respeitam, por conseguinte, à “estrutura ou aos limites da sentença.
Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação) e c) (oposição entre os fundamentos e a decisão).
Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia
ultra petitum
)”
[2]
.
No caso concreto, analisadas as alegações de recurso e respetivas conclusões, a Autora/Apelante invoca as nulidades da sentença previstas nas alíneas b) e c), do artigo 615º, do Código de Processo Civil.
Como fundamento de tais nulidades alega que o Tribunal
a quo
declarou os factos que considerou provados e não provados relevantes para a decisão da causa, mas não efetuou qualquer justificação/valoração, de forma crítica, dos depoimentos, declarações de parte e depoimentos de parte sobre os quais efetuou uma súmula, verificando-se, por isso, falta de fundamentação relativa à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento que torna a sentença obscura e inteligível nos seus fundamentos.
Decorre do disposto na alínea b), do nº1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil, que a sentença é nula “quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão” e, nos termos da alínea c), do citado preceito, a nulidade da sentença também ocorrerá quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
O estatuído na alínea b), do nº1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil é a sanção pelo desrespeito do disposto no artigo 154º, do Código de Processo Civil, que estabelece que "as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”, e que assenta no princípio constitucional da obrigatoriedade de fundamentação de todas as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente (artigo 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).
É unanimemente entendido, na doutrina e na jurisprudência, que só a ausência absoluta de fundamentação, que não uma fundamentação escassa, deficiente, ou mesmo medíocre, pode ser geradora da nulidade das decisões judiciais.
O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação, a ausência total de fundamentos de facto e de direito; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a sua nulidade
[3]
.
Nesta linha de entendimento, relativamente à fundamentação de facto, só a falta de concretização dos factos provados que servem de base à decisão conduz à nulidade da decisão.
Quanto à fundamentação de direito, “o julgador não tem de analisar todas as razões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições, embora lhe incumba resolver todas as questões suscitadas pelas partes: a fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adotada pelo julgador”
[4]
.
Por seu lado, a contradição entre os fundamentos e a decisão, a que alude a al. c), do n.º 1, do artigo 615.º, do Código de Processo Civil, verifica-se quando a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto; pretendendo o legislador que o juiz justifique a sua decisão, esta não poderá considerar-se justificada quando colide com os fundamentos em que ostensivamente se apoia.
[5]
No caso concreto, analisada a decisão recorrida, conclui-se claramente que a mesma não padece dos invocados vícios, mostrando-se fundamentada quer de facto, quer de direito, consequente com os fundamentos e não contendo qualquer ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível.
Saliente-se, a respeito desta questão, que a Autora/Apelante parece incorrer numa confusão quando invoca aquelas nulidades.
Uma coisa é o julgamento da matéria de facto, no qual o juiz deve decidir quais os factos que considera provados e quais os que considera não provados e, realidade distinta é a motivação desse julgamento, na qual o juiz, relativamente aos factos que considera provados e não provados, deve analisar “criticamente as provas, indicando as ilações tiradas de factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; (…)” - art. 607º, nº 4, do Código de Processo Civil.
O art. 615º, nº 1, al. b), reporta-se apenas à omissão do julgamento da matéria de facto e não já à sua motivação, sendo que, em relação a esta, rege o art. 662º, nºs 2, als. c) e d), e 3, als. b) e d) do citado diploma.
No caso, a sentença proferida contém a enunciação dos factos provados e, bem assim, dos fundamentos de direito que conduzem à decisão final proferida, indicando, interpretando e aplicando as normas jurídicas correspondentes, sendo ainda manifesto que inexiste a contradição a que alude a alínea c), do nº1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil, improcedendo, nesta parte, a apelação.
De resto, a propósito da invocação de nulidades em sede de recurso e como evidencia, com inteira propriedade, António Santos Abrantes Geraldes
[6]
, “É frequente a enunciação nas alegações de recurso de
nulidades da sentença
, numa tendência que se instalou (e que a racionalidade não consegue explicar), desviando-se o verdadeiro objeto do recurso que deve ser centrado nos aspetos de ordem substancial. Com não menos frequência, a arguição de nulidades da sentença ou do acórdão da Relação acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam tais nulidades, previstas no artigo 615º, nº1”.
É justamente o que sucede no caso concreto com a alegação da Autora/Apelante, que confunde a invocação de nulidades com a arguição da existência de erro de julgamento.
Se a fundamentação que a sentença recorrida deu a certos factos foi ou não a mais correta são questões relacionadas com o mérito da decisão e com um eventual erro de julgamento, mas que nada têm a ver com as nulidades previstas nas alíneas b) e c) do nº1 do artigo 615º, do Código de Processo Civil.
O que a Recorrente vem manifestar, em concreto, é a sua discordância quanto ao decidido na sentença apelada, mas esse inconformismo não conduz à sua nulidade.
Termos em que improcedem as conclusões da alegação de recurso da Autora/Apelante no que respeita às questões da nulidade da decisão recorrida.
*
2ª Da impugnação da decisão da matéria de facto
O art.º 662.º do Código de Processo Civil dispõe, no seu nº 1, que: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Como refere Abrantes Geraldes
[7]
,“Com a redacção do art. 662º pretendeu-se que ficasse claro que, sem embargo de correção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afetam a decisão da matéria de facto (v.g. contradição) e também sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art. 640º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos, e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras da experiência… fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia… sem embargo, das modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas, à Relação não é exigido, nem lhe é permitido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos a livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo Tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto, indicou nas respectivas alegações que circunscrevem o objecto de recurso”.
Por seu lado, o artigo 640.º, do Código de Processo Civil, impõe ao recorrente, na impugnação da matéria de facto, a obrigação de especificar, sob pena de rejeição:
a) “os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados” [tem que haver uma indicação clara e inequívoca dos segmentos da decisão que considera afetados por erro de julgamento; ou seja, essa indicação tem que ser de molde a não implicar uma atividade de interpretação e integração das alegações do recorrente, tendo o Tribunal que encontrar na matéria de facto provada e não provada a matéria que o mesmo pretenderia impugnar, o que, aliás, está vedado ao Tribunal, face ao princípio do dispositivo];
b) “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” [tem que fundamentar os motivos da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios de prova produzidos – constantes dos autos ou da gravação – que, no seu entender, implicam uma decisão diversa da impugnada];
c) “quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”;
d) “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
O citado artigo 640.º impõe, pois, um ónus rigoroso ao Recorrente, cujo incumprimento implica a rejeição imediata do recurso. Como evidencia António Santos Abrantes Geraldes
[8]
, será de rejeitar total ou parcialmente o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto em alguma das seguintes situações:
«a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b), do CPC));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc).
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento de impugnação». Quanto a esta situação importa, no entanto, ter presente que o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão nº 12/2023, de 17 de outubro de 2023
[9]
, uniformizou a seguinte jurisprudência: «Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações».
Cumpre ainda salientar que a reapreciação da matéria de facto, a ocorrer, deve conter-se dentro dos seguintes parâmetros:
i) O Tribunal da Relação só tem de se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pela Recorrente (a menos que se venha a revelar necessária a pronúncia sobre facticidade não impugnada para que não haja contradições);
ii) Sobre essa matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação tem de realizar um novo julgamento;
iii) Nesse novo julgamento, o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Dentro destes limites, o Tribunal da Relação está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto à imediação e oralidade.
Diga-se ainda que a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do Código de Processo Civil), que está atribuído quer ao Tribunal da 1ª instância quer ao Tribunal de recurso, embora se reconheça que na formação da convicção do julgador podem intervir elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade permitem apreender.
Recorrendo aos ensinamentos de António Santos Abrantes Geraldes
[10]
, diremos que “É inegável que a gravação dos depoimentos por registo áudio ou por meio que permita a fixação da imagem (vídeo) nem sempre consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal a quo. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reações perante as objeções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de perceção das referidas reações que, porventura, influenciaram o juiz de 1ª instância”.
Como é referido por aquele autor em nota de rodapé (547), na obra citada, página 348, «Já no Preâmbulo do Decreto nº 12.353, de 22-9-1926, se assinalava, com toda a pertinência, que “a psicologia judiciária ensina que um dos elementos a que deve atender-se para apreciar o valor de um depoimento é a atitude da testemunha, o modo como ela se apresenta, a forma por que depõe, o tom de firmeza ou de embaraço que imprime às suas declarações. Não é exagerado afirmar-se que mais do que aquilo que a testemunha diz vale o modo por que o diz”».
Por estas razões, está, em princípio, em melhor situação para apreciar os depoimentos prestados o julgador de primeira instância, uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos que não transparecem na gravação dos depoimentos, devendo, contudo, esclarecer, na decisão, os elementos considerados que entendeu de relevo.
Não obstante essas dificuldades com que o Tribunal da Relação se defronta, a verdade é que deverá modificar a decisão da matéria de facto se e quando, analisando devidamente todos os meios de prova, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, consiga concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação por parte do Tribunal de 1ª Instância relativamente aos concretos pontos de facto impugnados pelo Recorrente. De salientar que pode, também, dar-se o caso de, mesmo que o erro na apreciação da prova se não verifique, o Tribunal da Relação, usando da sua autonomia decisória, entender que deve introduzir as alterações solicitadas pelo Recorrente no compósito fáctico da causa, por diversa convicção sobre as provas, pois que o princípio da livre convicção de julgador vigora não só no julgamento de facto em 1ª instância, como também no julgamento de facto da Relação, não estando este Tribunal vinculado à livre convicção do julgador do Tribunal inferior.
Partindo destas premissas, revertendo ao caso dos autos, entendemos que - com exceção da impugnação por parte da recorrente do ponto 16) dos factos provados, como mais adiante explicaremos - tanto a Autora/recorrente como o Réu/apelante cumpriram os pressupostos de ordem formal para se proceder à reapreciação da decisão da matéria de facto, mais precisamente o ónus de impugnação a que alude o artigo 640º, do Código de Processo Civil, mostrando-se preenchidos todos os pressupostos necessários para a Relação proceder à reapreciação da prova.
A este respeito convém ainda salientar que, não obstante a Autora/apelada, nas suas contra-alegações, ter sustentado que o recurso da decisão da matéria de facto por parte do Réu/Apelante deve ser rejeitado, porquanto aquele não indica nas conclusões do recurso qual a decisão que entende dever ser proferida pelo Tribunal relativamente à impugnação da matéria fática que efetua, tal argumentação não procede. Nas suas alegações de recurso o Réu/Apelante indica claramente a decisão alternativa que pretende relativamente a cada um dos segmentos da decisão de facto que impugnou e, nessa medida, face ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 12/2023, acima melhor identificado, não estava vinculado a indicar nas conclusões o resultado pretendido.
Assim, mostram-se preenchidos todos os pressupostos necessários para a Relação proceder à reapreciação da prova, o que passamos a efetuar, tendo para tal procedido à audição integral das gravações dos depoimentos indicados e analisado devidamente toda a prova documental.
A) No que concerne à impugnação efetuada por parte da Autora/Apelante.
A.1 - Esta começa por impugnar o ponto 11) dos factos provados e a alínea l dos factos não provados.
Recorde-se que no ponto 11. o Tribunal a quo deu como provado que: “A sociedade A... Unipessoal, Lda, entregou à sociedade B..., Lda, as peças identificadas na fatura n.º ..., datada de 07.06.2021, com exceção de uma porta, um punho e sensores, no valor global de €836,32, acrescido de IVA, à taxa de 23%”, pretendendo a Recorrente a alteração da redação deste ponto, no sentido de passar a constar do mesmo que: “A sociedade A... Unipessoal, Lda, entregou à sociedade B..., Lda, as peças identificadas na fatura n.º ..., datada de 07.06.2021”.
Por sua vez, na alínea l) o Tribunal a quo deu como não provado que: “l) Todas as peças necessárias à reparação do veículo e referidas no orçamento referido em 4. foram adquiridas pela Autora e entregues à sociedade B..., Lda”, pretendendo a Recorrente que essa factualidade passe a considerar-se provada.
Para fundamentar a sua pretensão, alega que:
- Nunca foi alegado pelo Réu, na sua oposição, quais as peças que não foram adquiridas pela Autora mas sim pela sociedade B..., Lda e quem as pagou diretamente, nem resulta de nenhum facto dado como provado que a sociedade B..., Lda tenha procedido à compra de peças para o veículo em causa, muito menos que tenha adquirido as portas, punhos e sensores do veículo, sendo certo que o Réu não se queixa da falta destes materiais, pelo que não pode o Tribunal
a quo
substituir-se à parte na identificação de quais as peças que considera terem sido adquiridas pela sociedade B..., Lda, e não pela Autora.
- O facto 11) encontra-se em contradição com o ponto 7) dos factos provados, no qual o Tribunal
a quo
deu como provado que: “7) Os trabalhos realizados/prestados pela Requerente consistiram na substituição do para-choques traseiro, amortecedores, braços de suspensão, airbags, tablier, porta, sensores, farolins, depósito, encostos, batentes, vidros, caixas de roda, cinto de segurança, elevador, resguardos, punhos, pegas, chapas, luzes, bem como todo o material necessário para a sua substituição, como tampas, parafusos, ilhargas, suportes, apoios, revestimento, porcas, guias, elemento, chaparia, pintura, e respetiva mão de obra.”
- Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, resulta prova clara contrária à conclusão do Tribunal
a quo
, nomeadamente a testemunha FF, sócio-gerente, afirmou que essas peças que o Tribunal recorrido identifica como tendo sido a sociedade B... Lda a adquirir, foi a Autora quem lhas trouxe (minuto 53:00 a 53:40 e minuto 01:07:22 a 01:11:00); nas faturas juntas pela sociedade B..., Lda (a 10/01/2023 com a ref.ª 13981701), não há referência à faturação de peças; na fatura emitida pela sociedade B..., Lda ao Réu não consta qualquer faturação de tais peças; do acervo fáctico dado como provado, não consta do ponto 18. que a fatura emitida pela sociedade B... Lda., no valor de 3.600€ +IVA, diga respeito apenas à reparação parcial do veículo.
Com interesse para compreender a decisão do Tribunal
a quo
quanto ao facto provado sob o ponto 11) e quanto à factualidade não provada sob a alínea l) consta da motivação da decisão da matéria de facto na sentença recorrida o seguinte:
«Quanto à factualidade controvertida, iremos analisar, em primeiro lugar, a prova documental junta aos autos.
Como Doc. n.º 1 junto com o requerimento refª 40585387 / 12270501 mostra-se junta a participação do acidente de viação em que esteve envolvida a viatura em causa nestes autos, ocorrido em 13.01.2018, a qual se encontra datada de 15.01.2018 e assinada pelo Réu, e onde consta como oficina reparadora a sociedade D..., Lda.
Encontra-se junto o relatório de perda total e o orçamento referido em 4., de onde resulta que foi orçamentado o valor global de € 20.906,04, IVA incluído, sendo € 2.491,50 + IVA, a título de mão de obra, e o remanescente, a título de material – cfr. Doc. nº 2 do requerimento refª 40585387 e refª 13981984. (…)
Nas facturas juntas sob Docs. n.º 5 a 27 com o requerimento refª 40585387 constam as peças adquiridas pela Autora à E... e à F....
Comparando a factura emitida pela Autora e junta sob Doc. n.º 28 com os citados Docs. nºs 5 a 27, podemos constatar que não se encontra demonstrada a aquisição por parte da Autora de uma porta, no valor de €569,85 (foram facturadas duas portas, mas apenas se mostra comprovada a aquisição de uma porta), um punho, no valor de €22,78, e sensores, no valor de €85,00, €91,19 e €67,50, acrescendo a todos os valores indicados o IVA.
Por outro lado, da factura emitida pela Autora e junta sob Doc. n.º 28, podemos constatar que foram facturados “serviços internos” no valor de €2.100,00, desconhecendo-se a que diz respeito esta rubrica.
Ademais, o valor da mão-de-obra facturado ascende a €5.500,00, quando no relatório de inspecção elaborado pela Seguradora o custo da mão de obra ascendia a €2.491,50. (…)
O documento n.º 30 junto com o requerimento refª 40585387 diz respeito à factura emitida por B..., Lda., em 17.10.2019, em nome da Autora, no valor de €3.600,00 + IVA, correspondendo €1.300,00 a material de pintura e €2.300,00 a mão de obra, por referência à reparação da viatura em causa nos autos. (…)
Através do documento junto sob a refª 13981671 é possível confirmar que foi realizado o pagamento à E... das facturas emitidas por aquela sociedade e juntas pela Autora aos autos e, bem assim, que a mercadoria em causa não foi devolvida.
Sob a refª 13981701 foram juntas pela sociedade B..., Lda. facturas de aquisição de peças.
Conjugando as referidas facturas com o orçamento referido em 4., mormente a lista de peças, e com as facturas juntas como Docs. nºs 5 a 27 com o requerimento refª 40585387, podemos concluir que foi esta sociedade e não a Autora que adquiriu, pelo menos, as seguintes peças: Reforço (refª 8V5807309), Avental rectag. Central (refª 8V5807521F1RR), Jante alumínio (refª 8V0601025BF), Farolim traseiro int. LED (refª 8V5945093H), Friso Exterior da Janela (refª 8V7853764C3Q7), Tampa de cobrir (refª 8V7825302B), Friso cobertura capota (refª 8V7853297D3Q7), Aperto de canto revest. Embaladeira (refª 8V7854536) e Reflector (refª 8V5945105B).
Consta, ainda, destes documentos a aquisição de uma armação de Capota (refª 8V71025A).
A factura junta sob a refª 130501435, emitida pela sociedade B..., Lda., em nome do Réu não especifica a referência das peças aí indicadas, pelo que não nos é possível confrontá-la com a lista de peças junta com o orçamento da seguradora, sendo certo que os valores cobrados pelas peças da capota nem sequer coincidem com o orçamentado.
Mostram-se, ainda, juntos com a refª 130501435 o recibo e o comprovativo de pagamento desta factura pelo Réu.
Através do documento junto sob a refª 14064283 é possível confirmar que foi realizado o pagamento à F..., S.A. das facturas emitidas por aquela sociedade e juntas pela Autora aos autos e, bem assim, que a mercadoria em causa não foi devolvida.
A cópia de cheques utilizados pela Autora para proceder ao pagamento à E... e à F... das peças adquiridas encontra-se junta com a refª 44734455.
AA, Réu/Reconvinte nos presentes autos, prestou um depoimento parcial, interessado e confuso, mais preocupado em fazer vencer a sua tese do que em relatar o que, de facto, se passou. (…)
GG, gerente da sociedade Autora, atestou o referido em 4. e 5. (…)
Acrescentou que foi logo acordado que a Autora fornecia as peças e que o demais seria realizado pela oficina de CC.
Referiu que forneceram todas as peças necessárias, as quais foram adquiridas à E... e à F....
As suas declarações, neste ponto, foram refutadas quer pela prova documental junta aos autos, nos termos já supra analisados, quer pelas declarações prestadas por CC, a que infra faremos alusão. (…)
HH, vendedor da E..., referiu que viu o veículo em causa nos autos, primeiro nas instalações da Autora e depois nas instalações da sociedade B..., Lda.
Esclareceu que as peças para aquele veículo eram encomendadas pela Autora, à medida que iam sendo necessárias, sendo as peças entregues, por regra, directamente na oficina de CC. Disse, ainda, que as peças demoravam entre 2 a 3 semanas a serem entregues, após a encomenda.
Confirmou os documentos juntos aos autos pela E... com o requerimento refª 40585387, desconhecendo se foram adquiridas peças a outros fornecedores. (…)
EE esclareceu que foi ele que esteve presente nas negociações para a reparação do veículo em causa nos autos, tendo sido com a concordância do Réu que a reparação foi entregue à Autora. (…)
Acrescentou que foi acordado que a reparação seria realizada na oficina de CC, o que era do conhecimento do Réu, sendo a Autora a fornecer as peças, tendo esta oficina facturado à Autora, pelos serviços prestados, a quantia de € 3.800,00 + IVA.
Disse, ainda, que as peças foram sendo fornecidas à medida que eram necessárias. (…)
BB, mediador de seguros, confirmou que o Réu teve um acidente grave com o veículo em causa nos autos em Janeiro de 2018, tendo sido declarada a “perda total”. (…)
Acrescentou que acompanhou várias vezes o Réu à oficina de CC e que lhes era referido que a reparação estava suspensa por falta de peças, queixando-se CC que as peças não lhe eram entregues pela Autora.
Referiu desconhecer quando o Réu deu ordem a CC para avançar ele com o que faltava da reparação, sabendo que o Réu pagou parte da reparação directamente a CC. (…)
CC atestou que, por diversas vezes, o Réu se deslocou à sua oficina, mostrando-se desagradado porque a reparação ainda não estava concluída.
Referiu que, a partir de uma determinada altura, a Autora se recusou a entregar mais peças, não tendo entregue, nomeadamente e entre outras peças, a capota, tendo sido contratado pelo Réu, em data que não soube precisar, para terminar a reparação, adquirindo as peças em falta.
Confirmou que cobrou à Autora a quantia de € 3.600,00 + IVA e cerca de € 12.000,00 ao Réu pelos serviços prestados.
Esclareceu que não comunicou à Autora que tinha sido contratado pelo Réu para terminar a reparação.
Referiu, ainda, que o veículo foi à inspecção com a capota velha, tendo sido a capota nova colocada em momento posterior.
Atestou que o veículo foi entregue ao Réu após a inspecção, tendo regressado posteriormente à oficina para que fosse concluída a reparação. (…)
Foi esta a prova produzida nos autos e dela resultou apenas, com a certeza exigível, a factualidade dada como provada.
Das declarações prestadas por BB e II resultou não corresponder à verdade o vertido em a).
Não se produziu prova segura do vertido em b) e c), não se encontrando junta aos autos qualquer interpelação escrita dirigida e recebida pela Autora a conceder-lhe prazo para ultimar a reparação, mas tão só uma carta a proceder à resolução do contrato.
Provou-se o contrário do referido em d).
O vertido em e) é afastado pelo provado em 11.
As declarações prestadas por BB e CC contrariam o referido em f).
Não se apurou qual a data acordada para pagamento do referido em g), considerando, mormente, as vicissitudes entretanto ocorridas.
Provou-se o contrário do referido em h) – cfr. facto provado em 15.
Não se produziu prova segura do vertido em i) a k) e m) a n).
Face ao supra expendido, é por demais evidente que não logrou a Autora demonstrar o referido em l), resultando, pelo contrário, da prova produzida que várias peças foram adquiridas directamente pela sociedade B..., Lda.
Por tudo o exposto, o Tribunal lançou mão das regras do ónus da prova e decidiu a matéria de facto controvertida da forma supra descrita».
Tendo presente esta motivação da decisão da matéria de facto por parte do Tribunal
a quo
e começando pelo primeiro argumento invocado pela Recorrente para impugnar o ponto 11) dos factos provados e a alínea l) da factualidade não provada, entendemos que não assiste razão àquela quando sustenta que nunca foi alegado pelo Réu na sua oposição quais as peças que não foram adquiridas pela Autora mas sim pela sociedade B..., Lda, e quem as pagou diretamente, pelo que não pode o Tribunal
a quo
substituir-se à parte na identificação das peças que considera terem sido adquiridas pela sociedade B..., Lda, e não pela Autora. Note-se que no artigo 5º do requerimento de injunção a Autora alegou que “Os trabalhos realizados/prestados pela Requerente consistiram na substituição do para-choques traseiro, amortecedores, braços de suspensão, airbags, tablier, portas, sensores, farolins, depósito, encostos, batentes, vidros, caixas de roda, cinto de segurança, elevador, resguardos, punhos, pegas, chapas, luzes, bem como todo o material necessário para a sua substituição, como tampas, parafusos, ilhargas, suportes, apoios, revestimento, porcas, guias, elemento, chaparia, etc, e respetiva mão de obra, tudo melhor identificado na discriminação da fatura n.º ..., datada de 07.06.2021, que se junta e se dá por reproduzida para todos os efeitos legais – doc. 2”.
No artigo 64º da oposição, o Réu impugnou a factualidade alegada naquele artigo 5º, na parte “realizados/prestados pela Requerente” e no artigo 82º da reconvenção alegou que “o único material que a Requerente entregou à sociedade comercial B..., Lda, juntamente com o veículo com vista à reparação do mesmo, foi apenas dois painéis, um kit de airbag, uma porta, um para-choques e um farolim”.
Por outro lado, a fatura n.º ... emitida pela Autora, junta sob o documento 28, foi impugnada pelo Réu por requerimento de 9 de dezembro de 2021 nos seguintes moldes: “Nos termos do disposto nos números 1 e 2, dos Art.s 415º e 444º, ambos do Cód. Proc. Civil, impugna os documentos juntos pela Requerente/Reconvinda sob os números 5 a 28, por se desconhecer se a letra neles aposta, o seu conteúdo e autenticidade são, ou não, verdadeiros, impugnando-se ainda, o valor probatório, sentido e alcance que, com esses e os restantes, a Requerente/Reconvinda pretende alcançar.”
Neste contexto, a fatura ..., junta como documento 28 pela Autora, apenas demonstra que foi emitida e não, como parece ser entendimento da Apelante, que os serviços e peças nela discriminados tenham sido efetivamente prestados e fornecidos. É que, por mor do disposto no art. 376º, nº 1, do Código Civil, essa fatura, enquanto documento particular, apenas goza de força probatória plena quanto à materialidade das declarações atribuídas ao seu autor, se apresentados contra este; já se é o seu autor a utilizá-los em seu proveito (como é o caso) fica o mesmo, se impugnado (como sucedeu), sujeito à livre apreciação do tribunal, cabendo-lhe, nessas condições, produzir livremente prova sobre a exatidão do respetivo conteúdo.
Por isso, o Tribunal
a quo
, no ponto 11 dos factos provados, não se substituiu ao Réu na identificação das peças que considera terem sido adquiridas pela sociedade B..., Lda e não pela Autora, sendo certo que em lado algum daquele ponto se deu como provado que uma porta, um punho e sensores tenham sido adquiridos pela sociedade B..., Lda.
Improcede, por isso, o primeiro argumento invocado pela Apelante para impugnar o ponto 11 dos factos provados.
Como segundo argumento, alega a Apelante que o facto 11) se encontra em contradição com o ponto 7) dos factos provados, onde se deu como provado que: “7) Os trabalhos realizados/prestados pela Requerente consistiram na substituição do para-choques traseiro, amortecedores, braços de suspensão, airbags, tablier, porta, sensores, farolins, depósito, encostos, batentes, vidros, caixas de roda, cinto de segurança, elevador, resguardos, punhos, pegas, chapas, luzes, bem como todo o material necessário para a sua substituição, como tampas, parafusos, ilhargas, suportes, apoios, revestimento, porcas, guias, elemento, chaparia, pintura, e respetiva mão de obra.” Analisados os dois factos provados, entendemos que, se é certo que em relação à porta não existe contradição, o mesmo já não se poderá concluir quanto ao punho e aos sensores. Explicando melhor o nosso entendimento, resulta do facto 11 provado que a Autora "entregou à sociedade B..., Lda. as peças identificadas na fatura n.º ..., datada de 07.06.2021, com exceção de uma porta, um punho e sensores, no valor global de € 836,32, acrescido de IVA, à taxa de 23%" e no ponto 7, embora se tenha dado como provado que entre as peças fornecidas pela Autora consta uma porta, a motivação da sentença clarifica esta aparente discrepância quando ali se refere: "Comparando a fatura emitida pela Autora e junta sob Doc. n.º 28 com os citados Docs. nºs 5 a 27, podemos constatar que não se encontra demonstrada a aquisição por parte da Autora de uma porta, no valor de € 569,85 (foram faturadas duas portas, mas apenas se mostra comprovada a aquisição de uma porta)". Esta explicação demonstra que a Autora faturou duas portas, mas só conseguiu comprovar a aquisição de uma, levando o tribunal a considerar a outra porta como não entregue pela Autora. Assim, não existe contradição insanável entre os factos no que respeita à porta. O facto 7 descreve as peças que fizeram parte da reparação geral, enquanto o facto 11, apoiado pela motivação, reflete a ausência de prova da aquisição de uma das portas faturadas pela própria Autora, o que justifica a exclusão dessa peça do montante a receber pela Autora.
Diferentemente, verifica-se contradição entre o ponto 7) e o ponto 11) dos factos provados no que respeita ao punho e aos sensores, pois que no ponto 7) o Tribunal
a quo
deu como provado que os trabalhos de substituição de sensores e punhos, bem como todo o material necessário para a sua substituição, foram prestados pela Autora, e no ponto 11) dá como provado que um punho e sensores não foram entregues pela Autora à sociedade B..., Lda, contradição que se impõe resolver. E embora a Recorrente sustente que da prova produzida em audiência de discussão e julgamento resulta prova clara contrária à conclusão do Tribunal
a quo
quando deu como provado o ponto 11, entendemos que não lhe assiste razão.
Ouvida a prova testemunhal indicada pela Recorrente, e concatenada a mesma com a prova documental junta aos autos, melhor descrita na sentença recorrida, entendemos não assistir razão à Recorrente, pois que não vemos razão para divergir do decidido.
Analisada a prova produzida, ficou-nos a convicção de que, in casu, não existe o erro de julgamento que a Recorrente aponta, ao invés a matéria de facto foi livremente e bem decidida, pelo que não podemos, com segurança, divergir do juízo probatório do Tribunal a quo.
Efetuada a análise da prova, não há elementos probatórios produzidos no processo que imponham ou justifiquem decisão diversa – como exige o nº1, do artigo 662.º, para que o Tribunal da Relação possa alterar a decisão da matéria de facto quanto ao ponto 11 dos factos provados e quanto à alínea l) dos factos não provados, no sentido proposto pela Apelante. Não nos deparamos com prova robusta para demonstrar, como pretende a Recorrente, que todas as peças identificadas na fatura n.º ..., datada de 7 de junho de 2021, tenham sido adquiridas pela Autora e entregues à sociedade B..., Lda.
Assim, ponderando, de uma forma conjunta e conjugada e com base em regras de experiência comum, os meios de prova produzidos, concluímos que o juízo fáctico efetuado pelo Tribunal de 1ª Instância, no que concerne à matéria de facto em causa, se mostra conforme com a prova produzida, não se vislumbrando qualquer razão para proceder à alteração do ali decidido naquele facto 11., improcedendo nesta parte a apelação.
No entanto, tendo em vista afastar a apontada contradição entre o facto provado 11 e o facto provado 7, impõe-se alterar a redação do facto 7), eliminando-se do mesmo a alusão a “sensores” e “punhos”, passando a ter a seguinte redação: “7. Os trabalhos realizados/prestados pela Requerente consistiram na substituição do para-choques traseiro, amortecedores, braços de suspensão, airbags, tablier, porta, farolins, depósito, encostos, batentes, vidros, caixas de roda, cinto de segurança, elevador, resguardos, pegas, chapas, luzes, bem como todo o material necessário para a sua substituição, como tampas, parafusos, ilhargas, suportes, apoios, revestimento, porcas, guias, elemento, chaparia, pintura, e respetiva mão de obra”.
A.2 - A Recorrente pugna também:
- pela alteração da redação do ponto 13) dos factos provados, com a eliminação do segmento “Após ter sido informado que a Autora não iria fornecer mais peças”.
- que o ponto 14) dos factos provados - no qual o Tribunal
a quo
deu como provado que “Após o referido em 13., o Réu solicitou à sociedade B..., Lda, que concluísse a reparação do veículo com a matrícula ..-PT-.., tendo liquidado àquela sociedade, em 16.04.2021, a quantia de € 12.943,43” - passe a ser considerado não provado.
Alega, em favor da sua pretensão, que o Tribunal
a quo
deu como provado o facto 13) com fundamento no documento 8, com a ref.ª 44623647, o qual se refere a uma carta enviada pelo Requerido à Requerente, e como tal, não tem qualquer condão de – por si só - fazer prova referente à veracidade das declarações aí prestadas, assim o prescreve o art. 376º, n.º2 do Código Civil, para além de não resultar de qualquer parte desse documento que a Autora tenha informado que não iria fornecer mais peças, ao que acresce a circunstância de aquele segmento que pretende ver eliminado do facto provado 13 não resultar da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, porquanto nenhuma testemunha refere de forma categórica que a Autora se tenha recusado a entregar as peças que constavam do orçamento, tendo tal alegação sido contrariada pelas testemunhas HH e JJ.
Ouvimos os depoimentos indicados não apenas pela Recorrente, mas também os da testemunha BB, mediador de seguros, o qual esclareceu que acompanhou por diversas vezes o Réu à oficina de CC, onde eram informados que a reparação estava suspensa por falta de peças, queixando-se CC que as peças não lhe eram entregues pela Autora, e da testemunha CC, sócio-gerente da sociedade B..., Lda, empresa subcontratada pela Autora para a reparação, que referiu que a Autora, a partir de certo momento se recusou a entregar mais peças, tendo o Réu referido à testemunha que, face à situação, iria enviar uma carta a resolver o contrato com a Autora, o que fez, pois que estava desagradado porque a reparação ainda não estava concluída. Após, foi contratado pelo Réu para terminar a reparação, adquirindo as peças em falta, versão que foi corroborado pela testemunha BB.
A alegação da Recorrente de que o Réu e a testemunha CC desconheciam as peças orçamentadas pela seguradora não invalida a constatação da recusa da Autora em fornecer as peças necessárias para a conclusão da obra.
Aliás, conjugando as faturas de aquisição de peças juntas aos autos pela sociedade B..., Lda com o orçamento referido em 4., mormente a lista de peças, e com as faturas juntas como Docs. nºs 5 a 27 com o requerimento refª 40585387, conclui-se que foi esta sociedade e não a Autora que adquiriu, pelo menos, as seguintes peças: Reforço (refª 8V5807309), Avental rectag. Central (refª 8V5807521F1RR), Jante alumínio (refª 8V0601025BF), Farolim traseiro int. LED (refª 8V5945093H), Friso Exterior da Janela (refª 8V7853764C3Q7), Tampa de cobrir (refª 8V7825302B), Friso, cobertura capota (refª 8V7853297D3Q7), Aperto de canto revest. Embaladeira (refª 8V7854536) e Reflector (refª 8V5945105B), bem como adquiriu uma armação de Capota (refª 8V71025A). Acresce que se mostra junto aos autos, com a refª 130501435 o recibo e o comprovativo de pagamento pelo Réu à sociedade B..., Lda, da quantia de € 12.943,43.
E assim, perante a prova produzida, entendemos que a pretensão da Recorrente não procede quanto ao pontos 13 e 14) dos factos provados, pois que não há motivo para concluir que o Tribunal
a quo
tenha incorrido – por violação das regras da ciência, da lógica ou da experiência – em qualquer error in iudicando, por erro na avaliação das provas, porquanto a convicção que esta Relação delas extrai coincide com a convicção da 1ª instância, inexistindo, por isso, razão bastante que imponha (como é suposto pelo nº 1 do art. 662º, do Código de Processo Civil) a alteração do juízo probatório referente à aludida materialidade.
Termos em que se mantém a redação dos pontos 13) e 14) dos factos provados.
A.3 - Sustenta a Recorrente que o ponto 15) dos factos provados deve ser alterado na sua redação, passando a ser a seguinte: “O veículo ficou totalmente reparado e em condições de ser entregue ao Réu em 21/10/2019, data em que foi emitido o seguro do mesmo, tendo realizado inspeção e alinhamento a 31/10/2019, na qual foi aprovado sem deficiências/anotações”.
No entanto, também quanto a esta questão não procede a apelação, pois que o facto provado sob o ponto 15 mostra-se diretamente suportado pela prova documental, nomeadamente o documento de inspeção de 31.10.2019, que atesta que o veículo foi aprovado sem anomalias/deficiências e apresentava 32.309 kms.
No mais, a distinção que aquele ponto 15 dos factos provados pressupõe entre o veículo estar "em condições de circular" e estar "totalmente reparado" é pertinente. O facto de o veículo ter passado na inspeção não significa, por si só, que a reparação estivesse totalmente concluída de acordo com o âmbito integral do contrato de empreitada, especialmente considerando que o Réu teve de contratar a sociedade B..., Lda para "concluir" a reparação e adquirir peças em falta posteriormente, como provado no ponto 14. Acresce que a aprovação na inspeção atesta a segurança e conformidade para circulação, mas não necessariamente a integralidade da obra contratada.
Assim, conclui-se pela improcedência da impugnação da decisão da matéria de facto quanto ao ponto 15 dos factos provados, mantendo-se a redação e o sentido estabelecido na sentença recorrida, por se encontrar devidamente sustentado na prova produzida.
A.4 - Quanto ao ponto 16) dos factos provados, pretende a Recorrente que seja considerado não provado.
No entanto, lidas as alegações e as conclusões do recurso, não indicou, relativamente a este ponto específico, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre aquele ponto 16 dos factos provados diversa da recorrida, pelo que, nesta parte, rejeita-se a impugnação da matéria de facto quanto ao ponto 16).
A.5 - Relativamente ao ponto 18) dos factos provados, a Recorrente pugna pela alteração da sua redação, de modo a que ali passe a constar que “Pela reparação total do veículo, pintura e material de pintura a sociedade B..., Lda, faturou à Autora a quantia de €3.600,00€ + IVA, à taxa de 23%”.
Sem razão, adiantámos nós, face ao que já resulta das considerações tecidas no âmbito da análise da impugnação dos factos provados sob os pontos 13), 14) e 15), que afastam a prova quanto ao facto de a Autora ter efetuado a reparação total do veículo.
Para além disso, a testemunha CC foi particularmente assertiva e coerente no seu depoimento, reiterando que apenas foi contratado pela Autora para efetuar o serviço de chapa e pintura no veículo do Réu, tendo na sequência faturado esses serviços, que descreve, no documento 30 junto pela Recorrente aos autos em 25 de novembro de 2021, como sendo “material pintura” e mão de obra.
A pretensão da Recorrente de alterar a redação do ponto 18 dos factos provados para incluir a “reparação total” é incompatível com a valoração da prova efetuada quanto à restante factualidade provada, nos termos já acima consignados.
Pelo exposto, a impugnação da decisão da matéria de facto quanto ao ponto 18 dos factos provados improcede.
B) Passemos agora ao conhecimento da impugnação efetuada pelo Réu/Apelante.
B.1 - Começa o Recorrente por impugnar o ponto 9) dos factos provados, no qual o Tribunal
a quo
deu como provado que: “9. AA teve conhecimento que a reparação estava a ser realizada pela sociedade B..., Lda., a isso nunca se tendo oposto”, pretendendo que passe a não provado, bem como a alínea d) dos factos não provados, na qual o Tribunal a quo deu como não provado que: “d) O Réu desconhecia e não consentiu que a reparação fosse realizada na oficina da sociedade B..., Lda”, defendendo que tal factualidade deve ser dada como provada.
Fundamentou tal impugnação em alguns excertos do depoimento da testemunha BB, que transcreveu.
No que concerne a tal matéria, o Tribunal
a quo
, na motivação, consignou o seguinte:
«AA, Réu/Reconvinte nos presentes autos, (…) Referiu ter sabido a posteriori que a reparação seria realizada na oficina de CC. (…)
GG, gerente da sociedade Autora, (…) Acrescentou que foi logo acordado que a Autora fornecia as peças e que o demais seria realizado pela oficina de CC (…) e que o Réu sabia perfeitamente qual era a oficina onde o carro ia ser reparado.(…)
EE esclareceu que foi ele que esteve presente nas negociações para a reparação do veículo em causa nos autos, tendo sido com a concordância do Réu que a reparação foi entregue à Autora. e que o Réu sabia perfeitamente qual era a oficina onde o carro ia ser reparado. Acrescentou que foi acordado que a reparação seria realizada na oficina de CC, o que era do conhecimento do Réu, sendo a Autora a fornecer as peças(…)
BB, mediador de seguros, confirmou que o Réu teve um acidente grave com o veículo em causa nos autos em Janeiro de 2018, tendo sido declarada a “perda total”.
Referiu que, pretendendo o Réu reparar o veículo, recomendou ao Réu a oficina D... para proceder à reparação.
Tendo-se aí deslocado com o Réu, confirmou que foi acordado que a reparação seria assumida pela Autora A....(…)
CC atestou que, por diversas vezes, o Réu se deslocou à sua oficina, mostrando-se desagradado porque a reparação ainda não estava concluída”, o que pressupõe o conhecimento do local conde a reparação estava a ser realizada».
Assim, entendemos que nesta parte da impugnação do ponto 9) dos factos provados e alínea d) dos factos não provados, a pretensão do Recorrente claramente não pode proceder, atenta a acertada e devidamente fundamentada decisão do Tribunal
a quo
, não se vislumbrando qualquer fundamento para dar como não provado o ponto 9) dos factos provados e para dar como provada a factualidade constante da alínea d) dos factos não provados, tendo em consideração o conjunto da prova produzida, suficientemente robusta para se concluir que não houve erro por parte do Tribunal
a quo
na apreciação daquela factualidade.
B.2 - O Recorrente pugna pela alteração da redação do ponto 11) dos factos provados, no sentido de que no mesmo passe a constar que “11. A sociedade A... Unipessoal, Lda. entregou à sociedade B..., Lda, apenas as seguintes peças identificadas na factura n.º ..., datada de 07.06.2021: friso da cobertura da capota, porta da frente direita, vidro colorido, um elevador, airbag do condutor, airbag do passageiro, airbag do banco, módulo de airbag, airbag do banco, cinto de segurança, cinto de segurança, fivela, fivela, pré tensor (1) cobertura do para-choques, grelha KK, farolim traseiro (1 ou 2), painel lateral, tampa de cobrir, outro painel, suporte eixo da retaguarda, trapézio suspensão, trapézio suspensão superior, suporte do braço, amortecedor, reservatório de combustível, depósito de combustível, 1 painel, para-choque trás, o conjunto do tampão do gasóleo e o tablier com o valor global de € 6.799,21 acrescido de IVA à taxa de 23%, o que perfaz o valor de € 8.363,02.”
Para tanto, invocou o depoimento da testemunha CC.
Quanto a esta factualidade, ouvido o depoimento invocado pelo Recorrente e analisada toda a prova e vista a decisão da matéria de facto supra, ficou-nos a convicção de não existir o erro de julgamento que o Recorrente aponta. Diferentemente, a matéria de facto foi, objetiva, livremente e bem decidida, sendo que cada elemento de prova de livre apreciação não pode ser considerado de modo estanque e individualizado, elegendo algumas passagens dos depoimentos e esquecendo outras, como faz o Recorrente. Há que proceder a uma análise crítica, conjunta e conjugada dos aludidos elementos probatórios, para que se forme uma convicção coerente e segura e este Tribunal, ao fazê-la, com base nas regras de experiência comum e na normalidade, não apurou motivos para divergir do juízo probatório do Tribunal
a quo
, não existindo elementos probatórios produzidos no processo que imponham ou justifiquem decisão diversa – como exige o nº1, do artigo 662.º, para que o Tribunal da Relação deva proceder à alteração da decisão da matéria de facto quanto ao ponto 11) dos factos provados, remetendo-se aqui para as considerações acima tecidas no ponto A.1) do conhecimento da impugnação da matéria de facto por parte da Autora/recorrente.
B.3 - O Recorrente pretende também que a matéria da alínea j) dos factos não provados passe a ser considerada como provada, embora com a redação alterada nos seguintes termos: “Foi acordado entre Autora e Réu um prazo de três quatro meses para a conclusão da reparação em causa nos autos”, invocando, para tanto, o depoimento da testemunha BB.
No entanto, ouvido este depoimento, o que pelo mesmo é referido é apenas que “o Sr. LL deu uma estimativa que talvez em três a quatro meses poderia estar pronto o carro”. Ou seja, tratava-se apenas de uma estimativa, uma expectativa, mas daí não resulta que as partes tenham acordado num prazo contratual vinculativo de três a quatro meses. Assim sendo, e face ao que resulta da motivação da matéria de facto da sentença recorrida, considerando a demais prova produzida, designadamente o depoimento do Réu, segundo o qual lhe foi transmitido que a reparação demoraria cerca de 3 semanas, o depoimento da testemunha GG, gerente da Autora, que negou que tenha sido acordado um prazo de 3 semanas para a conclusão da reparação ou qualquer outro, concordamos com o Tribunal
a quo
quando conclui que não se produziu prova segura que permita dar como provada a factualidade da alínea j) dos factos não provados com a redação proposta pelo Recorrente, improcedendo o recurso nesta parte.
B.4 - O Recorrente pugna também pela alteração da redação do ponto 16) dos factos provados, aditando-se o termo “incapaz”, passando aquele ponto a ter a seguinte redação: “16. Por causa desta situação o Réu sentiu-se enganado, angustiado e incapaz”. Fundamente a sua pretensão nas declarações de parte por ele prestadas e no depoimento da testemunha BB. No entanto, ouvidos esses depoimentos, ponderando, de uma forma conjunta e conjugada e com base em regras de experiência comum, os meios de prova produzidos, também quanto a este ponto concluímos que o juízo fáctico efetuado pelo Tribunal de 1ª Instância, no que concerne a esta matéria de facto, se mostra conforme com a prova produzida, não se vislumbrando qualquer razão para proceder à alteração do ali decidido, nem se descortinando, à luz dos meios de prova invocados, qualquer erro ao nível da apreciação ou valoração da prova produzida, improcedendo nesta parte a apelação.
B.5 - O Recorrente pretende também que se dê como provada a factualidade constante da alínea i) dos factos não provados, qual seja:” i) O Réu temeu que nunca mais viesse a usufruir do veículo, deviamente reparado e em condições de segurança”, invocando, para tanto, as suas próprias declarações de parte.
Sucede que, ouvido o seu depoimento, concordamos com a avaliação que do mesmo o Tribunal a quo fez quando referiu que “prestou um depoimento parcial, interessado e confuso, mais preocupado em fazer vencer a sua tese do que em relatar o que, de facto, se passou”, não vislumbrando este Tribunal qualquer razão para proceder à alteração do decidido quanto à alínea i) dos factos não provados, improcedendo também nesta parte a pretensão do Recorrente.
B.6 - Finalmente, o Recorrente pretende que se adite ao elenco dos factos provados o seguinte: “O Réu não pôde utilizar o veículo entre 13.01.18 e 31.10.2019”.
Sucede que o Tribunal a quo já deu como provado, sob os pontos 2., 3., 4., 12. e 15. que:
2. Mostra-se registada, desde 07.02.2020, a favor de AA a propriedade do veículo de matrícula ..-PT-.., da marca Audi.
3. O veículo de matrícula ..-PT-.. esteve envolvido num acidente de viação, ocorrido em 13.01.2018.
4. A reparação ao veículo acidentado foi orçada pela C..., S.A. em € 20.906,04, IVA incluído, tendo concluído esta seguradora pela perda total do veículo, dando-se por reproduzido o relatório junto sob Doc. n.º 2 com o requerimento refª 40585387 / 12270501.
12. O veículo referido em 3. foi entregue na oficina da sociedade B..., Lda. no estado em que se encontrava na sequência do acidente.
15. O veículo ficou em condições de circular e de ser entregue ao Réu em 31.10.2019, tendo realizado inspeção nessa data, na qual foi aprovado sem deficiências/anotações.
Assim, da conjugação destes factos é possível concluir que o Réu não pôde utilizar o veículo entre 13 de janeiro de 2018 e 31 de outubro de 2019, pelo que entendemos ser de indeferir a pretensão do Réu, pois que não se descortina qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o Recorrente pretende operar.
Em conclusão, no que respeita às impugnações dos Apelantes quanto à decisão da matéria de facto decide-se apenas alterar a redação do facto provado 7, nos termos acima descritos, concluindo-se, no mais, pela improcedência daquelas impugnações, porquanto não há motivo para inferir que o tribunal de que provém o recurso tenha incorrido – por violação das regras da ciência, da lógica ou da experiência – no erro de julgamento que os Recorrentes apontam; ao invés a matéria de facto foi livremente e bem decidida, pelo que não podemos, com segurança, divergir do juízo probatório do Tribunal
a quo
.
Os factos a considerar são, por conseguinte, os acima indicados e que aqui se dão como reproduzidos, passando apenas o facto 7 a ter a seguinte redação: “7. Os trabalhos realizados/prestados pela Requerente consistiram na substituição do para-choques traseiro, amortecedores, braços de suspensão, airbags, tablier, porta, farolins, depósito, encostos, batentes, vidros, caixas de roda, cinto de segurança, elevador, resguardos, pegas, chapas, luzes, bem como todo o material necessário para a sua substituição, como tampas, parafusos, ilhargas, suportes, apoios, revestimento, porcas, guias, elemento, chaparia, pintura, e respetiva mão de obra”.
*
3ª Da repercussão da eventual alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso e, independentemente disso, se ocorreu erro de julgamento do Tribunal
a quo
, fundamentando os factos provados e o direito decisão de procedência da ação e /ou da reconvenção
Em sede de enquadramento jurídico, face à decisão quanto à impugnação matéria de facto enunciada na sentença recorrida, afastado fica desde logo o conhecimento da questão da repercussão da alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso suscitada pela Autora nas respetivas alegações de recurso.
Na aceção da própria Recorrente, só seria de considerar a existência de erro de julgamento da matéria de direito na medida da alteração da matéria de facto visada. Dependendo a reapreciação da matéria de direito do recurso da procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, mantendo-se esta praticamente na sua totalidade, fica prejudicado o conhecimento daquela (art.º 608.º/2,
ex vi
parte final do n.º 2 do art.º 663.º, ambos do C.P.C.), sendo certo que se revela inócuo em termos decisórios da ação e da reconvenção expressos na sentença recorrida que tivesse sido alterada a redação do ponto 7) dos factos provados.
Mas a Autora /Apelante sustenta também, sob as conclusões 23º a 27º, que não foi fixado um prazo para a conclusão da reparação do veículo, pelo que a simples mora na execução da obra (isto é, a não conclusão atempada da obra) não concede o direito de resolução imediata do contrato, salvo se houver perda do interesse na realização da obra. Assim sendo, alega que querendo resolver o contrato, o Réu – em vez de avançar logo com a comunicação enviada a 02.09.2019, através da qual comunicou à Autora que considerava o contrato de empreitada resolvido –, tinha de, previamente, fazer uso da interpelação admonitória à Autora, mas não o fez, pelo que não poderia o Tribunal
a quo
ter considerado válida a resolução contratual operada pelo Réu em 06 de setembro de 2019, porquanto não se encontram cumpridos os requisitos legais previstos para a sua validação.
Cumpre, por conseguinte, decidir se ocorreu erro de julgamento do Tribunal
a quo
ao decidir naqueles termos.
Não existe dissídio quanto à qualificação jurídica das relações contratuais havidas entre o Autor e a Ré como sendo de empreitada, e, mais concretamente, uma empreitada de consumo, pois os factos apurados revelam que estamos perante uma empreitada estabelecida entre o Réu que, mediante o pagamento de um preço, destina a obra encomendada a um uso não profissional, e a Autora que exerce profissionalmente uma atividade económica que abrange a realização da obra aqui em causa, qual seja, a reparação de um veículo.
Embora não se tenha provado a data exata da celebração do contrato em causa, face ao que resulta da factualidade provada sob os pontos 2 a 6 é legítimo concluir que tal contrato foi celebrado após 13 de janeiro de 2018 (data em que o veículo sofreu o acidente) e antes do final de março de 2018, pois que em 28 de março de 2018 o Réu, por conta dos trabalhos a realizar, transferiu para a Autora a quantia de €13.000,00.
O que vem de se referir é relevante porquanto, como se sustenta na sentença recorrida, torna a situação sub judice subsumível ao regime do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, não lhe sendo aplicável o regime do D.L. 84/2021, de 18 de outubro, que apenas veio dispor quanto a contratos celebrados após 1 de janeiro de 2022 (art. 53º, nº 1 conjugado com o art.º 55º do citado diploma).
Ora, perante uma “empreitada de consumo”, como acontece no caso em apreço, podemos afirmar que a definição dos eventuais direitos do aqui Réu, perante o alegado incumprimento da Autora, se poderá fazer à luz do citado D.L. 67/2003, e não necessariamente à luz do regime geral do Código Civil.
No contrato de empreitada de consumo, embora os direitos conferidos ao dono da obra apresentem o mesmo conteúdo que os previstos nos art. 1221º a 1223º do Código Civil, perante o regime constante do D.L. 67/2003, os direitos do dono da obra-consumidor são de exercício livre, segundo a opção deste, não estando sujeitos a qualquer hierarquia e relação de subsidiariedade.
Assim sendo, entendemos que bem andou o Tribunal de 1ª instância ao concluir ser legítima a resolução realizada pelo Réu em 6 de setembro de 2019, atenta a recusa da Autora em fornecer as peças ainda em falta necessárias para concluir a reparação, estando-se assim perante a alegação e prova por parte do Réu do incumprimento definitivo do contrato por parte da Autora, - que não iria fornecer mais peças - o que sempre dispensaria a interpelação admonitória prévia do artigo 808º do Código Civil tendente a propiciar a conversão de uma situação de atraso na realização da obra numa situação de incumprimento definitivo, pois que aquela situação configura uma situação de abandono, uma declaração tácita de recusa em acabar a obra, que deve qualificar-se como incumprimento definitivo.
Improcede, por conseguinte, também nesta parte o recurso de apelação interposto pela Autora.
*
Analisando agora o recurso interposto pelo Réu, começa este por sustentar que o tribunal “a quo” devia ter condenado a Autora a restituir ao Réu a quantia que o mesmo pagou em excesso no valor de €209,00, sendo certo que tal pretensão pressupunha a procedência da impugnação da decisão da matéria de facto por ele invocada quanto ao ponto 11 dos factos provados. Uma vez que tal impugnação improcedeu, consequentemente improcede também esta sua pretensão quanto à condenação da Autora a devolver-lhe o montante de €209,00.
Sustenta ainda o Réu/recorrente que o Tribunal
a quo
deveria ter condenado a Autora/reconvinda a pagar-lhe uma indemnização por força dos danos morais por ele sofridos e pela paralisação do seu veículo.
A respeito destas questões, o Tribunal
a quo
entendeu, no que respeita aos danos morais, que os factos dados como provados – ou seja, “16.. Por causa desta situação, o Réu sentiu-se enganado e angustiado” - não têm gravidade suficiente para sustentar a atribuição ao Réu de uma indemnização por danos morais, entendimento que perfilhámos.
No que concerne à indemnização pela privação do uso do seu veículo, à semelhança do Tribunal
a quo
, também nós concluímos que, não tendo o Réu logrado provar qual a data concreta acordada para a conclusão da obra contratada de reparação do veículo, não poderá ser imputado à Autora qualquer período de privação do uso do veículo, pois que entretanto o Réu veio a resolver validamente o contrato em causa.
Alega ainda o Recorrente, sob a conclusão 5 do recurso de apelação por si interposto, que o Tribunal
a quo
decidiu mal quanto aos juros ao condená-lo no pagamento de juros à taxa comercial, sendo que “in casu” não se aplica o disposto no Decreto Lei nº 62/2013, de 10 de Maio, dado não se tratar de remunerações de transações comerciais e o Réu ser um consumidor.
Com interesse para a decisão desta questão, dispõe o Art. 2º, do Código Comercial, que “Serão considerados atos de comércio todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código, e, além deles, todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio ato não resultar”.
Estabelece o Art. 102º, do Código Comercial, que: “Há lugar ao decurso e contagem de juros em todos os atos comerciais em que for de convenção ou direito vencerem-se e nos mais casos especiais fixados no presente Código.
(...)
§ 5.º No caso de transações comerciais sujeitas ao Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio, a taxa de juro referida no parágrafo terceiro não poderá ser inferior ao valor da taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu à sua mais recente operação principal de refinanciamento efetuada antes do 1.º dia de janeiro ou julho, consoante se esteja, respetivamente, no 1.º ou no 2.º semestre do ano civil, acrescida de oito pontos percentuais.”
Porém, na alínea a), do nº 2, do Decreto Lei nº 62/2013, de 10 de Maio, o legislador exclui do âmbito de aplicação desse diploma, ou seja, do âmbito de aplicação do regime especial de atrasos nos pagamentos, os contratos celebrados com os consumidores.
Termos em que nesta parte procede o recurso do Réu /Apelante.
*
4ª Se se verificam ou não os pressupostos de condenação dos Apelantes como litigantes de má-fé
A Autora/apelante, no seu recurso, pugna pela sua absolvição da litigância de má-fé, e, subsidiariamente, entende que deve ser condenada, no máximo, em montante igual ou inferior aos 300 euros em que foi condenado o Réu e este condenado em valor superior, no mínimo de 750 euros.
O Réu apelante insurge-se contra a decisão que o condenou como litigante de má-fé, sustentando que não se vislumbra qualquer má-fé substancial ou instrumental pela sua parte. Para além disso, alega que dos autos não resulta qualquer prejuízo que a Autora tenha tido em consequência da conduta considerada de má-fé por parte do Réu, não se encontrando preenchido o estatuído nas alíneas a) e b), do nº 1,do art. 543º, do Código de Processo Civil.
Diz-se litigante de má-fé, segundo o disposto pelo artigo 542º, n.º 2 do Código de Processo Civil, «quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente, reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».
A má-fé, de que trata o n.º 2 do art. 542º do Código de Processo Civil, pode ser substancial (ou material) ou instrumental
(ou processual).
A má-fé substancial diz respeito ao fundo da causa e abrange os casos de dedução do pedido ou de oposição cuja falta de fundamento se conhece (al. a)) e a alteração consciente da verdade dos factos ou omissão de factos essenciais (al. b)); será má-fé instrumental
se a sua atuação se reconduzir a omissão grave do dever de cooperação (al. c)) ou se disser respeito ao uso reprovável do processo, ou de meios processuais para conseguir um fim ilegal, para entorpecer a ação da justiça, impedir a descoberta da verdade ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (al. d)) e, ainda, nos termos do n.º 1 do art. 670º, se a parte «com determinado requerimento, obstar ao cumprimento do julgado ou à baixa do processo ou à sua remessa para o tribunal competente».
O art. 542º, n.º 2, do citado diploma legal, oriundo da revisão de 1995, alargou o conceito de má-fé à negligência grave, consagrando a condenação como litigante de má-fé quando a parte tenha uma atuação dolosa, mas também quando tenha uma conduta caracterizadora de negligência grave
(lides temerárias e comportamentos processuais gravemente negligentes).
O elemento subjetivo da litigância de má-fé foi, por conseguinte, ampliado pelo legislador, passando a sancionar não apenas o comportamento intencional, mas também aquele que, de modo gravemente negligente, não obedece aos deveres de cuidado impostos pelo dever de correção processual, acabando por não tomar consciência de factos que, de outro modo, teria conhecimento.
A conclusão pela atuação da parte como litigante de má-fé será sempre casuística, só devendo ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que se está perante uma atuação dolosa ou gravemente negligente da parte, manifestamente reprovável.
Por sua vez consigna o artigo 543.º do mesmo diploma legal sob a epígrafe “Conteúdo da indemnização” que:
1 - A indemnização pode consistir:
a) No reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos;
b) No reembolso dessas despesas e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência direta ou indireta da má-fé.
2 - O juiz opta pela indemnização que julgue mais adequada à conduta do litigante de má-fé, fixando-a sempre em quantia certa.
3 - Se não houver elementos para se fixar logo na sentença a importância da indemnização, são ouvidas as partes e fixa-se depois, com prudente arbítrio, o que parecer razoável, podendo reduzir-se aos justos limites as verbas de despesas e de honorários apresentadas pela parte.
Resulta destes normativo que a litigância de má-fé pode levar a aplicação ao litigante de duas sanções:
a) multa e
b) uma indemnização à parte contrária.
No que se reporta à indemnização, ela pode ser simples ou agravada.
A indemnização simples é aquela que se encontra prevista na al. a) do nº 1 do artigo 543.º (antigo 457.º do Código de Processo Civil) e engloba todas as despesas que a má-fé do litigante haja obrigado a parte contrária a suportar, incluindo os honorários ao seu mandatário ou aos técnicos, estando em causa apenas os danos emergentes diretamente causados à parte contrária pela atuação do litigante de má-fé.
Já a indemnização agravada é aquela que se encontra prevista na al. b) do nº 1 do mesmo preceito, e abrangerá todas aquelas despesas e ainda todos os demais prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência direta ou indireta da má-fé do litigante.
Revertendo ao caso dos autos, e com vista à condenação dos Apelantes como litigantes de má-fé, o Tribunal “a quo” aduziu a seguinte fundamentação:
“No caso decidendo, afigura-se-nos que ficou demonstrado que quer a Autora, quer o Réu litigaram de má-fé.
Ambos alegaram factos que bem sabiam serem falsos e que eram relevantes para a decisão da causa.
A Autora sabia que apenas forneceu parte das peças constantes do orçamento e, ainda assim, veio exigir o pagamento de valor até superior ao orçamentado.
O Réu tinha conhecimento que a reparação seria assumida pela Autora A..., com o que concordou, e que a reparação estava a ser realizada na oficina da sociedade B..., Lda.
Alegou que tudo foi tratado pelo mediador BB na sua ausência, o que se veio a verificar não corresponder à verdade.
Sabia o Ré, ainda, que o veículo lhe foi entregue após a inspecção realizada em 31.10. 2019 e não em Abril de 2021, conforme expressamente alegou.
Pelo exposto, é de condenar Autora e Réu como litigantes de má-fé.
Prevê o art. 542º do CPC que, tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
No que concerne à multa, ponderando a actuação processual da Autora e do Réu, o valor e a complexidade da causa, considerando os limites estabelecidos no art. 27º n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais, afigura-se-nos adequado fixá-la em 4 U.C. para cada uma das partes.”
No que concerne à indemnização, em 22 de novembro de 2024, em complemento da sentença proferida, veio o Tribunal
a quo
a decidir nos seguintes termos:
«Veio o Réu requerer a fixação de uma indemnização, a seu favor, de valor não inferior a € 3.100,00, para ressarcimento das despesas que teve e terá de despender.
Por sua vez, a Autora veio pugnar pela fixação de uma indemnização, a seu favor, nunca inferior a € 4.000,00, para ressarcimento das despesas suportadas e a suportar.
Cumpre apreciar.
Produzida a prova, foi proferida sentença que:
- julgou parcialmente procedente a acção, condenando-se o Réu a pagar à Autora a quantia de € 2.024,75 (dois mil e vinte e quatro euros e setenta e cinco cêntimos), acrescida de juros;
- julgar totalmente improcedente a reconvenção.
Conforme aí se referiu:
“No caso decidendo, afigura-se-nos que ficou demonstrado que quer a Autora, quer o Réu litigaram de má-fé.
Ambos alegaram factos que bem sabiam serem falsos e que eram relevantes para a decisão da causa.
A Autora sabia que apenas forneceu parte das peças constantes do orçamento e, ainda assim, veio exigir o pagamento de valor até superior ao orçamentado.
O Réu tinha conhecimento que a reparação seria assumida pela Autora A..., com o que concordou, e que a reparação estava a ser realizada na oficina da sociedade B..., Lda.
Alegou que tudo foi tratado pelo mediador BB na sua ausência, o que se veio a verificar não corresponder à verdade.
Sabia o Ré, ainda, que o veículo lhe foi entregue após a inspecção realizada em 31.10. 2019 e não em Abril de 2021, conforme expressamente alegou.”
O decaimento da Autora ascendeu a mais de 75%.
Já o decaimento do Réu foi total.
O valor da acção ascende a € 8.564,11 e o da reconvenção a € 9.172,00.
Foi a Autora que deu início aos presentes autos, peticionando quantias que, bem sabia, não lhe serem devidas, por não ter fornecido parte das peças constantes do orçamento.
Determinou que o Réu tivesse de constituir Mandatário, atento o valor da acção, para apresentar contestação.
Por seu turno, o Réu deu início à instância reconvencional, peticionando o pagamento de quantia que sabia não lhe ser devida, mormente a indemnização relativa à privação do uso.
Não se encontra demonstrado qual o concreto valor pago pelas partes a título de honorários, nem que as partes suportaram outras despesas.
Impõe-se, assim, o recurso à equidade na fixação da indemnização devida.
Ponderando os decaimentos de cada uma das partes, apenas na parte em que os mesmos decorrem directamente do que foi falsamente alegado pelas partes nos respectivos articulados, afigura-se-nos ser de fixar em:
- € 300,00 a indemnização devida pelo Réu à Autora;
- € 750,00 a indemnização devida pela Autora ao Réu.
Pelo exposto, em complemento da decisão proferida sob a refª 132028477, nos termos previstos no art. 543º do CPC, decide-se:
- condenar a Autora a pagar ao Réu uma indemnização que se fixa em € 750,00 (setecentos e cinquenta euros);
- condenar o Réu a pagar à Autora uma indemnização que se fixa em €300,00 (trezentos euros)».
Ou seja, no caso concreto, o Tribunal
a quo
optou pela indemnização simples, prevista na alínea a), do nº1, do artigo 543º, do Código de Processo Civil e, não se encontrando demonstrado qual o concreto valor pago pelas partes a título de honorários, recorreu à equidade na fixação da indemnização devida.
Por apelo ao prudente arbítrio e à razoabilidade de que fala o n.º 3 do artigo 543.º, entende-se ter sido correta e justa a decisão recorrida, a qual nesta parte não nos merece qualquer censura.
*
Das Custas
De acordo com o disposto no artigo 527º, n.º 1 do Código de Processo Civil, a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.
Por seu lado, acrescenta o nº2, do citado preceito, que se entende que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Termos em que, perante a improcedência total da apelação da Autora/Apelante e perante a procedência parcial da apelação do Réu/Apelante, se decide que as custas da apelação da Autora serão por ela suportadas e as custas da apelação do Réu/Apelante serão suportadas na proporção de 4/5 para o Réu/Apelante e 1/5 para a Autora/Apelada.
*
Síntese conclusiva
(da exclusiva responsabilidade da Relatora – artigo 663º, nº7, do Código de Processo Civil)
………………………………
………………………………
………………………………
*
III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas subscritoras deste acórdão da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto:
I) Em julgar improcedente a apelação da Autora/Apelante.
II) Em julgar parcialmente procedente a apelação do Réu/Reconvinte e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o Réu a pagar juros à taxa legal comercial em vigor, condenando-o a pagar os juros à taxa de juros civil, ou seja, 4%, ao ano.
III) No mais, em confirmar a sentença recorrida.
Custas do recurso de apelação da Autora/Apelante pela Apelante e custas do recurso de apelação do Réu-reconvinte/Apelante na proporção de 9/10 para o Apelante e 1/10 para a Apelada.
*
Porto, 15 de setembro de 2025
As Juízas Desembargadoras
Teresa Pinto da Silva
Ana Olívia Loureiro
Carla Fraga Torres
__________________
[1]
Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.
[2]
José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição Almedina, pág. 735.
[3]
Neste sentido, cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1984, reimpressão, p. 139 e 140.
[4]
Neste sentido, cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra Editora, 1985, página 688.
[5]
Neste sentido, cf. Alberto dos Reis, obra já citada, vol. V, p. 141.
[6]
António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Coimbra, Almedina, 2022, p. 214.
[7]
Cf. Recursos em Processo Civil, 7ª edição atualizada, Almedina, p. 333, 334 e 340.
[8]
Obra já citada, pág. 200-201.
[9]
Publicado no DR, Série I, n.º 220/2023, de 14-11-2023 – cujo sumário foi retificado pela Declaração de Retificação n.º 35/2023, de 28 de novembro, publicado no DR, Série I, de 28-11-2023.
[10]
Cf.
Recursos em Processo Civil
, 7ª edição, Coimbra, Almedina, 2022, p. 348.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/b3513440f410643a80258d100049d169?OpenDocument
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1,754,352,000,000
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CONFIRMADA A SENTENÇA RECORRIDA
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8495/23.8T8STB.E1
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8495/23.8T8STB.E1
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EMÍLIA RAMOS COSTA
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Sumário elaborado pela relatora:
I – Quando do contexto do auto de notícia fluir, de forma notória, o erro da data da ocorrência da infração, quanto ao mês, tal alteração não implica qualquer modificação essencial desse mesmo auto de notícia.
II – Estando em causa uma situação de mero lapso de escrita, é de proceder à retificação desse lapso, nos termos do disposto no art. 380.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal.
III – A nulidade por contradição insanável da fundamentação, prevista no art. 410.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal, tem de resultar da própria sentença, inexistindo tal contradição quando a matéria factual se mostra concordante com a apreciação jurídica e esta com a decisão final aplicada.
IV – A contraordenação laboral prevista nos arts. 25.º, n.º 1, da Lei 27/10, de 30-08, e 36.º, n.º 1, do Regulamento (EU) n.º 165/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 04-02-2014, verifica-se quando, no momento da fiscalização, o motorista não procede à apresentação imediata de todos os registos referentes ao dia da fiscalização e aos 28 dias que o antecederam, uma vez que o dever imposto pela norma se reporta à obrigação de apresentação dos referidos registos no local da fiscalização e não à existência, ou não, desses registos.
V – A presunção prevista pelo art. 13.º, n.º 1, da Lei n.º 27/2010, de 30-08, é ilidida, quanto a esta contraordenação, se a empresa demonstrar que organizou o trabalho do seu motorista de modo a que este apresentasse, quando fiscalizado, as folhas de registo de tacógrafo referentes ao dia da fiscalização e aos 28 dias anteriores ou, na sua falta, documento idóneo justificativo de tal falta.
VI – A sanção acessória de publicidade, prevista no n.º 1 do art. 562.º do Código do Trabalho, quando se mostrem verificados os seus pressupostos, é de aplicação automática, não se encontrando, por isso, na dependência de uma apreciação judicial.
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[
"CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL",
"AUTO DE NOTÍCIA",
"RECTIFICAÇÃO",
"CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO",
"TACÓGRAFO",
"NÃO APRESENTAÇÃO DOS REGISTOS DOS ÚLTIMOS 28 DIAS DE TRABALHO",
"PRESUNÇÃO",
"SANÇÃO ACESSÓRIA"
] |
Proc. n.º 8495/23.8T8STB.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora
1
♣
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
A arguida
“Nordigal – Indústria de Transformação Alimentar, S.A.”
,
2
veio impugnar judicialmente a decisão da Autoridade para as Condições de Trabalho (doravante designada ACT), que imputou à referida arguida uma contraordenação muito grave, p. e p. pelos arts. 25.º, n.º 1, al. b), e 14.º, n.º 4, als. a) e b), da Lei n.º 27/2010, de 30-08, e do art. 36.º, nºs. 1 e 2, do Regulamento (EU) n.º 165/2014 do Parlamento e do Conselho de 04-02-2014, condenando-a na coima de 22 UC, ou seja, em €2.244,00, e na pena acessória de publicidade.
…
Por despacho, o tribunal de 1.ª instância, proferiu sentença, em 26-08-2024, com o seguinte teor decisório:
Pelo exposto, julgando a improcedência da presente Impugnação, mantenho a decisão da ACT nos seus precisos termos.
*
Fixo a taxa de justiça em 3 (três) UC, nos termos do disposto no art. 8º, n.º 9, do RCP, e tabela III anexa, considerando a extensão da impugnação, número de questões suscitadas e a própria incoerência interna do alegado, conforme se deixou dito.
*
Notifique e deposite.
*
Cumpra o disposto no artigo 45º, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14/09.
…
Inconformada com a sentença, veio a arguida “Nordigal” interpor recurso, apresentando as seguintes conclusões:
A. A condenação em coima correspondente a 22 UCs no valor de € 2.244,00, acrescida de custas no valor de € 306,00 e sanção acessória de publicidade da decisão condenatória representa condenação para além a culpa e em violação dos princípios da proporcionalidade, adequação e proibição do excesso bem como das mais elementares garantias e direitos de defesa;
B. A fiscalização deu origem ao NPCO 01341/2022 220150900 e do teor de tal auto de notícia, aludindo a fiscalização datada de 20 de Junho de 2022 (“20-06-2022”) pelas 09:45, consegue ser imputada a não apresentação de folhas de registo de tacógrafo relativas aos dias 25 a 29 de Junho, 05 e 06 de Julho e 09 a 17 de Julho de 2022, ou seja, dias depois, referindo-se a fls. 1 (maxime nota de rodapé 1) da douta decisão que tal se deverá a lapso mas o certo é que a arguida nunca foi notificada de qualquer alteração dos factos, tendo exercido a defesa na senda dos documentos que lhe foram enviados pelo que a decisão do ponto de facto provado 1 constitui surpresa e mostra-se decidido para além do comunicado, mostrando-se a douta decisão proferida a padecer de nulidade ao abrigo do disposto no art. 379º n.º 1 b) CPP;
C. Não poderia o condutor ter o dom de entregar folhas de registo futuras (ou então haverá lapsus calami na data da infração, mostrando-se o auto eivado de circunstancialismo falso/não verdadeiro!), inexistindo qualquer base factual que permita imputar ao condutor fiscalizado, a condução prévia do veículo e em tais dias nem se mostra expressamente imputado, alegado ou comprovado que tal veículo tivesse andado em circulação em tais dias, circunstancialismo que se impugna, pois o facto de alguém não apresentar registos, como aparece dado por provado no facto 4, não significa nem pode significar que tenha trabalhado em tais dias e que os haja para presentar;
D. Mostra-se o presente processo assente numa presunção em desfavor da arguida, a qual é proibida em nome do princípio da presunção de inocência, plasmada na expressão in dubio pro reo, sendo que se não mostra invocado qualquer facto concreto de onde possa ser extraída a culpa nem se mostra a mesma expressamente fundamentada ao nível da decisão da matéria de facto, pois o facto de alguém não apresentar registos, como aparece dado por provado no facto 4, não significa nem pode significar que tenha trabalhado em tais dias e que os haja para presentar;
E. O teor da norma legal imputada [art. 25º n.º 1 b) da Lei 27/2010] não se mostra subsumível in casu dado que a arguida nunca foi notificada para apresentar o que quer que fosse e só teve conhecimento da alegada infracção quando foi notificada para apresentar defesa, constando da mesma uma visualização anual de condutor, datada de 20 de Julho de 2023, pelo que ao contrário que se mostra imputado teve lugar tal disponibilização (tanto foi disponibilizado que foi visualizado e imprimido!) pelo que verdadeiramente não se verifica o preenchimento da infração imputada padecendo a douta decisão condenatória do vício de contradição insanável pois a fls. 1 (maxime nota de rodapé 1) da douta decisão consta tal alusão expressa à visualização dos dados;
F. Uma coisa não pode ser simultaneamente aquilo que é e o seu contrário pelo que das duas uma: ou houve ou não houve disponibilização e se tiver havido, como parece ser o caso, não pode em caso algum a arguida ser punida pela infração pela qual se mostra condenada, tendo de ser absolvida da sua prática, não estando em causa a não entrega mas sim eventualmente a inobservância de transferência de dados do cartão ou de se fazer acompanhar dos mesmos, coisas substancialmente diferentes, portanto, com indevida convocação da Lei 27/2010, estando sim em causa a violação do DL 169/2009, que é legislação especial e se aplica in casu, com inequívoca diversidade ao nível da subsunção jurídica;
G. Para que a não entrega possa ser punida nos termos em que se mostra considerada, necessariamente teria de haver um acto omissivo do condutor, um acto deliberado de recusa que não poderá estar assente na inexistência de tais dados, impondo-se que os dados existam e apenas não sejam entregues por recusa, a qual não sucedeu in casu pois não se mostra referido que tais dados existissem, pelo que a não apresentação poder-se-á mostrar justificada e apenas haver responsabilidade contra-ordenacional num outro patamar dado que só se poderá facultar algo que exista, que tenha realidade corpórea ou corporalizada, não podendo a decisão ser tomada em preterição ao princípio in dubio pro reo;
H. In casu, o cartão não apresentaria registos desses dias, tendo sido disponibilizado, não estando verificada a factualidade imputada bem como a subsunção jurídica efectivada, devendo o presente processo ser arquivado pois o auto apenas refere que o condutor se não fazia acompanhar das folhas de registo, não imputando qualquer acto de recusa na apresentação e se o mesmo se não fazia acompanhar das folhas não as poderia exibir e não pode a arguida ser punida pela não apresentação, tendo-se de ir buscar a norma que puna tal ausência de posse na sua esfera e não a não apresentação;
I. Não pode a arguida ser punida em nome de condutas pessoais e privativas do condutor, não conformes à formação e indicações ministradas, refutando-se qualquer falta de formação ou vício ao nível da organização, estrutura, direcção ou fiscalização do trabalho pois foi dado como provado no ponto 5 que a arguida transmite aos seus motoristas instruções no sentido de que estes cumpram todas as normas a que estão obrigados, não sendo humanamente exigível que coloque um polícia em cada veículo para fiscalizar os motoristas, assinando todos os condutores, conjuntamente com o contrato, uma ordem de trabalho que versa sobre tais questões mas não é possível à arguida ter um polícia atrás de cada condutor, tendo, em nome da relação contratual celebrada, que actuar com base no princípio da confiança elo que, a ter-se por praticada qualquer infracção terá de ser assacada ao condutor identificado e não à arguida!
J. Julga-se que a ora arguida será parte ilegítima, sempre tendo cumprido com as suas responsabilidades tratando-se aparentemente de uma falha individual e humana que deverá ser assacada a título pessoal ao respectivo condutor, que tinha formação adequada e temporalmente não muito distante, sempre tendo a arguida organizado o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir o disposto na legislação aplicável, tendo a infracção em causa inequívoca componente pessoal radicada na acção directa do motorista, estando umbilicalmente relacionada com a mesma;
K. Como é notório e se invoca nos termos do art. 412º CPC, é normal que os motoristas pretendem levar a cabo a realização das tarefas confiadas no mais curto lapso temporal possível, o que sucede, a fortiori, aquando do regresso a casa, assim maximizando o tempo passado junto da família, podendo incorrer em qualquer violação dos comandos legais atinentes aos descanso e pausas, em violação da formação ministrada e das próprias ordens da entidade patronal, que em boa verdade nada lucra com tais violações;
L. A infracção em causa, não se devendo aparentemente a qualquer anomalia do tacógrafo ou deficiência do mesmo, assumirá cariz pessoal (tratar-se-á alegadamente de falha humana do próprio motorista!) e estará para além da subordinação jurídica e laboral, não podendo assim a arguida ser punida pelo que subjacente a tal circunstancialismo estiveram circunstâncias deveras excepcionais às quais a arguida é totalmente alheia, não lhe podendo ser assacada qualquer responsabilidade ou culpa pois tiveram os factos que ver com factores estranhos e alheios à vontade ou poder de controlo da arguida, não tendo tido a mesma nenhuma culpa e, atenta a inexistência da mesma, na senda do brocardo latino, nulla poena sine culpa, deverá o presente processo de contra-ordenação ser arquivado por inexistência de fundamento legal no qual se escude, ou seja, pela não verificação dos requisitos positivos de punibilidade;
M. Não tinha a ora arguida consciência de prática de qualquer infracção nem a mesma proveio de vontade sua ou de qualquer facto que pudesse controlar e nenhum benefício económico obteve pelo que, atento o teor do facto provado 5, julga estar verificado o circunstancialismo que exclui a sua responsabilidade nos termos e para efeitos do art. 13º n.º 2 da Lei 27/2010 dado que pôs à disposição do motorista do seu veículo todos os documentos necessários para que as entidades de fiscalização pudessem aferir da observância ou não das normas dos regulamentos nem colocou qualquer obstáculo, estando reunidos os pressupostos e requisitos para o arquivamento, como será de elementar justiça, o que ora, mui respeitosamente, requer;
N. A condenação na sanção acessória de publicidade da decisão condenatória, alegadamente nos termos do art. 562º CT apenas em violação ao princípio da legalidade é que o poderá ser pois a Lei 27/2010 é totalmente omissa a qualquer sanção acessória e do teor da notificação recebida para efeitos de defesa constava expressamente do auto de notícia a informação de “Sanção acessória não aplicável”, (cf. o teor de tais documentos, existentes nos autos e cuja cópia reproduziu nas alegações para melhor e mais fácil percepção/constatação de tal facto, com erro de julgamento a fls. 30 da douta sentença recorrida!) tratando-se de decisão-surpresa e não precedida de possibilidade de qualquer contraditório, pelo que é ilegal e violadora dos mais elementares princípios e garantias de defesa, devendo ser revogada em razão de tal violação e não conformidade a um processo contraordenacional que se queira materialmente justo e processualmente conforme!
O. O princípio da boa-fé remete a Administração Pública para um padrão ético de comportamento na sua relação com os cidadãos, agindo de forma correcta, leal e sem reservas, o que se mostra extensível à administração da justiça, tratando-se de um princípio programático de comportamento que se materializa através da observância de três outros princípios [I) da protecção da confiança; II) da materialidade e III) da transparência decisória], mostrando-se consagrada tal responsabilidade na Constituição da República Portuguesa (art. 266º n.º 2) com a subordinação dos órgãos e agentes administrativos à Constituição e à lei, devendo actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da protecção da confiança e segurança, igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé;
P. E dúvidas inexistirão que tal preterição da segurança jurídica e protecção da confiança terá como consequência mais gravosa a desintegração do interesse público, que não poderá nunca significar o resultado da soma algébrica de todos os interesses individuais mas deverá consistir um plus em relação a este resultado, não podendo assim a administração da justiça tornar-se errática e insegura, deixando transparecer tal insegurança para a esfera jurídica dos administrados sob pena de não se conseguir rever num Interesse público que lhe sirva de referência e que, indubitavelmente, deve estar constitucionalmente ancorado, reflectindo o princípio da protecção da confiança a preocupação dispensada pelo ordenamento aos valores da estabilidade, da segurança e da confiabilidade, valores esses que a arguida igualmente professa sendo a douta decisão recorrida desajustada e violadora dos mesmos;
Q. Tais princípios, uma vez cristalizados na Constituição da República Portuguesa (ou seja, dotados de assento constitucional!) constituirão trave mestra de todo o sistema normativo e judicial e ser-lhe-ão tão essenciais quanto o próprio oxigénio para a humanidade, mostrando-se assim verificada a existência de uma situação justificada de confiança a ser protegida, não deixando qualquer cidadão médio colocado no lugar da arguida de criar a expectativa pelo mesmo gerada, sendo essencial a moralização da justiça uma vez que a situação de confiança depositada pela arguida foi decisiva para a não prática de quaisquer demais actos jurídicos levados a cabo (desde logo, não apresentando defesa nem contraditando tal aplicação e sanção acessória!), existindo benefício prático e efectivo para a mesma, reclamante da proteção da confiança, visando-se obstar com o recurso ao prejuízo sério: condenação em sanção acessória cuja punibilidade/aplicação não se mostrava imputada no auto de notícia e em violação de proporcionalidade, adequação e proibição do excesso;
R. Numa perspectiva de Direito Público, e na sua configuração clássica, o princípio da protecção da confiança (Vertrauensschutz) vincula e limita os vários poderes Estaduais, exigindo de cada um deles cuidados suplementares no momento de levarem à prática as diferentes tarefas que se lhes mostrem confiadas, tratando-se de um princípio que impõe a conservação de situações jurídicas, até eventualmente desconformes com o ordenamento, por inconstitucionalidade ou ilegalidade, mas que, em todo o caso, assume que a normalidade e a estabilidade são duas das traves estruturais sobre as quais deve assentar todo o sistema, assegurando efectiva protecção da confiança legítima (Schutzes berechtigten Vertrauens), dúvidas inexistindo que tal preterição da segurança jurídica e protecção da confiança terá como consequência mais gravosa a desintegração do interesse público, que não poderá nunca significar o resultado da soma algébrica de todos os interesses individuais mas deverá consistir um plus em relação a este resultado;
S. Não poderá a confiança depositada pelo recorrente, assente na segurança jurídica, deixar de merecer tutela jurídica nem o Direito globalmente considerado ficar absolutamente indiferente à eventual frustração dessa confiança, devendo serem tidos em consideração e douta análise a efectivar por V/ Exas. os princípios da boa-fé, da segurança jurídica e da proteção da confiança dado que, sob pena de preterição da noção de Estado de Direito, ter-se-á de admitir que se vive sob a legitimação do princípio da confiança, exigindo-se do poder público a boa-fé nas relações com os particulares e o respeito pela confiança que os indivíduos depositam na estabilidade e continuidade do ordenamento jurídico, bem andando o Tribunal quando tutele tal expectativa já criada, derivada da Lei, e adequada ponderação das diversidades da situação, sem conversão dos critérios de justiça substantiva em instrumentos de plasticidade jurídica inadequados ao caso, com revogação da condenação em sanção acessória;
Destarte,
e sempre com o mui douto suprimento de V/ Exa., deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, com a consequente revogação da douta sentença recorrida ou atenuada para não ofender os princípios da proporcionalidade, adequação e proibição do excesso e representar enriquecimento sem causa para a entidade administrava.
E ao nível da condenação em sanção acessória verifica-se a violação dos princípios da legalidade e contraditório, tratando--se de manifesta e cristalina decisão-surpresa atento o teor do auto de notícia que a afastava expressamente bem como da notificação inicial que não assinalava tal possibilidade, nunca tendo assim merecido defesa por parte da impugnante.
V/ Exa., ser humano sábio, pensará e decidirá necessariamente de forma justa por ser impossível alcançar justiça sem sabedoria, e, como sempre, decidindo fará a costumada e almejada Justiça, rainha e senhora de todas as virtudes!
…
O M.º P.º apresentou contra-alegações, pugnando, a final, pela improcedência do recurso.
…
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como subindo de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, e, após a subida dos autos ao tribunal da relação, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pugnando pela procedência do recurso.
…
A recorrente veio responder a tal parecer, concordando com o mesmo.
…
Admitido o recurso nos seus precisos termos e colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.
♣
II – Objeto do recurso
Nos termos dos arts. 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal,
ex vi
do art. 41.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10 (RGCO) e arts. 50.º, n.º 4 e 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 410.º, nºs. 2 e 3, do Código de Processo Penal).
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1)
Nulidade da decisão administrativa por ter constituído uma decisão surpresa quanto à data do facto da infração;
2)
Contradição insanável entre os factos e a fundamentação;
3)
Inexistência dos elementos objetivos do tipo da infração imputada;
4)
Inexistência do elemento subjetivo do tipo por parte da arguida e responsabilidade do condutor;
5)
Falta de consciência da arguida; e
6)
Ilegalidade da aplicação da sanção acessória de publicidade.
♣
III. Matéria de Facto
A matéria de facto mostra-se fixada pela 1.ª instância, uma vez que o tribunal da relação, em sede contraordenacional laboral, apenas conhece da matéria de direito (art. 51.º, n.º 1, da Lei n.º 107/2009, de 14-09), com exceção das situações previstas no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
A sentença da 1.ª instância considerou provados, na sequência do que constava a decisão final da ACT, os seguintes factos:
1. No dia 20/07/2022, pelas 09h45m, na EN 252 – Volta da pedra, Palmela, Distrito de Setúbal, AA, motorista ao serviço da arguida, conduzia a viatura pesada de mercadoria, com a matrícula ..-SM-.., equipada com tacógrafo e propriedade da arguida.
2. Naquele dia e hora o referido veículo e respetivo condutor foram fiscalizados pela GNR.
3. Ao ser fiscalizado, o motorista AA não apresentou no ato da fiscalização todos os registos da sua atividade, respeitantes aos 28 dias anteriores à data da fiscalização.
4. Após análise dos registos apresentados pelo condutor e da leitura do cartão de condutor, verificou-se que o mesmo não apresentou registos de atividade nos dias 08 a 19 de junho, 25 a 29 de junho, 5 e 6 de julho e 9 a 17 de julho de 2022.
5. A arguida transmite aos seus motoristas, instruções, no sentido de que estes cumpram todas as normas a que estão obrigados, nomeadamente sobre regulamentação social de transportes.
6. A arguida tem como atividade económica principal – CAE 56290 – outras atividades de serviço de refeições.
7. De acordo com o registo individual de infratores em uso nestes serviços e anexo aos presentes autos para o qual se remete para todos os efeitos legais a arguida à data da prática da infração era reincidente em virtude de ter sido condenada, em processos de contraordenação laboral muito grave e pela violação da Lei 27/2010, nomeadamente, nos processos n.ºs 091801531 e 262000744, cujos prazos de prescrição ainda não decorreram.
8. Assim, e atento o supra exposto, não estava a arguida dispensada de justificar, no momento da fiscalização, por que rezão o condutor não tinha os respetivos registos.
9. Dada a especial qualidade de entidade empregadora, era exigível à arguida que pautasse o seu comportamento de forma diligente, nomeadamente, munindo o seu condutor de documento que lhe permitisse no momento da fiscalização, justificar a ausência daqueles registos, de modo a colmatar tal omissão.
…
E considerou como não provados os seguintes factos:
- Que a empresa tivesse acautelado a emissão e a entrega ao motorista AA, de declaração(ões) de atividade para justificar os dias de ausência de registos de atividade, a fim de este, no ato da fiscalização a(s) puder apresentar, a fim de justificar a ausência daqueles registos, no sentido de dar cumprimento às disposições legais nesta matéria.
- Que a falta de apresentação de registos ou de documentos que justificasse a ausência dos mesmos se tenha devido a um esquecimento do motorista.
- Que a empresa tivesse ministrado formação ao seu motorista.
- Que a empresa tenha organizado e planificado o trabalho do motorista AA, nomeadamente, no período dos 28 dias anteriores à fiscalização.
♣
IV – Enquadramento jurídico
1 – Nulidade da decisão administrativa por ter constituído uma decisão surpresa quanto à data do facto da infração
Entende a recorrente que, por constar no auto de notícia, que lhe foi notificado para exercer o seu direito de defesa, que a fiscalização efetuada ao seu motorista, quando este conduzia a sua viatura pesada de mercadorias, ocorreu em 20-06-2022, não era possível na decisão final da ACT constar que tal fiscalização ocorreu em 20-07-2022, por tal constituir uma decisão surpresa, pelo que deve ser declarada a nulidade de tal decisão administrativa, ao abrigo do art. 379.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal.
Apreciemos.
Consta do processo administrativo que a arguida “Nordigal” foi notificada do auto de notícia por contraordenação e da Visualização Anual do Condutor AA, para, entre outras coisas, apresentar resposta escrita, em língua portuguesa, juntando os documentos probatórios de que disponha e o rol de testemunhas (…) nos termos do art. 17.º, nºs. 2 e 3, da Lei n.º 107/2009.
Nesse auto de notícia por contraordenação consta que a infração ocorreu em 20-06-2022, pelas 09:45, na EN252 – Volta da Pedra, Portugal, Setúbal, Palmela, na presença do autuante, consistindo a mesma no facto de o condutor AA não ter apresentado as folhas de registo de tacógrafo referentes aos dias 8 a 19 de junho, 25 a 29 de junho, 5 e 6 de julho e 9 a 17 de julho de 2022, da mesma forma que não possuía qualquer registo no cartão de condutor. Mais se imputou à arguida “Nordigal” uma contraordenação muito grave, p. e p. pelos arts. 36.º, n.º 1, do Reg. (EU) 165/2014, de 04-02, 25.º, n.º 1, e 14.º, n.º 4, da Lei 27/10, de 30-08.
Por sua vez, consta da Visualização Anual do Condutor AA, igualmente notificada à arguida, que a última visualização deste condutor ocorreu em 20-07-2022, tendo tal documento sido igualmente obtido nessa data.
Na realidade, em face das datas que se mostram referenciadas como não tendo sido apresentado qualquer registo, conjugado com a contraordenação imputada à arguida e prevista nos arts. 25.º, n.º 1, da Lei 27/10, de 30-08, e 36.º, n.º 1, do Regulamento (EU) n.º 165/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 04-02-2014 (que determina a apresentação das folhas de registos correspondentes ao dia da infração e aos 28 dias anteriores), e com a data da última visualização efetuada ao condutor AA, é de considerar manifesto o erro da data que ficou a constar como tendo sido praticada a referida infração, sendo “evidente, patente, indiscutível e captável com imediação”
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, que a mesma ocorreu em 20-07-2022, havendo um erro de escrita na indicação do mês que ficou a constar no auto de notícia. Pressupor que a infração tinha ocorrido no mês de junho tornaria totalmente incoerente o teor da descrição sumária constante do referido auto de notícia e incompreensível a remessa do documento de Visualização Anual do Condutor AA, cuja última visualização se mostra sinalizada precisamente em 20-07-2022, tendo tal documento sido igualmente obtido nessa data. Do mesmo modo que não faz sentido imputar à arguida a não entrega de registos ocorridos em data posterior à da prática da infração, quer por ainda não existirem, quer por não ser esse o teor da norma punitiva, não faz igualmente sentido juntar um documento referente à prática da infração com data posterior à da sua alegada prática.
É, assim, manifesto não estar em causa a situação prevista no art. 379.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, referente a uma alteração factual dos factos que haviam sido imputados à arguida, antes sim, uma situação de mero lapso de escrita, prevista no art. 380.º, n.º 1, al. b), do mesmo Diploma Legal.
Acresce que, por do contexto do auto de notícia fluir, de forma notória, o erro da data da ocorrência da infração, quanto ao mês, tal alteração não implicou qualquer modificação essencial desse mesmo auto de notícia.
Diga-se, ainda, que na impugnação judicial apresentada pela arguida, apesar de invocar a nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal (prevista, aliás e apenas, para as sentenças), em face da alteração do mês na data da ocorrência da infração, não deixou de apresentar a sua defesa, exatamente por ter compreendido o que lhe estava a ser imputado, relativamente à infração em que fora condenada, invocando designadamente a inexistência de factos relativos aos elementos objetivos e subjetivos da infração, bem como que tal infração deveria ter sido imputada ao seu motorista, pessoa que agiu com negligência e desrespeitando as ordens dadas, e não a si.
Pelo exposto, sufragando na íntegra a sentença recorrida, improcede, nesta parte, a pretensão da recorrente, inexistindo qualquer nulidade por alteração factual entre o auto de notícia e a decisão final da ACT.
2 – Contradição insanável entre os factos e a fundamentação
Considera a recorrente que existe contradição insanável entre os factos e a fundamentação da sentença recorrida, visto que é imputado à arguida a não apresentação dos registos impostos nos termos dos arts. 25.º, n.º 1, da Lei 27/10, de 30-08, e 36.º, n.º 1, do Regulamento (EU) n.º 165/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 04-02-2014, porém, consta do facto provado 4 que o seu motorista disponibilizou à entidade autuante os registos que possuía e a leitura do cartão de condutor, não lhe sendo exigível apresentar registos que não existem.
Apreciemos.
A nulidade por contradição insanável da fundamentação, prevista no art. 410.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal, tem de resultar da própria sentença, inexistindo tal contradição quando a matéria factual se mostra concordante com a apreciação jurídica e esta com a decisão final aplicada.
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No caso em apreço, o que a recorrente invoca é uma discordância com a apreciação jurídica da decisão e não uma contradição entre factos e fundamentação. Efetivamente no facto provado 1 da sentença (e igualmente da decisão administrativa) consta expressamente que no ato da fiscalização o motorista da arguida não apresentou todos os registos da sua atividade respeitantes aos 28 dias anteriores à data da fiscalização, constando, posteriormente, no facto provado 4, os dias que, em concreto, não foram apresentados tais registos.
Deste modo, não consta em lado algum da sentença recorrida que o motorista da arguida se recusou a apresentar os registos ou que não apresentou qualquer registo, entendendo, porém, tal sentença, em sede de apreciação jurídica, que mesmo assim a contraordenação prevista nos arts. 25.º, n.º 1, da Lei 27/10, de 30-08, e 36.º, n.º 1, do Regulamento (EU) n.º 165/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 04-02-2014, se encontrava verificada.
Independentemente do acerto da decisão, é inequívoca a inexistência da aludida contradição e, consequentemente, improcede também aqui a invocada nulidade.
3 – Inexistência dos elementos objetivos do tipo da infração imputada
Entende a recorrente que os elementos objetivos da contraordenação que lhe é imputada não se verificam quando
(i)
o motorista nos dias em que não apresentou os registos não trabalhou;
(ii)
o motorista não apresenta os registos por não os possuir e não num comportamento deliberado de recusa; e
(iii)
a arguida não ter sido previamente notificada para proceder à apresentação dos registos em falta.
Refere ainda que, ao invés, deveria ter sido aplicada à arguida o disposto no DL n.º 169/2009, de 31-07.
Dispõe o 25.º, n.º 1, da Lei 27/10, de 30-08, que:
1 - Constitui contra-ordenação muito grave a não apresentação, quando solicitada por agente encarregado da fiscalização:
a) De folhas de registo e impressões, bem como de dados descarregados do cartão do condutor;
b) De cartão de condutor, das folhas de registo utilizadas e de qualquer registo manual e impressão efectuados, que o condutor esteja obrigado a apresentar;
c) De escala de serviço com o conteúdo e pela forma previstos na regulamentação comunitária aplicável.
Estatui, por sua vez, o art. 36.º, n.º 1, do Regulamento (EU) n.º 165/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 04-02-2014, que:
1. Se conduzirem um veículo equipado com tacógrafo analógico, os condutores devem apresentar, quando os agentes de controlo autorizados o solicitem:
i) As folhas de registo do dia em curso e as utilizadas pelo condutor nos 28 dias anteriores;
ii) O cartão de condutor, se o possuir; e
iii) Qualquer registo manual e impressão efetuados durante o dia em curso e nos 28 dias anteriores, tal como previsto no presente regulamento e no Regulamento (CE) n. o 561/2006.
Nos termos dos citados artigos, e como tem sido entendimento reiterado desta Secção Social, para que a presente contraordenação se verifique basta que, no momento da fiscalização, o motorista não proceda à apresentação imediata de todos os registos referentes ao dia da fiscalização e aos 28 dias que o antecederam, uma vez que o dever imposto pela norma se reporta à obrigação de apresentação dos referidos registos no local da fiscalização e não à existência, ou não, desses registos. Acresce que, em caso de terem existido dias em que o motorista não trabalhou, deve ter consigo documento justificativo da ausência das folhas de registo relativas a esses dias. Conforme bem refere o acórdão deste Secção Social, proferido em 11-05-2023,
5
só através da apresentação desse documento justificativo da ausência das folhas dos registos em falta “o agente encarregado da fiscalização pode concluir que todas as folhas existentes com referência ao período temporal imposto pela norma, lhe foram apresentadas ou não e, nesta última situação, autuar o agente infrator”.
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É, assim, evidente que compete ao motorista, caso não tenha trabalhado nalguns dos 28 dias que antecederam o dia da fiscalização, apresentar, no ato da fiscalização, documento justificativo de tais ausências, pelo que nada serve a ACT notificar a entidade empregadora para proceder à entrega da documentação em falta, quando a contraordenação já se mostra cometida.
Acresce que, por se tratar de uma contraordenação que também é punida a título de negligência, não se exige a intenção deliberada de recusa (o dolo, nas suas três vertentes – art. 14.º do Código Penal) em apresentar tais registos.
Resultando, assim, dos factos provados que o condutor da arguida não tinha na sua posse os registos referentes a todos os 28 dias que antecederam o dia da fiscalização, nem apresentou qualquer documento justificativo para tais ausências (factos provados 3 e 4), mostra-se preenchido o elemento objetivo referente à contraordenação prevista nos arts. 25.º, n.º 1, da Lei 27/10, de 30-08, e 36.º, n.º 1, do Regulamento (EU) n.º 165/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 04-02-2014.
Ora, mostrando-se preenchida a mencionada contraordenação, falece a invocada aplicação à situação dos autos do disposto no DL n.º 169/2009, de 31-07, sem que, de qualquer modo, não tenha sequer indicado qualquer artigo.
Pelo exposto, improcede, nesta parte, a pretensão da recorrente.
4 – Inexistência do elemento subjetivo do tipo por parte da arguida
e responsabilidade do condutor
Considera a recorrente que não consta da matéria factual qualquer facto de onde se possa extrair a culpa da arguida, tanto mais que a não apresentação de registos em determinados dias não permite concluir que o referido motorista tenha trabalhado nesses dias.
Relativamente a esta última parte, e como já se referiu, o elemento objetivo do tipo da presente contraordenação preenche-se com a simples não apresentação, no ato da fiscalização, dos registos, ou de documentos justificativos da ausência desses registos, relativamente ao dia da fiscalização e aos 28 dias que a antecederam.
Verificados os elementos objetivos da contraordenação em apreço, importa, então, atentar no elemento subjetivo do tipo.
Nos termos do art. 13.º da Lei n.º 27/2010, de 30-08, a empresa é responsável por qualquer infração cometida pelo condutor (n.º 1), podendo, porém, excluir tal responsabilidade se demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir o disposto no Regulamento (CEE) nº 3821/85, do Conselho, de 20 de Dezembro, e no capítulo ii do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março (n.º 2), situação essa em que a responsabilidade é do trabalhador (n.º 3).
Verifica-se, assim, que mostrando-se preenchidos os elementos objetivos da referida contraordenação recai sobre a empresa para a qual se encontrava a trabalhar o motorista uma presunção ilidível de culpa.
Cumpre, então, apreciar se, em face da matéria de facto provada, tal presunção de culpa se mostra ilidida.
Na realidade, tal presunção é ilidida se a empresa demonstrar que organizou o trabalho daquele motorista de modo a que este apresentasse, quando fiscalizado, as folhas de registo de tacógrafo referentes ao dia da fiscalização e aos 28 dias anteriores ou, na sua falta, documento idóneo justificativo de tal falta.
No caso em apreço, resultou provado que o motorista da arguida, quando confrontado com a fiscalização, no dia 20-07-2022, não apresentou os registos de atividade relativos aos dias 8 a 19 de junho, 25 a 29 de junho, 5 e 6 de julho e 9 a 17 de julho de 2022, nem apresentou qualquer documento justificativo para tais ausências. Resultou igualmente provado que a arguida transmite, aos seus motoristas, instruções, no sentido de que estes cumpram todas as normas a que estão obrigados, nomeadamente sobre regulamentação social de transportes.
Porém, não resultou provado que a arguida procedesse à entrega da documentação necessária ao seu motorista, designadamente os documentos justificativos das ausências de registos, facto, aliás, que a arguida nem sequer alegou, por considerar que tal documentação não necessita de existir. Ora, não tendo a arguida procedido à entrega da documentação que o seu motorista não apresentou, aquando da fiscalização, é evidente que a arguida não organizou o trabalho de modo a que o seu motorista pudesse cumprir o disposto na legislação em vigor.
Cita-se, a este propósito, o acórdão do TRP, proferido em 19-03-2018, no âmbito do processo n.º 2204/17.8T8MTS.P1:
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II - A responsabilidade pela contra-ordenação muito grave, prevista e punida nos termos das disposições conjugadas dos artigos 36º, nº1 do Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de fevereiro de 2014, 14º nºs 1 e 4, al. a) e 25º nº 1, al. b) da Lei nº 27/2010, de 30/08 [não apresentação, pelo motorista, das folhas do registo tacógrafo relativas ao período dos 28 dias anteriores solicitadas pelo agente encarregado da fiscalização] impende, nos termos do nº 1 do artigo 13º da Lei 27/2010, de 30.08, sobre o empregador, a menos que este faça a prova da exclusão da sua responsabilidade nos termos previstos no nº 2 desse artigo 13º.
III - A Lei 27/2010 de 30.08., no artigo 13º, supõe uma “forma mitigada da responsabilidade objetiva ou presumida”, consagrando a responsabilidade da empresa transportadora com base numa presunção de culpa mas permitindo que esta alegue e prove não ter sido responsável pelo seu cometimento, para o que deverá demonstrar que organizou o trabalho de modo a que seja possível o cumprimento das imposições legais.
IV - Para exonerar a empregadora da responsabilidade por infração da obrigação de apresentação de documentos relativos a registo da circulação de veículo, pelo trabalhador, não chega a prova da formação ou instruções dadas a este, sendo necessário que a arguida demonstre que efetuou as diligências necessárias para que não ocorresse tal omissão.
V - “A organização do trabalho a que se reporta o nº 2 do art. 13º da Lei 27/2010 não tem a ver apenas com o cumprimento dos tempos de condução e repouso, mas também com o controlo dos mesmos, nomeadamente com a obrigação de apresentação das folhas de registo quando solicitadas pela autoridade competente, constituindo este um dos aspetos dessa organização.
Assim, é evidente, por um lado, que se mostra preenchido o elemento subjetivo do tipo relativamente à arguida (descrito, aliás, nos factos 8 e 9 que constavam na sentença recorrida e que, aqui, nos limitámos a numerar), e, por outro, que inexistem quaisquer factos suscetíveis de afastar a presunção que sobre a arguida impende.
Pelo exposto, improcede, nesta parte, a pretensão da recorrente.
5 – Falta de consciência da arguida
Veio a recorrente invocar que não teve consciência da prática de qualquer infração, nem a mesmo proveio de vontade sua ou de qualquer facto que pudesse controlar, não tendo obtido com tal prática qualquer benefício económico.
Relativamente ao último aspeto, já se referiu supra que efetivamente a mencionada contraordenação foi praticada em virtude de a arguida não ter organizado o trabalho de modo a que o seu motorista pudesse cumprir o disposto na legislação em vigor, concretamente, por a arguida não ter procedido à entrega da documentação necessária ao seu motorista, isto é, dos documentos justificativos das ausências de registos.
Por sua vez, quanto ao segundo aspeto, resulta da matéria de facto dada como assente que a arguida agiu com negligência, por não ter pautado o seu comportamento de forma diligente, como lhe era exigível, isto é, por não ter munido o seu motorista das justificações das ausências dos registos em falta.
Por fim, relativamente ao primeiro aspeto, parece que a recorrente está a invocar uma situação de erro sobre a ilicitude.
Dispõe o art. 9.º do DL n.º 433/82, de 27-10, aplicável por força do disposto no art. 60.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, que:
1 - Age sem culpa quem actua sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.
2 - Se o erro lhe for censurável, a coima pode ser especialmente atenuada.
Acontece que da matéria dada como assente não resulta qualquer facto, e nem a arguida o invoca, que, por um lado, permita inferir que a arguida atuou sem consciência da ilicitude do facto, não lhe sendo censurável tal erro, ou, por outro lado, permita inferir tal falta de consciência, ainda que a mesma lhe seja censurável.
Atente-se que a arguida possui outras condenações em processos de contraordenação laboral muito grave, por violação da Lei n.º 27/2010 de 30-08.
Acresce que da redação conjugada dos arts. 25.º, n.º 1, da Lei 27/10, de 30-08, e 36.º, n.º 1, do Regulamento (EU) n.º 165/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 04-02-2014, resulta expressamente que a lei impõe a apresentação das folhas de registo do dia da fiscalização e dos 28 dias anteriores. Por outro lado, possuindo a arguida motoristas de viaturas pesadas de mercadorias ao seu serviço, impunha-se-lhe, de acordo com o padrão de um empresário normal desse ramo, colocado em idêntica situação, agir com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz, assegurando-se de que estava a cumprir todas as exigências legais a que estava obrigada.
Nesta conformidade, improcede, também nesta parte, a pretensão da recorrente.
6 – Ilegalidade da aplicação da sanção acessória de publicidade
Considera a recorrente que o disposto no art. 562.º do Código do Trabalho não se pode aplicar à Lei n.º 27/2010, de 30-08, uma vez que este diploma não prevê a aplicação da sanção acessória de publicidade.
Entende ainda a recorrente que, ao constar do auto de notícia que não era aplicável sanção acessória e ao lhe ter sido aplicada, em sede de decisão final administrativa, uma sanção acessória, tal decisão constituiu uma decisão surpresa, que violou o princípio do contraditório e as garantias de defesa, pelo que a condenação da sanção acessória de publicidade deverá ser revogada.
Ora, dispõe expressamente o art. 12.º, n.º 1, da Lei n.º 27/10, de 30-08, que:
1 - O regime dos artigos 548.º a 565.º do Código do Trabalho é aplicável às contra-ordenações previstas na presente lei, com as adaptações previstas no artigo 14.º
Estipula, por sua vez, o art. 562.º, n.º 1, do Código do Trabalho, que:
1 - No caso de contra-ordenação muito grave ou reincidência em contra-ordenação grave, praticada com dolo ou negligência grosseira, é aplicada ao agente a sanção acessória de publicidade.
Encontrando-se a aplicação da sanção acessória prevista no art. 562.º, n.º 1, do Código do Trabalho, é evidente que a Lei n.º 27/10, de 30-08, remete expressamente para aplicação desse artigo às contraordenações laborais que prevê. Na realidade, não se compreende a razão pela qual a arguida insiste nesta argumentação, quando a menção ao disposto no art. 12.º, n.º 1, da Lei n.º 27/10, de 30-08, já resulta da sentença recorrida.
Relativamente à decisão surpresa que consistiu na aplicação pela autoridade administrativa da sanção acessória de publicidade, quando no auto de notícia constava que não era aplicada sanção acessória, na esteira da argumentação tecida pela sentença recorrida, importa referir que o disposto no n.º 1 do art. 562.º do Código do Trabalho, quando os seus pressupostos se mostrem verificados, é de aplicação automática.
Conforme resulta do acórdão desta Secção Social, proferido em 11-01-2024, no âmbito do processo n.º 727/23.9T8EVR.E1:
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- Nos termos previstos pelo artigo 562.º, n.º 1, do Código do Trabalho, a sanção acessória de publicidade aplica-se automaticamente, desde que a arguida tenha sido condenada em contraordenação muito grave ou em contraordenação grave com reincidência, neste último caso com dolo ou negligência grosseira, sem prejuízo de poder haver lugar à dispensa da sanção acessória se demonstrada a verificação dos requisitos previstos no artigo 563.º do mesmo diploma legal.
E, a ser assim, resultando da lei, uma vez verificados os seus pressupostos (designadamente a condenação da arguida em contraordenação muito grave), que a aplicação da sanção acessória de publicidade é de aplicação automática, não se encontra na dependência do julgador a sua aplicação, pelo que não é passível de constituir uma decisão surpresa a aplicação desta sanção acessória a quem tenha sido condenado nesse tipo de contraordenação.
Diga-se, de qualquer modo, que, no caso das contraordenações laborais, no auto de notícia tem de se mencionar, nos termos do art. 15.º da Lei n.º 107/2009, de 14-09, “especificadamente os factos que constituem a contra-ordenação, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foram cometidos e o que puder ser averiguado acerca da identificação e residência do arguido, o nome e categoria do autuante ou participante e, ainda, relativamente à participação, a identificação e a residência das testemunhas”. Ora, nada se encontra vertido sobre a obrigatoriedade de fazer constar no referido auto a respetiva imputação jurídica, pelo que tal elemento não faz sequer parte dos elementos que obrigatoriamente têm de constar do auto de notícia. Assim, não sendo obrigatória a sua menção, nada obsta a uma alteração posterior relativamente ao que tiver ficado a constar. Atente-se que o auto de notícia não equivale a uma acusação e que o assento n.º 1/2003 não se aplica às contraordenações laborais.
10
Pelo exposto, improcede também nesta parte a pretensão da recorrente.
…
♣
V - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art. 8.º, n.º 7 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).
Notifique.
♣
Évora, 8 de maio de 2025
Emília Ramos Costa
(relatora)
Mário Branco Coelho
Paula do Paço
1. Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Mário Branco Coelho; 2.ª Adjunta: Paula do Paço.
↩︎
2. Doravante “Nordigal”.
↩︎
3. Acórdão do STJ, proferido em 18-01-2007, no âmbito do processo n.º 3510/06, citado em
Código de Processo Penal Comentado
de António da Silva Henriques Gaspar e outros, 2.ª edição revista, 2016, Almedina, Coimbra, p. 1142.
↩︎
4. Veja-se, neste sentido, o acórdão desta Relação, proferido em 11-05-2023, no âmbito do processo n.º 1351/22.9T8TMR.E1, consultável em
www.dgsi.pt
.
↩︎
5. E a que já se fez menção.
↩︎
6. No mesmo sentido, veja-se o acórdão do TRP proferido em 05-12-2011 no âmbito do processo n.º 68/11.4TTVCT.P1; o acórdão do TRG proferido em 20-10-2016 no âmbito do processo n.º 1154/15.7T8BCL.G1; e o acórdão do TRL proferido em 16-03-2016 no âmbito do processo n.º 196/15.7T8BRR.L1-4; todos consultáveis em
www.dgsi.pt
.
↩︎
7. Consultável em
www.dgsi.pt
.
↩︎
8. Consultável em
www.dgsi.pt
.
↩︎
9. No mesmo sentido, veja-se o acórdão desta Secção Social, proferido em 27-01-2022 no âmbito do processo n.º 1703/20.9T8EVR.E1; o acórdão do TRC proferido em 14-01-2016 no âmbito do processo n.º 1565/14.5T8LRA.C1; e o acórdão do TRG, proferido em 04-11-2021 no âmbito do processo n.º 386/21.3T9VRL.G1; todos consultáveis em
www.dgsi.pt
.
↩︎
10. Veja-se o acórdão desta Secção Social proferido em 09-06-2022 no âmbito do processo n.º 807/21.5T8EVR.E1, consultável em
www.dgsi.pt
.
↩︎
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/103af56b4088d0e880258c8f002cffcf?OpenDocument
|
1,757,980,800,000
| null |
1257/23.4T9ENT.E1
|
1257/23.4T9ENT.E1
|
HELENA BOLIEIRO
|
I - A incriminação do artigo 348º, nº 1, al. b), do Código Penal, é aplicável à não entrega do título de condução, no prazo legal previsto, para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, tendo sido fixada jurisprudência (Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 2/2013) no sentido de que a obrigação de entrega do título de condução derivada da lei, nos termos estipulados nos artigos 69º, nº 3, do Código Penal, e 500º, nº 2, do C. P. Penal, deve ser reforçada, na sentença, com a ordem do juiz para entrega do título, no prazo legal previsto, sob a cominação de, não o fazendo, o condenado cometer o crime de desobediência em causa.
II - O arguido revela uma personalidade refratária a uma normal convivência social de acordo com as regras do direito, sendo certo que a aplicação de sucessivas penas não privativas e privativas da liberdade não têm obstado à prática de crimes de vária natureza, e sendo também certo que o arguido não apresenta um projeto de vida assente na criação de estratégias normativas de interação comunitária. As vulnerabilidades do seu percurso de vida tornam imprevisível a sua capacidade de efetivação de mudança no sentido pró-social. Por tudo isso, não é possível concluir que o não cumprimento efetivo da pena de prisão, fosse de que forma fosse, seja capaz de realizar de modo adequado e suficiente as finalidades da punição.
|
[
"DESOBEDIÊNCIA",
"NÃO ENTREGA DA CARTA DE CONDUÇÃO",
"PRISÃO EFECTIVA"
] |
Acordam, em conferência, na Secção Criminal (2.ª Subsecção) do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
1.
No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Local Criminal do Entroncamento - Juiz 1, o Ministério Público requereu o julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido
P
, com os demais sinais dos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
Realizado o julgamento, na ausência do arguido, foi proferida sentença na qual a 1.ª instância julgou a acusação totalmente procedente e, em consequência, decidiu condenar P pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, numa pena de 10 (dez) meses de prisão.
2.
Inconformado com a decisão, dela recorreu o
arguido
P
que, no termo da respetiva motivação, formulou as seguintes conclusões (transcrição, com exclusão da reprodução do texto da sentença recorrida):
“A. O presente recurso nasce da inconformidade do arguido/ ora recorrente, com a sentença proferida em 21 de Janeiro de 2025, que é objeto do presente recurso, na qual o ora recorrente foi condenado como autor material e na forma consumada numa pena de dez meses de prisão efetiva pela prática, de um crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348,º nº 1 alínea b) do Código Penal, condenação essa que teve por base a seguinte factualidade constante da acusação pública e dada como provada na sentença, para lá do mais, a seguinte no que respeita ao crime de que vinha acusado:
(…)
B.- A factualidade constante da acusação pública e os factos dados como provados na douta sentença não consubstanciam a prática de um crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348º, alínea b) do Código Penal.
C.- Para a verificação do crime, para além do que se estabelece no corpo do nº 1, é necessário que, em alternativa, se verifique ainda o condicionalismo de alguma das alíneas desse número.
D.- O tipo objetivo de ilícito fica preenchido com o ato de falta de obediência, por ação ou omissão, desde que esta seja devida, designadamente por a ordem ser legítima, emanada de quem tenha competência para o efeito e regularmente chegada ao conhecimento do destinatário, entendendo-se aqui que terá de haver condições para que este último se possa inteirar efetivamente da ordem emitida, por forma a fundar-se o respetivo dolo.
E.- Pelo que tem que existir assim uma disposição legal que expressamente comine a incriminação ou, na ausência de tal norma, a autoridade ou o funcionário que emite a ordem tem de realizar de forma expressa a referida cominação, tendo de ser legitima essa ordem.
F. A cominação feita pela Mmª Juiz na sentença não cumpre o critério de legalidade em virtude de nem o artigo 500º, n.º 2 do CPP nem o artigo 69º, n.º 3 do Código Penal, cominarem a não entrega da carta de condução com a prática do crime de desobediência.
G. Os aludidos preceitos normativos que regulam a execução da proibição de conduzir, não sancionam com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução, pelo que resulta assim claramente de tais normas que o legislador previu expressamente para a falta de cumprimento da entrega voluntária da licença de condução, a sua apreensão.
H.- Ora se o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução, tem como consequência a sua apreensão, parece-nos que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega, contraria manifestamente o sentido da norma, uma vez que o intérprete deve presumir na determinação do sentido e alcance da lei, que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas. (artigo 9.º Código Civil).
I.- Significa isto claramente que no caso em análise se fosse intenção do legislador, cominar o crime de desobediência para a não entrega da carta de condução, tê-lo-ia dito expressamente, pelo que, estando pois na disponibilidade do arguido a entrega voluntária da carta, não podia a Mmª juiz, substituir-se ao legislador, fazendo a referida cominação, não sendo quanto a nós válido o argumento de que tal incriminação consta do artigo 160º, n.º 3 do Código da Estrada, e que como tal a legitimidade da Mmo. Juiz em cominar com a prática do crime de desobediência, decorreria desta norma, e que por isso poderia haver lugar à punição nos termos da alínea a) do artigo 348º, n.º 1 do Código Penal.
J.- Neste sentido vide Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/04/2010, Proc. 253/08.6TVAGS.C1, de 14/10/2009, Proc. 513/05.8TAOBR.C1, 22/10/2008, Proc. 43/08.6TAALB.C1,
L.- Daí que se conclua que a cominação feita pela Mma Juiz na sentença proferida no processo carece de suporte legal pelo que terá de concluir-se que não está demonstrada a legalidade substancial ficando por preencher um dos elementos objetivos do crime de desobediência, devendo o arguido ser absolvido da prática do crime pelo qual foi condenado.
Sem prescindir,
M.- No âmbito dos presentes autos, não resulta provado que no processo n.º 69/23.0GAENT que correu termos pelo Juiz 2 do Juízo de Competência Genérica do Entroncamento do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, onde foi aplicada a sanção acessória de proibição de conduzir, o arguido tenha sido notificado para audição a fim de se apurar as razões do incumprimento da pena acessória que lhe foi aplicada nos autos, em cumprimento do que preceitua o artigo 495º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
N.- A observância do princípio do contraditório, estabelecido no artigo 32º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, consubstancia-se no dever do juiz ouvir as razões do arguido e demais sujeitos processuais, em relação a questões e assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão, bem como no direito do arguido a intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os elementos de prova e argumentos jurídicos trazidos ao processo, direito que abrange todos os atos suscetíveis de afetarem a sua posição ou de atingirem a sua esfera jurídica.
O.- A falta de audição pessoal e presencial do arguido, naquele processo, e no que se refere à não entrega da carta de condução no prazo fixado na sentença constitui nulidade insanável, nos termos do disposto no artigo 119º, alínea c) do Código de Processo Penal, que expressamente se invoca.
P.- O presente recurso visa ainda a pena aplicada ao recorrente pela prática do crime, com a qual não se conforma por considerar a pena aplicada excessiva, desproporcional, desajustada e contrária aos princípios que regem o direito penal, violando o disposto nos artigos 40º e 71º do Código Penal, parecendo-nos, com o devido respeito, que o Tribunal “a quo” deu maior ênfase às razões de prevenção especial em detrimento das de prevenção geral, fundamentando para tanto que é necessário neutralizar a conduta do arguido e reinseri-lo socialmente.
Q.- Os factos que deram origem às condenações anteriores, bem como os factos em causa nos presentes autos, não tiveram grande impacto na comunidade e no meio, por terem ocorrido fora da área de residência do arguido, que apresentava uma postura discreta, sendo a sua presença tolerada pelos vizinhos, com quem mantinha uma atitude cordial.
R.- Na determinação concreta da pena deve o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor, do arguido e contra ele, designadamente o modo de execução e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao arguido (grau de ilicitude do facto); a intensidade do dolo; os fins ou motivos que determinaram o cometimento do crime e os sentimentos manifestados as condições pessoais e económicas do agente; a conduta anterior e posterior ao facto e ainda a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
S.- O arguido sofreu apenas uma condenação em pena de multa pelo mesmo tipo de crime em que veio a ser condenado nos presentes autos, por sentença proferida em 4 de Julho de 2016, portanto quase há dez anos.
T.- O Tribunal na sentença consignou que as necessidades de prevenção geral são medianas e que as necessidades de prevenção especial é que são já elevadas, no sentido de neutralizar a conduta do arguido e reinseri lo socialmente.
U.- Neste sentido a jurisprudência refere também que, à culpa, nos termos dos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, não cabe fornecer a medida da pena, mas o limite máximo que em caso algum pode exceder, funcionando como antagonista da prevenção, pois que quaisquer que sejam as necessidades de prevenção, jamais estas poderão superar a medida da culpa.
V.- A culpa fornecerá assim a moldura punitiva de topo, dentro dela atuando as submolduras da prevenção geral e especial, e bem assim todas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depõem a favor ou contra o agente.
X.- Constituindo as exigências de prevenção geral o limite mínimo da pena e a culpa do agente o seu limite máximo, a medida concreta da pena deve ter em consideração a finalidade de prevenção especial, de ressocialização do arguido ou de suficiente advertência, no sentido de retirar este agente do caminho criminoso.
X.- Valorada em concreto a medida da necessidade de tutela de bens jurídicos e da reintegração do arguido na sociedade, causando-lhe só o mal necessário, em homenagem ao princípio da subsidiariedade do direito penal, a culpa funciona como limite máximo da pena, dentro da moldura penal assim encontrada.
Z.- E por mais repugnante que seja o crime, por mais dramáticos que sejam os seus efeitos, por maiores que sejam as necessidades de prevenção, nunca pode ser infligida ao arguido uma pena que vá para além dos limites impostos pela medida da sua culpa.
AA.- E nos presentes autos, com o devido respeito por opinião diversa, parece-nos que a pena em que o arguido foi condenado ultrapassa largamente os limites da sua culpa.
BB.- O Tribunal deveria ter condenado o recorrente numa pena mais harmoniosa, proporcional e justa face às circunstâncias acima expostas, que deveria ter sido uma pena de multa, e não pena de prisão.
CC.- Com efeito, o Tribunal salientou factos importantes para esta opção, entre os quais: - que entre todas as suas condenações existe um significativo lapso temporal, - o arguido não evidencia uma personalidade frontalmente desconforme ao Direito, - beneficiando ainda da sua inserção familiar.
DD.- Pelo que foram violados os artigos 40º, 70º, 71º, n.º 1 do Código Penal.
EE.- De todo o modo e mesmo que os Venerandos Juízes Desembargadores entendam ser de aplicar pena de prisão, deveria a mesma ter sido aplicada uma pena de substituição.
FF.- Com efeito, o artigo 58.º, n.º 1, dispõe que «Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição».
GG.- Esta pena consiste na prestação de serviços gratuitos ao Estado, a outras pessoas coletivas de direito público ou a entidades privadas cujos fins o tribunal considere de interesse para a comunidade (artigo 58º, n.º 2 do Código Penal).
HH.- Exigindo-se a adesão do arguido a esta pena, ela só pode ser aplicada com aceitação do mesmo (artigo 58º, n.º 5 do Código penal), que o Recorrente manifesta desde já aceitar e que sempre poderia ser obtido através da notificação do mesmo para o prestar, pessoalmente.
II.- A pena de trabalho a favor da comunidade tem na base a ideia de centrar o conteúdo punitivo na perda, para o condenado, de uma parte substancial dos seus tempos livres, sem por isso o privar de liberdade e permitindo-lhe consequentemente a manutenção integral das suas ligações familiares, profissionais e económicas, ou seja, a sua integração social; por outro lado, com não menor importância, esta pena tem um conteúdo socialmente positivo, enquanto se traduz numa prestação ativa a favor da comunidade.
JJ. Afigura-se-nos, que se verificam os pressupostos materiais, essencialmente pelas mesmas razões que conduziram ao afastamento da multa de substituição, realçando-se a profunda insensibilidade do arguido ao efeito das penas não detentivas anteriormente aplicadas.
LL.- A substituição da pena de prisão, quer por multa, quer por prestação de trabalho a favor da comunidade, cumprem, no caso concreto, o objetivo de intimidação e aprofundamento da validade e eficácia das normas penais pelos cidadãos em geral e pelo arguido em partícula.
MM.- No entanto, caso os Venerandos Juízes Desembargadores entendam não estar verificados os requisitos para aplicação das aludidas penas de substituição, resta a possibilidade de suspender a execução da pena de prisão.
NN.- De acordo com o regime jurídico dessa pena de substituição, previsto nos artigos 50º a 57º do Código Penal e nos artigos 492º a 495º do Código de Processo Penal, a pena de prisão fixada em medida não superior a cinco anos deve ser suspensa na execução se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, for de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
OO.- Significa isto que pressuposto material da aplicação dessa pena de substituição é a existência de um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu comportamento futuro.
PP.- Para decidir sobre a suspensão da execução da pena, o tribunal começará, pois, por um juízo de prognose sobre o comportamento futuro do agente, decidindo depois em conformidade com o que resultar dessa previsão, só devendo decretar a suspensão da execução quando concluir, face aos apontados elementos, reportados ao momento da decisão, que essa é a medida adequada a afastar o delinquente da criminalidade.
QQ.- No caso concreto, há que ponderar que o arguido está inserido profissionalmente,
RR.- Cremos que, perante o conteúdo intimidatório inerente à ameaça de execução da pena de prisão, o mesmo terá capacidade para se manter afastado do cometimento de novos crimes, havendo, pois, uma esperança suficientemente fundada de que a ressocialização em liberdade poderá ser alcançada.
SS.- A aplicação do instituto da suspensão, atento o efeito intimidatório que lhe está associado, não constituirá motivo de apreensão comunitária, pelo que as exigências de prevenção geral não se opõem determinantemente a tal opção.
TT.- Justifica-se, assim, a formulação de um juízo de prognose favorável, com a consequente suspensão da execução da pena de prisão.
UU) Pelo exposto, o tribunal “a quo” violou e não observou o disposto nos artigos 50.º, 70.º; 71.º e 72.º al. c) todos do Código Penal.
VV) Em face do exposto, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, ser revogada a douta decisão que condenou o arguido na pena de dez meses de prisão efetiva, por ser excessiva, desproporcional e desajustada às finalidades da punição.
Nestes termos e nos mais de direito V.Exas., doutamente suprirão, deve a douta sentença ser revogada absolvendo-se o Recorrente da prática do crime de desobediência.
Se assim, não for o entendimento de V.Exas, , deverá a douta sentença ser revogada e proferido acórdão que aplique pena de multa ou em caso de pena de prisão, efetuar a substituição da pena de prisão por pena de multa ou trabalho a favor da comunidade.
E ainda, V. Exas., assim não entendam, estar verificados os requisitos para aplicação de penas de substituição, deverão V.Exas., dar provimento ao recurso, ainda que parcialmente, substituindo a pena de prisão pela suspensão com regime de prova.
Assim, se fazenda a acostumada Justiça!”.
3.
Admitido o recurso, o
Ministério Público
apresentou resposta em que pugna pelo seu não provimento e formula as seguintes conclusões (transcrição):
“1. Encontra-se preenchido o elemento objetivo do crime de desobediência;
2. A condenação do arguido na pena de 10 meses de prisão mostra-se conforme às exigências punitivas cabidas ao caso;
3. Os antecedentes criminais do arguido revelam a total ineficácia de qualquer outra pena que não a prisão efetiva para satisfazer as necessidades punitivas;
4. Com efeito do comportamento do requerente não se extrai qualquer facto que permita concluir por um prognóstico favorável em relação ao mesmo pois o mesmo não demonstrou qualquer arrependimento pelos factos por que foi condenado nem deu qualquer sinal de onde o Tribunal possa extrair a conclusão de que interiorizou, finalmente, a gravidade, ilegitimidade e absoluta reprovação de que a sua reiterada conduta é merecedora.
5. A opção pela pena de prisão efetiva mostra-se, assim, plenamente justificada e fundamentada”.
4.
Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal (doravante, CPP), emitiu parecer no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida.
5.
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não foi apresentada resposta.
6.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre agora decidir.
*
II – Fundamentação
1.
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do CPP que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões formuladas na motivação, as quais delimitam as questões que o tribunal
ad quem
tem de apreciar
[1]
, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso
[2]
.
Atentas as conclusões apresentadas no recurso, as questões a decidir são as seguintes:
- Preenchimento dos pressupostos do imputado crime de desobediência.
- Opção pela pena alternativa de multa.
- A excessiva medida da pena de prisão.
- Substituição da pena de prisão pela de multa ou, se assim não se entender, pela pena de prestação de trabalho a favor da comunidade.
- Suspensão da execução da pena de prisão.
*
2.
A sentença recorrida.
2.1.
Na sentença proferida pela 1.ª instância foram dados como
provados os seguintes factos
(transcrição):
“
Da acusação pública
1.
No dia 19 de maio de 2023, no âmbito do processo n.º 69/23.0GAENT, que correu termos no Juiz 2 do Juízo de Competência Genérica do Entroncamento do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, numa pena acessória de proibição de condução de veículos a motor, pelo período de 4 meses e 15 dias.
2.
Naquela decisão o arguido foi advertido que tinha de entregar a sua carta de condução no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da decisão, sob pena, de não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.
3.
A sobredita sentença, proferida na presença do arguido, transitou em julgado no dia 19 de Junho de 2023.
4.
Apesar da cominação efetuada, de que ficou ciente, o arguido não acatou tal ordem e não entregou a sua carta de condução no prazo de 10 dias, que terminou em 29 de junho de 2023, tendo sido ordenada a sua apreensão.
5.
Ao não proceder à entrega da sua carta de condução no prazo que lhe foi fixado para o efeito, quando tal lhe havia sido ordenado em sentença criminal proferida por Juiz de Direito e após ter sido advertido de que incorria em responsabilidade criminal se o não fizesse, estava o arguido ciente de que não acatava uma ordem que lhe tinha sido regularmente transmitida por quem para tal tinha legitimidade, assim pondo em causa a autoridade subjacente à mesma, o que representou e realizou.
6.
O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Dos confrontos com o sistema de Justiça
7. Ao arguido são conhecidas as seguintes condenações:
a)
Por decisão proferida em 27 de fevereiro de 2003 e transitada em julgado em 14 de março de 2003 no proc. n.º 215/00.1PAENT foi condenado pela prática, em 9 de junho de 2000, de um crime de falsificação de documentos, numa pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 2,00 €, extinta por prescrição em 29 de abril de 2011.
b)
Por decisão proferida em 12 de dezembro de 2003 e transitada em julgado em 9 de janeiro de 2004 no proc. n.º 265/02.3GCABF foi condenado pela prática, em 14 de outubro de 2002, de um crime de ofensa à integridade física simples, numa pena de 180 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, extinta pelo cumprimento em 16 de Abril de 2007.
c)
Por decisão proferida em 16 de Fevereiro de 2004 e transitada em julgado em 2 de Março de 2004 no proc. n.º 25/01.9GAENT foi condenado pela prática, em 5 de Fevereiro de 2001, de um crime de falsificação de documentos, numa pena de 420 dias de multa, à taxa diária de 3,00 €, extinta por prescrição em 1 de Outubro de 2010.
d)
Por decisão proferida em 26 de Outubro de 2004 e transitada em julgado em 10 de Novembro de 2004 no proc. n.º 267/02.0GCABF foi condenado pela prática, em 13 de Outubro de 2002, de um crime de ameaça e de um crime de burla, numa pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 4,00 €, extinta pelo cumprimento em 27 de Junho de 2007.
e)
Por decisão proferida em 22 de Dezembro de 2004 e transitada em julgado em 20 de Abril de 2006 no proc. n.º 116/01.6PAENT foi condenado pela prática, em 20 de Abril de 2001, de um crime de falsificação de documentos, um crime de furto e um crime de burla na forma tentada, numa pena de 550 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, extinta por prescrição em 28 de Março de 2011.
f)
Por decisão proferida em 10 de Outubro de 2011 e transitada em julgado em 11 de Novembro de 2011 no proc. n.º 351/11.9GBTNV foi condenado pela prática, em 1 de Outubro de 2011, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, numa pena de 75 dias de multa, à taxa diária de 6,00 €, convertida em 49 dias de prisão subsidiária, por decisão transitada em julgado em 22 de Setembro de 2014 e extinta pelo cumprimento em 4 de Novembro de 2015, bem como na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 3 meses e 15 dias, extinta pelo cumprimento em 29 de Abril de 2013.
g)
Por decisão proferida em 18 de Junho de 2012 e transitada em julgado em 3 de Setembro de 2012 no proc. n.º 58/12.0GBGLG foi condenado pela prática, em 13 de Março de 2012, de um crime de roubo, numa pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova por 4 anos.
h)
Por decisão proferida em 17 de Abril de 2013 e transitada em julgado em 17 de Maio de 2013 no proc. n.º 44/12.0GAACN foi condenado pela prática, em 15 de Fevereiro de 2012, de um crime de detenção ilegal de arma, numa pena de 8 meses de prisão, a qual, em cúmulo jurídico com a pena do proc. n.º 58/12.0GBGLG foi fixada numa pena única de 4 anos e 3 meses de prisão, com sujeição a deveres.
i)
Por decisão proferida em 30 de Setembro de 2013 e transitada em julgado em 28 de Novembro de 2013 no proc. n.º 151/12.9PATNV foi condenado pela prática, em 1 de Março de 2012, de um crime de furto, numa pena de 3 meses de prisão, substituída por 90 horas de trabalho a favor da comunidade.
j)
Por decisão proferida em 21 de Abril de 2016 e transitada em julgado em 23 de Maio de 2016 no proc. n.º 151/12.9PATNV foi condenado, em cúmulo jurídico com as penas aplicadas nos proc. n.º 44/12.0GAACN e 58/12.0GBGLG, numa pena de 4 anos e 4 meses de prisão efetiva, tendo tal pena sido declarada extinta pelo cumprimento em 8 de Março de 2023 com efeitos a 26 de Abril de 2022, no proc. n.º 522/14.6TXEVR-A.
k)
Por decisão proferida em 22 de Novembro de 2013 e transitada em julgado em 6 de Janeiro de 2014 no proc. n.º 483/12.6PAENT foi condenado pela prática, em 22 de Março de 2013, de um crime de ofensa à integridade física, numa pena de 200 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, convertida em 133 dias de prisão subsidiária, por decisão transitada em julgado em 20 de Abril de 2016 e extinta pelo cumprimento em 21 de Novembro de 2016. a. Por decisão proferida em 8 de Abril de 2014 e transitada em julgado em 3 de Setembro de 2014 no proc. n.º 376/13.0PATNV foi condenado pela prática, em 20 de Setembro de 2013, de um crime de detenção de arma proibida, de um crime de sequestro e de dois crimes de roubo qualificado, numa pena única de 6 anos e 10 meses de prisão, sendo que por decisão proferida em 23 de Fevereiro de 2023 no proc. n.º 522/14.6TXEVR-A foi concedida liberdade condicional desde essa mesma data e com duração igual à do tempo de prisão a cumprir, até 26 de Março de 2025.
l)
Por decisão proferida em 4 de Julho de 2016 e transitada em julgado em 19 de Setembro de 2016 no proc. n.º 490/14.4TATNV foi condenado pela prática, em 31 de Outubro de 2013, de um crime de desobediência, numa pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, convertida em 60 dias de prisão subsidiária, por decisão transitada em julgado em 6 de Março de 2019 e extinta pelo cumprimento em 15 de Janeiro de 2020.
m)
Por decisão proferida em 19 de Maio de 2023 e transitada em julgado em 19 de Junho de 2023 no proc. n.º 69/23.0GAENT foi condenado pela prática, em 3 de Maio de 2023, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, numa pena de 10 meses de prisão, substituída por 300 horas de trabalho e numa pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo prazo de 4 meses e 15 dias.
Das condições de vida do arguido
8.
Para elaboração do relatório social solicitado nestes autos, não tendo sido possível à DGRSP encontrar o arguido na morada fixada, a mesma entidade contactou a GNR de Alcanena, em 10 de Setembro de 2024, tendo sido obtida resposta de que o arguido não tem sido visto no concelho pelos elementos daquele posto.
9.
Na sequência do relatório de incumprimento no âmbito de acompanhamento da liberdade condicional do arguido, datado em 9 de Setembro de 2024, nomeadamente no que diz respeito à fixação de residência e a não se ausentar da mesma por mais de 10 dias, a DGRSP sugeriu ao TEP averiguar o paradeiro do arguido via SIRENE, tendo obtido informação em 15 de Outubro de 2024 de que naquele Gabinete nada consta.
10.
A ex-companheira do arguido referiu à DGRSP que não o vê desde Agosto de 2024.
11.
Paulo Gaivoto, de 49 anos de idade, é o mais novo de quatro irmãos e desenvolveu a sua personalidade num ambiente de escassos recursos económicos. O pai apresentava problemas de alcoologia, tendo vindo a falecer devido a cirrose hepática, situação análoga a um dos irmãos. Ainda assim, apesar dos comportamentos aditivos do pai, o arguido tem recordações positivas da infância.
12.
Em termos de relacionamentos, o arguido viveu em união de facto, durante cinco anos e meio, com S. No âmbito deste relacionamento teve uma filha. O término desta relação veio a ocorrer aquando da prisão preventiva do arguido no âmbito do processo n. º 58/12.0GBGLG, altura em que a filha e a companheira vão integrar o agregado da mãe desta.
13.
Posteriormente, em contexto de reclusão e desde 1 de Maio de 2021, iniciou relacionamento afetivo com F, através da rede social Facebook. Este relacionamento decorreu ainda durante o benefício de licenças de saída administrativa e na liberdade condicional do arguido, cujo término ocorreu balizado por um processo judicial por crime de violência doméstica, na pessoa de F, tendo P sido absolvido.
14.
O arguido e F reataram o relacionamento em Junho de 2024, cujo fim veio a ocorrer definitivamente em Agosto de 2024.
15.
O arguido residiu na Rua (…..), em Alcanena, morada do agregado familiar de origem, onde coabitavam também a mãe e um irmão. Posteriormente, em situação de liberdade condicional, foi viver para a casa arrendada da namorada, F, sita na Rua (……), concelho de Alcanena. Nesta morada coabitavam também dois filhos menores desta, de um anterior relacionamento.
16.
P encontra-se habilitado com o 6.º ano de escolaridade, altura em que abandonou os estudos. No seu percurso escolar registou duas retenções no 4.º ano e no 5.º ano. Em contexto de reclusão veio a concluir o EFA 2/3, no ano letivo 2014/2015 e frequentou o curso profissional de canalização – FMC.
17.
O arguido iniciou o seu percurso profissional aos 15 anos como empregado fabril, interrompendo essa atividade quando foi cumprir o serviço militar obrigatório. Posteriormente trabalhou numa empresa de distribuição e nos vários períodos interpolados de desemprego, exerceu atividades profissionais indiferenciadas, nomeadamente na base da entidade comercial denominada Mini Preço, através de empresas de trabalho temporário. A sua sustentabilidade económica dependia da sua mãe.
18.
Aos oito anos inicia a prática de futebol, modalidade desportiva que desenvolveu, até à idade adulta, em vários clubes. Posteriormente não lhe são conhecidas atividades estruturadas.
19.
No que respeita aos comportamentos aditivos, é referenciado relativamente a consumos de bebidas alcoólicas, cujo hábito passou a ser mais intenso as partir do ano de 2011.
20.
Esses consumos limitavam a capacidade do arguido ao nível do autocontrolo e pensamento consequencial, não conseguindo avaliar antecipadamente os resultados dos seus atos, o que o levou à situação de reclusão. No âmbito desta problemática o arguido beneficiou de apoio e acompanhamento do CRI – Equipa de Tratamento de Abrantes.
21.
Iniciou período de reclusão em 24 de Setembro de 2013, à ordem do processo 376/13.0PATNV.
22.
No histórico do período de reclusão afere-se que adotou uma postura de adequação comportamental, refletindo sobre os danos causados. Participou no grupo de trabalho da realização do jornal do Estabelecimento Prisional e do grupo de teatro. Trabalhou como faxina da zona prisional, na lavandaria e no setor da padaria. Revelou assiduidade e empenho nas tarefas confiadas. Em todas estas atividades demostrou empenho, interesse e motivação.
23.
P em contexto de reclusão foi verbalizando um discurso com capacidade de censura face ao seu comportamento delituoso, conseguindo refletir acerca das consequências do mesmo para a as vítimas e quanto aos bens jurídicos. Verbalizou ainda sentimentos de arrependimento, assumindo os danos emocionais que causou a si próprio e à sua dinâmica familiar. Neste contexto visualiza e desculpabiliza a sua prática criminal como uma sucessão de episódios circunstanciais, associada a constrangimentos de ordem financeira resultantes de situação de desemprego e fase aguda de consumos alcoólicos, que segundo o arguido se encontravam ultrapassados.
24.
Posteriormente, beneficiou da liberdade condicional, concedida à ordem do processo nº 522/14.6TXEVR-A, de 23 de Fevereiro de 2023 a 26 de Março a 2025. Neste âmbito, bem como no processo n.º 69/23.GANT, onde foi condenado a prestação de trabalho comunitário, esteve em acompanhamento pela DGRSP, com a equipa do Médio Tejo, desde o dia 27 de Fevereiro de 2023 até 9 de Setembro de 2024, data a partir da qual se desconhece a residência e paradeiro do arguido.
25.
A última entrevista presencial nos serviços de reinserção foi realizada em 5 de Agosto de 2024.
26.
Em termos comunitários e no concelho de Alcanena, onde sempre viveu, a imagem de P é desfavorável, os seus registos criminais são perfeitamente identificáveis na comunidade e existe a imagem de ser um individuo muito influenciável por alguns elementos da rede de convivialidade que frequentava aquando em liberdade.
27.
P apresenta como características pessoais algumas dificuldades ao nível da antecipação mental das consequências dos seus comportamentos e revela escassa capacidade de tolerância à frustração, principalmente em situações complexas em termos emocionais.
28.
De acordo com informação do Núcleo de Investigação Criminal da PSP de Santarém, não foram detetados factos dignos de nota, relativamente ao arguido, desde Maio de 2023.
29.
O arguido consta como proprietário dos veículos com matrícula (…...), (…..) e (…..), não lhe sendo conhecido património imóvel.
30.
Ao arguido não são conhecimentos rendimentos de trabalho dependente nem de benefícios sociais”.
2.3.
Por sua vez, o tribunal
a quo
escreveu na sentença recorrida que não existem
factos não provados
.
2.4.
Por fim, na sentença recorrida consta a seguinte
motivação da decisão sobre a matéria de facto
(transcrição dos aspetos relativos ao caso concreto):
“(…)
Assim, na formação da sua convicção o Tribunal teve em consideração os elementos documentais constantes dos autos, mais concretamente, a certidão extraía do proc. n.º 69/23.0GAENT, a fls. 3 a 13, que suporta integralmente a matéria de facto tal como descrita, nomeadamente a condenação sofrida pelo arguido, a advertência que lhe foi feita quanto à entrega da carta de condução e a ausência de entrega da mesma até ao dia 2 de Novembro de 2023.
Analisado tal elemento, numa ótica daquelas que são regras da lógica e da experiência comum, não teve o Tribunal dúvidas em fixar a matéria de facto nos termos em que o fez. Mais, não foram trazidas quaisquer razões, nomeadamente por parte do arguido, para concluir de forma diversa.
Já no que se refere aos factos provados atinentes ao conhecimento e vontade do arguido no cometimento dos factos, é certo que os mesmos traduzem uma manifestação de consciência apenas percetível pelo próprio sujeito. Contudo, a mesma tem-se por evidente, lógica e necessária em face da análise dos factos objetivos que o antecedem. Com efeito, entende-se que «
a verificação de estados psíquicos atinentes ao preenchimento dos elementos subjetivos dos tipos de ilícito criminal não é passível, por norma, de qualquer demonstração direta: não existindo confissão do próprio agente, tais estados são apenas revelados por indícios que as regras da experiência e da lógica permitem associar
» (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de Dezembro de 2012, proc. 497/08.0GAMCN.P1).
Relativamente às condições de vida do arguido teve-se em consideração o teor do relatório social junto aos autos em 13 de Janeiro de 2025 e as pesquisas às bases de dados efetuadas em 20 de Janeiro de 2025.
Na determinação dos antecedentes criminais valorizou-se o certificado de registo criminal obtido em 16 de Janeiro de 2025”.
*
3.
Apreciando.
Alega o recorrente que os factos dados como provados na sentença recorrida não consubstanciam a prática do crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
Para tanto sustenta que o tipo objetivo do ilícito fica preenchido com o ato de falta de obediência, por ação ou omissão, desde que esta seja devida, designadamente por a ordem ser legítima, emanada de quem tenha competência para o efeito e regularmente chegada ao conhecimento do destinatário, entendendo-se aqui que terá de haver condições para que este último se possa inteirar efetivamente da ordem emitida, por forma a fundar-se o respetivo dolo.
Ora, segundo o recorrente, a cominação feita pela Mma. Juíza na sentença em questão não cumpre o critério de legalidade em virtude de, nem o artigo 500.º, n.º 2 do CPP, nem o artigo 69.º, n.º 3 do Código Penal, cominarem a não entrega da carta de condução com a prática do crime de desobediência.
Assim, para o recorrente, os aludidos preceitos que regulam a execução da proibição de conduzir não sancionam com o crime de desobediência a falta de entrega da carta de condução, pelo que resulta claramente de tais normas que o legislador previu de forma expressa para a falta de cumprimento da entrega voluntária da licença de condução a sua apreensão. Ora, se o legislador prevê que a não entrega voluntária da carta de condução, tem como consequência a sua apreensão, afigura-se ao recorrente que a cominação da prática de um crime de desobediência para a conduta da sua não entrega, contraria manifestamente o sentido da norma, uma vez que na determinação do sentido e alcance da lei o intérprete deve presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou as soluções mais acertadas (artigo 9.º Código Civil).
Estando, pois, na disponibilidade do arguido a entrega voluntária da carta, não podia a Mma. Juíza substituir-se ao legislador, fazendo a referida cominação, não sendo, portanto, válido o argumento de que a incriminação consta do artigo 160.º, n.º 3 do Código da Estrada e que, como tal, a sua legitimidade em cominar com a prática do crime de desobediência decorreria desta norma, podendo, por isso, haver lugar à punição nos termos da alínea a) do artigo 348.º, n.º 1 do Código Penal.
Concluindo-se, assim, no recurso que a cominação feita na sentença em questão carece de suporte legal, pelo que resulta não demonstrada a legalidade substancial da ordem e fica por preencher um dos elementos objetivos do crime de desobediência, devendo o arguido ser absolvido da sua prática.
Pois bem.
*
Nos presentes autos o tribunal
a quo
entendeu que, tal como vinha acusado, o recorrente P incorreu na prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, o qual é constituído pelos seguintes elementos típicos:
Quanto ao tipo objetivo,
- Que o agente falte à obediência devida a uma ordem ou mandado legítimos;
- Que a ordem ou mandado tenham sido regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente;
- Na ausência de disposição legal a cominar a punição da desobediência, que a autoridade ou o funcionário tenham feito a correspondente cominação.
Quanto ao tipo subjetivo,
- O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, em qualquer uma das modalidades legalmente previstas (artigo 14.º do Código Penal).
Para fundamentar a conclusão a que chegou, no sentido de que os factos que se provaram preenchem os elementos típicos do crime imputado, o julgador indicou as seguintes razões:
“Baixando ao caso dos autos e analisando os elementos do tipo de crime, no que se refere ao elemento objetivo, constata-se que o arguido, na leitura da decisão proferida no proc. n.º 69/23.0GAENT, tomou conhecimento de que foi condenado, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor e que deveria proceder à entrega da sua carta de condução no prazo de 10 dias após trânsito, sob pena de não o fazendo poder incorrer na prática de um crime de desobediência e podendo o Tribunal ordenar a apreensão desse documento.
A obrigação de entrega da carta de condução em caso de aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor constitui uma obrigação legal, ínsita nos artigos 69.º, n.º 3 do CP e 500.º, n.º 2 do CPP, segundo a qual uma conduta deveria ser praticada.
A ordem foi regularmente comunicada ao arguido, sendo transmitida ao mesmo verbalmente e pela autoridade competente, nos termos dos artigos 202.º da CRP e 375.º do CPP, tendo aquele dela tomado conhecimento.
A essa ordem foi acrescida a cominação da prática do crime de desobediência, para a qual não existe qualquer disposição legal, verificando-se, assim, o carácter subsidiário da incriminação próprio do artigo 348.º, n.º 1, alínea b) do CP. Aliás, a esse propósito decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão Uniformizador n.º 2/2013, que «
em caso de condenação, pelo crime de condução em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, do art. 292.º do CP, e aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir prevista no art. 69.º, n.º 1, al. a), do CP, a obrigação de entrega do título de condução derivada da lei (art. 69.º, n.º 3 do CP e art. 500.º, n.º 2 do CPP), deverá ser reforçada, na sentença, com a ordem do juiz para entrega do título, no prazo legal previsto, sob a cominação de, não o fazendo, o condenado cometer o crime de desobediência do art. 348.º, n.º 1, al. b), do CP
».
A decisão transitou em julgado em 19 de Junho de 2023 e, volvidos 10 dias desde esse momento, o arguido não procedeu à entrega da carta, tanto mais que posteriormente foi ordenada a sua apreensão, o que consubstancia o expresso desrespeito da ordem transmitida nas ditas circunstâncias.
No que se refere ao elemento subjetivo, constata-se que o arguido conhecia a ordem que lhe foi dada, da qual tomou conhecimento pessoal e lhe foi transmitida por autoridade que sabia competente, bem como sabia que incorreria na prática do crime de desobediência caso não a observasse, o que, ainda assim, não se coibiu de fazer.
Assim, o arguido representou os elementos do tipo, conhecendo a ordem e a cominação quanto ao seu incumprimento, agindo com intenção de a incumprir, o que fez por vontade. Agiu, por isso, com dolo directo (artigo 14.º, n.º 1 do CP)”.
*
Perante o exposto, a Relação entende que o tribunal
a quo
decidiu acertadamente ao concluir pelo preenchimento de todos os referidos elementos típicos do crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
Os argumentos aduzidos para sustentar a posição defendida no recurso têm por base uma certa jurisprudência da Relação de Coimbra, citada na motivação recursória (cf. conclusão J), e, bem assim, da Relação de Guimarães
[3]
, que é anterior ao Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 2/2013, no qual tais argumentos foram escalpelizados e o Supremo Tribunal de Justiça veio concluir por um sentido decisório oposto ao do defendido pelo ora recorrente.
Com efeito, ao aresto uniformizador subjaz o entendimento de que a incriminação do artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal é aplicável à não entrega do título de condução, no prazo legal previsto, para cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, fixando-se para tanto jurisprudência no sentido de que a obrigação de entrega do título de condução derivada da lei, nos termos estipulados nos artigos 69.º, n.º 3 do Código Penal e 500.º, n.º 2 do CPP, deve ser reforçada, na sentença, com a ordem do juiz para entrega do título, no prazo legal previsto, sob a cominação de, não o fazendo, o condenado cometer o crime de desobediência do artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
Segundo entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, um sistema que conta apenas com a consequência da apreensão do título, face à falta da sua entrega voluntária, e com a possibilidade de o condenado ficar incurso no crime do artigo 353.º do Código Penal, se for encontrado a conduzir, não se revela suficientemente eficaz, sendo que esta tomada de posição assenta numa consideração de fundo que se prende com a situação vivida no nosso país, em matéria de sinistralidade rodoviária. Os números são conhecidos, a condução sob o efeito do álcool responde por muitos dos acidentes ocorridos e esta é uma realidade frequente, de consequências graves, e que reclama, portanto, um combate eficaz. No tocante à previsão do artigo 353.º do Código Penal, o preenchimento do tipo de crime em questão pressupõe uma efetiva condução por parte do condenado, pois só ela viola a proibição imposta a título de pena acessória, pelo que a verificação daquela efetiva condução só poderá resultar, na esmagadora maioria dos casos, de as entidades fiscalizadoras do trânsito toparem com o condenado proibido de conduzir em flagrante delito, não sendo fácil dizer-se que tal constitua uma probabilidade forte. Acresce que essas entidades terão de dispor de uma rede de informação interna que lhes permita saber, na ocasião, que aquele condutor, acompanhado até de título válido de condução, está afinal proibido de conduzir na via pública por sentença judicial. No que concerne à obrigatoriedade de entrega do título de condução, a lei apela à colaboração do condenado, dando-lhe 10 dias para efetivar voluntariamente a entrega. Se aquele não quiser colaborar, a única consequência para si, prevista na lei, é a apreensão, o que significa que, em vez de ficar privado do título no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, poderá só ficar privado do mesmo título mais tarde, situação que, em princípio, até será de sua conveniência. A motivação para a entrega residirá apenas num sentido de civismo que infelizmente não abunda, a que acresce que se não poderão escamotear as dificuldades práticas com que se depararão as autoridades (por regra policiais), para efetivarem as apreensões, tendo em conta o número de casos em que elas são pedidas, tornando-se uma realidade as situações em que o condenado só é encontrado e o título de condução apreendido, já depois de passado o tempo da proibição de conduzir. Trata-se de um conjunto de circunstâncias que reclamam bem mais do que aquilo que a lei especificamente prevê nos artigos 500.º, n.º 3 do CPP e 353.º do Código Penal, impondo-se, por isso, um reforço de meios ao serviço do juiz para que, de facto, o condenado fique privado do título de condução. Porque a privação é essencial para que aquele deixe de conduzir, e porque se pretende que a proibição incida, em termos de prevenção, sobre o condenado e sobre a comunidade. Tudo em nome da segurança rodoviária.
Este é o regime que o nosso sistema penal e processual penal permite adotar, pelo que não se deve recorrer ao sistema contraordenacional previsto no direito rodoviário, quando, na presente matéria, as diferenças de regime são evidentes entre o ilícito criminal de justiça (nas vertentes substantiva e adjetiva) e o direito rodoviário regulado no Código da Estrada, sendo certo que não se impõe com toda a clareza outro fundamento de criminalização da conduta desobediente do condenado.
A execução de pena acessória de proibição de conduzir imposta em sentença condenatória obedece, pois, a uma disciplina que o legislador quis regular no artigo 500.º do CPP, não fazendo sentido que também se vá buscar ao Código da Estrada a disciplina dessa execução, tentando conjugar ambas, numa articulação que se mostra muito difícil.
Concluindo, assim, o Supremo Tribunal de Justiça que, no caso de condenação pelo crime de condução em estado de embriaguez do artigo 292.º do Código Penal, com a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma, a obrigação de entrega do título de condução derivada da lei (artigo 69.º, n.º 3 do Código Penal e artigo 500.º, n.º 2 do CPP), deverá ser complementada com a ordem de entrega do mesmo no prazo legal previsto, por parte do juiz e na sentença, sob a cominação de, não o fazendo, o condenado cometer o crime de desobediência do 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
*
Como é sabido, o
recurso de fixação de jurisprudência
, regulado no primeiro capítulo do Título II, Livro IX, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Dos recursos extraordinários” (artigos 437.º a 448.º), serve a finalidade específica de evitar contradições entre acórdãos dos tribunais superiores, assegurando deste modo a uniformização da jurisprudência.
[4]
A decisão é tomada em conferência, pelo pleno das secções criminais (artigo 443.º do CPP), e o acórdão que fixa jurisprudência é publicado na 1.ª Série do Diário da República (artigo 444.º, n.º 1 do CPP).
Segundo dispõe o artigo 445.º, n.º 1 do CPP, a decisão que resolver o conflito tem eficácia
no processo em que o recurso foi interposto e nos processos cuja tramitação tiver sido suspensa nos termos do artigo 441.º, n.º 2, sem prejuízo da
reformatio in pejus
(artigo 403.º, n.º 3, com referência ao artigo 409.º, ambos do CPP).
Dispondo ainda o artigo 445.º, desta feita no n.º 3, que
a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão
.
Contudo, não basta uma qualquer fundamentação divergente da jurisprudência fixada pelo acórdão uniformizador, para se afastar a sua observância, nos termos do sobredito n.º 3, pois os artigos 446.º e 447.º do CPP deixam logo antever outro sentido, ao estabelecer um conjunto de exigências apertadas para o reexame, pelo Supremo Tribunal de Justiça, de determinada jurisprudência fixada, o qual apenas pode ter lugar com o fundamento de que essa jurisprudência está ultrapassada.
Assim, se é certo que a jurisprudência fixada pelo acórdão que resolveu o conflito não é obrigatória para os tribunais judiciais, certo é também que estes só se podem afastar da sua aplicação se fundamentarem as divergências relativamente ao decidido e fixado pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Quer isto dizer que, quando o artigo 445.º, n.º 3 do CPP estabelece que devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada, os tribunais judiciais não podem “limitar-se ao desacato da jurisprudência uniformizada, sem adiantar qualquer relevante argumento novo não ponderado ainda ou sem percepção de alteração notória nas concepções ou da composição do Supremo,
v.g.,
através de arestos publicados, baseando essa divergência tão-somente na convicção de que aquela não é a melhor solução legal”.
[5]
Donde “os tribunais
só devem divergir da jurisprudência uniformizada quando haja razões para crer que ela está ultrapassada
(que carece de reexame), isto é, tendo em conta os seguintes critérios:
a)
o tribunal tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador, suscetível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada;
b)
se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na atualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou, finalmente,
c)
a alteração da composição do STJ torne claro que a maioria dos juízes das secções criminais deixou de partilhar fundadamente da posição fixada”.
[6]
*
Ora
,
no caso em apreço o recorrente não apresentou qualquer argumento novo relevante, não equacionado ainda, nem indicou qualquer perceção de alteração notória no sentido de se mostrar ultrapassada a ponderação feita no Acórdão n.º 2/2013
,
pelo que se torna evidente a ausência de razões para divergir do sentido decisório nele consagrado.
Aliás, conforme acima já foi referido, os argumentos invocados pelo recorrente apoiam-se, no essencial, em jurisprudência anterior à prolação do Acórdão n.º 2/2013 e que corresponde, precisamente, a uma das posições divergentes no âmbito da oposição de julgados que determinou a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça. Os fundamentos dessa jurisprudência (acórdãos da Relação de Coimbra e da Relação de Guimarães) e a posição nela propugnada foram, assim, objeto de apreciação no Acórdão n.º 2/2013, que não os acolheu e fixou jurisprudência em sentido contrário.
Termos em que, no que a esta questão diz respeito, a pretensão do recorrente deve improceder.
*
3.2.
Segundo alega no recurso, no processo onde foi aplicada a pena acessória de proibição de conduzir (processo n.º 69/23.0GAENT), o arguido não foi notificado para a audição destinada a apurar as razões do incumprimento daquela pena acessória, em obediência ao que preceitua o artigo 495.º, n.º 2 do CPP e em observância do princípio do contraditório, consagrado no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
Ora, a falta de audição pessoal e presencial do arguido, naquele processo, e no que se refere à não entrega da carta de condução no prazo fixado na sentença, constitui nulidade insanável, nos termos do disposto no artigo 119.º, alínea c), do CPP, que expressamente invoca.
*
Com o devido respeito, trata-se de uma pretensão que não tem qualquer respaldo na norma legal invocada – artigo 495.º, n.º 2 do CPP –, a qual nada tem a ver com a matéria em análise, uma vez que se destina à falta de cumprimento das condições da suspensão da execução da pena de prisão, sem que o regime da execução da pena acessória de proibição de conduzir faça qualquer tipo de remissão para o mecanismo consagrado naquela norma (cf. artigo 500.º do CPP), como sucede com a execução da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade (cf. artigo 498.º, n.º 3 do CPP). Isto para além de que o recorrente vem arguir uma nulidade, não no processo onde a alegada omissão teve lugar (processo n.º 69/23.0GAENT), mas nos presentes autos, o que, no fundo, constitui mais uma razão para concluir que se trata de um motivo recursório que, sendo infundado, deve improceder.
*
3.3.
O crime de desobediência praticado pelo arguido P é punido com pena de prisão de um mês a um ano
ou
multa de 10 a 120 dias (artigos 348.º, n.º 1, 41.º, n.º 1 e 47.º, n.º 1, todos do Código Penal).
Na sentença recorrida, perante a pena abstrata aplicável que prevê multa em alternativa à prisão, o tribunal
a quo
optou pela aplicação de pena de prisão, por se considerar que era a necessária, adequada e proporcionada às finalidades a prosseguir com a pena, o que fundamentou com base nas seguintes razões:
As necessidades de prevenção geral são, no caso concreto, medianas, ultrapassando um patamar de mera moderação, mas sem serem intensas.
Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna de 2023 (o último divulgado), o crime de desobediência consubstancia mais de metade da criminalidade praticada contra o Estado, com um acréscimo significativo em relação a anos anteriores. É possível afirmar a existência de uma cultura de tendencial desrespeito para com as ordens emanadas pelas autoridades, com a qual o ordenamento jurídico não compactua, sob pena de colocar em crise a validade e eficácia das suas decisões. Com isto, exige-se a afirmação da validade e vigência da norma, para a reposição da paz social.
No que respeita às necessidades de prevenção especial, no sentido de neutralizar a conduta do agente e de o reinserir socialmente, as mesmas são já elevadas.
Se não só não reconheceu a prática dos factos, o arguido conta já com diversos antecedentes criminas, inclusive pelo mesmo tipo de crime, cometendo a conduta aqui em apreço no período da sua liberdade condicional.
O seu passado criminal envolveu condenações por diversos tipos de crimes, sendo que tais decisões, com penas de prisão efetiva, não se mostraram suficientes para o desviar o mesmo de desrespeito relativamente às ordens jurisdicionais que lhe foram transmitidas, demonstrando o seu desprezo pelas decisões proferidas e, com isso, pelas regras de funcionamento de uma sociedade democrática.
Assim, a conduta delituosa do arguido não é meramente ocasional.
Até agora, o arguido não interiorizou efetivamente o significado da condenação e a pretensão de o dissuadir da prática de novos crimes. Aliás, as penas que lhe têm vindo a ser aplicadas revelam um crescendo de gravidade que, nem assim, o têm demovido do cometimento de delitos.
Por tudo isto, é premente a necessidade de consciencialização para o desvalor da sua conduta, da dissuasão da prática de crimes e de reorientação para o respeito pelos bens jurídicos infringidos.
*
Alega-se, no entanto, no recurso que o arguido P sofreu apenas uma condenação em pena de multa pelo mesmo tipo de crime, por sentença proferida em 4 de julho de 2016, portanto, há quase dez anos.
Para além disso, na sentença recorrida o tribunal
a quo
fez constar que as necessidades de prevenção geral são medianas e que as de prevenção especial é que são já elevadas.
Acontece que nestes autos a pena ultrapassa largamente os limites da culpa, pelo que deveria o tribunal
a quo
ter aplicado uma pena de multa, e não de prisão, por se tratar de uma pena mais harmoniosa, proporcional e justa, face às circunstâncias do caso.
Na sentença recorrida o julgador salientou factos importantes para esta opção, como seja o de que, entre todas as suas condenações, existe um significativo lapso temporal, que o arguido não evidencia uma personalidade frontalmente desconforme ao direito e que beneficia de inserção familiar.
Assim, segundo conclui no recurso que, tendo presentes as circunstâncias que depõem a seu favor, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que aplique uma pena de multa.
Pois bem.
*
Como é sabido, na operação de escolha da pena, a lei estabelece que o tribunal dê preferência à pena não privativa da liberdade aplicável ao caso, sempre que ela realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – artigo 70.º do Código Penal.
As finalidades que subjazem ao princípio da preferência pela pena não privativa de liberdade, reconduzem-se à proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial) – artigo 40.º do Código Penal.
A culpa, enquanto limite da pena (artigos 40.º, n.º 2 e 70.º do Código Penal), apenas funciona ao nível da determinação da medida concreta, como prevê o artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal, não estando, pois, subjacente à escolha da pena qualquer finalidade de “compensação da culpa”.
[7]
Assim, perante a previsão abstrata de uma alternativa entre prisão e multa, como sucede com o crime dos autos, o tribunal deve dar preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência, face às finalidades de prevenção geral e especial, nomeadamente de socialização. Se o juízo for negativo, deverá preterir a multa a favor da prisão.
*
As razões consideradas pelo tribunal
a quo
, que acima transcrevemos, são, no essencial, fundadamente justificativas da opção pela prisão, uma vez que as indicadas necessidades de prevenção especial e também geral (ainda que em menor grau, relativamente às primeiras), não lograriam obter suficiente satisfação com a pena de multa.
Os argumentos invocados no recurso, centrados no menor grau de culpa revelada, no significativo lapso temporal entre as condutas delituosas que caracterizam o seu passado e ainda nas circunstâncias relativas à sua personalidade e inserção familiar, para além de as necessidades de prevenção geral serem “apenas” medianas, não põem minimamente em causa o juízo formulado pelo tribunal
a quo
, relativamente às prementes necessidades de prevenção especial que a multa não consegue satisfazer.
Isto sendo certo que não estamos perante uma situação em que as necessidades de prevenção geral apresentam reduzida relevância, muito menos ao ponto de se poder considerar que o respetivo conteúdo mínimo, visando a defesa do ordenamento jurídico, ficaria, no caso, suficientemente acautelado com a aplicação de uma pena não privativa da liberdade. Ao invés, impõe-se que a prisão seja a pena a aplicar porquanto esta é efetivamente indispensável para assegurar a necessária tutela do bem jurídico violado com a apurada prática do crime de desobediência e, concomitantemente, para garantir que o arguido interioriza do desvalor da conduta empreendida e significado da condenação, procurando dissuadi-lo da prática de novos ilícitos.
Não há qualquer fundamento para considerar que o arguido tem condições para se deixar influenciar pela pena de multa, sendo, pois, fundadas as reservas quanto à capacidade de entender e fazer repercutir na condução da sua vida futura o significado ressocializador de uma punição de natureza pecuniária, pelo que o quadro factual dos presentes autos exclui qualquer suporte que possa ser dado à opção pela multa e exige a aplicação de uma pena de prisão.
Termos em que a pretensão que a este respeito foi formulada no recurso, deve também improceder.
*
3.4.
A determinação da medida da pena deve obedecer aos critérios da prevenção e da culpa (artigos 40.º, n.
os
1 e 2 e 71.º, n.º 1, ambos do Código Penal), tendo presente que a prevenção reflete a necessidade comunitária da punição do caso concreto e que a culpa, dirigida ao agente do crime, funciona como “limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas”
[8]
.
A pena deverá, pois, resultar da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto, ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – prevenção geral positiva ou de integração – conjugada com a necessidade de prevenção especial positiva ou de socialização, dentro da referida fronteira intransponível ditada pela culpa, em que a prevenção geral constitui a finalidade primordial a prosseguir e funciona como limite à prevenção especial.
Na determinação o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o respetivo modo de execução e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior e posterior ao facto, especialmente quando se destina a reparar as consequências do crime, e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena, tudo conforme previsto no artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal.
*
Ao fixar em 10 meses de prisão a dosimetria concreta da pena que impôs ao arguido, a 1.ª instância não só ponderou as necessidades de prevenção geral e especial anteriormente explanadas (cf. 3.3.), como ainda sopesou as seguintes circunstâncias:
Contra o arguido, o mediano grau de ilicitude da conduta e da violação dos deveres que lhe eram impostos, a intensidade do dolo, os motivos que o determinaram na prática do crime e os seus antecedentes criminais.
Com efeito, o arguido não ignorava que se encontrava obrigado a proceder à entrega da sua carta de condução, no prazo legal estabelecido para o efeito, na sequência de decisão final condenatória e da sua consolidação no ordenamento jurídico, sabendo que o respetivo incumprimento consubstanciava a prática do crime de desobediência, o qual veio cometer, evidenciando um manifesto desrespeito pela solene advertência que lhe foi dirigida.
Quanto ao grau de violação dos deveres impostos ao arguido, era exigido que este atuasse de forma diferente, nada justificando a sua conduta.
O arguido nada fez que evidenciasse a consciencialização do ilícito cometido ou a reparação do mesmo, através da entrega voluntária da sua carta.
Possui diversos antecedentes criminais, em lesão de diversos bens jurídicos, não sendo primário na prática do crime de desobediência. Ainda que entre todas as suas condenações exista um significativo lapso temporal, a tal não é indiferente o facto de ter estado recluído, sendo certo que, ao longo do tempo, foi reiterando e mantendo a conduta criminosa, apresentando, assim, uma postura de desrespeito pelos bens jurídicos, prolongada no tempo.
Ao arguido aplica-se a grave censura ético-jurídica que é própria do dolo. A sua consciência ética estava orientada para o desvalor da ação, que quis realizar, o que fez com dolo direto (artigo 14.º, n.º 1 do Código Penal). Quando praticou os factos, representou todos os elementos do tipo objetivo e, ainda assim, quis praticá-los.
O arguido não evidencia uma personalidade frontalmente desconforme ao direito, mas, simultaneamente, não consegue agir em sua observância, deixando transparecer a incapacidade para manter uma conduta lícita.
A favor do arguido, o tribunal
a quo
indicou sua inserção familiar.
Por fim, quanto à culpa do agente reportada ao facto praticado e ao momento temporal em que se verificou, aquela é, no caso concreto, intensa. O arguido agiu em contrariedade às regras de conduta que lhe eram impostas, sendo-lhe exigível um comportamento diferente, pois tinha consciência e vontade de realização dos factos, sabendo que os mesmos eram proibidos por lei. Podia e devia ter agido de outra forma.
*
Analisadas as razões que fundamentaram a fixação da pena imposta a P pela prática do apontado crime de desobediência, verifica-se que a 1.ª instância procedeu, no essencial, a uma correta identificação das circunstâncias a considerar na determinação daquela dosimetria concreta.
Precisando-se, no entanto, que, em relação ao enquadramento familiar, a situação do arguido sofreu as alterações descritas nos pontos provados 13 e 14 (terminou a relação afetiva com a companheira) e o mesmo passou a estar sem paradeiro certo e em condições adversas à estabilidade, conforme se apurou nos pontos 8, 9, 10, 24, 25, 26 e 27 da sentença recorrida.
Seja como for, sopesados todos os fatores a considerar, ponderada a ilicitude global do facto, o limite máximo consentido pelo grau de culpa do arguido (segundo um juízo de culpa reportado ao crime em concreto
[9]
) e as exigências de prevenção que a situação demanda, tendo ainda em conta que a moldura penal apresenta o
mínimo de um mês
e o
máximo de um ano
, entende a Relação que a dosimetria de
9 (nove) meses de prisão
é mais ajustada ao caso concreto, à medida da culpa do agente e às necessidades de prevenção especial, satisfazendo ainda esse
quantum
, na justa proporção, a duração que a prevenção geral reclama para o caso.
Em suma, face ao exposto, a pena concreta fixada pelo tribunal
a quo
deve ser reduzida para nove meses de prisão, procedendo, nesta parte, a pretensão formulada no recurso.
*
3.5.
Tal como se entendeu na sentença recorrida, no caso em análise não se revela adequado substituir por multa a pena de prisão aplicada a P, cuja duração se fixa agora em nove meses, atendendo a que em condenações anteriores lhe foi aplicada pena de multa e esta não exerceu o necessário efeito dissuasor, no sentido de prevenir o cometimento de futuros crimes (artigo 45.º, n.º 1 do Código Penal).
Do mesmo passo, também não se mostra adequado substituir a prisão pela pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, uma vez que, ainda que tivesse sido possível obter a aceitação do condenado (artigo 58.º, n.º 5 do Código Penal), sempre seria de considerar que esta pena de substituição não permite realizar, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, atendendo aos antecedentes criminais de P e ao facto de, em condenações anteriores (mormente na última), ter sido aplicada a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade sem que a mesma tivesse conseguido prevenir a prática do novo delito julgado nos presentes autos.
*
3.6.
Na sentença recorrida o tribunal
a quo
decidiu ainda não suspender a execução da pena que aplicou a P, por entender que, perante a factualidade provada, não é possível efetuar um juízo de prognose favorável à sua socialização em liberdade.
Concretizando as razões desse juízo negativo, o julgador aponta que o arguido colocou sucessivamente em crise o bem jurídico tutelado pela incriminação.
Já beneficiou de penas substitutivas, sem que estas tenham exercido qualquer efeito útil, pois mantém a mesma prática criminosa, tendo, aliás, a factualidade aqui em causa ocorrido em pleno período de liberdade condicional.
Não foram apurados quaisquer factos quanto à vida do arguido que tornem compreensível conceder-lhe uma nova oportunidade, nem a sociedade iria entender como é que, tendo em conta o momento em que cometeu os factos dos autos, reiterando o cometimento de crime pelo qual já havia sido condenado, aquele poderia beneficiar de uma nova oportunidade.
Não é possível concluir que se está perante factos pontuais na vida de P, pois, mesmo com as penas de prisão que lhe foram aplicadas, o arguido não tem conseguido a reorientação para a conformidade jurídica.
Se é certo que os antecedentes criminais não são, por si só, automaticamente determinantes da efetividade da pena, não é menos verdade que, se perante eles não se consegue afirmar que não irá ocorrer novo desrespeito pela advertência ínsita na condenação judicial, não poderá esse circunstancialismo fundamentar a decisão de suspender a execução da pena.
Por outro lado, argumentar que as condenações do arguido estão espaçadas no tempo é desvalorizar o seu sentido, pois existem penas extintas por prescrição e outras convertidas em prisão subsidiária, o que demonstra um alheamento e desconsideração pelas penas aplicadas, a que acresce um período de tempo em reclusão que, após o seu termo, mantém registos de atividade criminosa, quando, de resto, o agente se encontrava ainda sujeito a obrigações decorrentes da liberdade condicional que lhe foi concedida.
O arguido, que conta com 50 anos de idade, nos últimos 25 anos regista já mais de meia dúzia de confrontos com o sistema jurídico-penal, com a aplicação de penas de prisão, sendo que nem a mais gravosa reação penal o desviou do caminho delituoso, muito embora aparentemente possua todas as condições para o fazer.
Revela uma personalidade refratária a uma normal convivência social de acordo com as regras do direito e que a aplicação de penas não privativas e privativas da liberdade não têm obstado à prática de crimes de vária natureza, não apresentando um projeto de vida assente na criação de estratégias normativas de interação comunitárias. As vulnerabilidades do seu percurso de vida tornam imprevisível a sua capacidade de efetivação de mudança no sentido pró-social.
Por tudo isto, para o tribunal
a quo
não é possível concluir que o não cumprimento efetivo da pena de prisão, fosse de que forma fosse, seria capaz de realizar de modo adequado e suficiente as finalidades da punição.
*
Contrariamente ao que se entendeu na sentença recorrida, o arguido vem dizer no recurso que a pena aplicada deve ser suspensa na execução, invocando para tanto que está inserido profissionalmente e que, perante o conteúdo intimidatório inerente à ameaça de execução da pena de prisão, terá capacidade para se manter afastado do cometimento de novos crimes.
Vejamos, então.
*
Segundo dispõe o artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal, a pena de prisão fixada em medida não superior a cinco anos deve ser suspensa na execução se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
A suspensão da execução da pena de prisão tem como pressuposto formal da sua aplicação que a medida da pena imposta ao agente não seja superior a cinco anos de prisão e como pressuposto material a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento daquele, em que o tribunal conclua que, atenta a sua personalidade, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as respetivas circunstâncias, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O juízo de prognose favorável reporta-se ao momento em que a decisão é tomada e pressupõe a valoração conjunta de todos os elementos que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, no sentido de que irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando o eventual cometimento de novos crimes prevenido com a ameaça da prisão, daí se extraindo, ou não, que a sua socialização em liberdade é viável.
Neste juízo de prognose não se exige uma “certeza”, mas a esperança fundada de que, no caso concreto a decidir, a socialização em liberdade pode ser alcançada, estando, pois, o tribunal disposto a correr um certo risco, um
risco prudencial
[10]
, quanto à manutenção do agente em liberdade.
Assim, “na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao arguido, ou seja, a esperança de que ele sentirá a condenação como uma advertência e que não voltará no futuro a delinquir. O tribunal deverá correr um risco prudente – esperança não é seguramente certeza –, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do arguido para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa”.
[11]
Isto tendo sempre presente que a finalidade político-criminal visada com o instituto da suspensão da execução da pena reside no “afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes”, sendo, pois, decisivo “o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização traduzida na «prevenção da reincidência»”.
[12]
De referir, por outro lado, que, ainda que razões de socialização imponham ou aconselhem a suspensão da execução da pena de prisão, esta pena de substituição não será aplicada se a ela se opuserem necessidades de prevenção geral, “sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de
defesa do ordenamento jurídico
”.
[13]
*
Revertendo ao caso dos autos, e analisados os seus fundamentos de facto à luz dos elementos em que se decompõe o pressuposto material previsto no artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal, não pode a Relação deixar de concordar com a posição que a 1.ª instância assumiu na sentença recorrida, no sentido de que é manifesto que as elevadas exigências de prevenção especial não permitem efetuar um juízo de prognose favorável à socialização de P em liberdade.
A margem de risco mostra-se no presente caso largamente ultrapassada e não permite sustentar a expectativa de êxito da suspensão da execução da pena de nove meses de prisão imposta a este arguido.
Os antecedentes criminais do arguido revelam uma personalidade claramente indiferente aos valores tutelados pelas normas penais violadas e às respetivas sanções, com total desaproveitamento destas penas criminais, que não lograram alcançar o fim visado com a sua aplicação, não se deixando aquele determinar pelo juízo de censura subjacente às condenações a que foi sujeito.
Características da personalidade que o cometimento do crime agora julgado vem confirmar, fundamentando as necessidades reforçadas de prevenção especial de que temos vindo a falar, a que acresce uma situação pessoal e familiar (cf. pontos provados 8, 9, 10, 13, 14, 24, 25, 26 e 27) em que é patente uma instabilidade claramente contrária à prossecução de um projeto de reinserção em liberdade.
Não é, pois, razoável nem fundado concluir que a simples censura dos factos e a ameaça da prisão serão bastantes para afastar o arguido da prática de futuros ilícitos criminais, se nem as condenações em penas de prisão suspensas na execução lograram alcançar tal efeito.
Por outro lado, o sentimento jurídico comunitário na validade e na força de vigência da norma penal violada ficaria afetado se, tendo P protagonizado, no passado, a prática dos mais variados crimes pelos quais foi condenado, não só em penas suspensas, como em prisão efetiva, nos termos acima expostos, com base no que se apurou no ponto 7, alíneas a) a m), da sentença recorrida, se optasse agora por suspender a execução da pena de prisão, mesmo que sujeita a condições ou acompanhada de regime de prova, sendo que a comunidade não consideraria reposta a confiança na validade da norma infringida com a punição do arguido através da referida pena de substituição
.
*
Deve, por conseguinte, ser mantida a sentença recorrida, na parte em que não optou pela suspensão da execução da pena de prisão e determinou que esta seja efetiva e a cumprir em estabelecimento prisional, como fundadamente concluiu o tribunal
a quo
.
*
III – Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em conceder provimento parcial ao recurso e consequentemente:
1.
Revogam a sentença recorrida, na parte em que condenou o arguido P pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão.
2.
Condenam o arguido P pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão.
3.
Confirmam, quanto ao mais, a sentença recorrida.
Sem custas, face à procedência parcial do recurso (artigo 513.º, n.º 1 do CPP).
*
Elaborado pela primeira signatária, revisto e assinado eletronicamente por todas as signatárias – artigo 94.º, n.
os
2 e 3 do CPP
Évora, 16 de setembro de 2025
Helena Bolieiro
Maria José Cortes
Filipa Costa Lourenço
__________________________________________________
[1] Na doutrina, cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113. Na jurisprudência, cf., entre muitos, os Acórdãos do STJ de 25-06-1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03-02-1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28-04-1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193.
[2] Cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28 de dezembro de 1995.
[3] Acórdão da Relação de Guimarães, de 28 de fevereiro de 2011 (processo n.º 146/11.OGCGMR-A.G1).
[4] Cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, págs. 361 a 366.
[5] Cf. António Henriques Gaspar et al., Código de Processo Penal Comentado (anotação ao artigo 445.º, por António Pereira Madeira), 2.ª ed., Almedina, 2016, pág. 1486.
[6] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque (org.), Comentárito do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (anotação ao artigo 445.º por José Damião da Cunha e Paulo Pinto de Albuquerque), vol. II, 5.ª ed., Universidade Católica Editora, 2023, pág. 747.
[7] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora (2.ª reimp.), 2009, págs. 331 e 332, e Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança (reimp.), Coimbra, Almedina, 2020, pág. 77.
[8] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pág. 109.
[9] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2009, pág. 239: “[A] culpa jurídico-penal não é uma «culpa em si», mas uma censura dirigida ao agente em virtude da atitude desvaliosa documentada num certo facto e, assim, num concreto tipo-de-ilícito”.
[10] Cf. Hans-Heirich Jescheck, Tratado de Derecho Penal – Parte General, vol. II, trad. da 3.ª ed. alemã de Mir Puig e Muñoz Conde, Bosch, Casa Editorial, S.A., 1981, págs. 1154 a 1155.
[11] Cf. Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Noções de Direito Penal, 5.ª ed., Rei dos Livros, 2016, pág. 210.
[12] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime.., pág. 343.
[13] Ibid., pág. 344.
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/c375377550453eb480258d0e002de3f4?OpenDocument
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1,747,094,400,000
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CONFIRMADA A DECISÃO
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1713/18.6T8VNG-K.P1
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1713/18.6T8VNG-K.P1
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JOÃO DIOGO RODRIGUES
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I - No âmbito de uma venda por negociação particular, na qual foi prescrito por regulamento que as propostas a apresentar deviam ser acompanhadas de dois cheques (um à ordem da Massa insolvente, no valor de 20% do valor da proposta, e outro, com a comissão da leiloeira, no montante de 10% do valor da proposta, acrescido de IVA), a ausência desses cheques, constitui irregularidade a arguir no prazo de dez dias, a contar da data em que os interessados tiveram conhecimento do relatório de venda e a certidão de encerramento da negociação particular, com a respetiva decisão de adjudicação.
II - Não a tendo eles suscitado nesse prazo, essa irregularidade deve ter-se por sanada.
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[
"VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR",
"IRREGULARIDADE",
"PRAZO DE ARGUIÇÃO"
] |
Processo n.º 1713/18.6T8VNG-K.P1
*
Sumário
:
………………………………………….
………………………………………….
………………………………………….
*
Relator: João Diogo Rodrigues
Adjuntos: Desembargador, Alberto Eduardo Monteiro de Paiva Taveira;
Desembargadora, Raquel Lima.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I-
Relatório
1
- No âmbito do incidente de liquidação que corre por apenso ao processo de insolvência em que figura como Insolvente,
AA
, depois de outras tentativas sem êxito para a venda
de um lote de 247.770 ações do capital social da sociedade, A..., SA, apreendido à ordem da aludida insolvência (242.770 ações apreendidas inicialmente e 5.000 ações entregues ao Administrador da Insolvência, no dia 31/03/2023 – refªs 35267298, 35267301 e 35268626), foi desencadeado o procedimento para a venda dessas ações por negociação particular, a iniciar no dia 07/06/2023 e terminar no dia 21/06/2023, mediante o valor mínimo de 13.400.000,00€.
2
- Para esse procedimento foi elaborado e publicitado o seguinte Regulamento:
“1. Os interessados deverão remeter e dirigir as propostas à Leiloeira B....
2. As propostas terão de conter: Identificação do proponente (nome ou denominação social, morada, nº contribuinte, telefone e fax); valor oferecido por extenso.
3. A proposta deverá ser acompanhada de cheque à ordem da Massa insolvente, no valor de 20% do valor da proposta, aceitação e conhecimento das condições de venda constantes na Listagem de venda e cheque da comissão da Leiloeira B... Unip., Ldª, no montante de 10% do valor da proposta, acrescido de Iva à taxa legal em vigor, referente aos serviços prestados na venda dos bens.
4. A adjudicação será feita à proposta de maior valor, acima do mínimo estabelecido e após parecer favorável do Administrador da Insolvência.
5. Desde que exista mais do que um proponente, com propostas válidas, os mesmos serão convidados a comparecer pessoalmente ou representados para licitarem entre si.
6. A venda das acções é efetuada livre de ónus e encargos.
7. É da única e exclusiva responsabilidade dos proponentes a verificação do estado do prédio a adquirir, pelo que, antes de apresentar proposta, deverá verificar se o mesmo corresponde ás suas expectativas e condições. A falta desta verificação por parte dos proponentes, não determina, nos termos legais, a anulação da venda.
8. O pagamento do preço será efectuado do seguinte modo: 20% no acto da adjudicação como sinal e os restantes 80% no acto da escritura/ transmissão.
9. A Transmissão das acções será efetuada no prazo de 60 dias, em data, hora e local determinado pelo Administrador Judicial e a notificar, com 8 dias de antecedência, ao adjudicatário.
10. Ao valor da venda é acrescido a comissão de 10% e respectivo IVA referente aos serviços prestados pela Leiloeira B... e pagos com a adjudicação.
11. Se a adjudicação/venda for anulada, dada sem efeito ou considerada nula por quem de direito, as quantias entregues à Massa Insolvente serão devolvidas em singelo ao licitante/comprador, não podendo este último reclamar daquela qualquer valor a título de compensação ou indemnização.
12. Se a adjudicação/venda for anulada, dada sem efeito ou considerada nula por quem de direito, o direito da LEILOEIRA B... à sua remuneração não será afastado, de acordo com o estabelecido no Regulamento de Venda, salvo se a LEILOEIRA B... tiver responsabilidade e culpa na situação que a causou ou caso tivesse tido conhecimento prévio do motivo em causa.”.
3
- No dia 21/06/2023, a sociedade, C... – Holding SGPS, SA, informou a Encarregada da Venda, que pretendia manter a proposta por si apresentada no dia 31/05/2023, para a aquisição do já referido lote de ações, pelo preço de 13.500.000,00€.
4
- Posteriormente, no dia 30/06/2023, o Administrador de Insolvência remeteu aos Mandatários dos Credores e Insolvente, bem como aos Proponentes, o “Relatório de Venda e a Certidão de Encerramento da NEGOCIAÇÃO PARTICULAR”, com a respetiva decisão de adjudicação.
5
- Todos esses elementos (mencionados em 4) foram juntos aos autos no dia 03/07/2023.
6
- Tomando deles conhecimento, o Insolvente, no dia 03/07/2023, requereu a destituição do Administrador de Insolvência (precedida de uma Assembleia de Credores) e arguiu “a nulidade da pretendida adjudicação ao abrigo dos artigos 195º e 839º nºs 1 al. c) e 3 do CPC aplicável por força do artigo 17º nº 1 do CIRE, por manifesta preterição do disposto nos artigos 47º nº 4 al.a) e 164º nºs 1, 2 e 3 do CIRE e com os efeitos que resultam, nomeadamente, dos artigos 280º, 281º e 289º todos do Código Civil”, porquanto, a seu ver, aquela “adjudicação, comunicada no dia 30 de Junho de 2023 (doc.nº 1), é totalmente ruinosa para a Massa Insolvente, para a Credora garantida e para o próprio Insolvente”.
7
- Depois de outras vicissitudes que os autos documentam, mas sem interesse para este recurso, a sociedade, D... – Sociedade Imobiliária, SA (habilitada na posição da credora, E..., SA), no dia 05/03/2024, comunicou a este processo que dava a sua concordância à proposta apresentada para homologação da parte do Sr. Administrador de Insolvência, e, ao mesmo tempo, que não subscrevia o pedido da sua substituição.
Requereu, assim, que “seja a proposta apresentada para a aquisição do lote de 242.770 acções rapidamente homologada, com a consequente venda do bem em causa, tal como anunciado nas condições de venda”.
8
- Posteriormente, no dia 17/04/2024, o Insolvente veio, “face à insistência do Senhor AI, na adjudicação do lote de 242.770 acções representativas de 49,557% do capital social da A..., pelo valor de € 13.500.000,00, à C...-Holding SA”, expor e requerer, para além do mais, o seguinte:
“1. A proposta apresentada pela C...-Holding SA não veio acompanhada de cheque à ordem da massa insolvente, no valor de 20% da proposta, nem de cheque à ordem da encarregada da venda, no valor de 10% da proposta, acrescido do IVA à taxa legal em vigor, correspondente à comissão.
2. Ora, tendo em conta que o regulamento da venda, no seu ponto 3, expressamente exige que a proposta venha acompanhada dos ditos cheques, não poderia essa proposta ter sido aceite pelo Senhor AI.
3. Especialmente se tivermos em conta que o Senhor AI, ciosamente, invocou, justamente, esse mesmo regulamento, para não aceitar a proposta da A..., mesmo contra o parecer então emitido pela credora garantida.
4. Se é certo que o Senhor AI dispõe, hoje em dia, de amplos poderes na escolha da modalidade da venda, podendo optar entre aquelas que são admitidas em processo executivo ou por outra que entenda mais conveniente, e até, dir-se-ia, por modalidades híbridas,
5. Tal não significa, contudo, que possa actuar discricionariamente, e sem qualquer respeito pelas regras da transparência e da igualdade.
6. E não pode, seguramente, aceitar propostas que não cumprem as regras anunciadas para venda.
7. Até porque outros interessados poderão ter sido dissuadidos de apresentar propostas por não estarem em condições, durante o período da venda, para apresentar esses cheques.
8. De modo que, a proposta em causa, porque desacompanhada dos cheques em questão, não pode ser admitida.
9. Destarte, resultou deserta a venda em causa.
(…)”.
Requereu, assim, que:
“a) Seja declarada sem efeito a projectada venda aqui em causa; ou
Subsidiariamente, a não proceder:
b) Seja sobrestada a venda, e convocada assembleia de credores, para prestação de consentimento ao negócio”.
9
- Exercido o contraditório e colhida a posição do Ministério Público sobre esta e as demais questões suscitadas [e depois de nova pronúncia do Insolvente (no dia 27/05/2024), na qual reiterou, entre o mais, a mesma posição sobre a já referida proposta], foi, no dia 19/10/2024, proferido despacho que indeferiu a destituição do Administrador de Insolvência que fora requerida e, quanto à liquidação, nele se exarou o seguinte:
“Na sequência do que já foi referido supra, refere-se que os presentes autos estão em fase de liquidação e a venda da participação social societária de 247.770 ações, apreendidas nos autos e correspondente a 49,557% representativas do capital social da A... SA.
Veio o insolvente impugnar a venda publicitada, entendendo que a mesma não cumpre as regras anunciadas para a venda e tal será susceptível de afastar outros potenciais interessados na compra .
S.m.o., entendemos não existir qualquer razão para que seja anulada a proposta de aquisição actual das acções.
Com efeito, por tudo o que consta dos autos, os procedimentos adoptados pelo A.I. foram corretos face ao valor da proposta inicial da credora E..., SA, inferior ao valor mínimo, e respeitado o regulamento do leilão que teve lugar entre as 15h do dia 07/06/2023 e as 15h do dia 21/06/2023, do conhecimento do referido credor como resulta da informação de 27/03/2023.
Como também resulta dos autos, o valor das comissões proposto pela mesma credora a 08/03/2021 no apenso B foram aceites pelo Ex.mo Administrador, não se podendo agora invocar prejuízo para a massa, tanto mais que a proposta inicial da credora E... foi no valor de € 5.000.000 e o da proposta agora questionada é de € 13.400.000.
No decurso da corrente venda, foi apresentada uma proposta pela empresa C...-HOLDING SA, com o NIF ...76 à Encarregada da Venda, que submetendo-se às condições e ao regulamento de venda anunciados, reiterando a sua Proposta apresentada anterior, propondo-se pagar pelo Lote 1, constituído pelas 247.770 ações correspondentes a 49.557 % do capital social da A..., SA., o valor de € 13.500.000 (Treze Milhões e Quinhentos Mil Euros).
A credora D..., habilitada no lugar da E..., principal credora, veio aos autos dar o seu parecer favorável quanto à venda à Proponente C...-Holding, SA (reqto. 07.05.2024).
Relembre-se que nestes autos apenas existem dois credores – E..., agora D..., e o Banco 1..., sendo que aquele representa 99% dos créditos.
Das vicissitudes da venda o A.I. deu sempre conhecimento aos autos.
Veio ainda o devedor em 17.04.2024 requerer a realização de assembleia de credores para prestação de consentimento da venda.
Dispõe o artº 161º do CIRE que:
“1 - Depende do consentimento da comissão de credores, ou, se esta não existir, da assembleia de credores, a prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência.
2 – (…).
3 - Constituem, designadamente, actos de especial relevo:
a) (…);
b) (…);
c) (…);
d) (…);
e) (…);
f) (…);
g) A alienação de qualquer bem da empresa por preço igual ou superior a (euro) 10000 e que represente, pelo menos, 10% do valor da massa insolvente, tal como existente à data da declaração da insolvência, salvo se se tratar de bens do activo circulante ou for fácil a sua substituição por outro da mesma natureza.
(…)”.
Dos autos resulta que o maior credor D... – SOCIEDADE IMOBILIÁRIA, SA veio dar a sua concordância à proposta apresentada para homologação da parte do Sr. Administrador de Insolvência, requerendo seja a proposta apresentada para a aquisição do lote de 242.770 acções homologada, com a consequente venda do bem em causa, tal como anunciado nas condições de venda (vd. reqto. de 05.03.2024), mais se opôs à realização da assembleia de credores (vd. reqto. 07.05.2024).
Com efeito, estando em causa um acto de especial relevo, o mesmo depende do consentimento da comissão de credores, ou, não existindo, da assembleia de credores.
In casu, existem apenas dois credores e o maior credor D..., representa 99% dos créditos, tendo vindo expressamente aos autos concordar com a proposta apresentada pelo A.I. e opor-se à realização de assembleia de credores.
Assim, indefere-se à realização da requerida assembleia de credores por não haver interesse na mesma dada a posição do maior credor.
Quanto à proposta de venda apresentada pelo A.I., atenta a posição do maior credor no sentido de concordar com a mesma, e, não havendo, em nosso entendimento, qualquer motivo para anular a mesma, notifique-se o A.I. para proceder em conformidade.
Notifique”.
10
- Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o Insolvente, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões:
“A) A questão objecto de recurso consiste em saber se é válida ou não a proposta apresentada pela C... – Holding, SA, pelo facto de não ter sido cumprido o disposto no nº 3 do Regulamento da Venda, que foi especificamente colocada pelo Insolvente, ora Requerente, quer no seu requerimento ref.ª 48649947, de 17-04-2024, mencionado no despacho recorrido, quer ainda no seu requerimento ref.ª 49023521, de 27-05-2024 (este nem sequer mencionado no despacho recorrido);
B) Ora o despacho recorrido, neste segmento, limita-se a concluir que o Senhor AI respeitou o regulamento da venda, sem explicar porquê, e a concluir também ser válida a proposta da C...-Holding, também sem explicar porquê; numa palavra, o despacho recorrido não especifica, minimamente, os fundamentos de facto e de direito da decisão.
C) Veja-se que nem se refere à questão que, em concreto, é suscitada pelo Insolvente, ora Recorrente, pois nem sequer refere o despacho o facto de a proposta vir desacompanhada dos cheques, e muito menos fundamenta, de direito, a decisão de a considerar válida.
D) Pelo exposto, o despacho recorrido, no segmento em causa, viola o disposto nos artigos 607º, nºs 3 e 4, e 608º, nº2, do CPC, e é nulo por força do artigo 615º, nº 1, als. b) e d), também CPC, o que deve ser logo declarado no despacho que se venha a pronunciar sobre a admissibilidade deste recurso.
Sem prescindir:
E) O encarregado da venda publicitou uma regulamentação para a venda em causa, regulamentação essa que, no nº 3, obriga o proponente a fazer acompanhar a sua proposta de cheque à ordem da Massa insolvente, no valor de 20% do valor da proposta, e cheque da comissão da Leiloeira B... Unip., Ldª, no montante de 10% do valor da proposta, acrescido de Iva à taxa legal em vigor, referente aos serviços prestados na venda dos bens.
F) De acordo com o Regulamento, o cheque no valor de 20% do valor da proposta não se confunde com um sinal, isto porque, nos termos do seu nº 8, o sinal (que por sinal também corresponde a 20% do preço) será pago no acto da adjudicação da proposta (a de maior valor, conforme nº 4 do Regulamento).
G) Tendo optado pela venda com recurso a encarregado de venda, com a obrigatoriedade de apresentação de um cheque no valor de 20% do valor da proposta e de um cheque no valor de 10% do valor da proposta (acrescido do IVA à taxa legal), o Administrador da Insolvência decidiu misturar elementos típicos de uma venda por negociação particular (em que ocorre o recurso ao encarregado de venda) com uma venda por propostas em carta fechada (na qual se exige, como resulta do artigo 824.º n.º 1 do Código de Processo Civil, a prestação de caução, por cheque, de parte do valor proposto).
H) Destarte, e embora não o faça por remissão normativa expressa, o certo é que o Regulamento remete para o artigo 824º do CPC, aplicável à venda mediante propostas em carta fechada.
I) De sorte que, e sem margem para qualquer dúvida, ficaram os propoentes da venda em causa sujeitos às obrigações de caucionamento ou de garantia, reguladas no artigo 824º, nº 1 do CPC, tratando-se, pois, tal caucionamento, de uma formalidade legal essencial.
J) Formalidade legal essa que não foi respeitada pela proponente C...-Holding.
K) Assim sendo, impõe-se concluir como se concluiu no esclarecido Acórdão da Relação de Évora, de 10-03-2016, processo 2512/10.9TBSTR-E.E1, in www.dgsi.pt, que assim a sumaria: “1. A obrigação de junção de caução, imposta pelo artº 824º n.º 1 do CPC é uma formalidade não dispensável, de cumprimento obrigatório. 2. Perante o seu não cumprimento, a proposta não deve ser aceite, a não ser que o exequente, executado e credores reclamantes com garantia real, sobre os bens em causa, presentes no ato de abertura das propostas, expressem posição no sentido da sua aceitação, mesmo com a omissão da junção de caução.”, sendo certo que, a posição do Insolvente, ora Recorrente, no sentido da não aceitação da proposta da C...-Holding, não só, mas também, por violação dos aludidos normativos Regulamentares e Legais, está bem expressa nos autos.
L) A não exclusão da proposta da C... Holding determina a nulidade do processo de venda, tendo influência directa no seu desfecho e violando o artigo 824.º n.º 1 do CPC, aplicável por remissão do artigo 164.º n.º 1 do CIRE.
M) De modo que o despacho recorrido, no segmento aqui em causa, viola o disposto no artigo 824º, nº 1, do CPC, aplicável por força da regulamentação publicitada para a venda em causa e do artigo 164.º n.º 1 do CIRE, impondo-se consequentemente que seja declarada não aceite a proposta da C...-Holding, por violação do nº 3 do Regulamento da venda, e do artigo 824º, nº 1, do CPC, e revogado o segmento do despacho em causa que decide em contrário”.
Termina pedindo que se julgue o presente recurso procedente, com todas as consequências legais.
11
- A sociedade, D... – Sociedade Imobiliária, SA, respondeu, defendendo que o Apelante carece de legitimidade para a interposição do presente recurso, ao qual deve ser atribuído efeito meramente devolutivo.
De todo o modo, mesmo que assim não se entenda, defende a confirmação do julgado.
12
- Recebido o recurso neste Tribunal foi aqui entendido (pelo ora Relator) que o Apelante tinha legitimidade para recorrer, o recurso era o próprio e tinha sido admitido no modo e efeito devidos.
Para além disso, entendeu-se ainda que a irregularidade arguida pelo Apelante deve considerar-se sanada, por não ter sido por ele oportunamente arguida, nem por mais ninguém, o que determina a improcedência deste recurso.
Antes, porém, porque se tratava de uma questão nova, foram as partes ouvidas a esse propósito.
13
- Em resposta, o Insolvente veio alegar que dos autos não se retira o seu conhecimento da ausência dos cheques em causa, a acompanhar a proposta da C...-Holding SA.. Isto porque, por um lado, “o relatório e a certidão são omissos quanto à junção, ou não, desses cheques” e, por outro lado, “porque o que Senhor AI declara, no relatório, em mais do que numa passagem, que a proposta da C... Holding cumpre as condições e o regulamento de venda”.
Pelo contrário, alega só ter tomado efetivo conhecimento de que a proposta não foi acompanhada dos cheques previstos no regulamento, quando o Senhor AI, no seu requerimento de 08/05/2024, declara o seu entendimento de não ser exigível a apresentação dos mesmos.
14
- Nesta sede e momento, posto que está preparada a deliberação, importa tomá-la.
*
II-
Mérito do recurso
A- O objeto dos recursos, em regra e ressalvadas, designadamente, as questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (CPC) “ex vi” artigo 17.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)].
Assim, tendo em conta este critério, resume-se este recurso a saber se:
a) A decisão recorrida é nula, pelas razões invocadas pelo Apelante;
b) A não exclusão da proposta de compra do lote de ações já referido determina a nulidade do processo de venda.
*
B- Tendo em conta os factos referidos no relatório que antecede – que são os únicos relevantes – vejamos, então, como solucionar estas questões:
Quanto à nulidade da decisão recorrida, a mesma, de facto, ocorre, mas não por falta de fundamentação. Ocorre, sim, por omissão de pronúncia.
Com efeito, no despacho recorrido não se enfrentou especificamente a questão colocada pelo Insolvente, no que concerne à alegada invalidade da proposta apresentada pela sociedade, C... - Holding, SA, derivada da circunstância da mesma não vir acompanhada de cheque à ordem da Massa insolvente, no valor de 20% do valor da proposta, nem cheque para garantir a comissão da Leiloeira B... Unip, Ldª, no montante de 10% do valor da proposta.
Ora, é pacífico e decorre do disposto no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação (a não ser que essa apreciação esteja prejudicada pela solução dada a outras). E, se o não fizer, a decisão tomada é nula. É o que decorre do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.
Por conseguinte, ocorrendo a referida omissão de pronúncia, a decisão recorrida é nula, quanto a este específico aspeto, o que se declara.
Sendo assim, tendo em conta o disposto no artigo 665.º, n.º 1, do CPC, importa tomar posição sobre o assunto; ou seja, decidir se a referida proposta deve ser considerada inválida, com todas os efeitos daí decorrentes.
Ora, como já se deu conta anteriormente (em despacho do ora Relator, notificado às partes para contraditório prévio), a arguição de tal invalidade é intempestiva.
Como resulta da documentação junta pelo próprio Insolvente/Apelante (no dia 03/07/2023), o mesmo foi notificado (por mensagem de correio eletrónico que lhe foi dirigida no dia 30/06/2023, pelo Administrador de Insolvência) do relatório da venda e da Certidão de Encerramento da Negociação particular que se processou entre os dias 07/06/2023 e 21/06/2023 (na qual foi apresentada e aceite a proposta em causa), e não suscitou a dita invalidade/irregularidade, com tal fundamento; ou seja, por a referenciada proposta não vir acompanhada dos aludidos cheques. No requerimento apresentado naquela data (03/07/2023), além de pedir a destituição do Administrador de Insolvência (precedida de uma Assembleia de Credores), apenas arguiu “a nulidade da pretendida adjudicação ao abrigo dos artigos 195º e 839º nºs 1 al. c) e 3 do CPC aplicável por força do artigo 17º nº 1 do CIRE, por manifesta preterição do disposto nos artigos 47º nº 4 al.a) e 164º nºs 1, 2 e 3 do CIRE e com os efeitos que resultam, nomeadamente, dos artigos 280º, 281º e 289º todos do Código Civil”, porquanto, a seu ver, aquela “adjudicação, comunicada no dia 30 de Junho de 2023 (doc.nº 1), é totalmente ruinosa para a Massa Insolvente, para a Credora garantida e para o próprio Insolvente”.
Só mais tarde, no dia 17/04/2024, é que o Apelante veio, face à alegada “insistência do Senhor AI, na adjudicação do lote de 242.770 acções representativas de 49,557% do capital social da A..., pelo valor de € 13.500.000,00, à C...-Holding SA”, suscitar a questão da proposta desta sociedade não ter sido acompanhada dos aludidos cheques e de, por isso mesmo, não poder ser aceite.
Quando isto sucedeu, porém, há muito que estava precludido o direito para o fazer.
Com efeito, tratando-se de uma alegada irregularidade procedimental cometida num ato em que o Apelante não esteve presente, o prazo para a arguir era de 10 dias, contados da data em que o mesmo dela teve conhecimento. Isto é, do referido dia 30/06/2023. É o que decorre do prescrito nos artigos 149.º, n.º 1 e 199.º, n.ºs 1, ambos do CPC. Aliás, na venda mediante propostas em carta fechada (regime no qual o Apelante também apoia a sua pretensão), as “irregularidades relativas à abertura, licitação, sorteio, apreciação e
aceitação das propostas
só podem ser arguidas no próprio ato” (artigo 822.º, n.º 1, do CPC). E, não estando presentes, como sucede na situação presente, as mesmas irregularidades só podem ser arguidas até ao limite do prazo em que o podem ser no regime geral, ou seja, até ao décimo dia subsequente ao conhecimento. Isto, com vista a abreviar a conclusão da venda
[1]
.
Por conseguinte, é manifesto que, tendo sido ultrapassado esse prazo, a referida irregularidade está sanada, uma vez que por mais ninguém foi arguida.
É certo que o Apelante assim não entende e defende, ao invés, que dos autos não se retira o seu conhecimento da ausência dos cheques em causa, a acompanhar a proposta da C...-Holding SA.. Isto porque, por um lado, “o relatório e a certidão são omissos quanto à junção, ou não, desses cheques” e, por outro lado, “porque o que Senhor AI declara, no relatório, em mais do que numa passagem, que a proposta da C... Holding cumpre as condições e o regulamento de venda”.
Ora, nem este último entendimento é, ou era, vinculativo para o Apelante, nem o mesmo tinha razões para com ele se conformar (se entendesse que dele devia discordar), face ao teor da documentação que lhe foi enviada no dia 30/06/2023, pelo Administrador de Insolvência. Pelo contrário, se essa documentação era omissa quanto ao aspeto em causa, devia, desde logo, ter suscitado a irregularidade que entendia verificar-se. Não, como sucedeu, num primeiro momento, arguir a nulidade da pretendida adjudicação com outro fundamento (designadamente, por a adjudicação em causa ser “totalmente ruinosa para a Massa Insolvente, para a Credora garantida e para o próprio Insolvente” e, só num segundo momento, mais concretamente, no dia 17/04/2024, depois da insistência do Administrador de Insolvência, na adjudicação, suscitar tal irregularidade.
Com efeito, como já dissemos, nesta última data, estava esgotado o prazo para o fazer.
Consequentemente, a sua pretensão de ver, agora, reconhecida essa irregularidade não pode ser atendida. Ou seja, em resumo, a sua pretensão recursiva deve ser julgada improcedente e confirmada a decisão recorrida, ainda que não exatamente pelos fundamentos nela indicados.
*
III-
Dispositivo
Pelas razões expostas,
acorda-se em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, confirma-se a decisão recorrida
.
*
- Em função deste resultado, as custas do presente recurso serão pagas pela Apelante – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Porto, 13/5/2025.
João Diogo Rodrigues
Alberto Taveira
Raquel Correia de Lima
________________________________
[1]
No mesmo sentido, para a venda em propostas em carta frechada, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, pág. 243.
|
TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/336de9f6e4c8b33a80258c98004956bc?OpenDocument
|
1,745,884,800,000
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IMPROCEDENTE
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568/24.6T8BRR-B.L1-1
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568/24.6T8BRR-B.L1-1
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FÁTIMA REIS SILVA
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Da responsabilidade da relatora – art.º 663º nº 7 do CPC.
1 – Para que se considere preenchido o requisito prejuízo dos credores causado pela tardia apresentação à insolvência, nos termos da al. d) do nº1 do art.º 238º do CIRE, deverá ter ocorrido um agravar da situação patrimonial por factos ou omissões ocorridos no período durante o qual o devedor se deveria ter apresentado à insolvência, não o tendo feito, como, por exemplo, a contração de novos e significativos créditos e o extravio ou dissipação de património.
2 – Não pode valorar-se como geradora de prejuízo dos credores para os efeitos da alínea d) do nº 1 do art.º 238º do CIRE a exata conduta que se comprovou ter causado a situação de insolvência. O período de seis meses previsto na al. d) do nº1 do art.º 238º do CIRE conta-se a partir dessa data, não a incluindo. Só a partir do momento em que estão insolventes é que começa a correr o prazo de 6 meses previsto no referido preceito.
3 - Os devedores que, estando já a ser executados por responsabilidades de mais de € 50.000,00 relativas a um crédito vencido desde 2012, alienaram o único bem suscetível de servir de garantia aos credores, por meio de doação, à sua filha menor, reservando para si o usufruto, causaram a sua situação de insolvência, colocando-se, mediante um ato voluntário de disposição em proveito de terceiro, em situação de incapacidade de cumprimento das suas obrigações vencidas, o que é subsumível ao disposto na al. d) do nº 2 do art.º 186º do CIRE e, consequentemente, causa de indeferimento liminar do benefício da exoneração do passivo restante nos termos da al. e) do nº1 do art.º 238º do CIRE.
4 - Quando nada é destruído, subtraído, escondido ou dificultada a averiguação do respetivo paradeiro ou destino e quando os bens e direitos são alienados, por forma a que o Administrador da Insolvência, desde logo se inteira mediante as pesquisas habituais, não estamos ante condutas previstas na al. a) do nº2 do art.º 186º do CIRE, mas sim na al. d) do mesmo preceito, desde que apurados factos que permitam concluir pelo proveito pessoal ou de terceiros.
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[
"EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE",
"INDEFERIMENTO LIMINAR",
"PREJUÍZO",
"CULPA",
"DEVEDOR"
] |
Acordam os Juízes da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório
JN e SN apresentaram-se à insolvência, requerendo a exoneração do passivo restante.
Foi proferido despacho de aperfeiçoamento, ordenando a junção de vários documentos, entre os quais “escritura de doação completa (só juntaram a primeira página) e declaração justificativa das circunstâncias em que ocorreu tal doação”
Os insolventes juntaram parte dos documentos ordenados, não juntando a certidão de escritura referida.
A insolvência foi declarada por sentença de 11 de março de 2024, tendo sido dispensada a realização de assembleia de credores para apreciação do relatório, tendo o tribunal proferido o seguinte despacho
“Dado que se trata de acto que poderá ter relevância na apreciação do comportamento dos insolventes, nomeadamente quanto a eventual criação ou agravamento da insolvência, notifique uma vez mais os insolventes para, em cinco dias, juntarem a escritura de doação completa, esclarecendo as respectivas circunstâncias.
Após, dê conhecimento ao Sr. Administrador da Insolvência.”
Os insolventes juntaram certidão da escritura de doação por requerimento de 23/03/24.
Foi apresentado o relatório previsto o art.º 155º do CIRE, no qual o Sr. Administrador da Insolvência propôs o encerramento por insuficiência da massa insolvente, não se pronunciando quanto à exoneração do passivo restante.
O credor Sd Debt Portfolios, S.A. veio deduzir oposição à prolação de despacho liminar de exoneração do passivo restante com fundamento no disposto no art.º 238º nº1, al. d) do CIRE, tendo em conta que a 15.12.2021, os Insolventes procederam à doação da fração autónoma, à filha LN.
Notificado para o efeito o Sr. Administrador da Insolvência, entretanto substituído, veio pronunciar-se pelo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, nos termos da al. d) do nº1 do art.º 238º do CIRE, dado que à data da doação do imóvel à filha menor pendiam já execuções contra os insolventes, sabendo estes que a dissipação do património agravava a situação de insolvência.
Os insolventes vieram pronunciar-se defendendo estarem reunidas todas as condições para beneficiarem da exoneração do passivo restante, não tendo dissipado património, mas sim feito uma doação à filha por não terem dinheiro para lhe pagar o dinheiro que esta lhes havia emprestado.
Em 29/01/2025 foi proferido o seguinte despacho:
“Em face de tudo exposto, por verificação dos respetivos pressupostos negativos, nos termos do disposto no artigo 238.º n.º 1 alíneas d) e e) do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, indefere-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante requerido por JN e SN.
Custas do incidente pela massa insolvente – art.º 304º do CIRE.
Notifique.”
Inconformados apelaram os insolventes pedindo seja revogado o despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante por não se encontrarem reunidos os pressupostos legais para o efeito, formulando as seguintes conclusões:
“1. A sentença recorrida viola o art° 238° n° 1 aliena d) do CIRE
2. Pois tem de existir cumulativamente três requisitos para que fosse possível proferir tal decisão
3. O prejuízo para os credores consiste na desvantagem económica diversa do simples vencimento de juros, que não são a consequência normal do incumprimento
4. O prejuízo a que se refere o art° 238° n° 1 alínea d) deverá corresponder a um prejuízo concreto que, nas concretas circunstâncias do caso, tenha sido efectivamente sofrido pelos credores em consequência do atraso á apresentação a insolvência
5. Cabia aos credores, o dever de virem reclamar tais prejuízos o que não aconteceu
6. Nem fizeram efectiva prova desse prejuízo
7. Quanto ao terceiro requisito, existe omissão pois o credor tentou por todas as formas melhorar a sua vida, o que infelizmente não conseguiu
8. Qualquer dos três requisitos não foram devidamente valorados e se o fossem a decisão seria certamente diferente.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido por despacho de 17/03/2025 (ref.ª 443611832).
Cumpre apreciar.
*
2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art.º 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se
ex officio
e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas é a seguinte a questão a decidir:
- verificação de se está preenchido o circunstancialismo previsto nas als. d) e e) do nº1 do art.º 238º do CIRE.
*
3. Fundamentos de facto:
Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são, além dos constantes do relatório, que aqui se dão por reproduzidos, os seguintes, constantes da fundamentação da decisão recorrida, embora sem destaque formal
[1]
:
“1 - Ressuma, no entanto, dos autos, que os requerentes são executados no âmbito do processo n.º 6960/12.1TBSXL, a correr termos no 1.º Juiz 1 Tribunal dos Juízo de Execução de Almada.
2 - Por outro lado, resulta dos autos que os Insolventes entraram em incumprimento no ano de 2012 quanto ao crédito de SD Debt Portfolios 2, no ano de 2015 quanto ao crédito de MEO, em 2019 quanto ao crédito de LC Asset 2 SARL e em 2023 quanto ao crédito de NOS.
3 - [Foi] alegado sede de petição inicial que o Insolvente teve o seu vencimento penhorado durante alguns anos, auferindo vencimento mínimo nacional, tal como a sua esposa, (…)
.4 - [Flui] dos autos que os Insolventes eram proprietários do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, que adquiriram por compra registada pela AP. 11 de 2005/08/08, sobre o qual constituíram hipoteca voluntária a favor de Unión de Créditos Inmobiliários, S.A. Estabelecimiento Financiero de Crédito (Sociedade Unipersonal), também credor nos presentes autos.
5 - Mais flui dos autos que mediante escritura de doação, os Insolventes doaram à sua filha LN, reservando para si o direito de uso e habitação, o sobredito imóvel, atos que registaram pelas AP. 4149 de 2022/02/02 e AP. 4150 de 2022/02/02.
6 - Ora, tal alienação gratuita ocorreu quando pendia já sobre os insolventes uma ação executiva, encontrando-se já penhorado o vencimento do Insolvente JN, conforme foi alegado em sede de petição inicial.
7 - [Também] deflui dos autos que estes não possuem outros bens (sem olvidar a existência de dois veículos automóveis em estado degrado que não possuem valor comercial).”
*
Com interesse para a decisão do presente recurso resultam ainda dos autos os seguintes factos (processuais):
8 – A presente ação especial de insolvência foi intentada em 26/02/2024.
9 - O relatório do Sr. Administrador da Insolvência foi apresentado nos autos em 21/05/2024.
10 – No seu requerimento de 18/06/2024 a credora Sd Debt Portfolios, S.A requereu:
“Ademais, tendo a aqui Credora já se pronunciado quanto ao pedido de exoneração do passivo restante, opondo-se com fundamento no disposto no artigo 238.º, n.º 1, al. d), do CIRE, vem pelo presente, por tudo o exposto, requerer que seja também a insolvência considerada culposa.”
11 – O Sr. Administrador da Insolvência apresentou, em 22/05/2024 lista de credores reconhecidos, nos termos do art.º 129º do CIRE, com o seguinte teor:
- Banco BPI, SA – € 49.654,41, comum;
- Lc Asset 2 SARL – € 1.162,11, comum;
- Meo – € 755,38, comum;
- Nos Comunicações, SA – € 467,20, comum;
- Sd Debt Portfolios, SA – € 51.473,34, comum;
- Union de Creditos Inmobili – € 53.916,64, comum.
12 – O Sr. Administrador da Insolvência informou, por requerimento de 13/08/2024, que o crédito reconhecido ao Banco BPI, SA é um crédito comum sob condição.
*
4. Fundamentos do recurso:
A exoneração do passivo restante é um instituto introduzido, de forma inovatória, em 2004, pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, e que confere aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo – o
fresh start
.
Nos termos do disposto no art.º 235.º do CIRE
[2]
:
«Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste nos termos das disposições do presente capítulo.»
“A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe encetar uma vida nova.”
[3]
É, antes de mais, uma medida de proteção do devedor, mas que joga com dois interesses conflituantes: a lógica de segunda oportunidade e a proteção imediata dos interesses dos credores atuais do insolvente.
O processo de insolvência
«…tem como finalidade a satisfação dos credores…»
como se prescreve logo no art.º 1º do CIRE. Este instituto posterga essa finalidade em nome não apenas do benefício direto (exoneração e segunda oportunidade) do devedor, mas de uma série de interesses de índole mais geral: a possibilidade de exoneração estimula a apresentação tempestiva dos devedores à insolvência, permite a tendencial uniformização entre os efeitos da insolvência para pessoas jurídicas e pessoas singulares e, em última análise, beneficia a economia em geral, provocando, a contração do crédito mas gerando maior responsabilidade e responsabilidade na concessão do mesmo.
[4]
Essa tensão entre dois interesses opostos reflete-se nas várias normas que regulam a exoneração, desde logo na opção do nosso legislador pelo regime do
earned start
, ou reabilitação (por contraposição ao
fresh start
puro), ou seja, fazendo o devedor passar por um período de prova e concedendo o benefício apenas se o devedor o merecer.
É também o modelo eleito a nível europeu, como resulta da Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019 (sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas)
[5]
, já transposta
[6]
, e que, em matéria de exoneração ou perdão, na linguagem da diretiva, prevê o acesso ao perdão total da dívida aos empresários, deixando aos Estados a opção de o aplicar aos consumidores (cfr. considerando 21), após um prazo não superior a três anos, possibilitando a reserva a devedores de boa-fé e à verificação do cumprimento de determinadas condições – cfr. arts. 20º a 24º da diretiva, em especial o artigo 22º.
A ponderação destes interesses contrapostos deve ser considerada como guião para a interpretação das normas dos arts. 235º e ss. do CIRE, como resulta, entre outros, do Ac. STJ de 02-02-2016, relatado por Fonseca Ramos (3562/14) e TRP de 15-09-2015, relatado por José Igreja Matos (24/14)
[7]
, entre as quais o art.º 238º.
Estabelece o preceito em causa, sob a epígrafe
Indeferimento liminar:
«1 - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.
2 - O despacho de indeferimento liminar é proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência nos termos previstos no n.º 4 do artigo 236.º, exceto se o pedido for apresentado fora do prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos referidos no número anterior.»
O art.º 238º do CIRE, como é unanimemente apontado pela doutrina, não prevê um “verdadeiro e próprio indeferimento liminar”, mas algo mais, porquanto os requisitos previstos obrigam à produção de prova e a um juízo de mérito do tribunal
[8]
.
E o juízo de mérito exigido no preceito não é relativo à concessão ou não concessão da exoneração do passivo restante, mas antes sobre a oportunidade de o devedor se submeter a um período probatório que, a final, pode resultar na oportunidade de ser liberado das dívidas. Este é o primeiro de dois momentos fundamentais no procedimento de exoneração, o despacho inicial, sendo o segundo o despacho de exoneração, propriamente dito.
De entre as causas de indeferimento liminar previstas, a alínea a) reveste natureza processual e as demais são requisitos de ordem substantiva que podem ser resumidos pela seguinte forma
[9]
:
Para que o juiz profira o despacho inicial o devedor deve ter tido um comportamento anterior ou atual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa-fé, no que respeita à sua situação e aos deveres associados ao processo de insolvência (als. b), d), f) e g) do nº1 do art.º 238º), não tenha um passado recente (10 anos) de insolvência e exoneração do passivo restante (al. c) do mesmo artigo) e não tenha tido culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência (al. e) do nº1 do art.º 238º).
Ainda em sede geral, é pacífica a consideração de que as causas de indeferimento liminar previstas no art.º 238º são causas impeditivas da submissão a período probatório. Desta natureza resultam duas consequências extremamente relevantes: a insuficiência de prova relativamente a qualquer delas nunca pode originar o indeferimento liminar do pedido de exoneração
[10]
e o ónus da prova relativamente a qualquer das circunstâncias impeditivas cabe aos credores e ao administrador da insolvência
[11]
.
O que não afasta que, resultando dos autos elementos suficientes para a verificação de qualquer das situações previstas, ou indagando o tribunal quanto ao respetivo preenchimento, deva ser liminarmente indeferido o pedido, uma vez que o juiz não está limitado, nem pela existência de um pedido de indeferimento nem pela arguição de factualidade subsumível ao disposto no art.º 238º
[12]
, dado que, sem qualquer dúvida, o art.º 11º do CIRE se aplica ao incidente de exoneração do passivo restante
[13]
, porque inserido no processo de insolvência em sentido estrito
[14]
.
Assim se decidiu no Ac. TRE de 11/06/2015 (Cristina Cerdeira – 45/14)
[15]
, cujo sumário se transcreve para melhor compreensão:
“I) - Os fundamentos previstos nas alíneas do n.º 1 do art.º 238º do CIRE consubstanciam factos impeditivos do direito à exoneração do passivo restante, donde a sua alegação e prova competirá aos credores ou ao administrador da insolvência (art.º 342º, n.º 2 do Código Civil), bastando ao devedor/requerente apenas alegar que preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas pela lei no âmbito do incidente.
II) – Não tendo os credores cumprido com esse ónus, mas constando dos autos todos os elementos que permitem obstar ao deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o Tribunal não poderá ignorar tais elementos e proferir uma decisão meramente formal, completamente afastada da realidade plasmada no processo, abstendo-se assim de exercer o seu dever.”
Vejamos, então, em concreto, os fundamentos do despacho recorrido e os argumentos trazidos a recurso.
A decisão recorrida considerou que os insolventes se abstiveram de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à situação de insolvência, dado que pende contra eles execução desde 2012, por crédito vencido de €51.473,34 e que a alienação do único património relevante que detinham, o imóvel doado à filha e levado a registo em 2022, os deixou em situação de insolvência, o que era do seu conhecimento.
Considerou que, com esta alienação, se prejudicaram os credores por ter sido alienado gratuitamente o único património suscetível de satisfazer os respetivos créditos.
E concluiu, finalmente, que os insolventes não poderiam ignorar, sem culpa grave, que não havia perspetiva de melhoria da sua situação económica.
A decisão recorrida considerou assim preenchidos os requisitos relativos ao pressuposto negativo previsto na alínea d) do nº1 do art.º 238º do CIRE.
Considerou também manifesto que a mesma conduta dos insolventes descrita integrava as circunstâncias previstas nas alíneas a) e d) do nº1 do art.º 186º do CIRE e, consequentemente, a previsão da al. e) do nº1 do art.º 238º do mesmo diploma.
O recurso interposto argumenta que não basta o decurso do tempo para o preenchimento da al. d) do nº1 do art.º 238º do CIRE, sendo necessário que se verifique o prejuízo dos credores, que não se reconduz ao simples vencimento de juros, antes sendo necessário que sejam praticados atos de dissipação ou oneração de património no período decorrido após a insolvência no qual não se apresentou à insolvência.
Considera não ser ato de dissipação a cessão de quotas sem qualquer expressão e alega que o devedor entregou à massa os prédios rústicos que possuía.
Mais se alega que nenhum dos credores aludiu ao prejuízo sofrido com o atraso na apresentação à insolvência e que dos autos não resultam elementos que permitam concluir pela ocorrência de prejuízos dos credores.
Não existe qualquer melhoria da situação económica e os insolventes sempre tiveram perspetiva de melhoria das suas condições económicas, negociando com os bancos.
Doaram os bens à filha porque eram bens de familiares que lhes haviam sido dados para dar aos netos, tendo cumprido o que lhes foi pedido.
Alegam, finalmente, que não pode ser recusada a exoneração por não terem sido entregues valores ou declarações anuais de rendimentos.
Iremos proceder à apreciação dos argumentos invocados a propósito de cada uma das alíneas do nº1 do art.º 238º do CIRE que o tribunal
a quo
considerou preenchidas.
*
4.1. Verificação dos pressupostos enunciados na alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE
Como referido na decisão recorrida e no recurso em apreciação, a circunstância impeditiva prevista na alínea d) do nº1 do art.º 238º exige a ocorrência de três requisitos
[16]
:
- sendo o devedor titular de uma empresa, a violação do dever de apresentação à insolvência previsto no art.º 18º do CIRE; não o sendo, o decurso do prazo de seis meses sobre a situação de insolvência sem que o devedor se apresente;
- a omissão de apresentação terá de redundar em prejuízo para os credores;
- o conhecimento, ou não ignorância, sem culpa grave, da existência de qualquer perspetiva séria de melhoria da situação económica do devedor.
[17]
O recurso interposto não coloca em causa, nem o decurso do prazo de seis meses, nem a prévia situação de insolvência, que a decisão recorrida situa em 2022 – no momento da alienação gratuita do imóvel por doação.
Está em discussão o requisito do prejuízo dos credores, um conceito indeterminado cujo preenchimento foi sendo diversamente valorado.
A um entendimento jurisprudencial mais generalizado de que a omissão de apresentação à insolvência gera prejuízo pelo avolumar dos créditos devido ao vencimento de juros, aumento do passivo global e consequente aumento da dificuldade de pagamento, sucedeu o entendimento de que o prejuízo dos credores tem que constituir mais do que o prejuízo decorrente do vencimento dos juros, porque estes são uma consequência normal do incumprimento que, por regra, gera a situação de insolvência
[18]
.
E percorrendo a jurisprudência subsequente a esta evolução, recolhem-se as noções de que, para que se considere preenchido o requisito prejuízo dos credores causado pela tardia apresentação à insolvência, deverá ter ocorrido um agravar da situação patrimonial por factos ou omissões ocorridos no período no qual o devedor se deveria ter apresentado à insolvência, não o tendo feito, como, por exemplo, a contração de novos e significativos créditos
[19]
, o extravio ou dissipação de património reduzindo a garantia patrimonial dos credores
[20]
[21]
.
Nas palavras de Letícia Marques Costa
[22]
“A lei visa, portanto, castigar comportamentos que façam diminuir o acervo patrimonial do devedor, que onerem o seu património ou que gerem novos débitos, ou seja, comportamentos desconformes à boa-fé, à transparência e à honestidade.”
Precisamente, no caso concreto, a decisão recorrida apontou a doação do imóvel como sendo um ato que, diminuindo a garantia patrimonial dos credores, já então existentes, como consubstanciando o prejuízo dos credores, não tendo sequer mencionado ou valorado o mero avolumar de juros.
Mas existe nesta parte da decisão uma incongruência patente: o despacho recorrido considerou que a doação causou a situação de insolvência, exaurindo o património dos devedores por forma a que “Tal alienação deixou o património dos insolventes em clara insuficiência para a satisfação dos já mencionados créditos dos Insolventes, já que também deflui dos autos que estes não possuem outros bens (sem olvidar a existência de dois veículos automóveis em estado degrado que não possuem valor comercial).”
Ou seja, o tribunal valorou como prejuízo a exata conduta que considerou marcar a situação de insolvência dos requerentes.
Não podemos deixar de concordar, dados os elementos dos autos, com o diagnóstico da situação de insolvência atual criada com a alienação sem contrapartida, do único bem de valor que integrava o património dos devedores.
O que significa que o período de seis meses previsto na al. d) do nº1 do art.º 238º do CIRE se conta a partir dessa data, não a incluindo. É a partir do momento em que ficam sem património e com as mesmas dívidas que os devedores se deveriam ter apresentado à insolvência, não o tendo feito senão passados dois anos e alguns dias.
Não temos apurada qualquer outra conduta, durante esse período, que enquadre nos atos e omissões acima descritos como integrando esta causa de indeferimento liminar.
O que significa que não temos, após a situação de insolvência, qualquer conduta que causasse prejuízo aos credores.
O que nos dispensa de indagação quanto ao terceiro requisito – delimitado pelo tribunal recorrido, ao contrário do que vem alegado em recurso.
Assim, embora por motivos substancialmente diversos dos alegados em sede de apelação, não temos verificados factos que nos permitam considerar preenchida a circunstância impeditiva de deferimento liminar da exoneração do passivo restante prevista na alínea d) do nº1 do art.º 238º do CIRE.
*
4.2. Verificação dos pressupostos enunciados na alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE
A decisão recorrida, com base nos factos já enunciados – a alienação do único património de valor, por meio de doação à filha, quando os devedores já tinham contraído vários créditos, nomeadamente, e desde 2012, um crédito superior a 50.000,00 € - considerou estarem preenchidas as alíneas a) e d) do nº2 do art.º 186º do CIRE e, consequentemente, a causa de indeferimento liminar prevista na alínea e) do nº1 do art.º 238º do mesmo diploma.
Os recorrentes, quanto a este ponto apenas afirmaram não se ter tratado de dissipação, dado que teriam cedido quotas sem qualquer expressão e terem entregue à massa prédios rústicos, o que não temos, de todo, apurado tenha sucedido nos autos
[23]
.
Alegaram ainda que a doação se deveu ao facto de se tratarem de bens de familiares que lhes haviam sido dados para dar aos netos, tendo cumprido o que lhes foi pedido, matéria irrelevante até porque o bem doado foi adquirido pelos recorrentes com recurso a crédito à habitação, como resulta do ponto 4 da matéria de facto assente.
Ou seja, o recurso interposto não dirigiu a este passo da fundamentação do julgado qualquer argumento de facto válido, pelo que apenas teremos que apreciar, de direito, se os factos apurados permitem concluir pelo preenchimento da al. e) do nº1 do art.º 238º do CIRE.
A alínea e) do nº 1 do art.º 238º prescreve como impeditivo do deferimento do período probatório que dá acesso, decorrido e cumpridos todos os deveres impostos, à exoneração do passivo restante quando constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º do CIRE, ou seja, elementos que indiciem a qualificação da insolvência como culposa e a afetação do devedor.
Como refere Alexandre Soveral Martins
[24]
, respeitados todos os prazos, o juiz irá decidir o pedido de exoneração do passivo restante sem ter ainda decidido o incidente de qualificação da insolvência, como, de resto, sucede no caso dos autos.
O que não implica qualquer impossibilidade de apreciação, tenha o incidente sido aberto ainda sem decisão ou não tenha o incidente sido aberto – mas não tendo sido proferida decisão de qualificação da insolvência como fortuita – seja porque ainda não foi apreciado o pedido formulado nesse sentido, seja porque não foi pedida a abertura do incidente
[25]
.
Tal circunstancialismo implica uma análise rigorosa, objetiva e subjetiva, dos factos apurados à luz do art.º 186º do CIRE.
O nº 1 do art.º 186º é o preceito base, no qual se prevê a exigência, para que a insolvência possa ser considerada culposa, de uma conduta do devedor (ou de um administrador, de direito e/ou de facto), dolosa ou com culpa grave que apresente um nexo de causalidade com a situação de insolvência ou com o seu agravamento, cometida dentro de um limite temporal.
Em primeira nota, diremos que, para os efeitos desta alínea, apenas podem ser considerados os factos abrangidos pelo prazo de três anos previsto no nº1 do art.º 186º
[26]
, o que sucede no caso dos autos. O início do processo dá-se em 26/02/2024
[27]
, pelo que o registo da alienação dos imóveis, que se deu em 02/02/2022 (ponto 5 da matéria de facto provada), se deu no período de 3 anos prévio à abertura do processo
[28]
.
O nº 1 do art.º 186º é o preceito base, no qual se prevê a exigência, para que a insolvência possa ser considerada culposa, de uma conduta de um administrador, de direito e/ou de facto, dolosa ou com culpa grave que apresente um nexo de causalidade com a situação de insolvência ou com o seu agravamento, cometida dentro de um limite temporal.
O nº 2 do art.º 186º elenca, de forma taxativa, nas suas alíneas a) a i) situações fácticas que levam
sempre
à caracterização da insolvência como culposa, presunções
iure et de iure
, inilidíveis, quer de culpa grave, quer de existência do nexo de causalidade entre a conduta tipificada e a criação ou agravamento da situação de insolvência
[29]
.
O nº 3 do preceito, por sua vez elenca condutas cuja verificação faz presumir a existência de culpa grave, para os efeitos do nº1 do art.º 186º, presunção esta ilidível
[30]
, sendo que, para que se possa qualificar a insolvência como culposa é necessário que se verifiquem os demais elementos do nº1 do preceito, nomeadamente, que a conduta criou ou agravou a situação de insolvência
[31]
[32]
.
Quer o nº 2, quer o nº 3 referem aplicar-se aos administradores, de direito e de facto e à insolvência do devedor que não seja pessoa singular, mas logo o nº4 do referido art.º 186º manda aplicar os nºs 2 e 3 à atuação de pessoa singular insolvente (e seus administradores, se for o caso) com as necessárias adaptações e onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
Transpondo, tal implica que, quanto ao devedor pessoa singular que pretenda beneficiar de exoneração do passivo restante, não poderão estar demonstrados nos autos factos que comprovem que, nos 3 anos anteriores ao início do processo, causou ou agravou a sua situação de insolvência.
Caso se apurem condutas subsumíveis ao disposto no nº 2 do art.º 186º, presumem-se a culpa e o nexo de causalidade com a criação ou agravamento da situação de insolvência
[33]
, sendo que, caso se apurem condutas subsumíveis ao nº 3, apenas se presume a culpa, cabendo, de novo aos credores ou Administrador da Insolvência, a prova do nexo de causalidade. Qualquer outra conduta, subsumível apenas ao nº1 do art.º 186º
[34]
, exige a demonstração, a cargo dos credores ou Administrador da Insolvência, quer da culpa, quer do nexo de causalidade.
Em esquema diremos que, para os efeitos da aferição da causa de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante prevista na alínea e) do nº 1 do art.º 238º do CIRE:
- o ónus da prova de factos que, objetivamente sejam suscetíveis de indiciar culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência pertence aos credores e ao Administrador da Insolvência;
- demonstrados tais factos, se foram subsumíveis ao disposto no nº 1 do art.º 186º, é também aos credores e devedores que pertence o ónus de provar que tais factos causaram a insolvência ou a agravaram e que o devedor agiu com culpa;
- se a factualidade for subsumível aos disposto no nº2 do art.º 186º do CIRE, a culpa e o nexo de causalidade presumem-se de forma inilidível;
- se as circunstâncias objetivas apuradas forem subsumíveis aos disposto no nº 3 do art.º 186º, o que, sendo o devedor uma pessoa singular, será de escassa ocorrência, os credores e o Administrador da Insolvência devem demonstrar o nexo de causalidade de tais circunstâncias com a situação de insolvência ou seu agravamento e, se o fizerem, ao devedor caberá demonstrar que agiu sem culpa.
Passando ao caso concreto, temos, claramente demonstrados factos que situam a causalidade da situação de insolvência dos devedores nos três anos anteriores ao início do processo – ou seja, impossibilidade de cumprimento das suas obrigações vencidas, nos termos do nº1 do art.º 3º do CIRE.
Os devedores estando já a ser executados por responsabilidades de mais de € 50.000,00 relativas a um crédito vencido desde 2012, alienaram o único bem suscetível de servir de garantia aos credores, sem qualquer contrapartida, por meio de doação, à sua filha menor, reservando para si o usufruto.
Ou seja, causaram a sua situação de insolvência, colocando-se, mediante um ato voluntário de disposição, em situação de incapacidade de cumprimento das suas obrigações vencidas.
A doutrina e a jurisprudência apontam como causas frequentes, em especial de agravamento da situação de insolvência várias situações típicas, entre as quais a doação de património.
Trata-se, exatamente, do caso dos autos, que é subsumível ao disposto na al. d) do nº 2 do art.º 186º do CIRE, tendo os devedores disposto dos seus bens em proveito de terceiro, a sua filha.
No mesmo sentido veja-se o Ac. TRL de 11/07/24 (Amélia Sofia Rebelo – 3643/22), no qual se decidiu pelo indeferimento liminar do benefício de exoneração do passivo restante nos termos da al. e) do nº1 do art.º 238º do CIRE, mediante o preenchimento da al. d) do nº2 do art.º 186º do mesmo diploma, quando o devedor efetuou a doação de imóvel aos seus filhos reservando para si o respetivo usufruto, considerando: “III - Tratando-se a doação de um ato jurídico tipicamente translativo do direito de propriedade e, assim, de disposição gratuita desse direito em benefício de terceiro, enquadra sem dificuldade interpretativa na al. d) do art.º 186º, nos termos do qual Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor, que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.
IV - A prática desse facto numa situação de insolvência atual ou iminente configura atuação dolosa ou pelo menos com culpa grave do devedor no agravamento dessa situação por importar óbvia diminuição da garantia patrimonial dos seus credores, que o torna desmerecedor do benefício da exoneração do passivo restante e injustificado o sacrifício que àqueles impõe.”
Tal como decidido também no Ac. TRP de 26/09/2023 (Fernando Vilares Ferreira – 1078/22): “A doação feita pelos insolventes a um seu filho, nos três anos anteriores à instauração do processo de insolvência, de todo o seu património imobiliário, constitui fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, nos termos das normas conjugadas dos artigos 238.º, n.º 1, al. e) e 186.º, n.º 2, al. d), do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas.”
[35]
Não podemos, porém, acompanhar a conclusão de que se encontra igualmente preenchida a al. a) do nº2 do art.º 186º do CIRE, dado que quando nada é destruído, subtraído, escondido ou dificultada a averiguação do respetivo paradeiro ou destino e quando os bens e direitos são alienados, por forma a que o Administrador da Insolvência, desde logo se inteira das mesmas mediante as pesquisas habituais, não estamos ante condutas previstas na al. a) do nº2 do art.º 186º mas sim na al. d) do mesmo preceito, desde que apurados factos que permitam concluir pelo proveito pessoal ou de terceiros.
Aqui chegados, concluímos pela correção da sentença recorrida apenas no tocante à causa de indeferimento liminar prevista na al. e) do nº1 do art.º 238º do CIRE, o que determina a improcedência da apelação e a confirmação da decisão de indeferimento liminar do pedido formulado de exoneração do passivo restante formulado pelos devedores.
*
Os recorrentes, porque vencidos, suportarão as custas devidas a juízo, dado que com a presente decisão deixam de estar abrangidos pelo disposto no art.º 248º do CIRE – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil
[36]
.
*
5. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar integralmente improcedente a apelação, decidindo-se manter a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Notifique.
*
Lisboa, 29 de abril de 2025
Fátima Reis Silva
Renata Linhares de Castro
Nuno Teixeira
_______________________________________________________
[1]
Numeração introduzida na presente sede para facilidade de compreensão e referência.
[2]
Diploma ao qual pertencem todos os artigos citados sem indicação de proveniência.
[3]
Catarina Serra em Lições de Direito da Insolvência, 3ª edição, Almedina, 2025, pg. 773.
[4]
Neste sentido Catarina Serra, local citado, pgs. 775 e 776.
[5]
Texto disponível
in
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019L1023&from=PT
[6]
Pela Lei nº 9/2022 de 11 de janeiro, que entrou em vigor no dia 11 de abril de 2022.
[7]
Todos disponíveis em
www.dgsi.pt
, como todos os demais citados sem referência.
[8]
Cfr. Menezes Leitão, em Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, 10ª edição, Almedina, 2018, pg. 288, Assunção Cristas em Exoneração do devedor pelo Passivo Restante, em Themis, Edição Especial – Novo Direito da Insolvência, 2005, pg. 169 e Catarina Serra, em Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pg. 564.
[9]
Seguimos de perto Assunção Cristas, local citado na nota anterior.
[10]
Ver Luís M. Martins em Recuperação de Pessoas Singulares, vol. I, Almedina, 2011, pg. 46, e Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 2013, pg. 661.
[11]
Ver, entre muitos outros, os Acs. STJ de 17/06/2014 (Fernandes do Vale – 985/12), de 27/03/2014 (Orlando Afonso – 331/13) e de 21/03/2013 (Martins de Sousa – 1728/11), TRL de 26/10/2021 (Paula Cardoso – 2213/20), e de 25/11/2011(Tomé Ramião – 1512/10), TRP de 19/12/2012 (Maria João Areias – 3087/11) e TRE de 24/04/2014 (Acácio Neves – 2388/13).
[12]
Ver Ac. TRL de 06/11/2012 (Orlando Nascimento – 1983/12).
[13]
Neste exato sentido o Ac. TRC de 20/06/2012 (Carlos Gil – 1933/11).
[14]
No mesmo sentido Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, em Código …, pg. 661, citando Adelaide Menezes Leitão (Pré-considerações para exoneração do passivo restante em Cadernos de Direito Privado, 35, pg. 68).
[15]
Igualmente disponível em www.dgsi.pt.
[16]
Assim, Ac. TRP de 21/05/2024 (Rodrigues Pires – 3185/22).
[17]
Ver por todos Letícia Marques Costa em A insolvência de pessoas singulares, Almedina, 2021, pgs. 124 a 128.
[18]
Neste sentido, entre muitos outros, vejam-se os Acórdãos STJ de 03/11/2011 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza – 85/10), de 27/10/2014 (Orlando Afonso – 331/13), de 21/10/2014 (Paulo Sá- 497/13) e de 21/03/2013 (Martins de Sousa – 1728/11).
[19]
Cfr. Ac. TRL de 14/02/21 (Manuel Ribeiro Marques – 338/11).
[20]
Cfr. Ac. TRP de 05/11/2024 (Maria da Luz Seabra – 8024/23).
[21]
Como referido, entre outros, no Ac. TRG de 02/03/23 (Maria João Matos – 622/22).
[22]
Local citado, pg. 126.
[23]
Não tendo os recorrentes impugnado a matéria de facto considerada assente.
[24]
Em Um Curso de Direito da Insolvência, vol. I, 4ª edição, Almedina, 2022, pg. 618.
[25]
Assim, o Ac. TRP de 06/09/2021 (Joaquim Moura - 2184/20).
[26]
Neste exato sentido Ac. STJ de 18/01/2018 (Ana Paula Boularot – 955/13).
[27]
Facto nº8.
[28]
Tal como a própria doação, ocorrida em 15/12/2021, conforme documento junto aos autos principais em 05/06/2024 (refª 39568402).
[29]
Neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda,
in
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2º Vol., pg. 14, Manuel Carneiro da Frada
in
A responsabilidade dos administradores na insolvência, ROA, Ano 66, Set. 2006, pg. 692 e, entre outros, os Acs. STJ de 29/06/10 (Rosa Tching – 1965/07), STJ de 15/02/23 (Ana Resende – 822/15), TRE de 02/05/19 (Tomé de Carvalho – 1083/10), TRP de 06/09/21 (Eugénia Cunha – 908/12), TRL de 28/02/23 (Fátima Reis Silva – 5920/21), TRC de 14/06/22 (Paulo Correia – 4114/19), TRG de 01/06/17 (Pedro Damião e Cunha – 1046/16), TRE de 24/03/22 (Emília Ramos Costa – 2528/16), todos disponíveis in www.dgsi.pt, como os demais citados sem referência.
[30]
Cfr. nota anterior e ainda Luís Menezes Leitão
in
CIRE, pg. 175 e Carvalho Fernandes e João Labareda, loc. cit., 2º vol., pg. 15
[31]
Cfr. entre muitos outros, Acs. TRP de 19/11/2020 (Freitas Vieira – 65/12), TRL de 11/07/2024 (Manuel Ribeiro Marques – 11118/20), TRP de 20/02/24 (Rui Moreira – 293/23), TRC de 26/10/21 (Emídio Francisco Santos – 4422/17), TRC de 07/09/20 (Arlindo Oliveira – 4366/11), TRG de 26/10/23 (Rosália Cunha – 1892/22) e TRE de 12/05/22 (Isabel de Matos Peixoto Imaginário – 198/14).
[32]
Entendimento que a redação dada pelo Lei nº 9/2022 veio confirmar com a introdução do advérbio “unicamente”.
[33]
Ver, neste exato sentido Ac. TRC de 19/10/2020 (Maria Catarina Gonçalves - 6505/19), em cujo sumário se escreveu:
“I – Uma doação efectuada pelo devedor aos filhos, durante os três anos anteriores ao início do processo de insolvência, corresponde a um acto de disposição de um bem do devedor em proveito de terceiros que se insere no âmbito de previsão da alínea d) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE e que, como tal, determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa grave do devedor e de que existiu um nexo causal entre a sua actuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Nessas circunstâncias, a referida doação implicará também o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante em conformidade com o disposto na alínea e) do n.º 1 do art.º 238.º do citado diploma.”
[34]
Ver, para um caso considerado à luz do nº1 do art.º 186º do CIRE, o Ac. TRC de 13/07/2020 (Maria Catarina Gonçalves - 5306/18), no qual se qualificou dessa forma a conduta do devedor pessoa singular que, de forma deliberada e voluntária e sem motivo, pediu uma licença sem vencimento, passando a desempenhar outra atividade e a receber um rendimento substancialmente inferior àquele que auferia, agravando, com culpa grave (ou até dolo) a sua situação de insolvência.
[35]
E ainda, por exemplo, no Ac. TRL de 14/04/2015 (Conceição Saavedra - 1173/13). No sentido de que os atos de disposição configuram a causa de indeferimento liminar prevista na al. e) do nº2 do art.º 238º, e não a prevista na al. d) do mesmo artigo ver também os Acs. TRP de 11/02725 (Rui Moreira – 380/24), TRP de 28/01/25 (Pinto dos Santos – 130/24), TRP de 21/05/24 (João Proença – 990/23) e TRP de 13/07/22 (Rui Moreira – 1796/21).
[36]
Vide neste sentido Salvador da Costa in Responsabilidade das partes pelo pagamento das custas nas ações e nos recursos, disponível em
https://blogippc.blogspot.com/
.
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/5e0ceb642623b59780258c89003b34dd?OpenDocument
|
1,748,908,800,000
|
PROCEDENTE
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1517/23.4T8VCT.G1
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1517/23.4T8VCT.G1
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GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
|
(i) O requerimento apresentado pelo requerido num procedimento cautelar a dar conta de um facto superveniente que importa a perda do interesse processual do requerente, com a consequente extinção da instância, não pode ser decidido pelo juiz sem que o segundo tenha possibilidade de se pronunciar.
(ii) A prolação de decisão quando ainda está em curso o prazo para que a parte se pronuncie sobre o requerimento da parte contrária naquela apreciado e decidido constitui a prática de um ato não permitido pela lei adjetiva que, enquanto trâmite processual, pode ser anulado por via incidental, através de reclamação dirigida ao juiz.
(iii) Sem prejuízo, porque em tais situações existe também uma decisão pressuponente do juiz de decidir naquele momento processual, baseada numa errada avaliação da realidade processual ou numa errada subsunção dessa realidade à lei adjetiva, é admissível a impugnação do conteúdo do ato por via de recurso.
(iv) Porque assentes em pressupostos não conciliáveis, essas duas vias (reclamação e recurso) excluem-se reciprocamente, não podendo ser cumuladas.
(v) Concluindo que a parte errou no meio processual utilizado, o juiz deve providenciar pela sua sanação, com base na regra de que, seguida via processual errada, o tribunal procede oficiosamente à convolação para a via adequada, posto que seja possível a utilização do requerimento apresentado.
|
[
"NULIDADE DAS DELIBERAÇÕES SOCIAIS",
"DELIBERAÇÃO RENOVADORA",
"INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE",
"CONTRADITÓRIO",
"NULIDADE PROCESSUAL"
] |
I.
1).1.
AA
e
BB
intentaram o presente procedimento cautelar especificado de suspensão de deliberações sociais, contra
EMP01..., Lda.
, pedindo que, com dispensa da audição prévia da requerida:
Seja decretada a “nulidade e/ou anulação e consequente suspensão da deliberação de destituição e nomeação de gerentes qualificada e requalificada nos termos da certidão permanente da requerida (…), cujo cancelamento deverá ser cancelado e executado”; (
sic
)
Subsidiariamente,
Seja declarada “a nulidade de todos os atos que abusivamente tenham sido, entretanto, praticados pela putativa e falsa gerência”; (sic) e
Seja declarado “que a sócia CC por si ou por terceiro por si mandatado ou por representante se abstenha de praticar atos de registo até que seja concluída a partilha das ações da requerida, por forma a obviar ao constante e sucessivo recurso ao tribunal, o que tudo causa prejuízo à requerida.” (sic)
Alegaram, em síntese, que: cada uma delas é titular de uma quota no capital social da requerida; são também as únicas herdeiras de DD e, juntamente com CC, as herdeiras de EE; os falecidos, casados entre si, eram, na data dos respetivos óbitos, titulares de quotas no capital social da requerida, as quais integram, portanto, as respetivas heranças; a referida CC exerce as funções de cabeça-de-casal, por nomeação no processo de inventário pendente para partilha de tais heranças; é também titular, ela própria, de uma quota no capital social da requerida; em 31 de março de 2023, as requerentes exerciam, conjuntamente, a gerência da requerida; para essa data, foi convocada uma assembleia geral, cuja ordem de trabalhos foi regularmente comunicada aos sócios através de convocatória enviada pela requerida e subscrita pelas requerentes; a sócia CC solicitou o aditamento de dois pontos à ordem de trabalhos, proposta que foi aceite; a sócia CC compareceu no local onde se deveria realizar a assembleia, acompanhada por outras pessoas; boicotou a realização da assembleia naquele local; a assembleia acabou, assim, por ser realizada numa outra sala, apenas com a presença das requerentes e da notária que foi encarregada de redigir a respetiva ata; em resultado do que foi deliberado, as requerentes mantiveram a qualidade de gerentes da requerente; não obstante, a sócia CC elaborou uma ata da assembleia, na qual fez constar a aprovação da deliberação de destituição das Requerentes e, bem assim, a aprovação da deliberação da sua designação e do seu marido, FF, para esse cargo; na sequência, requereu o averbamento dessas deliberações à matrícula da requerida, o que veio a conseguir; “a convocatória que teve por base a assembleia que deliberou a demissão dos gerentes (ora requerentes) e nomeação de novos gerentes – a CC e o seu marido FF – (…) não foi enviada pela sociedade nem recebida pelas sócias gerentes AA e BB” (
sic
); as deliberações tomadas em tal assembleia não convocada são, portanto, nulas e de nenhum efeito, nos termos do disposto no art. 56/1, a), do CSC; “a atuação da sócia CC e do seu marido, na elaboração da ata, na deliberação e aprovação da mesma, consubstanciada na destituição da gerência e nomeação de gerência (autonomeação), revela um excesso manifesto, abrindo margem à situação de clamorosa injustiça e contra a qual só poderá fazer-se disparar a eficácia reparadora do abuso do direito” (
sic
); a providência requerida é adequada a “proteger o
periculum in mora
” (
sic
); o prejuízo que advém do seu decretamento não excede os danos que se pretendem evitar, “tanto mais que as requerentes têm vindo a gerir a requerida há vários anos não lhe tendo causado qualquer prejuízo.”
***
1).2. Depois de indeferido o requerimento de dispensa do contraditório prévio, a Requerida foi citada e, na sequência, representada por CC e FF, na invocada qualidade de gerentes, constituiu mandatário e apresentou oposição na qual disse, também em síntese, que: a assembleia geral de 31 de março de 2023 foi regularmente convocada pelas Requerentes, então suas gerentes; as mesmas aceitaram a proposta feita pela sócia CC de inclusão, na convocatória, de dois pontos da ordem de trabalhos, um relacionado com a destituição das gerentes e outro com a nomeação de novos gerentes; a Requerente BB esteve presente nessa assembleia e a Requerente AA fez-se nela representar; depois de iniciada a assembleia, a Requerente BB e o representante da Requerente AA ausentaram-se, juntamente com a notária, por não concordarem com a designação da sócia CC para presidir à assembleia; a assembleia continuou e nela foram aprovadas as deliberações impugnadas, com o voto da sócia CC, nessa qualidade e na de cabeça-de-casal das heranças abertas por óbito de EE e de DD, representando assim 94,375% do capital social da Requerida; as Requerentes, devendo considerar-se regularmente convocadas para a assembleia, dispunham do prazo de dez dias para pedir a suspensão das deliberações; não o tendo feito, caducou o respetivo direito, nos termos previsto no art. 380/1 do CPC.
***
1).3. Na sequência de despacho a determinar o contraditório quanto à invocada caducidade, as Requerentes disseram que as deliberações impugnadas apenas chegaram ao seu conhecimento no dia 5 de maio de 2023, através de uma comunicação que lhes foi dirigida pela sócia CC.
***
1).4. No dia 10 de novembro de 2023, a Requerida apresentou requerimento, notificado ao mandatário das Requerentes por via eletrónica, através do sistema informático de suporte à atividade dos Tribunais, conforme registo, com a mesma data, constante do respetivo formulário, no qual, depois de ter dado conhecimento da aprovação, em assembleia geral realizada no dia 25 de outubro de 2023, de cuja ata juntou cópia, de uma deliberação renovadora das deliberações da assembleia do dia 31 de março de 2023, discutidas no presente procedimento, escreveu:
“(…) considerando que também o Tribunal entende que a adoção de uma deliberação renovadora, na pendência duma instância processual cujo objeto consista na apreciação da validade da deliberação original, produz efeitos processuais sobre a instância pendente – conforme veio decidir no processo que corre termos sob o número 487/22.0T8VCT -, considera a Requerida que, certamente perante a mesma situação controvertida, decidirá de igual forma. Ou seja, decidirá pela imediata extinção da instância, sem contraditório das Requerentes.
Em face do exposto e dos documentos juntos, deverá o Tribunal pôr fim aos presentes autos por inutilidade superveniente da lide, em cumprimento do princípio da economia processual em vigor no ordenamento jurídico, uma vez que nada mais há a anular e/ou convalidar, sendo certo que, ainda que houvesse, por força da renovação havida, sempre seria noutros autos e não nestes.”
***
1).5. Com a data de 15 de novembro de 2023, foi proferido o seguinte despacho:
“Nos presentes autos visa-se, no essencial, apreciar a validade e existência das deliberações sociais tomadas na assembleia-geral da Ré realizada em 31.03.2023.
Sucede, pois, que em 25.10.2023 foi realizada uma assembleia-geral da Ré em que foi deliberado renovar as referidas deliberações sociais que se encontram a ser alvo de apreciação nos presentes autos.
Quid iuris
, designadamente quanto às consequências da deliberação renovatória no processo em que é peticionada a (suspensão por) nulidade ou anulabilidade das deliberações renovadas?
No decurso da presente ação de anulação de deliberações sociais, as deliberações cuja nulidade ou anulabilidade se pedia (e sem que as mesmas tivessem sido declaradas nulas ou anuláveis) foram renovadas.
É discutível qual o caminho a seguir nestes casos.
Seguindo os Acs. RP de 02.03.2003 [processo n.º 64.07.6TYVNG.P1] e de 25.05.2009 [processo n.º 413/08.0TYVNG.P1], ambos disponíveis em www.dgsi.pt, em ambos se citando o aresto do STJ datado de 31.10.2006, afigura-se-nos que “
se no decurso de uma ação de anulação de deliberações sociais a sociedade Ré vier dar conhecimento de que as deliberações julgadas nulas foram renovadas, deve a ação ser julgada improcedente (ainda que com custas pela Ré)
”, pois que como aí se refere, citando Pinto Furtado [in Deliberações Sociais, pág. 636 e 637] “
(…) em caso de renovação, estamos em presença de uma nova e distinta deliberação, que substitui a primeira e assim inutiliza o pedido e a causa de pedir duma ação que tinha sido dirigida exclusivamente contra a deliberação primitiva. A oposição que pretenda agora mover-se contra a deliberação renovadora envolve um novo e distinto pedido, voltado unicamente para esta e fundado, evidentemente, numa específica e diferente causa de pedir
”.
Os sócios de uma determinada sociedade ao refazerem a deliberação anterior através da renovação (deliberação renovatória) absorvem o conteúdo da primeira na nova deliberação que passa a ocupar o lugar da primeira.
A propósito, recorde-se que a renovação se distingue de figuras próximas como a substituição, a revogação e a confirmação: ao contrário do que pode acontecer com a substituição, a deliberação renovatória deve respeitar o essencial do conteúdo da deliberação renovada; quanto à revogação, a aproximação que dela é feita relativamente à renovação resulta do facto de esta envolver necessariamente a sua revogação quando essa deliberação, por não ser nula, for apta à produção dos efeitos jurídicos por ela visados; e, distinguindo renovação e confirmação, poderá dizer-se que, ao passo que, na renovação, uma deliberação se conclui
ex novo
, como se não tivesse existido negócio anterior, na confirmação, a deliberação inválida anterior é convalidada por força de um ato complementar e integrativo, cuja função é a de operar o convalescimento daquela outra, a qual fica a valer como se tivesse sido celebrada sem defeito.
Tudo isto significa que, havendo renovação, os efeitos jurídicos passam a imputar-se unicamente à deliberação renovatória.
Deste modo, entende-se que, face à renovação das deliberações cuja (suspensão por) nulidade ou anulabilidade se pedia, cumpre julgar aquela improcedente e absolver a Ré
EMP01..., Ld.ª
do/s pedido/s formulado/s nos presentes autos pelas Autoras
AA e BB
.
Custas pela Ré, atendendo a que a absolvição do pedido resulta da renovação das deliberações pela mesma promovidas.”
***
1).6. O despacho que antecede foi notificado aos mandatários constituídos pelas partes através de termo eletrónico registado na aplicação informática de apoio à atividade dos Tribunais, no dia 15 de novembro de 2023.
***
1).7. No dia 24 de novembro de 2023, as Requerentes apresentaram requerimento a arguir a “nulidade daquela decisão” dizendo que a mesma “viola o disposto no n.° 3 do art. 3.° e 424.º ambos do Cód. de Proc. Civil, integrando a violação do princípio do contraditório, o que, salvo melhor opinião, consubstancia a prática de uma nulidade processual, que influiu no exame ou decisão da causa
.
”
Concluíram pedindo a declaração de “nulidade da douta decisão proferida por constituir uma decisão-surpresa e, nessa medida, violar o princípio do contraditório” e a sua notificação “para se pronunciarem sobre os requerimentos e documentos apresentados em obediência ao princípio do direito ao exercício do contraditório.”
***
1).8. A Requerida pronunciou-se no sentido do indeferimento do requerido.
***
1).9. Com data de 13 de dezembro de 2023, foi proferido o seguinte despacho, notificado aos mandatários constituídos pelas partes através de termo eletrónico registado na aplicação informática de apoio à atividade dos Tribunais na mesma data (
transcrição
):
“Arguição de nulidade de 24.11.2023 [...04] e resposta de 07.12.2023 [...91]:
Proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa [art.º 613.º do CPC]. E, transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos art.ºs 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos art.ºs 696.º a 702.º, todos do CPC [art.º 619.º do CPC].
Entretanto, sendo certo que, depois de proferida a decisão se permite ao julgador “
retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença
” [art.º 613.º, n.º 2 do CPC], tais incidentes, suscitados após a prolação da decisão – momento em que fica esgotado o poder jurisdicional do julgador – não se destinam, como nos recursos, a uma reapreciação ou a um reexame do decidido, situações que têm ínsito o desacordo sobre o mérito do julgado [
error in judicando
]; trata-se, antes, de corrigir erros ou lapsos que afetam a decisão mas não põem em causa a sua substância [
error in judicio
].
Vejamos.
In casu
, as Requerentes peticionam a nulidade da decisão proferida nos autos, fundamentando tal pedido no facto de, segundo entenderem, a mesma constituir uma decisão-surpresa e, nessa medida, violar o princípio do contraditório, em desrespeito pelo estatuído no art.º 3.º, n.º 3 do CPC, incorrendo numa nulidade processual, nos termos do art.º 195.º, n.º 1 do mesmo diploma. Porém, a arguição de nulidade de decisão final, por violação do princípio do contraditório, apenas pode ser efetuada em sede de recurso (sendo este admissível) e não em incidente próprio, perante o tribunal que proferiu aquela decisão, nos termos do art.º 615.º, n.ºs 1, al. d) in fine e 4 do CPC; ou seja, tal nulidade só poderá ser arguida perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.
Sucede, pois, que a decisão em crise nestes proferida admite recurso ordinário, pelo que seria no âmbito daquele que tal nulidade poderia e deveria ser arguida.
Pelo exposto, vai indeferida a respetiva pretensão.”
***
2). Inconformadas as requerentes interpuseram o presente recurso, por requerimento apresentado no dia 30 de dezembro de 2023, composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (
transcrição
):
“1. O presente recurso tem por objeto o Despacho de 13.12.2023 no qual o Tribunal ad quo indeferiu a pretensão das aqui Apelantes no que concerne à ‘’arguição de nulidade de decisão final, por violação do princípio do contraditório.”
2. Fundamentando que aquela ‘’apenas pode ser efetuada em sede de recurso (sendo este admissível) e não em incidente próprio, perante o tribunal que proferiu aquela decisão, nos termos do art.º 615.º, n.ºs 1, al. d) in fine e 4 do CPC; ou seja, tal nulidade só poderá ser arguida perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades. Sucede, pois, que a decisão em crise nestes proferida admite recurso ordinário, pelo que seria no âmbito daquele que tal nulidade poderia e deveria ser arguida”.
3. Sendo esta a decisão com a qual as Apelantes não se conformam e, em virtude disso, dela recorrem.
4. Isto porque, o Despacho de 13.12.2023 encontra-se ferido de nulidade por violação é iminente e de foro bem mais gravoso que o conhecimento de questões que não pudesse tomar conhecimento por qualquer razão.
5. In casu, encontramo-nos perante a junção de documentos sobre os quais não foi dada a possibilidade de a parte contrária se pronunciar.
6. Senão vejamos, As Apelantes vêm nos presentes autos peticionar a suspensão das deliberações sociais adotadas no âmbito da Assembleia Geral da Recorrida, que teve lugar no dia 31 de março de 2023.
7. A 25 de Outubro de 2023 foi realizada uma Assembleia Geral da Sociedade, promovida pela Recorrida, em que foi deliberado renovar as deliberações sociais alvo de apreciação naqueles autos, conforme requerimento da Recorrida de 11.11.2023.
8. Desse requerimento a Recorrida juntou a Ata de 25.10.2023.
9. No dia 13.11.2023 foi proferido Despacho no qual notifica a Recorrida para juntar ao processo ‘’a convocatória, bem como respetivos comprovativos de envio, referente à Assembleia ocorrida no passado dia 25.10.2023 a que faz expressa menção o respetivo requerimento.’’
10. No cumprimento do Despacho a Recorrida juntou, por requerimento, a 14.11.2023 aqueles documentos.
11. Ora, um dia depois, a 15.11.2023, é proferida sentença, na qual foi julgado improcedente e absolveu a Ré dos pedidos formulados pelas Autoras, “face à renovação das deliberações cuja (suspensão por) nulidade ou anulabilidade se pedia”.
12. Todavia, ainda se encontrava a decorrer prazo para as Apelantes se pronunciarem quanto aos documentos juntos a 11.11.2023 e a 14.11.2023 e que terminava, respetivamente a 24.11.2023 e 27.11.2023.
13. Do exposto decorre então que a Sentença se encontra em clara violação do princípio do contraditório a que tinham e têm direito, em virtude da decisão-surpresa.
14. Violação essa consagrada no n.º 3 do artigo 3.º do CPC e ainda dos artigos 20.º, n.º 1 e 202.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, e do artigo 6.º da Convenção Europeia de salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e no artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
15. Já que as Apelantes não prescindiram do prazo para se pronunciarem à junção daqueles documentos e, por esse motivo, dispunham de prazo para o exercerem.
16. Mais, o Despacho fundamenta que em causa se encontra uma nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, sobrevém que razão não lhe assiste no que à fundamentação legal concerne.
17. Pois, em boa verdade o vicio de que padece é uma nulidade procedimental arguida pelas Apelantes nos termos do artigo 195.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, em tempo e por quem tem legitimidade para o efeito, a 24.11.2023.
18. Não arguindo uma nulidade própria da sentença nos termos das alíneas do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
19. O que sucede nos autos é a existência de um facto novo – a Ata e documentos posteriormente juntos por requerimento 11.11.2023 da Recorridas,
20. Facto esse que as Apelantes não puderam pronunciar-se nem analisar convenientemente e tão-pouco evidenciar do que aqueles documentos padecem e/ou estão feridos.
21. Deste modo, o que as Apelantes arguiram foi a nulidade da pendência de prazo para o exercício do contraditório nos termos supra explanados.
22. Pelo que carece de fundamento legal a decisão proferida
23. e esta padece de nulidade,
24. Motivo pelo qual, deve o Despacho que se recorre ser revogado e em consequência ser proferido outro, em sua substituição, no qual declara a nulidade arguida e notifica as aqui apelantes para exercerem o contraditório, o que concomitantemente origina também e primeiramente a nulidade da Sentença.
25. Sem prescindir e que se invoca por cautela de patrocínio no caso de conhecimento da nulidade arguida e que dela o Tribunal ad quo não conheceu,
26. Sempre se dirá que, o Despacho de 13.12.2023 e consequentemente a Sentença notificada a 15.11.2023 também padece de nulidade porque não atende à validade e pressupostos dos documentos apresentados pela Recorrida.
27. Porquanto, o Tribunal ad quo entendeu ‘’que, face à renovação das deliberações cuja (suspensão por) nulidade ou anulabilidade se pedia, cumpre julgar aquela improcedente e absolve a Ré [aqui Recorrida] do/s pedido/s formulados pelas Autoras [ora Apelantes]’’
28. No entanto, não analisou, mesmo que meramente indiciária, o conteúdo dos documentos e decidiu pelo que se trata de uma ata renovatória como transcrito supra.
29. A renovação tem como finalidade o aproveitamento do ato deliberativo através de um novo procedimento deliberativo, que mantenha a regulamentação de interesses expressa num ato inválido, mas expurgando o vício de que enferma a primeira ou primitiva deliberação, sem, no entanto, alterar o seu conteúdo.
30. Pressupõe uma nova deliberação destinada a absorver o conteúdo da anterior e a substituí-la para o futuro, desde que observados os requisitos formais e substanciais que legalmente se exigem para a antiga.
31. Isto porque, o documento junto com o requerimento a 11.11.2023 a ata renovatória, segundo a decisão do tribunal ad quo, mas presentes só se encontrava uma sócia.
32. Proferiu o Tribunal de 1.ª instância Despacho a 13.11.2023 para que as Recorridas juntassem “a convocatória, bem como respetivos comprovativos de envio, referente à Assembleia ocorrida no passado dia 25.10.2023 a que faz expressa menção o respetivo requerimento.’’
33. o que fizeram a 14.11.2023, como referido, as Recorridas.
34. Todavia, da sentença de 15.11.2023 e do despacho de 13.12.2023 não aferiu se as convocatórias foram rececionadas e se o prazo legal mínimo para o efeito (15 dias) foi cumprido.
35. Como também não verificou que da ata não consta a sua duração nem a maioria necessária para se constituir a Assembleia e deliberar.
36. Presente encontrava-se apenas uma sócia com representação do capital social de 13,125%, o que não permitia que existisse quórum necessário para a Assembleia se constituir e deliberar.
37. Ainda concernente ao documento junto a 11.11.2023 e cuja Sentença incidiu como sendo uma Ata renovatória sem mais, a mesma padece de imprecisões, obscuridade e contradições como a informação de que constam presentes “o gerente da sociedade FF” e a Sócia CC,
38. sendo que esta última assumiu a função de Presidente da Mesa da Assembleia Geral “por ser gerente e também sócia representante da maioria do capital social”,
39. no entanto, foi nessa Assembleia Geral que a sócia alegadamente deliberou pela nomeação destas mesmas pessoas como gerentes e na destituição das anteriores gerentes da Recorrida.
40. Ora, tendo em consideração que a figura da renovação de deliberações sociais consiste na substituição de uma deliberação nula ou anulável por outra, de conteúdo idêntico, mas sem os vícios procedimentais, ou de forma, reais ou supostos, que tornam a primeira inválida,
41. Assim, a deliberação de 25.10.2023 padece de vícios, desde logo, a irregularidade da convocatória para a Assembleia geral, a inexistência da maioria necessária para aprovação das deliberações, a representação do capital social, a deliberação de destituição e nomeação de gerentes, alteração da sede da empresa e não alteração do pacto social, entre outros.
42. Então, as deliberações renovadas padecem de vícios e são inválidas.
43. Por via disso não poderia ter iniciado a Assembleia de 25.10.2023 como sendo gerentes a sócia CC e o seu cônjuge FF.
44. Como é nula aquela deliberação por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 56.º do CSC, por contemplar vícios no processo de formação do processo de deliberação, a lei admite expressamente a eficácia retroativa, desde que seja esta a vontade dos sócios e não sejam assim afetados direitos de terceiros (n.º 1 do artigo 62.º do CSC), regime retractivo que, por maioria de razão, se estende à renovação das deliberações anuláveis, ainda que o n.º 2 do artigo 62.º do CSC omita essa referência podendo estar a deliberação impugnada 31.03.2023 afetada por esse tipo de invalidade.
45. Sobrevém que, a deliberação de 31.03.2023 não seria, pois, sanável, não sendo possível o seu aproveitamento numa ótica de renovação.
46. Dito isto, da sentença não se encontra fundamentada em qualquer sentido específico nem pressuposto de facto da situação da alegada ata renovatória, apenas refere que se trata de uma ata renovatória sem mais e decide que ‘’face à renovação das deliberações cuja (suspensão por) nulidade ou anulabilidade se pedia, cumpre julgar aquela improcedente e absolve a Ré [aqui Recorrida] do/s pedido/s formulados pelas Autoras.’’
47. Pese embora devesse aferir o Tribunal ad quo os pressupostos e validade daquela Ata de 25 de outubro de 2023, junta por requerimento a 11.11.2023
48. e ainda, se assim entendesse estarem reunidos os pressupostos para se tratar de uma ata renovatória, decidir pela inutilidade superveniente da lide e consequente absolvição da instância e não pela improcedência da providência e absolvição do pedido como faz.
49. Acresce ainda que, em relação aos vícios de natureza material apostos à deliberação de 31.03.2023 também se suscita a dúvida se não afetam igualmente a alegada deliberação renovada de 25.10.2023,
50. porquanto se verifica que a alegada deliberação renovatória mantém contornos idênticos às deliberações de março de 2023 no que concerne aos seus intervenientes, não suprindo, designadamente, as questões suscitadas no presente processo.
51. O que culmina na nulidade da sentença de 15.11.2023 nos termos das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, por a alegada deliberação renovatória padecer de vícios de procedimento, nos termos da alínea a) e b) do n.º 1 do artigo 56.º, do n.º 1 do artigo 62.º, do n.º 1 do artigo 248.º e do n.º 3 do artigo 375.º todos do CSC e ainda do n.º 2 do artigo 59.º do Código do Registo Comercial, e ainda por violar os princípios de proporcionalidade e igualdade constitucionalmente consagrados no artigo 13.º da CRP.”
Pediram que, na procedência do recurso, seja “revogado e substituído o Despacho, notificado a 13.12.2023, por outro que declare a nulidade da Sentença notificada a 15.11.2023, por violação dos princípios basilares do Direito, o contraditório e a igualdade de
armas
das partes.”
***
3). A Requerida (daqui em diante, Recorrida) apresentou resposta, em que pugnou pela improcedência do recurso.
***
4). O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal
ad quem
.
***
5). Redistribuídos os autos, realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos das Exmas. Sras. Juízas Desembargadoras Adjuntas.
***
II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final
,
ex vi
do art. 663/2, parte final, do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo recorrente ou pelo recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas
decisões-surpresa
(art. 3.º/3 do CPC).
Expostas as regras gerais, importa lembrar que o presente recurso tem como objeto a decisão do Tribunal de 1.ª instância, datada de 13 de dezembro de 2023, que julgou improcedente a arguição da nulidade do despacho de 15 de novembro de 2023, no qual havia sido declarada a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide. Não tem como objeto este último despacho, em relação ao qual seria, de resto, ostensivamente intempestivo e, nessa medida, teria de ser rejeitado (cf. arts. 363/1, 638/1 e 641/2, a), todos do CPC).
Nesta medida, as conclusões vertidas pelas Recorrentes sob os números 25. a 51., as quais visam a segunda decisão, são imprestáveis. Ademais de imprestáveis, são desnecessárias, o que é fácil de explicar: se o recurso for procedente, a decisão recorrida – a de 13 de dezembro de 2023 – terá de ser revogada e, em sua substituição, deverá ser tomada uma outra, de sentido diverso – mais concretamente, uma que anule o despacho de 15 de novembro de 2023, enquanto trâmite, bem como o processado dele dependente; se o recurso for improcedente, designadamente por se concluir que, conforme entendeu o Tribunal de 1.ª instância, aquela nulidade apenas podia ser arguida em recurso que tivesse como objeto o despacho de 15 de novembro de 2023, este subsistirá necessariamente, uma vez que não foi oportunamente impugnado através do meio processual adequado.
Tendo isto presente, as referidas conclusões têm-se como excluídas do objeto do recurso que, assim sendo, consiste apenas em saber se a decisão recorrida – a contida no despacho de 13 de dezembro de 2023, percute-se –, ao indeferir a reclamação apresentada pelas Recorrentes através do requerimento de 24 de novembro de 2023, com fundamento na impropriedade do meio processual escolhido para invocar a “nulidade da decisão” de 15 de novembro de 2023, incorreu em erro na interpretação dos arts. 195/1 e 2 e 615/1, d), parte final, e 4 do CPC.
A resposta pressupõe que sejam abordadas as seguintes problemáticas: (1) saber se a decisão de 15 de novembro de 2023 tinha de ser precedida do contraditório das Recorrentes; (2) em caso de resposta afirmativa, determinar as consequências da omissão desse contraditório e o meio adequado a operá-las processualmente.
Na resposta, serão considerados os factos relativos ao
iter
processual descritos no ponto 1) do relatório que constitui a Parte I. deste Acórdão.
***
III.
1).1. Vejamos a resposta à questão enunciada.
Resumidamente, estamos no âmbito de um procedimento cautelar em que é pedida a suspensão da execução de duas deliberações sociais, (aparentemente) tomadas em assembleia geral dos sócios da Recorrida. Essa providência, de natureza essencialmente conservatória, visa antecipar os efeitos (
ex tunc
)
da declaração de nulidade (ou da anulação) de tais deliberações, prevenindo possíveis repercussões negativas que, no ínterim, a sua execução seja suscetível de causar na esfera jurídica das Recorrentes ou na da própria Recorrida.
Durante a tramitação, a Recorrida comunicou ao Tribunal que, depois de ter sido citada, foi realizada uma nova assembleia geral dos seus sócios, na qual foi aprovada uma deliberação que
renovou
aquelas, com a qual ficaram, no seu entender, “sanadas as putativas irregularidades/nulidades invocadas” pelas Recorridas. Como corolário deste entendimento, pediu a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
Não suscita especiais dúvidas que, neste requerimento, a Recorrida alegou um facto superveniente que, tanto na sua perspetiva, como naquela que veio a ser adotada pelo Tribunal de 1.ª instância, assumia relevância, precisamente por funcionar, em termos materiais, como extintivo do direito substantivo a cuja titularidade as Recorrentes se arrogaram no requerimento inicial – o direito (
rectius
, o interesse)
de obter a declaração de nulidade das deliberações ou o direito potestativo de as anular –, tornando, assim, inútil, em termos adjetivos, o decretamento da providência cautelar requerida e, logo, sendo causa de extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide (art. 277, e), do CPC
[1]
). De facto, não custa,
prima facie
, aceitar que uma segunda deliberação, tomada nos termos do disposto no art. 62 do CSC, renovadora de uma deliberação nula, por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 56 do CSC, ou anulável, tenha como efeito a inutilidade – ou, talvez com mais precisão, a impossibilidade: RG 29.02.2024 (4070/23.5T8VNF.G1), José Carlos Pereira Duarte, com intervenção do ora Relator como 2.º Adjunto – do procedimento cautelar destinado a suspender os efeitos da execução desta. A tutela cautelar pretendida torna-se, então, desnecessária. A análise terá, em qualquer caso, de ser feita casuisticamente, de modo a aferir se a deliberação é mesmo
renovadora
e, em qualquer caso, se, não obstante, subsistem ainda potenciais efeitos da deliberação nula ou anulável, ao menos em relação a terceiro ou ao período anterior à deliberação renovadora. Assim, António Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, IV, Coimbra: Almedina, 2001, p. 91).
***
1).2. Como ensina Miguel Teixeira de Sousa (Código de Processo Civil Online CPC: art. 130.º a 361.º, Versão de 2024/07, p. 168) na inutilidade superveniente da lide, tal como na impossibilidade, está em causa a falta superveniente de interesse processual, o que justifica que o juiz se abstenha de conhecer do mérito. Isto evidencia bem a importância do
interesse processual
enquanto verdadeiro pressuposto processual.
Parece-nos assim que é correto afirmar-se que a inutilidade superveniente da lide é o reverso de uma moeda que tem na sua face a absolvição da instância por falta original de interesse processual. O que marca a distinção entre as duas é o momento em que ocorre a perda do interesse na obtenção da tutela jurisdicional. Numa e noutra hipótese, a instância extingue-se sem que haja conhecimento do mérito.
É assim manifesto que deve ser observado o contraditório quando a questão se suscite, seja por iniciativa de uma das partes, em geral a parte demandada, seja
ex officio
. Estranho seria que assim não fosse.
Com efeito, este é um dos princípios estruturantes do processo civil, estando consagrado no art. 3.º do CPC. Mais não é que uma emanação do princípio da equidade previsto no art. 20 da Constituição da República, próprio do carácter democrático do processo.
O CPC de 1961, na sua versão anterior à reforma de 95/96, levada a cabo pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12, e pelo DL n.º 180/96, de 25.09, apenas previa o sentido clássico do princípio do contraditório, situando-o num plano estritamente horizontal, assim explicado por Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 379): “[o] processo reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (
audiatur et altera pars
), muito embora se admita que as deficiências e os transvios ou abusos da atividade dos pleiteantes sejam supridos ou corrigidos pela iniciativa e autoridade do juiz. Cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de umas e outras.” É com este sentido – o de defesa, oposição, resistência aos factos, às provas e aos fundamentos jurídicos do processo invocados pela contraparte e a respetiva exceção – que o princípio do contraditório está enunciado nos números 1 e 2 do art. 3.º do atual CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, redundando assim numa proibição de
indefesa
(Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, I, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2004, p. 16).
Com a referida Reforma, a previsão do princípio do contraditório na lei ordinária foi ampliada a uma dimensão vertical, através da introdução da seguinte fórmula legal: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.” Esta redação foi mantida,
ipsis verbis
, no art. 3.º/3 do atual CPC.
Impõe-se, assim, ao juiz a audição das partes quando pretenda tomar uma decisão inesperada sobre qualquer questão de direito ou de facto. Dito de outra forma, o juiz não pode tomar uma decisão que não seja
previsível
pelas partes sem antes lhes dar oportunidade de se pronunciarem, com isso participando no processo decisório.
[2]
Nas palavras de Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil: Conceito e Princípios Gerais à luz do Novo Código, 4.ª ed., Coimbra: Gestlegal, 2021, pp. 126-127), “[s]ubstitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do
rechtliches Gehor
germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.” Daqui decorre que, nesta dimensão, o contraditório é, também, influência na decisão, como se reconhece em RG 5.12.2019 (858/15.9T8VNF-A.G1) e 22.06.2023 (3731/21.8T8BRG-A.G1), ambos relatados por José Alberto Moreira Dias.
[3]
A consagração legal do princípio impõe a sua observância, tanto no que concerne à matéria de facto, como à matéria de direito. No que tange à primeira, implica que, nas situações em que é lícito ao juiz introduzir oficiosamente factos no processo (art. 5.º/2 do CPC
[4]
), deve ser permitido que ambas as partes se pronunciem sobre os seus pressupostos e a sua existência. Pressupõe também que as partes possam pronunciar-se, designadamente nos debates orais, sobre os termos em que a prova deve ser apreciada (art. 604/3, e), e 5 do CPC). No que tange à segunda, implica que, “antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie” (Lebre de Freitas, Introdução cit., p. 126), de tal modo que se o juiz encontrar uma solução jurídica do litígio que não tenha sido vislumbrada pelas partes ao longo do processo – isto é, uma decisão para a qual as “exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração” (RC 13.11.2012, 572/11.4TBCND.C1, José Avelino Gonçalves) – deve, antes de proferir a sentença, informá-las e permitir-lhes a emissão de pronúncia.
***
1).3. O que antecede permite-nos afirmar, sem qualquer tergiversação, que as Recorrentes tinham direito a pronunciarem-se sobre o requerimento apresentado pela Recorrida no dia 11 de novembro de 2023, quer no que tange ao facto novo – a dita deliberação renovadora – que nele foi alegado, quer no que tange ao seu enquadramento e consequências jurídicas. Operava aqui o princípio do contraditório naquela sua dimensão horizontal, cuja observância cabia ao tribunal observar, e não sua segunda dimensão – a que suscita a problemática das
decisões-surpresa
, ao contrário do que parece ser entendimento das Recorrentes e do próprio Tribunal de 1.ª instância.
Quanto aos termos em que podiam exercer esse direito, afigura-se-nos que teriam aplicação as regras dos arts. 292 a 295, pelo que as Recorrentes dispunham de um prazo de dez dias para deduzirem a sua oposição (art. 293/2).
Na verdade, a Recorrida, com o dito requerimento, introduziu no processo uma questão (potencialmente controvertida) que não fazia parte do objeto deste, até então composto pela pretensão das Recorrentes, tal como formulada no requerimento inicial, e pela exceção de caducidade que foi deduzida na oposição. Ainda que a decisão dessa questão fosse suscetível de se repercutir, de forma direta, na sorte da instância, certo é também que o processo destinado ao seu conhecimento podia ser perfeitamente autonomizado, o que nos autoriza a recorrer àquelas disposições, aplicáveis “a quaisquer incidentes inseridos na tramitação de uma causa.”
Aquele prazo de dez dias tinha como termo
a quo
a receção, pelo mandatário da Recorrentes, da notificação expedida pelo mandatário da Recorrida, em cumprimento do disposto no art. 255, facto que se presume ter ocorrido no dia 13 de novembro de 2023.
Como se constata, esse prazo ainda estava em curso quando o Tribunal de 1.ª instância, através do despacho de 15 de novembro de 2023, conheceu e decidiu a questão, dando razão à Recorrida e extinguindo a instância com fundamento na alegada inutilidade superveniente da lide.
***
2).1. O que antecede evidencia-nos que o despacho de 15 de novembro de 2023 foi proferido de forma prematura, num momento em que a realidade processual não caucionava a sua prática.
Nesta perspetiva, o despacho, enquanto trâmite processual prematuro, surge-nos como um ato cuja prática, naquelas circunstâncias, estava proibida.
Não estando prevista na lei uma específica consequência, dir-se-á, numa primeira abordagem, que a situação deve ser enquadrada no disposto no art. 195 do CPC, onde se diz que “[f]ora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.” Trata-se, na verdade, de uma situação semelhante àquela em que o juiz decide da reconvenção apresentada pelo réu antes do autor ter apresentado a sua réplica. Como escreve Miguel Teixeira de Sousa (“As outras nulidades da sentença – resposta a uma crítica”, Blog do IPPC, poste de 24.09.2024), “essa sentença é efetivamente nula nos termos do art. 195/1, dado que é proferida num momento da tramitação processual em que tal não é permitido.” No mesmo sentido, na jurisprudência, RP 17.05.2022 (1320/14.2TMPRT.P1), João Ramos Lopes, num caso em que foi decidido requerimento de um dos habilitados sucessores do falecido autor, quando ainda se encontrava a decorrer o prazo que a ré, sobre tal requerimento, se pronunciasse.
Mas dizer isto, assim dando a entender que a via adequada à impugnação é a incidental, através de reclamação para o próprio juiz (art. 196, parte final), não é suficiente. Como é bom de ver, a decisão contida no despacho foi antecedida de uma outra – a de
decidir
naquele momento –, a qual tem, ela própria, natureza jurisdicional, podendo, assim, padecer, como qualquer outra do juiz, de
error in iudicando
, o qual tanto pode recair sobre realidade processual existente (por exemplo, parte-se do pressuposto de que já decorreu o prazo da oposição), como ser fruto de uma incorreta subsunção dessa realidade ao regime jurídico adjetivo que regula a prática do ato (por exemplo, considera-se que não há lugar a oposição ou que o prazo para esse efeito previsto na lei é inferior).
É neste enquadramento que Paulo Ramos de Faria / Nuno de Lemos Jorge (“As outras nulidades da sentença cível”, Julgar Online, setembro de 2024, p. 14) escrevem que “a prática pelo juiz de um
ato que a lei não admite
leva sempre consigo um julgamento pressuponente (…) no sentido de ser tal prática caucionada pela lei do processo.” Este ato decisório “encerra, imediatamente, duas falhas. Independentemente do sentido da decisão sobre o seu objeto, ofende a lei do processo
e
assenta num erro de julgamento pressuponente sobre a sua admissibilidade.”
Nesta perspetiva, a via adequada à impugnação é já a recursiva.
A explicação para isto é dada em RG 18.01.2024 (1731/23.2T8GMR-J.G1), do presente Relator, onde se escreve que há, na verdade, que considerar duas situações completamente distintas: (i) aquela em que o tribunal simplesmente pratica um ato não admitido ou omite um ato devido; (ii) aquela em que o tribunal decide que um ato deve ou não deve ser praticado. Só no primeiro caso é cometida uma nulidade processual. É o que sucede, por exemplo, com a falta de citação do réu (art. 187, a), e 188 CPC)) ou a nulidade desta citação pela falta da junção da petição inicial (art. 191/1 CPC). No segundo, o que há é uma decisão ilegal.
No caso em que o tribunal decide incorretamente que o ato deve ser omitido ou praticado, ainda podem ser consideradas duas situações: (i) a decisão incide apenas sobre a omissão do ato legalmente devido; (ii) a decisão incide sobre a omissão do ato legalmente devido e sobre outras questões (como, por exemplo, o conhecimento do mérito da ação).
A resposta é a mesma para ambas as situações: em qualquer delas há uma decisão ilegal sobre a omissão do ato devido e em nenhuma delas tem sentido falar de nulidade processual. O tribunal comete uma nulidade processual quando omite um ato devido ou pratica um ato indevido, não quando entende incorretamente que o ato deve ser omitido ou praticado.
A este propósito convém recordar uma das mais conhecidas passagens de Alberto dos Reis (Comentário ao Código de Processo Civil, II, Coimbra: Coimbra Editora, 1945, p. 507): "A arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou da formalidade, o meio processual para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou a reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente. Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados; dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se."
Repare-se que Alberto dos Reis fala de “reagir contra a ilegalidade” (não contra a nulidade) quando “há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou da formalidade” e nunca relaciona a nulidade processual com uma decisão.
Miguel Teixeira de Sousa (“Dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se", disponível no Blog do IPCC), ilustra a distinção da seguinte forma: “basta verificar que não se pode dizer que, se o tribunal decidir dispensar o juramento da testemunha, isso é a mesma coisa que o tribunal, pura e simplesmente, omitir esse juramento. A decisão errada sobre a dispensa do juramento e a omissão pura e simples desse juramento são coisas distintas: no primeiro caso, há uma decisão ilegal; no segundo, há um
nullum
e, por isso, uma nulidade processual. Generalizando: a
decisão ilegal
sobre a omissão de um ato não pode ser confundida com a
omissão ilegal
do ato.”
Assim, como sintetiza Alberto dos Reis, "[d]esde que um despacho tenha mandado praticar determinado ato, por exemplo, se porventura a lei não admite a prática desse ato[,] é fora de dúvida que a infração cometida foi efeito do despacho; por outras palavras, estamos em presença dum despacho ilegal, dum despacho que ofendeu a lei de processo. Portanto, a reação contra a ilegalidade traduz-se num ataque ao despacho que a autorizou ou ordenou; ora o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respetivo recurso.”
***
2).2. O que antecede habilita-nos a afirmar, a um tempo, que o ato decisório não permitido por lei, designadamente por ter sido praticado de forma prematura – i. é, quando ainda estava a decorrer o prazo para a parte requerida apresentar a sua oposição – , enquanto trâmite processual, subsumível à previsão do n.º 1 do art. 195, pode ser impugnado por via de reclamação,
ut
art. 196, e, a outro, que tal ato, porque assente numa decisão pressuponente – a dita “decisão de decidir” – que enferma de um erro, pode também ser impugnado por via recursória.
Daqui não resulta a possibilidade de a parte cumular os dois meios, solução de todo indesejável, pela complicação que com ela se introduziria no processo e que representaria um verdadeiro contrassenso, como facilmente se compreende se ponderarmos que, ao reclamar, a parte está a afirmar que o ato, enquanto trâmite processual, é inválido e, ao recorrer, a parte está a afirmar a validade do ato enquanto trâmite processual, o que é pressuposto da pretensão de revogação ou de anulação da decisão nele contida.
Deste modo, deve entender-se que, de entre os dois meios impugnatórios possíveis – a reclamação, por estar em causa a prática de ato não consentido pela lei adjetiva, e o recurso, por estar em causa um ato decisório afetado por um erro de julgamento –, deve prevalecer o segundo, numa espécie de relação de “consunção impura” (Paulo Ramos de Faria / Nuno Lemos Jorge, loc. cit., p. 16), visto ser ele o meio mais completo e garantístico – por um lado, o prazo de que a parte dispõe para o recurso é superior; por outro, a amplitude da alegação é maior, sendo possível a invocação de outras patologias, como nulidades da decisão propriamente dita, de entre as elencadas nas alíneas do art. 615/1, ou outros erros de julgamento; por outro ainda, a questão será apreciada por um tribunal superior.
Mas a parte tem a faculdade de optar pelo outro meio (reclamação). Será, porventura, uma escolha pouco racional (Paulo Ramos de Faria / Nuno Lemos Jorge, loc. cit. pp. 18-19), até porque, se optar por ele, poderá estar a renunciar tacitamente ao recurso da decisão. Ainda que assim não se entenda, o direito ao recurso poderá ficar precludido, independentemente da decisão da reclamação, uma vez que a pendência desta não suspende o prazo para a interposição daquele. Nestes casos, restará à parte o recurso da decisão da reclamação
[5]
, admissível por estar em causa uma violação do princípio do contraditório (art. 630/2), a interpor autonomamente no prazo de 15 dias (arts. 638/1 e 644/2, g)).
***
2).3. A conclusão a que chegámos sobre a possibilidade de a parte prejudicada com um ato do juiz que a lei não permite reclamar dele nos termos previstos nos arts. 195 e 196, parte final, em nada contende com a regra do esgotamento do poder jurisdicional, consagrada no art. 613/1.
Como sabemos, proferida a sentença – ou o despacho – fica “imediatamente esgotado o poder do juiz quanto à matéria da causa” (art. 613/1 e 3 do CPC). Trata-se de uma estabilidade interna, restrita ao órgão que a proferiu (Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Almedina, 2021, p. 174), que se explica pela proibição do livre arbítrio e discricionariedade, fundada nos princípios da segurança jurídica e da imparcialidade do juiz. Como explica Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 127, “[q]ue o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão.” As únicas ressalvas que esta regra comporta, a que já fizemos referência, são as previstas no n.º 2 do art. 613, onde se diz que “[é] lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.” Estão em causa, portanto, as situações em que o juiz pode retificar erros materiais (art. 614), suprir nulidades (art. 615) e reformar a sentença (art. 616).
O que sucede é que, ao reconhecer a prematuridade da sua decisão, o juiz não está a pronunciar-se de novo sobre a matéria da causa, mas a reconhecer uma invalidade da sequência processual, cuja declaração importará que fique sem efeito o ato decisório.
***
2).4. Aqui chegados, podemos então concluir que, ao contrário do que foi entendido pelo Tribunal
a quo
, as Recorrentes, confrontadas com o inoportuno despacho de 15 de novembro de 2023, podiam apresentar reclamação, visando, por esse meio, não a declaração de nulidade da decisão nele contida, mas a declaração de nulidade do próprio ato
qua tale
, por não ser permitida a sua prática naquele momento processual.
Tinham legitimidade para esse efeito (art. 197) e agiram em tempo. Ademais, a Recorrida teve oportunidade de se pronunciar, que aproveitou.
É certo que as Recorrentes não foram precisas na terminologia que utilizaram. Aludiram à nulidade da decisão e pediram a revogação da “sentença” (
sic
). Isto não obstava, porém, a que se compreendesse que o seu único objetivo era o de fazerem reverter o processo ao momento em que lhes foi coartada a possibilidade de deduzirem oposição à pretensão da Recorrida de extinção da instância com fundamento na superveniente perda de interesse processual.
Temos de concluir, em resultado do exposto, sem necessidade de outras considerações, que o despacho recorrido, ao indeferir a reclamação, com fundamento na impropriedade desse meio processual, deve ser revogado, por padecer de erro na interpretação do citado art. 195/1 e 2 do CPC e, bem assim, do art. 615/4. Em substituição, haverá que declarar a nulidade do despacho de 15 de novembro de 2023 (entendido enquanto trâmite processual) e de todo o processado subsequente, para que seja observado o contraditório das Recorrentes quanto ao requerimento apresentado pelas Recorridas no dia 10 de novembro de 2023.
***
2).5. Uma nota final para dizer que, acaso fosse de sufragar o entendimento do Tribunal
a quo
, a questão nunca poderia ter sido decidida nos termos em que o foi.
Com efeito, os erros deste tipo – erros no meio processual utilizado pela parte – podem ser sanados com base na regra de que, seguida via processual errada, o tribunal procede oficiosamente à convolação para a via adequada, posto que seja possível a utilização do requerimento apresentado (cf. art. 193/3). Este poder do tribunal refere-se ainda ao plano processual e insere-se, portanto, no âmbito dos poderes de condução do processo, sem afetar a relação substantiva subjacente, como frisa Maria dos Prazeres Beleza, “A harmonização dos poderes do juiz e das partes nos recursos cíveis”, Jurismat, 2022, n.º 15, pp. 219-232.
***
3). Vencida, a recorrida deve suportar as custas do presente recurso.
***
IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso procedente e, em consequência:
Revogam a decisão recorrida (constante do despacho de 13 de dezembro de 2023);
Em sua substituição, (i) deferem a reclamação apresentada pelas Recorrentes através do requerimento de 24 de novembro de 2023, e, em conformidade, (ii) anulam o despacho de 15 de novembro de 2023 e (iii) determinam a notificação das Recorrentes para apresentarem oposição ao requerimento da Recorrida de 11 de novembro de 2023 e a subsequente prolação de nova decisão sobre a questão neste suscitada.
Custas pela Recorrida.
Notifique.
*
Guimarães, 6 de março de 2025
Os Juízes Desembargadores,
Gonçalo Oliveira Magalhães
Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade
Alexandra Maria Viana Parente Lopes
[1]
Pertencem ao CPC vigente as disposições legais indicadas sem menção expressa da respetiva proveniência.
[2]
Para João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 97-98 e 102), o princípio da proibição das decisões-surpresa não surge como uma derivação do princípio do contraditório, mas como uma das vertentes do princípio da cooperação, mais concretamente enquanto dever de consulta do tribunal para com as partes. Segundo o autor, o “direito ao contraditório (…) possui um conteúdo multifacetado: ele atribui à parte não só o direito ao conhecimento de que contra ela foi proposta uma ação ou requerida uma providência e, portanto, um direito à audição antes de ser tomada qualquer decisão, mas também um direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a tomar posição sobre elas, ou seja, um direito de resposta.” Assim, o autor entende que o princípio do contraditório inclui o direito à audiência prévia e o direito de resposta, sendo que o tribunal apenas deve observar e fazer cumprir tal princípio (art. 3.º/3, 1.ª parte). Só muito impropriamente se pode afirmar que entre o tribunal e as partes existe um direito ao contraditório. Neste sentido, o dever de o juiz informar e consultar as partes sobre os aspetos de direito ou de facto que por elas não foram considerados, seja por enquadrar juridicamente a situação de forma diferente daquela que é a perspetiva das partes ou por conhecer oficiosamente determinada questão relevante para a decisão, não determina que tenha de ser exercido o contraditório, pois o responsável pela mutação não foi qualquer das partes, mas o tribunal e, portanto, a audiência prévia não terá como objetivo o exercício do direito de resposta de uma parte face às alegações da outra, mas a audiência das duas partes para estas tomarem posição quanto ao que o tribunal apresentou. Tendo isto presente, o autor conclui que a proibição das decisões-surpresa deve deixar de estar prevista no âmbito do contraditório, passando para a parte ode é tratado o princípio da cooperação.
[3]
Disponível, como os demais indicados sem menção expressa do local de publicação, em www.dgsi.pt.
[4]
De acordo com o princípio do dispositivo, cabe às partes “alegar factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas” (art. 5.º/1 do CPC). O encontra, porém, exceções, logo admitidas pelo n.º 2 do art. 5.º, de acordo com o qual, para além dos factos alegados pelas partes, o juiz considera ainda: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa; c) os factos notórios; e, d) os factos que o juiz tenha conhecimento por virtude das suas funções. Sendo que para a matéria que ora nos ocupa aqueles que relevam são os dois últimos, os factos notórios e aqueles que o juiz tome conhecimento por virtude do exercício das suas funções, na medida em que são introduzidos no processo oficiosamente.
[5]
Nesta situação, pode dizer-se, citando, Luís Correia de Mendonça / Henrique Antunes (Dos Recursos, Lisboa: Quid Juris, 2009, p. 52), que “[a] reclamação por nulidade e o recurso articulam-se (…) de harmonia com o princípio da subsidiariedade: a admissibilidade do recurso está na dependência da dedução prévia da reclamação. Assim, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação por nulidade – e não a nulidade ela mesma. A perda do direito à impugnação por via da reclamação – caducidade, renúncia, etc. – importa, simultaneamente, a extinção do direito à impugnação através do recurso ordinário.”
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TRG
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https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/68828257d8a7f06780258c4c005326e1?OpenDocument
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1,754,352,000,000
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CONFIRMADA A SENTENÇA
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313/24.6T8PVZ.P1
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313/24.6T8PVZ.P1
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MANUELA MACHADO
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I - Em caso de morte da vítima de acidente de viação, do artigo 496.º, n.º s 2 e 3, do Código Civil, resultam três danos não patrimoniais indemnizáveis:
- O dano pela perda do direito à vida;
- O dano sofrido pela própria vítima antes de morrer;
- O dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte.
Ao que acresce, nos termos do artigo 495.º, n.º 3, que o lesante é também obrigado a indemnizar o dano patrimonial sofrido pelas pessoas com direito a exigir alimentos ao lesado ou por aquelas a quem este, de facto, os prestava em cumprimento de uma obrigação natural.
II - O art. 495.º, nº 3 do Código Civil apenas determina os titulares da indemnização a que se refere, ou seja, a quem é devida.
III - Já o quantum dessa indemnização deve, de acordo com o disposto nos arts. 562.º, 564.º e 566.º, do Código Civil, repor a situação que existia no momento da lesão, em função da denominada teoria da diferença, independentemente da necessidade efetiva de alimentos.
(Sumário da responsabilidade da Relatora)
|
[
"ACIDENTE DE VIAÇÃO",
"MORTE DO LESADO",
"DANOS",
"INDEMNIZAÇÃO"
] |
Apelação 313/24.6T8PVZ.P1
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
AA, viúva, titular do C.C. n.º ..., válido até 2031/08/03, NIF ...12..., por si e em representação do seu filho menor BB, solteiro, menor, titular do C.C. n.º ..., válido até 13/04/2028, NIF ...99..., residentes no ..., n.º 26, 6.º A, ... ..., instaurou ação declarativa de condenação, com processo comum contra “A..., S.A.”, com NIPC ...31, com sede em Avenida ..., ..., em ... Lisboa, pedindo que a ré seja condenada ao pagamento dos seguintes valores:
a) Do valor de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) pela perda do direito à vida do CC;
b) Do valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) por danos morais causados à 1.ª A.
c) Do valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) por danos morais causados ao 2.º A. BB;
d) O valor de 487.500,00 (quatrocentos e oitenta e sete mil e quinhentos euros) a título de indemnização por danos patrimoniais futuros à 1ª A.;
e) O valor de €162.500,00 (cento e sessenta e dois mil e quinhentos euros) a título de indemnização por danos patrimoniais futuros ao 2ª A. BB;
f) Juros de mora vencidos desde a citação até integral pagamento.
Para o efeito alegou, em síntese, que no dia, hora e local que refere, CC, respetivamente, marido e pai dos autores, foi vítima de acidente de viação, por atropelamento, na sequência do qual veio a falecer, tendo o acidente ocorrido por responsabilidade do condutor do veículo segurado na ré, sendo que em consequência desse acidente, os autores sofreram danos, que quantificam.
Uma vez citada, a ré contestou, aceitando a responsabilidade pelos prejuízos que os autores sofreram, impugnando, contudo, a respetiva extensão.
Citado o Instituto da Segurança Social, veio requerer a condenação da ré a pagar a quantia de € 7.752,26, bem como os respetivos juros de mora legais, desde a data da citação e até integral e efetivo pagamento.
O processo seguiu os seus termos, prosseguindo para julgamento, vindo a ser proferida sentença que decidiu:
“Pelo exposto, decide-se:
1. Julgar a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, condenar a ré, “A..., S.A.”, a pagar:
a) À autora AA a quantia de €393.928,40 (trezentos e noventa e três mil, novecentos e vinte e oito euros e quarenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a presente decisão e até efetivo e integral pagamento;
b) Ao autor BB a quantia de €93.619,23 (noventa e três mil, seiscentos e dezanove euros e vinte e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a presente decisão e até efetivo e integral pagamento;
2. Aos montantes mencionado em 1, alíneas a) e b), devem ser deduzidos os montantes que a ré, entretanto, pagou mensalmente aos autores, desde janeiro de 2024, a título de arbitramento de reparação provisória.
3. Julgar procedente o pedido de reembolso deduzido pelo Instituto de Segurança Social e, em consequência, condenar a ré a “A..., S.A.” a pagar-lhe a quantia de €10.452.47 (dez mil, quatrocentos e cinquenta e dois euros e quarenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
4. Decide-se, ainda, dispensar as partes do pagamento do remanescente da taxa de justiça devida nos termos do art. 6.º, n.º 7, do regulamento das Custas Processuais.
Custas da ação por autores e ré na proporção de, respetivamente, 46% para os autores e 54% para a ré, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam os autores.
Custas quanto ao pedido de deduzido pelo demandante Instituto da Segurança Social pela ré.
Notifique e registe.”.
*
Não se conformando com o assim decidido, veio a Ré A..., S.A., interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
A apelante formulou as seguintes conclusões das suas alegações:
“1. O presente recurso visa discutir a decisão proferida acerca da matéria de direito que recaiu sobre a questão em apreço nos presentes autos, visando a sua reapreciação, a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por decisão que reduza os montantes das indemnizações que foram arbitradas a ambos os autores em 1ª Instância, tudo por uma questão de elementar justiça.
2. No que respeita as questões ora em apreço, dão-se aqui por reproduzidos os factos que resultaram provados nos autos e que supra se transcreveram.
3. Na douta sentença sob censura, o dano da perda do direito à vida do CC foi avaliado em 100.000,00€, repartido em partes iguais por ambos os autores, com o que a recorrente não concorda, por excessivamente valorizado.
4. Sabemos que a vida é o bem mais precioso da pessoa, que não tem preço, pelo que a sua quantificação não se afigura fácil.
5. Assim, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/01/2007, na revista 4433/06 –2ª (em dgsi.pt), entendeu-se que devem ser considerados factores como a idade, a alegria de viver, os projectos que o falecido tinha e outras concretizações do preenchimento que a vítima fazia da existência.
6. Também a jurisprudência geral dos nossos Tribunais Superiores em casos semelhantes pode e deve contribuir para a fixação do montante indemnizatório devido em cada caso, sendo de salientar que a respeito deste concreto dano podemos situar com segurança o intervalo de valores indemnizatórios arbitrados entre os € 60.000,00 e € 85.000,00.
7. Veja-se, entre outros, o Ac. do STJ de 05.07.2020, proferido no processo nº 952/06.7TBMTA.L1.S1 (acessível em www.dgsi.pt.), o Acórdão da Relação de Lisboa de 16/01/2021, o Ac. do STJ de 25.2.2021, o Ac. do STJ, de 04.06.2020 proferido no processo nº 2732/17.5T8VCT.G1.S1 e o Ac. proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 27.10.2022, no proc. n.º 2437/21.8T8PNF.P1, todos acima citados.
8. Por outro lado, entende a recorrente que não deve ser desprezado o contributo dos critérios estabelecidos na legislação respeitante à quantificação das indemnizações devidas pelas Seguradoras na fase extrajudicial em resultado de um acidente de viação.
9. De facto, como é sabido, a directiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do veio introduzir na directiva 09/232/CEE normas relativas à regularização de sinistros, que viria a ser parcialmente transporta para o nosso ordenamento com a criação da “proposta razoável”, que as seguradoras devem apresentar ao lesado em cumprimento do disposto nos artigos 38º e 39º do DL 291/2007 (e, anteriormente, nos termos previstos no DL 83/2006).
10. Recorrendo aos critérios das portarias 377/08 e 679/2009, vemos que se prevê para compensação do dano morte de pessoa com idade situada entre os 25 e os 49 anos, a quantia de até 51.300,00€.
11. Assim, a justiça “do caso concreto” impõe, em face dos elementos acima apontados e resultantes da factualidade demonstrada, que não se compense o dano da perda do direito a vida do CC nos mesmos termos em que seria compensada a perda da vida de pessoa com 17 anos de vida.
12. Em face do acima exposto, entende a recorrente que, ponderando os elementos do caso em apreço, o dano da perda do direito à vida do CC não deveria ter sido avaliado em quantia superior à de 80.000,00€.
13. Pelo que deve ser revogada a douta sentença na parte em que atribuiu aos autores a quantia de 100.000,00€, a título de dano de perda do direito à vida do seu progenitor e marido, devendo, em substituição, ser atribuída aos recorridos a quantia de 80.000,00€ a esse título.
14. Subsidiariamente, e quando assim se não entenda, o que não se aceita, deve a decisão recorrida ser revogada por Vossas Excelências e substituída por outra que condene a aqui recorrente a pagar aos recorridos quantia inferior a 100.000,00€, segundo o douto e justo critério desse Venerando Tribunal.
15. A aqui recorrente discorda igualmente do montante arbitrado aos autores AA e BB a título de compensação pelos danos não patrimoniais que sofreram em consequência da morte do DD.
16. Entende a ora apelante que a sentença ora posta em crise, ao arbitrar a quantia de 40.000€ para compensação do dano não patrimonial do filho da vítima com a morte desta, excedeu os montantes que, usualmente, vêm sendo arbitrados pelos nossos Tribunais Superiores em situações similares, a título de danos não patrimoniais por morte de um pai.
17. Entende, do mesmo modo, que a sentença ora posta em crise, ao arbitrar a quantia de 40.000€ para compensação do dano não patrimonial do cônjuge da vítima com a morte desta, excedeu os montantes que, usualmente, vêm sendo arbitrados pelos nossos Tribunais Superiores em situações similares, a título de danos não patrimoniais por morte de um marido.
18. As indemnizações fixadas a este título devem aproximar-se em casos semelhantes, sob pena de não serem justas, por tratarem de maneira diferente situações idênticas.
19. Procurando na jurisprudência encontramos as seguintes decisões: o Ac. da Relação do Porto de 17.06.2021, proferido no Proc. nº 137/19.2T8VFR.P1, o Ac. do STJ de 21.03.2019, proferido na Revista n.º 20121/16.7T8PRT.P1.S1 - 2.ª Secção, todos acima citados;
20. Importa considerar também que relativamente à indemnização a atribuir aos filhos da vítima com idade igual ou menor a 25 anos, pelo sofrimento decorrente da perda do seu familiar, prevê a portaria 679/09, de 25 de Junho, a sua fixação na verba de 15.390,00€.
21. Do mesmo modo, relativamente à indemnização a atribuir ao cônjuge da vítima com menos de 25 anos de casamento, pelo sofrimento decorrente da perda do seu familiar, prevê a portaria 679/09, de 25 de Junho, a sua fixação na verba de 20.520,00€.
22. Em face do exposto, e considerando as concretas circunstâncias do caso, deve ser reduzida para a verba de 35.000,00€ a compensação do recorrido BB pelo dano moral decorrente da perda do seu progenitor, o que se requer.
23. Do mesmo modo, deve ser reduzida para a verba de 35.000,00€ a compensação da recorrida AA, pelo dano moral decorrente da perda do seu cônjuge CC, o que se requer.
24. E mesmo que se entenda que os valores agora sugeridos não são adequados – o que não se concede – sempre se imporia a redução dos valores arbitrados, porque manifestamente excessivos, o que, subsidiariamente, se requer.
25. Quanto ao dano de ambos os autores, a título de cessação de prestação alimentícia, importa recordar que os artigos 495º e 496º do Código Civil tratam de um caso especial de reparação, que surge como uma excepção ao princípio geral de que só o lesado goza do direito de ser indemnizado.
26. Para além das entidades mencionadas nos números 1 e 2 desse artigo, terão apenas direito a indemnização, nos termos do n.º 3 desse preceito, “os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural”.
27. O reconhecimento do direito dos autores AA e BB, de indemnização por danos patrimoniais decorrentes da morte do seu marido e progenitor, respectivamente, exigiria a efectiva prestação de alimentos por parte deste.
28. E a fixação da indemnização devida a esse título implicaria, por um lado, uma indagação relativamente à capacidade que o malogrado CC tinha de os prestar e, por outro, uma análise da existência e extensão da necessidade que a sua esposa e filho tinham relativamente a essa prestação.
29. No que toca à autora AA, considerou a sentença recorrida que o inditoso CC manteria a contribuição para os seus alimentos pelo período expectável de duração da vida dele, ou seja, até aos 78 anos, a que corresponde uma contribuição por mais 50 anos (à data do seu decesso, o falecido tinha 28 anos).
30. Contudo, a recorrente entende, salvo o devido respeito por opinião diversa, que não é de prever que a autora AA beneficiasse de alimentos pagos pelo seu marido ao longo do resto da sua vida.
31. Como se decidiu no douto acórdão do STJ de 31/01/2012, “o cálculo desta indemnização, no caso de morte de um dos cônjuges, não pode obedecer “legalmente” aos parâmetros que, em geral, são seguidos na respectiva determinação quando está em causa uma incapacidade parcial permanente para o trabalho, até porque os alimentos prestados a terceiro não participam no mesmo grau de previsibilidade que o ganho potencial da própria vítima”. (sublinhado nosso)
32. Não podemos concordar com o entendimento segundo o qual a autora AA beneficiaria de alimentos do seu marido até aos 78 anos de idade deste.
33. Não é previsível que o casamento da autora duraria por 50 anos, até porque, de acordo com os dados do INE reportados ao ano de 2013, a taxa de divórcios em Portugal superava os 70%, sendo hoje superior.
34. São residuais e excepcionais as situações em que deve ser reconhecido o direito a alimentos a prestar pelo ex-cônjuge autora, sobretudo quando esta não está desempregada, mas inserida no mercado de trabalho, confeccionando bolos que vende a terceiros.
35. Não é previsível que a autora AA carecesse e beneficiasse de alimentos do seu marido durante os 50 anos considerados na sentença ora posta em crise, pois não se provou qualquer facto que indicie uma incapacidade da autora AA para o desempenho de uma actividade profissional;
36. É de admitir a possibilidade de, no futuro, a autora AA passar a obter rendimentos do seu trabalho, que dispensariam o auxílio do seu marido, sendo razoável admitir que beneficiasse de alimentos do seu marido durante mais 15 anos, com referência à data do acidente.
37. No que toca ao autor BB, considerou a sentença recorrida, atendendo os seus quase 5 anos de idade à data dos factos, que o referido CC contribuiria com o seu rendimento para sustento daquela por mais 20 anos.
38. Assim, nos 20 anos a considerar para o cálculo da indemnização do dano do autor BB, considerou o Tribunal 20 anos com 1/3 do rendimento anual do falecido CC. Com o que a recorrente não se conforma.
39. No que toca o filho menor da vítima, deve ter-se em consideração que este, a partir de determinada idade, passará a conseguir obter os seus próprios rendimentos e, a partir daí, deixaria de necessitar de alimentos a prestar pelo seu pai.
40. Assim, deve considerar-se que o autor BB deixaria, no limite, de carecer de alimentos do seu pai a partir de, no máximo, os seus 25 anos de idade (fim do período de estudo).
41. Na sentença foi dado como provado, quanto aos rendimentos do falecido CC, que “22. Na data do óbito CC era trabalhador da B..., EM, auferindo uma remuneração base no valor mensal de 813,30 euros, acrescido de subsídio de alimentação e de subsídio de turno no valor de €325,00, auferindo, em média, um vencimento líquido de €1.300,00 mensais.”
42. Temos, pois, como certo, que o limite máximo anual da disponibilidade do CC para prover ao seu próprio sustento e o dos autores correspondia ao montante líquido de 18.200,00€.
43. Na sentença sob censura, o cálculo foi operado tendo por base o referido rendimento anual do falecido, assim se apurando o rendimento com o qual o CC fazia face às suas próprias necessidades e prestava alimentos aos seus familiares.
44. Tal aciocínio acabou por atribuir aos demandantes uma indemnização não por perda de alimentos, mas sim por perda de rendimentos do falecido CC.
45. Nada nos consente concluir que o CC canalizasse a totalidade dos seus ganhos anuais para o sustento da sua família e para acudir às suas próprias necessidades essenciais (ou seja, as integradoras do conceito de alimentos), nomeadamente o subsidio de férias o de Natal.
46. Por outro lado, o rendimento mensal de 1.300,00€, que era superior ao salário mínimo nacional, seria, em princípio, suficiente para acudir às necessidades do seu agregado familiar que era composto por três pessoas, sobretudo se combinado com o rendimento proveniente do trabalho da autora AA.
47. Não poderemos assumir que dois terços do rendimento anual do CC fosse usado para acudir às despesas de sustento do agregado familiar, sendo certo que cabia aos demandantes demonstrar que assim era.
48. Ora, no pressuposto de que o seu rendimento mensal líquido de 1.300,00€ era suficiente para acudir às necessidades da família em cada um dos 12 meses do ano, o subsídio de Férias e de Natal (no valor de cerca de 1.300,00€ cada) poderiam bem ser - e eram certamente - usados para outros gastos, como o custo das próprias férias da família, as despesas sempre inerentes à época Natalícia, ou a constituição de aforro.
49. É com base no rendimento mensal líquido de 1.300,00€ que se deve avaliar a capacidade que o CC tinha para, ao longo de cada um dos 12 meses do ano, suportar as suas próprias necessidades e prestar alimentos à sua família.
50. No caso concreto entendeu-se que do valor dos seus rendimentos, o CC gastaria consigo próprio 1/3 desse montante, o que se aceita.
51. Do seu rendimento mensal líquido de 1.300,00€, o CC gastaria consigo mesmo não menos de 433,33€ por mês, 12 vezes por ano, sobrando-lhe, pois, um rendimento mensal disponível de 866,67€.
52. Todavia, não está em causa neste âmbito atribuir aos lesados uma indemnização pela mera frustração de rendimentos ou do respectivo usufruto, mas antes pela perda de alimentos.
53. Consequentemente, a indemnização substitutiva dessa prestação não pode ser obtida com base em critérios distintos.
54. Cabia aos autores o ónus de alegação e prova das suas concretas necessidades alimentares e do montante da contribuição do CC a esse título, factos que não alegaram, senão muito vagamente (exceptuada a alegação do valor do arrendamento onde residem).
55. Na ausência de factos concretos que permitam estabelecer qual a necessidade alimentar dos autores, justifica-se, em equidade, estabelecer a extensão dessa necessidade e não fazê-la corresponder a uma percentagem fixa da retribuição do CC.
56. Em equidade e dentro dos limites da retribuição do CC, importa encontrar um valor que, de acordo com as regras da experiência, se repute como suficiente para acudir às despesas dos seus familiares.
57. No caso dos autos o Tribunal entendeu que a prestação alimentar devida ao filho BB deveria ser a de 96.000,00€, com o que não podemos concordar.
58. O Tribunal não teve em consideração que o malogrado CC não era o único obrigado a prestar alimentos ao seu filho, já que a própria autora AA também o tinha de fazer.
59. No pressuposto de que o pai, pelo menos nos anos mais próximos contribuísse em maior medida para o sustento do filho, mas passasse a existir um maior equilíbrio, ou, pelo menos, uma comparticipação da mãe num futuro próximo, e atendendo, também, às necessidades normais de um jovem, adolescente e adulto em fase de formação, entende-se que é ajustado considerar-se que o pai contribuiria mensalmente com a verba de 250,00€ para o sustento do seu filho até que este se tornasse independente.
60. A que corresponde uma indemnização global matematicamente calculada no valor de 60.000€ (250,00€ x 240 meses).
61. É manifestamente excessiva a fixação desta indemnização numa prestação de cerca de 400,00€ mensais (96.000,00€/240 meses), ademais, por não ter em consideração que o pai não era o único obrigado a prestar alimentos ao autor BB.
62. Já quanto à autora AA, entendeu-se na douta sentença recorrida acórdão que a contribuição mensal do CC duraria 50, dos quais 20 anos, corresponderia a 1/3 do rendimento do falecido (6.000,00 euros) e 30 anos ½ daquele rendimento (9.100,00 euros), perfazendo um total de 312.000,00 euros, segundo os mesmos critérios aplicados no calculo da indemnização devida ao autor BB.
63. Isto porque a sentença recorrida considerou que ao logo no tempo, cessando a prestação alimentar devida ao filho BB, o direito a alimentos da autora AA crescia na mesma medida, com o que não se concorda.
64. Para além disso, nada se provou no sentido de que a autora AA necessitasse, de facto, do valor em causa para prover ao seu próprio sustento.
65. Não nos parece justo que se considere que o CC conseguia prover ao seu próprio sustento com 1/3 do que ganhava, ou seja, 433,33€, mas se ache insuficiente essa mesma quantia para suprir as necessidades da autora AA.
66. Na falta de outros elementos, não se pode deixar de considerar que seria também essa a medida da necessidade alimentar da autora AA, pelo menos enquanto esta estivesse casada.
67. A verba de 312.000,00€ excede, em muito, as necessidades alimentares de qualquer ser humano durante o período de tempo de 50 anos e, portanto, nunca poderia ser atribuída à autora AA uma indemnização assim calculada.
68. Considera-se que o valor máximo da prestação alimentar mensal a considerar no cálculo da indemnização não deve ser superior ao de 350,00€ para a autora AA e de 250,00€ para o autor BB.
69. Por outro lado, nada no processo permite supor que as necessidades alimentares da autora AA aumentariam depois de os filhos do casal obterem a sua independência, pelo que a prestação alimentícia devida à autora deve permanecer inalterada antes e depois do termo da prestação alimentícia devida ao menor BB.
70. Por outro lado, para não propiciar ao lesado um enriquecimento ilegítimo, terá que haver um desconto, desconto esse que terá que ter em conta, precisamente, que o lesado irá receber de uma só vez, líquido de impostos, quantia não taxada, aquilo que receberia em fracções mensais e anuais (vd., entre outros, o Ac. do TR de Guimarães, de 11/07/2013, proc. nº 802/10 e o Ac. do STJ, de 07/06/2011, proc. nº 524/04.)
71. Daí que deva antes ser atribuído ao lesado um capital produtor de rendimentos (a uma taxa julgada adequada) de molde a que seja esse capital e respectivos rendimentos a colmatar a perda patrimonial, mas esgotando-se no final do período considerado.
72. Em equidade, impõe-se uma redução das aludidas indemnizações nunca inferior à de 1/4 do valor a que se chegar.
73. Revertendo ao caso concreto, entende a recorrida que a indemnização devida aos autores, a título de prestações alimentares, deve corresponder:
Quanto à autora AA: capital necessário a suprir uma perda de alimentos no valor de 350,00€, durante um período de 5 ou 15, com redução equitativa em face da possibilidade de divórcio do casal e ainda com a probabilidade de a própria autora passar a auferir rendimentos do seu trabalho, com a inerente redução ou cessação da contribuição alimentar prestada pelo seu falecido marido.
Quanto ao autor BB: capital necessário a suprir uma perda de alimentos no valor de 250,00€, durante um período previsível de 20 anos;
74. A indemnização devida à autora AA, considerado tudo o acima exposto, e um período de duração de prestação alimentar de 5 ou 15 anos, a sua indemnização não deve ser superior a: - 21.000,00€ (350,00€ x 12 meses x 5 anos = 21.000,00€) ou 47.250,00€ (350,00€ x 12 meses x 15 anos = 63.000,00€ / 4 x 3 = 47.250,00€), conforme se considere uma duração previsível de 5 ou 15 anos de prestação alimentar, tendo, em ambos os casos, por base uma prestação alimentar de 350,00€, uma capitalização de 1,5% sem redução equitativa se considerada a duração de 5 anos, por se admitir que ao longo destes AA não obteria meios próprios de subsistência, mas efectuando-se essa redução se se considerar uma duração de 15 anos, por ser de admitir que nesse período, já lograsse obter rendimentos que dispensariam, pelo menos em parte, a pensão alimentar.
75. E, mesmo que se considerasse uma duração de prestação alimentar de 50 anos, sempre se imporia a redução da indemnização nos seguintes termos: 157.500,00€ (350,00€ x 600 meses = 210.000,00€ / 4 x 3 = 157.500,00€), considerando uma prestação alimentar de 350,00€, efectuando-se aqui uma redução equitativa por ser de admitir que ao longo dos 50 a autora AA já lograria obter rendimentos que dispensariam, pelo menos em parte, a pensão alimentar;
76. Baseado no mesmo enquadramento, considera a recorrente que a indemnização devida ao autor BB, considerado tudo o acima exposto e o período de duração de prestação alimentar de 20 anos, respectivamente, a sua indemnização não deve ser superior a: - 45.000,00€ (250,00€ x 240 meses = 60.000,00€ / 4 x 3 = 45.000,00€);
77. Requer-se, assim, a redução das indemnizações atribuídas aos três autores, pela cessação das respectivas prestações alimentares, nos termos acima expostos.
78. Seja como for, entende a recorrente que, pelas razões acima expressas, são excessivas as verbas arbitradas pela sentença recorrida, ainda que com a limitação tais valores operada a final, para os valores que foram peticionados pelos autores.
79. Pelo que, se imporia sempre a redução das indemnizações arbitradas, ainda que se fossem considerados critérios diversos, no todo ou em parte, dos sugeridos pela Ré nestas alegações de recurso.
80. Assim, no que diz respeito à autora AA, impor-se-ia sempre a redução da quantia concedida por: - se ter em consideração uma prestação alimentar inferior à considerada, por se verificar que essa verba é manifestamente exagerada em si mesma em face das necessidades da autora AA; por não se considerar, em face da total ausência de justificação desse entendimento, que a partir da independência económica do filho do casal, essa prestação aumentaria na mesma proporção da prestação cessada; - se ter em consideração que a antecipação da indemnização que receberia ao longo de 50 anos é uma vantagem que impõe uma redução da indemnização que não foi operada na sentença recorrida; - se impor uma redução equitativa da indemnização em face da manifesta possibilidade da autora AA prover, no todo ou em parte, ao seu próprio sustento e se admitir como provável a hipótese de divórcio do casal.
81. Já no que toca ao autor BB, impor-se-ia sempre a redução da quantia concedida por: - se ter em consideração uma prestação alimentar (250,00€/mês x 12 meses) inferior às consideradas, seja por se concluir que o CC não era o único obrigado a prestar-lhes alimentos, seja por se verificar que essa verba é exagerada em si mesma em face das necessidades do BB; - se ter em consideração que a antecipação da indemnização que receberia ao longo de 20 anos é uma vantagem que impõe uma redução da indemnização que não foi operada na sentença recorrida;
82. Logo, não podendo a Ré traçar nestas alegações todas as hipóteses possíveis de quantificação das indemnizações, mas na certeza de que agora impugnadas são excessivas, requer, subsidiariamente, a sua redução, em equidade, atendendo a tudo quanto foi exposto nestas alegações, senão para as verbas acima sugeridas, para outras inferiores às atribuídas.
83. Em qualquer caso, aos montantes que forem arbitrados nesta sede aos aqui autores devem ser deduzidas as quantias que lhes foram pagas (e a pagar até ao termo desta acção) pela ré, no âmbito do procedimento cautelar apenso aos presentes autos, bem como as quantias pagas (e a pagar até ao termo desta acção) pelo interveniente Instituto da Segurança Social, IP a título de subsídio por morte e pensões de sobrevivência.
84. A decisão recorrida viola o preceituado nos artigos 483º, 495º, 496º, 562º, 564º, 2003º e 2004º do Código Civil.
Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso se fará inteira JUSTIÇA!”.
Foram apresentadas contra-alegações pelos recorridos, pugnando pela improcedência do recurso, com a consequente confirmação da sentença recorrida.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DO MÉRITO DO RECURSO
1. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela Apelante e pelos Apelados, a questão a apreciar consiste em decidir se deve ser alterada a análise jurídica que foi feita na sentença recorrida quanto aos valores das indemnizações fixadas.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A apelante não impugnou a matéria de facto dada como provada e não provada, pelo que são os seguintes os factos a ter em conta:
A) Factos provados:
1. No dia 8 de abril de 2022 faleceu CC, no estado de casado com a autora AA, sendo o autor BB filho de ambos.
2. O autor BB nasceu em ../../2017.
3. O mencionado CC nasceu a ../../1993.
4. No dia 8 de abril de 2022, às 22h15, CC foi vítima de acidente de viação, por atropelamento, na Rua ..., junto à Estação ..., na União das Freguesias ..., de ... e de ..., do concelho ....
5. O mesmo foi colhido na passadeira aí existente pelo veículo ligeiro de mercadorias da marca Seat, modelo ..., com a matrícula ..-..-UC, propriedade de EE, e, no momento do acidente, conduzido pelo seu filho FF.
6. Nesse dia e local o mencionado CC estava a atravessar a referida via, surgindo da esquerda para a direita, tendo em conta o sentido de marcha do referido veículo.
7. O mesmo foi colhido pela frente do veículo quando se encontrava na passadeira.
8. A passagem de peões naquele local está sinalizada com sinal vertical H7.
9. A via onde o atropelamento ocorreu é um arruamento, onde o limite máximo de velocidade é de 50 km/h.
10. O mencionado veículo circulava no sentido Norte para Sul da indicada via.
11. À hora do acidente o trânsito era pouco intenso.
12. O local onde ocorreu um atropelamento é uma reta, em patamar, sendo o arruamento ladeado por passeios de ambos os lados, formado por duas vias, uma para cada um dos sentidos de trânsito, com marcas rodoviárias bem definidas.
13. No local havia iluminação pública nas proximidades do local onde ocorreu o atropelamento, apesar de ser noite e existir um ligeiro nevoeiro.
14. O condutor do veículo seguia a uma velocidade superior à permitida no local.
15. No local do acidente foi possível verificar-se a existência de rastos de travagem do UC, sendo que existiam 2 conjuntos de travagem: um primeiro com uma extensão de 25,60 metros antes da colisão com o peão e um segundo após a colisão, numa extensão de 66,50 metros.
16. O condutor do veículo foi submetido a testes de controlo do álcool e de estupefacientes, tendo, em ambos, apresentado resultado negativo.
17. CC foi declarado morto, no local, tendo o seu óbito sido verificado pelo médico GG, titular da cédula ...99.
18. O mesmo faleceu em consequências das lesões sofridas decorrentes do atropelamento.
19. À data do acidente, o referido veículo estava segurado na companhia de seguros “Tranquilidade”, com apólice n.º ...02.
20. À data do acidente CC era um jovem feliz, um marido apaixonado e dedicado e um pai atento e carinhoso.
21. Passava os tempos livres com os autores a quem dedicava o tempo que lhe sobrava do trabalho.
22. Na data do óbito CC era trabalhador da B..., EM, auferindo uma remuneração base no valor mensal de 813,30 euros, acrescido de subsídio de alimentação e de subsídio de turno no valor de €325,00, auferindo, em média, um vencimento líquido de €1300,00 mensais.
23. A morte do mencionado CC provocou nos autores sofrimento psicológico.
24. Em consequência dessa morte a autora ficou destroçada, num estado de grande consternação, angústia e desespero, assim como deprimida.
25. O autor BB, mantinha uma relação muito estreita com o pai, com o qual brincava diariamente, sofrendo com a ausência do pai, perguntando pelo mesmo com frequência, sem conseguir compreender o seu súbito desaparecimento,
26. E sentirá a ausência do pai nos momentos mais importantes da sua vida.
27. Após o acidente a autora recorreu a consultas de psicologia.
28. Devido à morte de CC, o rendimento dos autores diminuiu já que o mesmo contribuía com o ordenado que auferia para o sustento do agregado familiar.
29. A autora confeciona bolos em casa que vende a terceiros.
30. O referido CC residia com os autores em casa arrendada pela qual pagavam €450,00 mensais de renda.
31. O mesmo contribuía para as despesas mensais do agregado familiar designadamente para as despesas com água, luz e gás, medicamentosas, assim como as despesas alimentares.
32. Com o vencimento que auferia o mencionado CC também suportava as despesas necessárias à sua própria alimentação, bem como vestuário e calçado.
33. Os autores requereram Arbitramento de pensão provisória, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 6, sob o nº 1917/23.0T8PVZ, estando apenso a esta ação, no âmbito da qual foi fixado pagamento pela ré de uma prestação pecuniária no valor de €1.000,00, mensais, por transação homologada por despacho proferido em 26/01/2024.
34. Os autores estão a receber da ré, desde 31/1/2024, a quantia de 1.000,00€ mensais, a título de arbitramento de reparação provisória.
35. O ISS/CNP pagou à autora AA subsídio por morte no valor de €1.329,60.
36. E pagou ainda Pensões de Sobrevivência, no período de 2022/05 a 2024/11, no total de €9.122,97 da seguinte forma:
a) à viúva AA o total de €6.742,00, sendo o valor mensal atual de € 191,69.
B) Factos não provados:
1. A 1.ª autora não consegue trabalhar pelo facto de ter perdido o seu marido.
2. A mesma, em consequência da morte do mencionado CC, sofre atualmente de depressão, tendo dificuldades em dormir e sente que a vida perdeu todo o sentido.
3. O 2.º autor sente revolta, incompreensão e momentos de raiva pelo facto de o seu pai ter falecido.
4. Esses sentimentos irão agudizar-se na entrada na adolescência quando descobrir que o seu pai foi morto numa passadeira, atropelado por um veículo.
5. Os autores, desde o acidente, necessitam de acompanhamento psiquiátrico.
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IV – MOTIVAÇÃO DE DIREITO
O presente recurso versa apenas sobre a decisão na parte em que fixou os valores da indemnização devida pela ré/recorrente aos autores.
Vejamos:
Depois de discorrer, de forma que não nos merece censura, sobre a responsabilidade civil extracontratual e os seus requisitos, e concluindo pela culpa exclusiva do condutor do veículo segurado na ré, sendo certo que esta assumiu, desde o início, a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos sofridos pelos autores em consequência do sinistro em causa, a decisão recorrida pronuncia-se quanto à obrigação de indemnizar e fixa os valores concretos a cujo pagamento condenou a ré/recorrente.
Resulta do disposto no art. 483.º do Código Civil que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Quanto à obrigação de indemnização, prevê o art. 562.º do mesmo diploma legal, que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, consagrando o princípio da reconstituição natural.
Não sendo possível a reconstituição natural, a indemnização é fixada em dinheiro, tendo como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos, sendo, ainda, que se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados, como tudo resulta do disposto no art. 566.º do Código Civil.
Posto isto, e quanto à situação específica que se verifica nos autos, em que o lesado faleceu e os demandantes são a viúva e o filho, há que atender ao disposto nos arts. 496.º, nºs 2 e 4 e 495.º, nº 3, ambos do Código Civil.
Ou seja, no que para o caso interessa, por morte da vítima, cabe direito à indemnização por danos não patrimoniais, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos; o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º, sendo que no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores (art. 496.º).
E, têm, ainda, direito a indemnização por danos patrimoniais os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural (art. 495.º, nº 3).
Tanto a doutrina como a jurisprudência vêm entendendo que em caso de morte, do artigo 496.º, n.º s 2 e 3, do Código Civil, resultam três danos não patrimoniais indemnizáveis:
- O dano pela perda do direito à vida;
- O dano sofrido pela própria vítima antes de morrer;
- O dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte.
Ao que acresce, como já referido e nos termos do artigo 495.º, n.º 3, que o lesante é também obrigado a indemnizar o dano patrimonial sofrido pelas pessoas com direito a exigir alimentos ao lesado ou por aquelas a quem este, de facto, os prestava em cumprimento de uma obrigação natural.
A recorrente entende que se mostram excessivamente valorizados os danos relativos ao direito à vida e os danos morais próprios dos autores, que na sentença recorrida foram fixados, respetivamente, em € 100 000,00, a atribuir em partes iguais aos autores, e em € 40 000,00 para cada um dos autores.
Vejamos.
É unânime considerar que a determinação da compensação pecuniária devida pelo dano morte e correspondente lesão do direito à vida deve fazer-se com recurso à equidade, ponderando critérios de uniformidade na jurisprudência para situações similares, sem descurar, todavia, a especificidade do caso concreto (cfr., entre muitos outros, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-02-2022, Processo 2374/20.8T8PNF.P1, Relator: JUDITE PIRES).
O mesmo vale para a fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais, resultantes do sofrimento e perda pela morte do marido e pai, em consequência das lesões resultantes de acidente de viação, situação em que o julgador se encontra também sujeito a critérios de equidade.
Neste caso, deve ponderar-se a situação económica do lesado e do obrigado à reparação, a intensidade do grau de culpa do lesante, e extensão e natureza das lesões sofridas.
Posto isto, cabe decidir.
No que diz respeito ao dano pela perda do direto à vida do marido e pai dos autores, há que considerar, como em qualquer caso, que o direito à vida é o bem jurídico supremo, acrescendo, no caso concreto, que a vítima tinha 28 anos de idade, estava profissionalmente inserido, tinha toda uma vida pela frente, junto da família constituída pela esposa e um filho pequeno, de apenas cinco anos de idade.
Considerando os valores que vêm sendo fixados pelos Tribunais Superiores, relativamente a este tipo de dano, e dando aqui por reproduzidos os acórdãos citados na decisão recorrida, bem como pela própria recorrente e pelos recorridos, nas suas alegações, afigura-se-nos que o valor fixado pelo tribunal a quo, de € 100 000,00 se mostra perfeitamente ajustado, face às circunstâncias concretas do caso, pelo que nada há a alterar no valor fixado, improcedendo o recurso quanto a este aspeto, sem necessidade de outras considerações.
Também relativamente à indemnização fixada pelos danos morais sofridos pelos autores em consequência da perda do seu ente querido, entende a recorrente que os valores fixados - € 40 000,00 para cada um dos autores – se mostram exagerados.
Ora, mais uma vez, a indemnização pelo dano em causa deve ser fixada de acordo com critérios de equidade, como já referido, sendo impossível encontrar um valor como forma de ressarcir totalmente tais danos, pelo que a indemnização a este título consiste apenas numa forma de compensar minimamente os lesados.
No caso, como se refere na sentença recorrida, estamos a tratar de danos sofridos pela autora, enquanto cônjuge do sinistrado, e pelo 2.º autor, filho do falecido, estando, assim, perante a quantificação da dor da perda de um ente familiar que era, obviamente, muito próximo dos autores.
Quanto à 1.ª autora resulta da factualidade provada que a mesma era casada com a vítima CC, sendo que o mesmo era um marido apaixonado.
Em consequência da sua morte, a 1.ª autora sentiu-se destroçada, num estado de grande consternação, angústia e desespero, assim como deprimida, tendo tido necessidade de recorrer a consultas de psicologia.
Quanto ao 2.º autor o mesmo é filho do sinistrado e teria cerca de 5 anos de idade à data do sinistro.
O mesmo mantinha uma relação muito estreita com o pai, com o qual brincava diariamente, sofrendo com a ausência do pai, perguntando pelo mesmo com frequência, sem conseguir compreender o seu súbito desaparecimento e, obviamente, sentirá a ausência do pai nos momentos mais importantes da sua vida.
É insofismável que os autores ficaram privados da presença do marido e pai, respetivamente, de uma forma precoce e violenta, pelo que não resta qualquer dúvida que os mesmos terão sofrido com a morte do mesmo.
Acresce que, a vítima não teve qualquer contribuição para a ocorrência do sinistro, pelo que, nos termos da Jurisprudência citada, se considera adequada também a indemnização fixada pela sentença recorrida, quanto aos danos morais sofridos pelos autores, mantendo-se, assim, a decisão, também nesta parte.
Finalmente, insurge-se a recorrente contra ao valor da indemnização atribuída aos autores a título de dano patrimonial futuro.
Tal indemnização, como já se mencionou supra, é devida por via do disposto no art. 495.º, nº 3 do Código Civil, que prevê que “Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural”.
Vem sendo entendimento dominante da Jurisprudência, como, aliás, bem se refere na decisão recorrida, que essa indemnização tem como critério a perda patrimonial, em termos previsíveis de danos futuros, correspondente ao que o falecido vinha efetivamente prestando ou que poderia eventual prestar, bem como que não se impõe aos demandantes a prova da efetiva prestação de alimentos, e/ou do seu montante, por parte do falecido, ou sequer da necessidade dos mesmos, mas tão só que se encontra entre o leque de pessoas que poderiam exigir alimentos do último.
Neste sentido, cfr., para além do Ac. do STJ de 15-10-2014, Processo 1830/21.5T8PVZ.P1.S1, citado pelo Tribunal a quo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-10-2019, Processo 85/07.9TCGMR.G1, onde se decidiu: “I - O exercício do direito de indemnização excepcionalmente reconhecido pelo art. 495.º, n.º 3, do CC àqueles que podiam exigir alimentos ao lesado, não depende da prova em concreto de que, ao tempo da verificação do facto danoso, estivessem a recebê-los. II - É suficiente, para tal efeito, a demonstração de que, à data do facto danoso, se estava em situação de legalmente exigir os alimentos.”.
E mais se diz nesse mesmo acórdão que “III - Quando o titular activo do direito excepcionalmente reconhecido pelo art. 495.º, n.º 3, do CC seja um filho de menor idade do lesado, a medida concreta da indemnização a conceder deverá ter em consideração o lapso temporal por que perduraria o dever de alimentos a cargo da vítima, atento o disposto no art. 564.º, n.º 2, do CC (danos previsíveis).”.
E quanto ao cônjuge, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-05-2010, Processo 111/04.3TBMUR.P1.S1, Relator: SALAZAR CASANOVA, disponível em dgsi.pt, relativamente à indemnização em causa:
“I - O dever de assistência entre os cônjuges compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar (art. 1675.º do CC), estes traduzem a expressão do dever de alimentos que os cônjuges se devem quando vivem juntos.
II - Por isso, quando o cônjuge reclama indemnização por danos futuros referenciados à perda para sempre da contribuição do outro cônjuge, falecido em acidente de viação, mais não está a fazer do que a reclamar junto de terceiro, nos termos do art. 495.º, n.º 3, do CC, os alimentos, expressão da contribuição para os encargos da vida familiar, que podia exigir ao falecido marido e a que este estava vinculado.
III - Uma tal indemnização é sempre devida independentemente da efetiva necessidade do cônjuge, pois os cônjuges, no seio da vida familiar, não podem deixar de contribuir para os encargos da vida familiar na proporção das respetivas possibilidades (art. 1676.º, n.º 1, do CC).
Não existem, assim, dúvidas de que os autores têm direito à indemnização em causa.
A seguinte questão que se coloca está relacionada com a fixação dos valores devidos a título de danos patrimoniais decorrentes da morte do marido e pai dos autores, concretamente, saber se o cálculo se faz em função do critério de alimentos, no sentido do que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário dos autores (arts. 2003.º e 2004.º do CC), ou se, sendo fundada na responsabilidade civil, tal indemnização se calcula de acordo com os princípios enunciados nos artigos 562.º, 564.º e 566.º do Código Civil, e não por aplicação dos critérios específicos da prestação de alimentos a que se referem os artigos 2003.º, n.º 1 e 2004.º do CC.
Entendemos que não devem ser aplicadas na situação em causa, as regras da fixação de alimentos, mas antes as regras da indemnização devida na sequência de responsabilidade civil extracontratual. E sendo assim, para o cálculo da indemnização por lucros cessantes, e fazendo apelo a critérios há muito consolidados na jurisprudência, deve tomar-se como base designadamente o rendimento anual da vítima, o montante que presumivelmente despenderia em gastos pessoais, a sua idade ao tempo do acidente e o acerto resultante da entrega do capital de uma só vez, ao lesado.
Sobre esta matéria, passamos a transcrever o que se diz no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-10-2017, Processo 1090/12.9GBAMT.P1.S1 (disponível em dgsi.pt), cuja posição acompanhamos e reflete totalmente o nosso entendimento:
“(…) VIII - Quanto à determinação dos danos patrimoniais futuros tem sido diversa a pronúncia efectuada em diferentes decisões deste STJ que, partindo do art. 495.º, n.º 3, do CC, oscilam entre uma visão limitativa cuja genética radica no apego à consideração da existência duma obrigação alimentar tout court à consideração de que não são as necessidades da prestação alimentar, e a sua medida, que balizam a indemnização do dano previsto no referido artigo. Numa posição equidistante se coloca alguma jurisprudência que, afirmando a existência de uma perda de alimentos, reconduz o seu cálculo ao apelo à teoria da diferença a que se reporta o art. 562.º, do CC.
IX - Estamos em crer, na sequência duma aquisição doutrinal e jurisprudencial que os arts. 495.º e 496.º, do CC (respectivamente em sede de danos patrimoniais e não patrimoniais) consagram no domínio da responsabilidade civil extracontratual uma excepção ao princípio de que o detentor do direito à indemnização é próprio portador do direito violado, que só depende do facto de elas assumirem a posição de poderem exigir alimentos à vítima da lesão de morte. O nascimento de tal direito na esfera jurídica está, assim, dependente de existir a possibilidade legal do exercício do direito aos alimentos e mesmo que não estejam a receber da vítima qualquer prestação alimentar por carência efectiva deles.
X - Questão distinta da titularidade daquele direito é a da forma como o mesmo se define em concreto, sendo certo que, também aqui, se denota alguma divergência jurisprudencial pois que, enquanto alguns constroem a obrigação de indemnização em convergência com os parâmetros da obrigação alimentar, já para outros a solução adequada passa pela recondução aos princípios gerais inscritos no art. 562.º, do CC.
XI - Não são a necessidade da prestação alimentar e a sua medida que efectivamente balizam a indemnização do dano previsto no art. 495.º, n.º 3, do CC. Portanto, conjugando aquele dispositivo com o disposto no art. 2009.º, do CC, não há dúvida de que as demandantes têm direito a indemnização pelos danos que eles próprios tenham sofrido em consequência do óbito do seu companheiro e pai, consistentes nos rendimentos de que ficaram privados, na medida em que só mediante o recebimento desses rendimentos podem manter o trem de vida que, para eles, o lesado se esforçava por alcançar, e que manteriam se este fosse vivo, que é o que os alimentos tendencialmente visam na interpretação mais correcta dos arts. 2003.º e 2004.º, do CC.
XII – O direito de indemnização atribuído aos lesados indirectos na hipótese prevenida nesse preceito tem, como qualquer outro, a medida estabelecida nos arts. 562.º e segs.. Só determinados no art. 495.º, n.º 3, do CC, os titulares da indemnização a que se refere, isto é, a quem é devida, o quantum dessa indemnização deve, conforme arts. 562.º, 564.º e 566.º, do CC repor a situação que existia no momento da lesão. É, assim, em função da denominada teoria da diferença, conjugado nos termos do art. 562.º e segs., do CC que é definido o direito de indemnização de que são titulares as pessoas referidas no art. 495.º, n.º 3, do CC, independentemente da necessidade efectiva de alimentos.
XIII – Os danos indemnizáveis em questão são constituídos por tudo quanto, independentemente do montante de alimentos eventualmente exigível, - e sem com tal, enfim, qualquer correlação, o lesado directo efectivamente prestava, e com toda a probabilidade continuaria a prestar, à família, incluindo o cônjuge de facto, se fosse vivo. Porque a previsão assenta sobre danos verificáveis no futuro, relevam sobremaneira os critérios de verosimilhança ou de probabilidade, de acordo com o que, no concreto, poderá vir a acontecer segundo o curso normal das coisas. Releva, essencialmente, o prudente arbítrio do tribunal, nos termos do art. 566.º, n.º 2, do CC, tendo em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida.
XIV - Resultando provado que, à data do acidente, a vítima contribuía com a quantia de €200,00, a título de alimentos à menor N, é lógico admitir, segundo as regras de experiência de vida, que o contributo da vítima aumentaria para €300,00 mensais, a partir da altura em a N atingisse a idade escolar e completasse o ensino básico e o ensino secundário e para €500,00 quando a mesma ingressasse no ensino superior. Daí quantificar-se o dano da perda de alimentos em €87.600,00. Atento o recebimento imediato e na totalidade da indemnização mostra-se ajustado aplicar uma redução de acordo com uma taxa na ordem de 1,5%. Pelo que se fixa a indemnização pela perda de alimentos em €70.000,00.”.
Como mencionado, concordamos inteiramente com esta posição.
Assim, quanto aos valores concretos das indemnizações devidas a cada um dos autores a este título, temos que o Tribunal a quo fixou o valor de € 96 000,00 para o autor filho da vítima e € 312 000,00 para a viúva.
Ora, com interesse para a apreciação desta questão resultou provado que a vítima auferia, em média, uma remuneração líquida mensal de € 1 300,00, recebendo a remuneração correspondente a 14 meses por ano, ou seja, num total de cerca de € 18 000,00 anuais.
Tinha, à data do acidente, a idade de 28 anos.
O filho da vítima tinha, quando perdeu o pai, quase 5 anos de idade.
Considera-se normal que os pais contribuam/suportem as despesas com os filhos até terminarem a sua formação, admitindo-se que isso aconteça, em média, por volta dos 25 anos de idade, o que, no caso, significa que a vítima iria contribuir para os alimentos do filho, ao longo de mais 20 anos.
Quanto à mulher, dispensando conjeturas como as que faz a recorrente nas suas alegações sobre probabilidades de divórcio ou outras considerações que não podemos prever, e prevendo, antes, que o casamento poderia perdurar por toda a vida, como também acontece, a vítima iria colaborar nas despesas normais do casal, até ao fim da sua vida, que podemos calcular se prolongaria por mais cerca de 50 anos, tendo em conta a sua idade e a esperança média de vida para os homens.
Ora, considerando, como se faz no último dos acórdãos citados, que o direito de indemnização atribuído aos lesados indiretos na hipótese prevista no art. 495.º, nº 3 do CC, tem, como qualquer outro, a medida estabelecida nos arts. 562.º e seguintes, o quantum dessa indemnização deve, conforme arts. 562.º, 564.º e 566.º, do CC repor a situação que existia no momento da lesão, pelo que é em função da denominada teoria da diferença que é definido o direito de indemnização de que são titulares as pessoas referidas no art. 495.º, n.º 3, do CC, independentemente da necessidade efetiva de alimentos.
Posto isto, vem sendo habitual considerar-se que a vítima despenderia um terço do seu rendimento com as suas próprias despesas, destinando o restante às despesas familiares, pelo que devemos considerar o seguinte:
- CC foi vítima de acidente de viação que lhe causou a morte, sem qualquer contribuição da sua parte para o evento;
- Tinha 28 anos de idade à data do acidente;
- Era casado com a autora AA e pai do autor BB;
- O autor BB tinha quase 5 anos de idade quando perdeu o pai;
- CC auferia um rendimento mensal líquido de cerca de € 1 300,00 e participava com todo o seu rendimento nas despesas familiares (até porque a autora AA não exercia, à data, qualquer atividade profissional remunerada);
- É expectável que tal contribuição perdurasse, relativamente ao filho, até à idade em que terminasse a sua formação, podendo considerar-se a idade de 25 anos;
- Quanto à esposa, seria normal que a vítima continuasse a contribuir para as despesas familiares até ao fim da sua vida, durante mais 50 anos, nos termos referidos supra.
Deste modo, mesmo deixando fora destas considerações a natural evolução dos rendimentos da vítima, mas levando em conta que a viúva não está impedida de prover ao seu próprio sustento, o que não seria impeditivo de que beneficiasse dos rendimentos do marido, vendo, assim, a sua situação de vida melhorada em relação a ter de viver apenas com os rendimentos que consiga auferir; levando também em conta que irá receber um valor global de uma só vez, não se afiguram desajustados os montantes fixados pelo Tribunal a quo a título de danos patrimoniais futuros.
Em relação ao filho, de cinco anos de idade, admite-se como natural que o pai contribuísse para o respetivo sustento e formação durante mais cerca de 20 anos, destinando um terço do seu rendimento para o efeito, pelo que os seis mil euros correspondentes a um terço do rendimento anual, ao longo de 20 anos, dará o valor de € 120 000,00, mostrando-se o valor de € 96 000,00 fixado pelo Tribunal a quo, perfeitamente ajustado, considerando que tal valor irá ser disponibilizado de uma só vez.
E entendemos que nada há a alterar ao valor fixado, nomeadamente considerando que a autora, mãe do menor, também tem obrigação de contribuir para os alimentos do filho, já que o filho não deve perder a qualidade de vida de que beneficiava ou era previsível de que beneficiaria caso não lhe tivesse sido tirado o pai.
No que diz respeito à viúva, também não deixamos de concordar com os cálculos que são feitos na sentença recorrida, nomeadamente no que diz respeito ao rendimento do marido do qual a autora poderia beneficiar, quando o pai deixasse de contribuir para o sustento e formação do filho, altura em que os rendimentos passariam a beneficiar apenas o casal, e mesmo levando em conta que a mesma pode prover ao seu sustento, ou, melhor, contribuir para as despesas familiares, tal só iria aumentar o rendimento disponível, não significando que a autora deixaria de beneficiar do rendimento do marido, até porque, como vimos, não está em causa, na indemnização em questão, a necessidade de alimentos, mas o que a autora deixou de beneficiar pela perda do marido.
E assim sendo, entendendo-se dever considerar-se que a autora beneficiava de cerca de um terço do rendimento do marido, enquanto este foi vivo e enquanto o agregado familiar fosse constituído pelas três pessoas que o compunham, ao longo de, previsivelmente, 20 anos, passando, depois, esse rendimento a destinar-se apenas à autora e seu marido, não vemos que o valor destinado à autora AA pelo Tribunal recorrido, a esse título, se não mostre adequado, pelo que se mantém a indemnização de € 312 000,00 fixada.
Aliás, se formos dividir esse valor pelos previsíveis 50 anos que restariam de vida ao marido da autora, teremos um valor mensal de cerca de 500 euros, crendo-se que não ultrapassa, ficando, antes, abaixo, o valor do qual a autora poderia beneficiar caso o seu marido continuasse vivo.
Fazendo novamente apelo ao já citado Acórdão desta 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, Processo 2374/20.8T8PNF.P1, Relator: JUDITE PIRES, 24-02-2022, “Na quantificação das indemnizações dos familiares por perda do contributo remuneratório da vítima falecida, haverá que ter sempre presente a figura da equidade, a qual visa alcançar a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei, de forma que se tenha em conta, as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida.”.
Por todos os fundamentos expostos, improcede, assim, o recurso na totalidade.
*
Nas suas contra-alegações deixam os recorridos o que parece ser um pedido de condenação da recorrente como litigante de má fé.
Não nos parece, contudo, que existam elementos para o efeito.
Nos termos do disposto no art. 542.º do CPC, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Ora, face ao disposto no art. 542.º do CPC, acabado de citar, a condenação de uma parte como litigante de má fé consubstancia um juízo de censura sobre a sua atitude processual, estando em causa um uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais, com as finalidades mencionadas no preceito referido.
Na situação dos autos, há que considerar que, destinando-se o recurso a apreciar as questões decididas pelo Tribunal de 1.ª Instância, e não tendo sido aí decidida, ou sequer invocada, a litigância de má fé, nada há a decidir quanto a isso.
Contudo, isso não exclui a possibilidade de haver litigância de má fé na fase do recurso.
Assim, tendo sido arguida a litigância de má fé nas alegações de recurso, cabe conhecer dessa questão, mas circunscrevendo-se a apreciação à litigância de má fé na fase do recurso, ou seja, ao que o recorrente defende nas suas alegações de recurso.
No caso, entendemos não ser necessário exercer o contraditório, até porque consideramos não assistir razão aos recorridos.
Embora o recurso seja julgado improcedente, a recorrente apenas impugna o valor da indemnização fixada, e sendo certo que os valores das indemnizações não são valores fixos, existindo nas decisões dos Tribunais discrepâncias, entende-se que a recorrente se limitou a, nos termos legais, tentar fazer valer um direto que lhe assiste, sem que se afigure ter atuado com dolo ou sequer negligência, ou que tenha feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, ou entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Improcede, pois, qualquer pedido de condenação da recorrente como litigante de má fé.
*
V- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo, consequentemente, a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas a cargo da recorrente (art. 527.º do CPC).
Porto, 2025-05-08
Manuela Machado
António Carneiro da Silva
Álvaro Monteiro
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/f15a3aea941e790480258c900031fae4?OpenDocument
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1,747,180,800,000
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REVOGAÇÃO PARCIAL
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3284/21.7T9LRA.C1
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3284/21.7T9LRA.C1
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ALEXANDRA GUINÉ
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1 - É admissível a abertura de instrução, a requerimento do assistente visando a alteração da qualificação jurídica dos factos efetuada no despacho de arquivamento e para desse modo lograr o preenchimento dos tipos imputados.
2 - Embora não seja necessário o recurso às expressões habitualmente usadas na praxis, em caso de imputação de crime doloso, do requerimento para abertura de instrução devem resultar, sem margem para dúvidas, os elementos que respeitam ao dolo, incluindo, sendo o caso, os relativos a uma específica intenção do agente.
3 - O requerimento de abertura de instrução deve ser recebido, quando dele constem de forma inequívoca, embora com algum esforço interpretativo, os elementos típicos do crime imputado.
(Sumário elaborado pela Relatora)
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[
"CRIME DE ACESSO INDEVIDO",
"CRIME DE ABUSO DE PODER",
"REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO",
"REJEIÇÃO POR INADMISSIBILIDADE LEGAL",
"ELEMENTO SUBJECTIVO"
] |
Acordam, em conferência, na 5ª secção, do Tribunal da Relação de Coimbra
I. Relatório
1.
Nos autos a correr os seus termos sob o n.º 3284/21.7T9LRA, no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria (Juízo de Instrução Criminal), em que é arguida AA, foi
rejeitado com fundamento em inadmissibilidade legal o requerimento de abertura de instrução
apresentado pelo assistente BB.
2. Inconformado recorreu o assistente apresentando as seguintes conclusões:
«
A.
O Requerimento de Abertura de Instrução (RAI) foi apresentado pelo assistente BB após o Ministério Público (MP) arquivar o inquérito, sustentando a inexistência de indícios suficientes para os crimes de violação de segredo por funcionário e violação de segredo.
B.
No RAI, o assistente demonstrou que existem claros indícios da prática de crimes de acesso indevido e abuso de poder por parte da arguida AA, com base nos mesmos factos apurados no inquérito.
C.
Assim, entre os dias 11 de agosto de 2020 e 15 de setembro de 2020, a arguida realizou 22 acessos injustificados aos dados pessoais do assistente, incluindo IRS, matrizes prediais, e-fatura e outros elementos fiscais, sem qualquer conexão funcional ou administrativa que justificasse tais consultas.
D.
No plano subjetivo, o dolo foi demonstrado no RAI com base na frequência e no padrão dos acessos, que eram reiterados, intencionais e desconectados de qualquer necessidade profissional.
E.
A arguida forneceu justificações contraditórias, alegando inicialmente que os acessos foram realizados "no âmbito das suas funções", mas, posteriormente, admitindo proximidade pessoal com a ex-esposa do assistente, CC, o que revela motivação alheia ao exercício das suas funções públicas.
F.
No despacho de arquivamento, o MP não abordou adequadamente os indícios relativos aos crimes de acesso indevido e abuso de poder, limitando-se a tratar os crimes de violação de segredo.
G.
O despacho do tribunal a quo, que rejeitou o RAI, fundamentou-se, entre outros pontos, na alegação de que a instrução não pode abranger crimes não considerados no despacho de arquivamento do MP.
H.
Com o devido respeito, tal argumento é incorreto, pois o artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do CPP permite que o juiz de instrução reexamine os factos sob uma perspetiva jurídica distinta, podendo proceder à requalificação dos crimes, desde que os factos sejam os mesmos.
I.
A argumentação do despacho de que o RAI introduziu "novos factos" também não procede, uma vez que o RAI baseou-se exclusivamente nos factos já apurados no inquérito, nomeadamente os acessos aos sistemas da AT pela arguida.
J.
Conforme o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25.09.2014, o arquivamento do inquérito nos termos do artigo 277.º do CPP não exige que os factos sejam delimitados a uma qualificação jurídica específica, salvo em casos de crimes dependentes de queixa.
K.
Assim, os factos podem ser requalificados ou ampliados em caso de reabertura de instrução, até porque não foi deduzida acusação pelo MP.
L.
Acresce que, é irrelevante, para a configuração dos crimes de acesso indevido e abuso de poder, quais concretas informações foram consultadas ou se houve prejuízo direto para o assistente.
M.
Trata-se de crimes de mera conduta, sendo suficiente que a consulta tenha ocorrido sem justificação legal e em violação das normas de confidencialidade e proteção de dados.
N.
Nesse sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07.02.2022 sublinha que a violação de dados pessoais por agentes públicos é uma ofensa grave aos direitos fundamentais, independentemente do prejuízo concreto sofrido pela vítima.
O.
Pelo que, a abertura de instrução permitirá a análise de todos os indícios de forma detalhada, garantindo uma decisão fundamentada sobre a existência de indícios suficientes para pronúncia pelos crimes de acesso indevido e abuso de poder.
Nestes termos e nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V/ Exªs, deve o presente Recurso merecer provimento e, em consequência, ser revogada a douta decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que admita a Requerimento de Abertura de Instrução pelo assistente, com o que se fará a costumada justiça!
».
3. Notificado, em resposta, o Ministério Público pugna pela improcedência do recurso, concluindo nos seguintes termos:
«
1º - Não tendo havido inquérito em relação aos factos descritos no RAI não pode haver instrução sobre eles, como decorre diretamente da delimitação operada pelos artigos 286.º n.º 1 e 287.º n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal, relativamente às finalidades e âmbito da instrução, que destinando-se exclusivamente à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, pressupõe que o inquérito sobre os factos em causa tenha existido.
2º - De onde decorre a inadmissibilidade da instrução requerida pelo assistente com vista à pronúncia por factos que não forem objeto de inquérito e relativamente aos quais o Ministério Público não tenha decidido o respetivo arquivamento, ainda que implicitamente.
3º - Sendo a instrução requerida pelo Assistente, como sucede no caso em análise, é aplicável ao respetivo requerimento, por força da parte final do n.°2 do artigo 287.°, o disposto no artigo 283.°, n.°3, alíneas a) e b), do CPP, o que significa que o mesmo terá de conter, sob pena de nulidade: “a indicação tendentes à identificação do arguido” e “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentem a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.
4º - No requerimento de abertura de instrução deduzido nos autos deparamos, além do mais, com a omissão relativa aos elementos objetivos e subjetivos dos ilícitos criminais.
5º - Assim sendo, não se mostrando cumpridos todos os requisitos previstos nos artigos supramencionados, enferma aquele de nulidade, a qual não é uma nulidade meramente formal, mas afeta a própria instrução, e, portanto, seria sempre inexequível e legalmente inadmissível.
6º - Tal requerimento não é suscetível de aperfeiçoamento, não podendo o juiz suprir as omissões como a que se verifica no caso concreto, e que consubstancia uma nulidade. Admitir o anómalo aperfeiçoamento da acusação ou do requerimento da abertura de instrução, constituiria uma violação do princípio do acusatório, ao ver a entidade julgadora a ter funções de investigação antes do julgamento, o que o atual C.P.P. não pretende.
7º - Pelo exposto, não se verificando a violação de qualquer preceito legal, entendemos que deverá o presente recurso ser julgado improcedente.
Porém, decidindo, V.Exa farão a costumada JUSTIÇA
».
4. Nesta Relação, o Digno Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, escrevendo, designadamente o seguinte:
«
1. Recorre o assistente BB do despacho que rejeitou, por inadmissibilidade legal. o seu requerimento para abertura de instrução.
2. Apresentou a motivação e as respectivas conclusões, que aqui se dão por reproduzidas.
3. Em suma, defende que o requerimento de abertura de instrução reúne os requisitos necessários para ser admitido: as razões de facto e de direito quanto à discordância relativamente à não acusação foram devidas e especificamente apresentadas; os necessários factos objectivos constitutivos dos crimes de acesso indevido e abuso de poder foram explanados suficientemente, e o requerimento contém também a narração dos factos que constituem os crimes imputados.
4. Termina, pedindo a procedência do recurso, com recebimento do requerimento para abertura de instrução.
5. Ao recurso respondeu o Ministério Público, tendo concluído que a pretensão recursiva terá que naufragar, porquanto o decidido não merece censura, devendo ser confirmado.
6. Não se verificam circunstâncias que obstem ao conhecimento do recurso.
7. É consensual o entendimento de que o requerimento do assistente para a abertura de instrução tem de configurar substancialmente uma acusação, devendo constar do mesmo a descrição dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança - ou seja os elementos objectivos e subjectivos do tipo - e a indicação das disposições legais aplicáveis – artigos 283º , n.3, al. b) ex vi do art.º 287º, nº2, do mesmo diploma.
8. E que a falta de narração, por parte do assistente requerente da instrução, dos factos integradores do crime imputado, constituiu uma nulidade - artigo 283, nº3, do Código de Processo Penal -, uma vez que o requerimento de abertura de instrução pelo assistente, no caso de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público, fixa o objecto do processo – artigos 303º e 309º do mesmo diploma legal.
9. Analisando o despacho recorrido, constata-se que o Mmº Juiz de Instrução fundamenta o indeferimento em duas ordens de razão.
10. Por um lado porque, no entendimento sufragado, “a instrução não tem por finalidade substituir-se ao inquérito, completá-lo ou rectificá-lo”, pelo que, não constando do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público alusão aos crimes de acesso indevido e abuso de poder, “não pode por via da instrução lograr-se a pronúncia da arguida por tais crimes”.
11. Por outro lado, porque a factualidade descrita “não poderia sustentar, por manifesta insuficiência e falta de concretização, um despacho de pronúncia pela prática de quaisquer crimes, mormente os de acesso indevido ou abuso de poder”.
12. Quanto à primeira questão, é nosso entendimento que a razão está do lado do recorrente. Entendemos, como o recorrente, que a omissão do Ministério Público em valorar os factos apurados a luz dos mencionados crimes não pode inviabilizar a realização da instrução.
13. O Juiz de Instrução não está vinculado à qualificação jurídica dos factos feita pelo Ministério Público no despacho de arquivamento, pelo que a instrução não pode ser liminarmente inviabilizada por conta da eventual deficiente qualificação jurídica dos indícios feita pelo Ministério Público.
14. Relativamente à segunda causa invocada para o indeferimento, a insuficiência e falta de concretização da factualidade descrita, diz-se, no despacho recorrido que o requerimento “não faz, como se lhe exigia, uma descrição estruturada, coerente e compreensível de factos (…) não descreve qual a intenção que (a arguida) tinha nesses acessos (…) não se alega factualidade integradora do elemento cognitivo do dolo quanto aos crimes de acesso indevido (…) quanto aos crimes de abuso de poder, nada se alega quanto à intenção da arguida obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, assim omitindo a descrição factual de elemento típico de tal crime.
15. Mais uma vez temos de concordar com o recorrente.
16. Percorrendo o requerimento, pode considerar-se que o mesmo não está elaborado da forma mais correcta, com uma escorreita e facilmente inteligível descrição dos factos que se pretendem imputar à arguida e relativamente aos quais é pedida a realização de instrução.
17. Isto porque frequentemente se mistura a narração dos factos imputados com as razões da discordância relativamente à não acusação do Ministério Público.
18. Porém, numa análise mais fina, tendemos a considerar que, ainda que de forma mais ou menos dispersa e difusa, os elementos objectivos e subjectivos dos crimes em causa estão presentes.
19. Atente-se no descrito nos pontos 4, 5, 18, 19, 20, 21 e 24, relativamente aos elementos objectivos, e nos pontos 75 e 76, relativamente ao elemento subjectivo (v.g. o dolo).
20. Nesta conformidade, tendemos a considerar que o requerimento para abertura de instrução apresentado não tem deficiências estruturais que imponham a liminar rejeição do mesmo, pelo que é nosso parecer que o recurso deve ser julgado procedente, procedendo-se à requerida instrução
».
5.
Admitido o recurso, foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante, CPP), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea b) do mesmo diploma.
II. Fundamentação
1.
Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do Código de Processo Penal (doravante CPP), o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Encontra-se, ainda, o tribunal obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como sejam, as nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos art.º s 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
No caso em apreço são as seguintes as QUESTÕES a resolver:
1. Os factos imputados ao arguido no requerimento de abertura de instrução dos factos foram objeto de despacho de arquivamento?
2. No requerimento de abertura de instrução foram descritos os elementos subjetivos dos crimes imputados?
3. Do requerimento de abertura de instrução consta a narração factual dos crimes imputados ao arguido?
*
2. É o seguinte o teor do DESPACHO RECORRIDO (transcrito na parte ora relevante):
«
O assistente BB veio requerer a abertura da instrução, a fls. 424 a 438, inconformado com o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público em 17/10/2024, a fls. 415 a 419, sustentando o requerente dever a arguida AA ser pronunciada pela prática de vinte e dois crimes de acesso indevido, p. e p. pelo artigo 47º, n.º 1 e n.º 2, da Lei n.º 58/2019, de 08/08 (Lei da Protecção dos Dados Pessoais), em concurso aparente com vinte e dois crimes de abuso de poder, p. e p. pelos artigos 382º e 386º, n.º 1, al. a), ambos do C. Penal.
*
II.
O despacho de arquivamento com que o Ministério Público encerrou o inquérito tem por objecto, apenas, factualidade susceptível de integrar a prática “de um crime de violação de segredo por funcionário, p. e p. pelo artigo 383º do Código Penal ou a prática de um crime de violação de segredo, p. e p. pelo artigo 91º do RGIT”. Não existe qualquer arquivamento quanto à eventual prática de crimes de acesso indevido ou de abuso de poder.
A instrução não tem por finalidade substituir-se ao inquérito, completá-lo ou rectificá-lo. Tem por finalidade comprovar judicialmente a decisão do Ministério Público de (para o que aqui interessa) arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – artigo 286º, n.º 1, do C. P. Penal. Daí que, em casos como o presente, em que não existe arquivamento por um concreto crime, não pode por via da instrução lograr-se a pronúncia de arguido por tal crime, pelo que, por inutilidade, a instrução é legalmente inadmissível.
«(…) A obrigatoriedade do inquérito em processo comum implica, na sua dimensão garantística, que ninguém pode ser acusado, pronunciado ou julgado, sem que tenha sido objeto de inquérito pela prática de factos que fundamentem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, pelo que a abertura da instrução a requerimento do assistente com vista à pronúncia de alguém não acusado, apenas pode ter lugar se, relativamente a ele, foi suscitada, em inquérito, a possibilidade de o mesmo ser autor ou comparticipante de factos ilícitos que fundamentem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança. (…) Assegura-se, deste modo, que ninguém será pronunciado ou julgado sem que a sua responsabilidade penal por crime público ou semipúblico tenha sido equacionada e decidida pelo Ministério Público, titular da ação penal, e sem que possa fazer valer os seus direitos de participação e defesa em duas fases preliminares (inquérito e instrução) de teleologia e titularidade bem distintas (…)»1.
«(…) Não é admissível a pronúncia dos denunciados por factos que não tenham sido objeto de inquérito, mesmo que se encontrassem exemplarmente descritos no RAI, pois nestes casos visa-se sujeitar o arguido a julgamento por factos relativamente aos quais o MP se decidira pelo arquivamento após inquérito efetivamente realizado e não a substituição de inquérito materialmente inexistente pela integral investigação e pronúncia judicial (…)»2.
«(…) Para haver inquérito contra determinada pessoa não basta dar formalmente início ao inquérito com a respectiva autuação dos autos e levar a efeito determinadas probatórias, antes se exigindo que tais diligências probatórias sejam dirigidas contra alguém com a finalidade de comprovar a imputação do facto ilícito a essa pessoa. (…) A admitir-se a instrução estar-se-ia a prescindir do inquérito e, simultaneamente, a atribuir a uma entidade diferente a titularidade da acção penal, no caso ao Juiz de instrução, quando o Ministério Público é que tem a titularidade e direção do inquérito, o que seria atentatório do princípio do acusatório e dos direitos de defesa que estão atribuídos a qualquer cidadão e contemplados no artigo 32º da nossa Lei Fundamental (…)»3.
«(…) porque a instrução visa comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, não pode o assistente requerer a instrução relativamente a factos que não tivessem sido já objecto de investigação, seja, relativamente a factos novos, diversos daqueles que foram objecto de apreciação na fase de inquérito (…)»4. De resto, para boa parte da jurisprudência, «(…) na falta de despacho de arquivamento pelo MP sobre determinado crime denunciado não pode ser requerida a abertura de instrução [pelo assistente] (…) só depois de provocado um despacho do MP no sentido de acusar ou arquivar é que pode ser apresentado o RAI, ou seja só perante um despacho do MP expresso de arquivamento, pode reagir-se através do RAI (…) como tal não aconteceu, não é admissível a instrução, e como tal deve ser rejeitado o RAI apresentado pelo assistente (…)»5.
*
III.
Ainda que assim não se entendesse, considerando estar em causa mera alteração da qualificação jurídica, enquadrável no disposto no artigo 303º, n.ºs 1 e 5, do C. P. Penal, a inviabilidade da instrução fundar-se-ia sempre noutro pressuposto.
Como é consabido, a actividade do juiz em sede de instrução está sempre balizada pelas razões de facto e de direito alegadas no requerimento de abertura da instrução (RAI). Se o que se contesta é uma acusação ou a decisão de acusar, o balizamento, o objecto processual, obtém-se do cotejo desta com as razões de discordância do requerente; se o requerente não se conforma com a decisão de arquivar, então incumbe-lhe produzir no seu libelo introdutório todos os elementos constitutivos da acusação que pretende ver reproduzida num despacho de pronúncia.
Assim, impõe o n.º 2 do artigo 287º do C. P. Penal que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente contenha os requisitos exigidos para a acusação nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º do mesmo código, isto é, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena e a indicação das disposições legais aplicáveis.
O que vale por dizer que o requerimento de abertura de instrução do assistente deve constituir substancialmente uma acusação, com todos os requisitos exigidos para esta, só podendo a decisão instrutória recair sobre os factos indicados, em ordem a subsumi-los nas disposições legais igualmente indicadas.
Posição que, na actualidade é consensual, doutrinal e jurisprudencialmente.
No caso dos autos, o assistente enumera as razões de discordância com o despacho de arquivamento, analisa a prova produzida no inquérito e fundamenta juridicamente a sua posição. O que não faz, como se lhe exigia, é uma descrição estruturada, coerente e compreensível de factos que deveriam ter sido autonomizados e enquadrados na “acusação alternativa” que ao assistente se impunha deduzir. Não se descreve cabalmente onde, quando, quem, como e porquê. Retiram-se conclusões, mas não se alegam factos.
Ao RAI apresentado aplica-se integralmente o decidido pelo Tribunal da Relação de Évora de 24/10/2017:
«(…) 1 - No caso de requerimento de abertura da instrução pelo assistente com pretensão de sujeição de arguido a julgamento tal peça tem mesmo que ser uma “acusação”. Tem que ser apresentada com autonomia factual. Tem que “contar uma história” apenas com factos essenciais a integrar os tipos penais pretendidos integrar – e todos eles, objectivos e subjectivos – sem adjectivações e/ou considerados probatórios ou de qualificações jurídicas de permeio.
2 - E tais factos têm que estar concentrados seguindo uma lógica de subsunção aos diversos tipos penais pretendidos. Esta asserção liga-se, naturalmente, à ideia sabida de que é boa metodologia na dedução de uma acusação dispor do tipo penal presente na dedução desta. E a qualificação jurídica só pode surgir a final, assim como as indicações probatórias que se impõem.
3 - Não compete ao juiz de instrução andar a escolher factos dispersos e a reduzir a factos – deduzindo as intenções dos requerentes - amálgamas de factos e considerandos probatórios e de direito.
4 - É jurisprudência assente que a omissão da narração dos factos no requerimento de abertura da instrução, ainda que a exigência se baste com uma narração sintética, não dá lugar a um direito ao aperfeiçoamento - v. acórdão de uniformização de jurisprudência nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005. 5 - Apesar de o direito ao juiz da assistente ter consagração constitucional, tal direito tem sido valorado pelo Tribunal Constitucional de forma diversa – e menos relevante – do que o direito à defesa do arguido (…)».
O assistente não descreve, em concreto, a que acedeu a arguida em cada um dos acessos. Não descreve qual a intenção que tinha nesses acessos, a não ser a conclusão de que visava “explorar informações detalhadas do assistente”, o que não corresponde a alegação factual concreta. Também não se alega factualidade integradora do elemento cognitivo do dolo quanto aos crimes de acesso indevido. Quanto aos crimes de abuso de poder, nada se alega quanto à intenção da arguida obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, assim omitindo a descrição factual de elemento típico de tal crime.
Ora:
«(…) A doutrina fixada pelo STJ no seu AUJ n.º 1/2015 deve ser aplicada ao requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente. (…) Estando em causa crimes dolosos e verificando-se que o requerimento para abertura da instrução não obedece à estrutura acusatória do processo, nem assegura as garantias de defesa dos arguidos, nos termos previstos nos art.ºs 283º, n.º 3, alínea b), e 287º, n.º 2, do C.P.P., sendo omisso em relação aos elementos subjectivos de tais crimes, isto é, quanto aos elementos constitutivos do dolo, concretamente no que respeita aos elementos intelectual (representação dos factos), volitivo (vontade de praticar os factos) e emocional (consciência de estar a agir contra o direito), nenhuma censura merece a decisão recorrida quando rejeitou o requerimento para a abertura da instrução (…)»7.
Assim, mesmo que resultasse suficientemente indiciado tudo quanto alega (factualmente) o assistente no RAI, a factualidade aí narrada não poderia sustentar, por manifesta insuficiência e falta de concretização, um despacho de pronúncia pela prática de quaisquer crimes, mormente os de acesso indevido ou abuso de poder.
Ora, não podendo aditar-se a factualidade em falta, sob pena de nulidade (artigo 309º, n.º 1, do C. P. Penal), a instrução requerida pelo assistente BB constituiria um acto inútil, uma vez que nunca poderia culminar com a pronúncia pretendida.
*
IV.
Resta, pois, por este conjunto de razões, concluir ser o requerimento de abertura de instrução do assistente BB legalmente inadmissível, devendo ser rejeitado por tal fundamento, inexistindo fundamento legal para prévio convite ao aperfeiçoamento do mesmo.
Tal entendimento foi consagrado como jurisprudência obrigatória através do Acórdão n.º 6/2005 do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/05/2005, publicado no DR-Iª-Série-A, de 04/11/2005, nos seguintes termos:
«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».
Termos em que, face ao exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 283º, n.º 3, al. b) e 287º, n.ºs 2 e 3, ambos do C. P. Penal, não admito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente BB, por inadmissibilidade legal da instrução
.
*
3. Apreciação do recurso
Pretende o assistente a revogação da decisão recorrida pugnando pela sua substituição por outra que admita o Requerimento de Abertura de Instrução que havia apresentado.
Alega o recorrente que, inversamente ao entendimento do Mm.º Juiz de Instrução:
- Os factos imputados ao arguido no requerimento de abertura de instrução foram objeto de despacho de arquivamento;
- No requerimento de abertura de instrução foram descritos os elementos subjetivos dos crimes imputados;
- Do requerimento de abertura de instrução consta a narração factual dos crimes imputados ao arguido.
Apreciemos as questões suscitadas no recurso.
1. Os factos imputados no requerimento de abertura de instrução dos factos foram objeto de despacho de arquivamento?
Como é sabido, concretizando
a estrutura acusatória do direito processual penal
português
[1]
,
a direção do inquérito cabe ao Ministério Público
, assistido pelos órgãos de polícia criminal (art.º 263.º n.º 1 do CPP), e compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (art.º 262.º n.º 1 do CPP).
Ressalvadas as exceções previstas no Código de Processo Penal, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito (art.º 262.º n.º 2 do CPP).
Na sua
dimensão garantística
, a obrigatoriedade do inquérito em processo comum, implica, que ninguém pode ser acusado, pronunciado ou julgado, sem que tenha sido objeto de inquérito pela prática de factos que fundamentem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança
[2]
.
A falta de inquérito constitui nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º al. d) do CPP.
A falta de inquérito nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade, prevista na referida alínea d) do art.º 119.º refere-se à omissão total de inquérito.
«
Com efeito, o inquérito legitima a decisão de se submeter o arguido a julgamento, sendo impensável sem um mínimo de investigação e indiciação prévia. «Na verdade, a simples dedução de acusação representa um ataque ao bom nome e reputação do acusado» (Jorge de Figueiredo Dias, 1974, p. 133; ac. do TC 53/2011), de modo que a absolvição em julgamento já significa uma grave sobrecarga do arguido inocente (Karl Peters, 1985, p. 170)
»
[3]
.
Equiparada à omissão de inquérito é a mera atuação como inquérito sem que tenham sido praticados quaisquer atos de investigação (ausência material de inquérito)
[4]
.
É o que se passa naqueles casos em que, «não obstante a queixa pu participação, ou seja, a prática de ato que legitima a intervenção do MP, ele omita a prática de quaisquer atos próprios dessa fase. O que carateriza esta nulidade é a completa omissão de atos de inquérito». É o que se passa quando «ordenada a abertura de inquérito, o M.ºP.º nada ordenou, nada realizou, até ao despacho que o encerrou»
[5]
.
Trata-se de nulidade de conhecimento oficioso, mesmo na fase de recurso, e que pode ser invocada por qualquer interessado com legitimidade para intervir no processo: a sua gravidade é tão grande que qualquer um as pode invocar, por estarem em causa finalidades consideradas essenciais num Estado de Direito
[6]
.
A falta de inquérito não pode ser suprida pela apresentação do requerimento de abertura de instrução pelo assistente, devendo o mesmo ser rejeitado por inadmissibilidade legal
[7]
.
Efetivamente, a instrução «
tem caráter facultativo
» e «
visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento
», e «
tem caráter facultativo
» (art.ºs 286.º do CPP).
Dada a finalidade de comprovação judicial da decisão do Ministério Público, a instrução não é um «
novo»
inquérito, que, como vimos, é uma fase processual obrigatória em processo comum e que compete exclusivamente ao MP.
E por assim ser, os factos do crime pelos quais o assistente pretende a pronúncia hão-de ter sido objeto do inquérito, sob pena de nulidade processual, em razão da nulidade prevista no art.º 119º al. d) do CPP, e consequente inadmissibilidade legal da instrução.
«Assegura-se deste modo que ninguém será pronunciado ou julgado sem que a sua responsabilidade penal por crime público ou semipúblico tenha sido equacionada e decidida pelo MP, titular da ação penal, e sem que o arguido possa fazer valer os seus direitos de participação e defesa em duas fases preliminares (inquérito e instrução) de teleologia e titularidade bem distintas, pois o art. 61º nº 1 g) do CPP reconhece ao arguido direito a intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias»
[8]
.
No nosso caso.
Logo na participação constam o acesso por parte da ora arguida a dados (informação fiscal) do assistente, em número de 59 e nos dias referidos no RAI; que este acesso era considerado pelo ora assistente injustificado.
Após a realização de diligências de investigação visando o apuramento dos factos participados foi proferido despacho de arquivamento podendo ler-se, designadamente o seguinte:
«O presente inquérito teve origem no envio da cópia integral do processo interno de inquérito nº451/2021, por parte da Autoridade Tributária, na sequência de uma participação apresentada por BB contra a trabalhadora AA, alegando eventuais acessos desta à sua situação tributária, através do sistema informático da AT, e posterior divulgação à sua ex-companheira, CC.
- Os factos denunciados são susceptíveis de configurar, em abstracto, a prática de um crime de violação de segredo por funcionário, p. e p. pelo artigo 383º do Código Penal ou a prática de um crime de violação de segredo, p. e p. pelo artigo 91º do RGIT.
(…)
Da análise dos elementos constantes dos autos, nomeadamente, da conjugação e relacionamento dos depoimentos prestados pelo denunciante/assistente BB, pela testemunha CC, pela arguida AA e dos documentos juntos aos autos, considera-se que não existem indícios suficientes de que a arguida AA tenha praticado os crimes em apreço.
Não obstante ter resultado dos elementos juntos aos autos, nomeadamente, do processo interno de inquérito nº451/2021, que decorreu na Autoridade Tributária, que a trabalhadora AA acedeu a dados tributários (pessoais) do denunciante sem que para tal estivesse mandatada ou tivesse necessidade funcional de o fazer, certo é que, não foram recolhidos indícios suficientes de que a arguida AA tivesse revelado/divulgado os referidos dados, isto é, que tivesse facultado tais dados a CC e que as informações que constam da petição inicial apresentada no Tribunal de Família e Menores tivessem sido obtidas através do fornecimento de tais dados
».
Ora, em primeiro lugar, do confronto entre a factualidade participada e a constante do requerimento de acusação, verificamos que a matéria fática do requerimento de abertura de instrução, se reconduz, no essencial, à descrita na participação objeto do inquérito e mesmo àquela que (salvo no que respeita aos elementos subjetivos – os quais, na ausência de confissão ou de prova testemunhal, apenas poderiam ser inferidos dos restantes factos apurados) o Ministério Público considerou indiciada no despacho de arquivamento – ou seja, o injustificado acesso pela arguida a dados fiscais do assistente.
É certo que, tal factualidade foi qualificada pelo Ministério Público como sendo eventualmente configuradora da prática de um crime de violação de segredo por funcionário, p. e p. pelo artigo 383º do Código Penal ou a prática de um crime de violação de segredo, p. e p. pelo artigo 91º do RGIT.
Mas, se o juiz de instrução nem se encontra vinculado à qualificação jurídica do despacho de acusação ou no requerimento para abertura de instrução (art.º 303.º n.º 5 do CPP), não se vislumbra qualquer razão para o considerar vinculado à qualificação jurídica do despacho de arquivamento.
Inversamente, temos por certo que é admissível a abertura de instrução, a requerimento do assistente visando a alteração da qualificação jurídica dos factos efetuada no despacho de arquivamento e, desse modo, para lograr o preenchimento dos tipos imputados.
No nosso caso, no requerimento de instrução o que o assistente, designadamente, pretende é a subsunção das condutas imputadas aos crimes de acesso indevido e abuso de poder.
Não nos encontramos perante factos novos diversos daqueles que foram objeto de apreciação na fase de inquérito, nem a instrução, por esta via implica substituir inquérito materialmente inexistente, atribuindo a titularidade da ação penal ao Juiz de Instrução
.
Assiste, portanto, razão, nesta parte, ao recorrente assistente.
2. No requerimento de abertura de instrução foram descritos os elementos subjetivos dos crimes imputados?
A obrigatoriedade de prévia existência de inquérito contra a pessoa que o assistente pretenda ver pronunciada, não põe em causa o direito, abrangido pela
garantia constitucional de tutela jurisdicional efetiva
(arts 32º nº7 e 20º nº1, da CRP), que o ofendido (constituído assistente) tem de contribuir para a sujeição a julgamento do ou dos autores do crime de que foi vítima requerendo a abertura da fase de Instrução.
Mas, por outro lado, face à
estrutura acusatória do processo penal
português, estipula o n.º 4 do art.º 288.º do CPP, que o juiz não pode investigar autonomamente o caso submetido a instrução, encontrando-se
vinculado factualmente aos elementos que lhe são trazidos no requerimento de abertura de instrução
de forma a poder decidir sobre a justeza ou acerto da decisão de acusação ou arquivamento.
O juiz de instrução está sujeito aos limites do objeto da instrução fixados no requerimento de abertura de instrução no caso de arquivamento do inquérito pelo MP (art.º 303.º).
[9]
Assim, o requerimento de abertura da instrução constitui um elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução, a qual, sendo autónoma, como se disse, se terá de conter dentro do tema factual que lhe é proposto através daquele, podendo por isso dizer-se, garantidamente, que o requerimento de abertura de instrução delimita o
thema decidendum
dos autos, quer em relação à atividade jurisdicional, quer quanto ao pleno exercício do contraditório por parte do arguido, cuja tutela de defesa apenas se assegura se ali estiverem concretizados, de forma clara, os factos integradores dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime que lhe é imputado
[10]
.
Tendencialmente, na instrução a requerimento do assistente, o juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses factos (art.ºs 308 e 309.º)
[11]
.
Expressão e consequência da sujeição do juiz de instrução à vinculação temática definido pelo requerimento de abertura instrução do assistente, o n.º 1 do art.º 309.º do CPP comina com nulidade a decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos naquele requerimento.
Assim, é o requerimento do assistente que atua como acusação, e não o despacho de pronúncia, desta forma se respeita, formal e materialmente, a natureza acusatória do processo.
Mas se o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente constitui uma verdadeira acusação
[12]
, então terá de
se configurar, materialmente, como uma
acusação alternativa
, semelhante à que seria formulada pelo MP se tivesse decidido acusar, descrevendo os factos que considera indiciados e que integram os crimes imputados, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e a permitir o exercício do contraditório
[13]
.
Nos termos do disposto no art.º 287.º n.º 2 do CPP, o requerimento de abertura da instrução “
não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283
º”.
Assim, a referência legal à «
não sujeição do requerimento a formalidades especiais
» deve ser entendida como reportada às questões meramente formais, como sejam, por exemplo, o uso de fórmulas rituais ou a alegação por artigos
[14]
.
Já em termos substanciais, o requerimento de abertura de instrução tem não apenas de observar sintetizar as razões da discordância da acusação, por forma a possibilitar a fiscalização judicial da atividade do Ministério Público no inquérito; como de especificar os meios de prova adequados, quer os que não foram devidamente valorados no inquérito, quer novos meios (de prova), a realizar em sede de instrução; e ainda, de narrar os factos e indicar as normas jurídicas incriminatórias, para delimitar o objeto do processo
(art.º 283.º n.º 3 al b))
[15]
.
No nosso caso, entende o Mmo Juiz de Instrução que do requerimento de abertura de instrução do assistente não consta a descrição dos elementos subjetivos dos crimes imputados ao arguido de abuso de poder e de acesso indevido.
Sobre os elementos subjetivos dos crimes dolosos que devem ser descritos na acusação, pode ler-se na fundamentação do Acórdão Uniformizador da Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015:
«10.2.3. (…)
Ora, a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual).
A acrescer a esses elementos teríamos o tal elemento emocional, traduzido na atitude de indiferença, contrariedade ou sobreposição da vontade do agente aos valores protegidos pela norma e fazendo parte, como vimos, do tipo de culpa doloso, na doutrina de FIGUEIREDO DIAS
».
De acordo com o decidido no mesmo Acórdão Uniformizador, «
A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal
».
É certo que o Acórdão Uniformizador da Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015 não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, embora estes devam fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão (art.º 445.º n.º 3 do CPP).
Também não sofre dúvida que o supra citado Acórdão Uniformizador se refere à falta de descrição no despacho de acusação dos elementos subjetivos do crime, que não pode
ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.º 358.º do Código de Processo Penal.
E não à rejeição do requerimento de abertura de instrução com fundamento na omissão dos elementos do tipo de culpa, que é, afinal o que nos ocupa.
Ainda assim, as razões adiantadas no Acórdão Uniformizador n.º 1/2015 parecem-nos igualmente válidas relativamente ao requerimento de abertura de instrução.
Portanto, no requerimento para abertura de instrução, como no despacho de acusação, devem constar os elementos do tipo, e, portanto, do dolo.
O que aliás, bem se compreende, tendo presente a estrutura acusatória do direito processual penal português, assente na dignidade da pessoa humana e na garantia constitucional dos direitos de defesa (art.ºs 1º, e 32.º n.ºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, ou CRP), a impor «
que o objeto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução
» - Cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 358/04.
Na verdade, e com vimos, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente fixa o objeto do processo, a temática dentro da qual se há-de desenvolver a atividade investigatória e cognitória do juiz de instrução, juiz este que fica vinculado ao seu teor aquando da prolação do despacho de pronúncia (fora, obviamente, das situações previstas no artigo 303º, nº 1, do CPP).
Sendo ainda certo que, não se justifica fazer-se um julgamento ou uma instrução se, de antemão, se consegue perceber-se que o julgamento e a instrução estão forçosamente votados ao insucesso por falta de factos aptos a levar a uma incriminação penal, isto é, quando não constam da peça acusatória todos os factos necessários ao preenchimento do tipo legal em causa
[16]
.
Ou seja, embora, obviamente, não seja necessário o recurso às expressões habitualmente usadas na praxis, em caso de imputação de crime doloso, do requerimento para abertura de instrução deve resultar, sem margem para dúvidas, os elementos que respeitam ao dolo.
Ora, pratica o imputado crime de acesso indevido, nos termos do art.º 47.º n.º 1 da Lei da proteção de dados Pessoais (Lei n.º 58/2019, de 08 de agosto), quem «
sem a devida autorização ou justificação, aceder, por qualquer modo, a dados pessoais
».
Quanto ao elemento subjetivo o tipo não exige qualquer intenção específica (como seja o prejuízo ou a obtenção de benefício ilegítimo), ficando preenchido com o dolo (genérico) de conhecimento e intenção de aceder a dados pessoais, com a consciência da ilicitude (art.º 14.º do Código Penal).
E, basta ler o requerimento de abertura de instrução para se constatar que sob os artigos 24. («
As 50 consultas identificadas, associadas aos 22 acessos, demonstram a reiterada intenção de a arguida explorar informações detalhadas do assistente sem qualquer ordem de serviço
»), 75. («
A arguida bem sabia que com a sua conduta violava os deveres gerais de prossecução do interesse público e zelo a que, como funcionária da AT estava obrigada, bem como os deveres específicos e normas legais relativos ao acesso a dados pessoais e fiscais confidenciais e ao sigilo que lhe eram exigidos pela função que desempenhava
») e 76. («
A arguida agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita era proibida e punida por lei
») que se mostram alegados os elementos subjetivos do crime de acesso indevido.
Como assim é, nesta parte, tem razão o recorrente.
Por sua vez dispõe-se no art.º 382.° do Código Penal, sob a epígrafe abuso de poder:
«
O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal
».
O tipo objetivo de ilícito traduz-se no abuso de poderes ou na violação de deveres por banda do funcionário, sendo certo que, numa e noutra situação, os poderes e deveres terão de ser inerentes à sua função.
O tipo subjetivo de ilícito consiste numa atuação dolosa, que supõe não apenas a consciência e vontade por parte do agente de exercer uma função pública abusando dos poderes, ou violando os deveres a ela inerentes, bem como o conhecimento do carácter ilegítimo da vantagem ou do prejuízo pretendidos, como
para além disso, que o agente atue com a intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa
.
Tal como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 23.01.2008, no processo 07P4279 (relatado pelo Cons. Henriques Gaspar), no crime de abuso de poder:
«(…) o mau uso dos poderes não resulta de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, mas tem de ser determinado por uma intenção específica que enquanto fim ou motivo faz parte do próprio tipo legal.
Há, com efeito, tipos de crimes em que o tipo de ilícito é construído de tal forma que uma certa intenção surge como uma exigência subjectiva que concorre com o dolo do tipo ou a ele se adiciona ou dele se autonomiza.
A intenção específica é um elemento subjectivo que não pertencendo ao dolo do tipo, enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo e que se não refere a elementos do tipo objectivo, quebrando a correspondência ou congruência entre o tipo objectivo e subjectivo.
A intenção tipicamente requerida tem por objecto uma factualidade que não pertence ao tipo objectivo de ilícito.
Doutrinalmente chamados crimes de intenção ou de resultado cortado, esta espécie de crimes supõe para além do dolo de tipo a intenção de produção de um resultado que não faz parte do tipo legal (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, "Direito Penal, Parte Geral", Tomo I, p. 329-330),
Nos delitos de intenção verificam-se elementos de atitude interna de agente, que são elementos subjectivos que caracterizam a vontade de acção, referidos à modalidade de acção, ao bem jurídico ou ao objecto da acção protegida pelo tipo; o autor persegue um resultado que tem em consideração para a realização do tipo, e deve querer causar com a sua própria conduta um resultado que vai para além do tipo objectivo (cfr. H. H. Jesheck e T. Weigend, "Derecho Penal", p. 341-342).
O crime de abuso de poder constitui um dos exemplos desta categoria dogmática
».
Para a afirmação desta intenção específica não é bastante a colocação de conjeturas ou de hipóteses.
Ora, analisando o requerimento de abertura de instrução, relativamente à intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, o que temos são apenas suposições incompletas interligadas com a apreciação dos indícios probatórios alegadamente resultantes dos autos.
No requerimento de abertura de instrução nunca se afirma qual foi afinal a intenção da arguida, e se, designadamente, seria mesmo, como porventura sugerido, a de transmitir ilicitamente os dados do assistente a terceira pessoa para esta os utilizar em ação judicial, em seu benefício ilegítimo e/ou com o prejuízo do seu titular.
E como assim é, falece, nesta parte o recurso, não merecendo censura no que respeita à imputação do crime de abuso de poder, a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal
.
3- Do requerimento de abertura de instrução consta a narração factual dos crimes imputados ao arguido?
Como vimos, no que respeita ao crime de abuso de poder justifica-se a rejeição do requerimento de abertura de instrução.
Resta apreciar se no que se refere ao outro crime imputado – de acesso indevido - se observa a exigência de narração dos factos preenchedores do tipo.
De um modo geral pode dizer-se que a narração quer-se descrita na perspetiva do arguido (autor da ação), de forma clara e simples, sequencial, correspondendo a cada parágrafo fatos distintos, por forma a permitir a apreensão imediata do pedaço de vida imputado.
Obviamente que serem os factos descritos, intercalando considerações jurídicas e probatórias não integra as boas práticas da narração.
No entanto, tal não constitui óbice a que o requerimento de abertura de instrução seja recebido, posto que nele constem
de forma inequívoca, embora com algum esforço interpretativo
, os elementos típicos do crime imputado.
No nosso caso, por certo, que o requerimento de abertura de instrução,
não observa as boas práticas da narração factológica
.
Será, no entanto, que os factos imputados à arguida se encontram descritos de modo a que, sem margem para dúvidas, todos possam ficar a saber qual o
pedaço de vida em discussão
.
Seja a arguida, para que se possa
defender
.
Seja o juiz, a quem compete
realizar a instrução
tendo em conta o requerimento de abertura de instrução (art.º 288.º n.º 4 do CPP).
E o que verificamos lendo o requerimento de abertura de instrução é que se detetam todos os factos que integram o tipo de crime de acesso indevido imputado.
Assim vem designadamente alegado que:
«4. Durante o período analisado em sede de inquérito, entre 11 de agosto de 2020 e 15 de setembro de 2020, a arguida realizou 22 acessos indevidos aos dados fiscais e pessoais do assistente em cinco dias distintos, sem qualquer ordem de serviço que os justificasse.
5. No mesmo período foram realizadas 50 consultas distintas relacionadas com os dados do assistente, abrangendo informações detalhadas como IRS, IRC, matrizes prediais, e-fatura e cadastro, muitas das quais irrelevantes para os fins alegados pela arguida»;
«12. (Os 20) acessos e (as) consultas (foram realizadas) ao NIF individual do assistente»:
«18. Conforme consta do Relatório Síntese do Processo n.º 0004/20..., datado de 30 de abril de 2021 (vide fls. dos autos), foi apurado que a arguida, senhora AA, identificada como utilizadora es...91 nos sistemas da Autoridade Tributária, realizou sucessivos acessos aos dados fiscais do assistente.
19. Os acessos estão discriminados da seguinte forma:
a) No dia 11 de agosto de 2020, foram efetuados 7 acessos;
b) No dia 24 de agosto de 2020, ocorreram 3 acessos;
c) No dia 3 de setembro de 2020, foi realizado 1 acesso;
d) No dia 8 de setembro de 2020, foi realizado 1 acessos;
e) No dia 15 de setembro de 2020, verificaram-se 10 acessos.
20. Estes dados encontram-se detalhados no Anexo 1 do referido relatório e também no Quadro Resumo Constante do Anexo 3, o qual apresenta uma análise mais detalhada das interações realizadas (vide fls. 45 a 75 do presente inquérito).
21. No total, a arguida efetuou 22 acessos e realizou 50 interações ou consultas relacionadas com dados do assistente, abrangendo informações fiscais diversas»;
«24. As 50 consultas identificadas, associadas aos 22 acessos, demonstram a reiterada intenção de a arguida explorar informações detalhadas do assistente sem qualquer ordem de serviço»;
«75. A arguida bem sabia que com a sua conduta violava os deveres gerais de prossecução do interesse público e zelo a que, como funcionária da AT estava obrigada, bem como os deveres específicos e normas legais relativos ao acesso a dados pessoais e fiscais confidenciais e ao sigilo que lhe eram exigidos pela função que desempenhava.
76. A arguida agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita era proibida e punida por lei».
Entendemos, assim e tudo considerado que, no que respeita ao crime de acesso indevido a narração constante do requerimento de abertura de instrução, permite à arguida organizar a defesa e ao juiz de instrução realizar a instrução e proferir decisão instrutória (art.º 288.º n.º 4 do CPP).
Pese embora não tenham sido adotadas as melhoras práticas na descrição dos factos, ainda assim da leitura do requerimento de abertura de instrução
revela-se possível apreender, sem margem para dúvidas, quais os factos concretamente imputados
.
Ao contrário do decidido no Tribunal recorrido, tal peça permite aferir da verificação dos elementos deste crime, pelo que
não se apresenta como absolutamente inútil a instrução
requerida pelo assistente.
Porventura, a concreta redação do requerimento de abertura de instrução não será a melhor, mas também o juiz de instrução, num eventual despacho de pronúncia ou de não pronúncia que venha a proferir,
não se encontra vinculado às palavras que foram utilizadas pelo assistente
.
Concluímos que nesta parte, o requerimento de abertura de instrução não devia ter sido rejeitado com o fundamento invocado na decisão recorrida, ou seja, por inadmissibilidade legal da instrução, impondo-se a revogação nessa parte desse despacho, procedendo parcialmente o recurso.
III. Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente o recurso, e assim, em
- Revogar parcialmente a decisão recorrida que deve ser substituída por uma outra que na ausência de qualquer outro motivo impeditivo, admita a instrução requerida pelo assistente, no que respeita ao imputado crime de acesso indevido, p.p. nos termos do art.º 47.º da Lei de Proteção de Dados Pessoais (Lei 58/2019 de 08.08), seguindo-se os ulteriores termos processuais;
- Confirmar a rejeição do requerimento de abertura de instrução, na parte que respeita à imputação à arguida do crime de abuso de poder, p.p., nos termos do art.º 382.º do Código Penal.
Custas pelo assistente, fixando a taxa de justiça em 3 UC (art.º 515.º n.º 1 al. b) do CPP, e Tabela III do RCP)
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária, sendo ainda revisto pelo segundo e pela terceira signatários – art.º 94º, nº 2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09).
Coimbra, 14.05.2025
Alexandra Guiné (Juíza Desembargadora relatora)
Paulo Guerra (Juiz Desembargador 1.º adjunto)
Maria da Conceição Miranda (Juíza Desembargadora 2.ª adjunta)
[1]
Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, vol. II, 5.ª edição atualizada, UCP Editora, pág. 102
[2]
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 08.09.2015, proc. 58/11.7MAOLH-A.E1,rel. Des. António Latas, e disponível como os demais a que nos referiremos no presente Acórdão in www.dgsi.pt
[3]
João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal , Tomo I, 2.ª edição, Edições Almedina, p. 1272
[4]
Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, vol. I, pág. 466, par. 9 e citado Acórdão do do TRE, de 08.09.2015
[5]
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo 45/18.4SYLSB.L1-3, rel. Des. Maria da Graça dos Santos Silva
[6]
Cfr. João Conde Correia, obra citada, p. 1272
[7]
Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, vol I, pág. 466, par. 9 e citado Acórdão do do TRE, de 08.09.2015
[8]
Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 08.09.2015, processo 58/11.7MAOLH-A.E1 (rel Des. António Latas)
[9]
Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, vol. II, pág. 211
[10]
Cf. Acórdão do STJ datado de 19.02.2020, processo n.º 72/18.1TRCBR.S1 (rel. Cons. Raul Borges)
[11]
Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 24.10.2023, processo 519/21.0GHSTC.E1 (rel. Des. João Carrola) e
Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, págs. 140/141, aí citado
[12]
Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 21.06.2022, processo n.º 418/19.5GHSTC.E1 (rel. Des. Renato Barroso
[13]
Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 14.07.2020, processo 5/14.4JDLSB-A.E1 (rel. Des. Fernando Pina), v., ainda, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 10.01.2023, processo 67/21.8PTSTR.E1 (rel. Des. João Carrola)
[14]
Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 06.11.2017, processo 280/16.0T9BRG.G1 (rel. Des. Jorge Bispo)
[15]
Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 06.11.2017, processo 280/16.0T9BRG.G1 (rel. Des. Jorge Bispo)
[16]
Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 15.12.2022, proc. nº 211/20.2T9VRL.G1 (Florbela Sebastião e Silva)
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TRC
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https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/6350540cd82ff8fe80258c9d003c79af?OpenDocument
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1,740,355,200,000
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IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA
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5453/24.9T8PRT.P1
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5453/24.9T8PRT.P1
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RITA ROMEIRA
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I - As afirmações de natureza conclusiva e hipotética devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o “thema decidendum”, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objecto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão.
II - Da análise das definições legais de contrato de trabalho e de contrato de prestação de serviço resulta que os elementos que os distinguem são, essencialmente, o objecto do contrato, ou seja, prestação de actividade ou obtenção de um resultado e o relacionamento entre as partes, ou seja, subordinação ou autonomia.
III - Atenta a presunção de laboralidade, estabelecida no art. 12º, do CT/2009, demonstrando o trabalhador pelo menos, duas das características enunciadas nas alíneas do seu nº 2, presume-se a existência de contrato de trabalho cabendo à, alegada, empregadora a prova do contrário (art. 350º, nº 2, do CC), não bastando, para o efeito, contraprova destinada a tornar duvidoso o facto presumido, tendo de provar que não existiu a subordinação jurídica indiciada por aquelas e, nessa medida, um contrato de trabalho.
|
[
"MATÉRIA DE FACTO",
"AFIRMAÇÕES CONCLUSIVAS E HIPOTÉTICAS",
"PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE",
"ÓNUS DA PROVA"
] |
Proc. nº 5453/24.9T8PRT.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo do Trabalho do Porto - Juiz 3
Recorrente: Serviços Sociais da Banco 1...
Recorrido: Ministério Público
Acordam, nesta secção do Tribunal da Relação do Porto
I - RELATÓRIO
O Ministério Público instaurou, em 25.03.2024, na Comarca do Porto, Juízo do Trabalho - Juiz 3, a presente acção especial para reconhecimento da existência de contrato de trabalho contra Serviços Sociais da Banco 1..., NIPC: ..., com sede na Av. ..., ... Lisboa, pedindo que seja declarada e por via disso a Ré condenada a reconhecer a existência de um contrato de trabalho celebrado entre ela e a trabalhadora, AA, NIF ..., Cartão de identificação n.º ..., com residência em Rua ..., ..., 1.º Dto., ..., com início em 01 de setembro de 2018.
Fundamenta o seu pedido, sob a invocação de que, na sequência de acção inspectiva levada a cabo pela ACT – Centro Local do Grande Porto, no dia 26/02/2024, pelas 11:38h, às instalações da Ré sitas na Rua ..., ..., no Porto, verificou-se que aí, AA se encontrava a prestar a sua atividade profissional de fisioterapeuta por conta/benefício da Ré em condições análogas ao contrato de trabalho.
Alega que, a trabalhadora AA iniciou a prestação de trabalho para a Ré, através de um contrato epigrafado “Contrato de Prestação de Serviços” celebrado em 19.10.2018, tendo produzido efeitos a 01.09.2018, o qual foi alterado quanto à “carga horária” a prestar pela trabalhadora, por adenda outorgada, em 22.02.2019, com efeitos a 01.02.2019.
Mais, alega que, no exercício da sua actividade, AA utiliza os equipamentos fornecidos pela ré, nas instalações desta ou em local por esta determinado, designadamente no domicilio dos utentes, tem horário de trabalho atribuído, usa vestuário por aquela fornecido, presta a sua actividade de fisioterapeuta, executando as tarefas de atendimento de utentes, quase em exclusivo para a ré e recebe, com a periodicidade mensal, uma retribuição como contrapartida do trabalho prestado, na quantia certa no valor de €11,10/hora; acrescida de €20 por utente aquando dos domicílios, por transferência bancária.
Alega, ainda, que a trabalhadora AA, exerce as suas funções diariamente, da seguinte forma das 08:00 às 14:00, às 2ª, 4ª e 6ª, no local de trabalho supra referido; às 3ª, das 9:00 às 13:00 e às 5ª das 09:00 às 16:00, nos domicílios dos utentes, quando falta, avisa a secretaria e as colegas e solicita à Ré, através da Dra. BB, autorização quanto aos períodos que em cada ano pretende gozar férias.
*
Citada, a Ré contestou, alegando, em síntese, “que a pessoa em causa era mera prestadora de serviços até 01/03/2024, data em que consigo celebrou um contrato de trabalho”.
Mais, alega que inexistia, até essa data, uma retribuição uniforme e até mensal que por ela fosse auferida, já que os valores que lhe eram pagos oscilavam consoante o número de horas prestadas e do atendimento efectuado nos domicílios e tal permitiu à Fisioterapeuta AA, que prestasse serviços noutros sítios e tivesse clientes particulares.
Além disso, alega que, AA não prestava serviços para si em regime de exclusividade e que, atentas as funções desempenhadas, natural seria que usasse equipamentos fornecidos pela ré, mas não estava sujeita a qualquer poder disciplinar ou de direcção nem nunca foi avaliada pela ré.
Conclui que, “deve a ação ser julgada não provada e improcedente, não existindo qualquer relação laboral desde 1 de outubro de 2018 (data do início da prestação de serviços), devendo a Ré ser absolvida do peticionado.”.
*
Foi realizada audiência de julgamento, nos termos documentados na acta de 18.06.2024, com gravação da prova pessoal e após a conclusão dos autos para o efeito, foi proferida sentença que terminou com a seguinte decisão:
“
Termos em que, decide-se julgar a presente acção totalmente procedente e, consequentemente, declarar que AA celebrou com a ré contrato de trabalho, com início a 01 de Setembro de 2018, condenando a ré a reconhecê-lo.
*
Custas a cargo da ré.
*
Valor da acção: 2.000,00€ - artigo 186.º-Q, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho.
*
Registe e notifique.
”.
*
Inconformada a Ré interpôs recurso, nos termos que constam das alegações juntas, terminando com as seguintes CONCLUSÕES:
………………………………
………………………………
………………………………
*
O Ministério Público veio responder, nos termos das alegações juntas, terminando, sem formular conclusões, que deve confirmar-se a sentença recorrida.
*
O recurso foi admitido como apelação, com efeito devolutivo e foi ordenada a subida dos autos a esta Relação.
*
A Ex.mª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta não emitiu parecer, invocando o facto de o mesmo lhe estar legalmente vedado.
*
Cumpridos os vistos, há que apreciar e decidir.
*
É sabido que, salvas as matérias de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito a este Tribunal “ad quem” conhecer de matérias nelas não incluídas (cfr. art.s 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 608º nº 2, do CPC, aplicável “ex vi” do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT).
Assim, as questões suscitadas e a apreciar consistem em saber se o Tribunal “a quo” errou:
- na decisão da matéria de facto, nos termos impugnados (factos 4, 13, 15, 20, 21, 24 e 25 dados como provados e factos 38 a 42 dados como não provados);
- na decisão de direito, devendo a acção ser julgada improcedente, dado a errada interpretação do artigo 12º do CT atendendo à factualidade provada.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) Os Factos.
“
1. Factos provados:
1) No dia 26/02/2024, pelas 11h38m, a ACT – Centro Local do Grande Porto levou a cabo uma acção inspectiva às instalações da ré, sitas na Rua ..., ..., no Porto.
2) Nessa data, foi constatado que AA se encontrava a prestar actividade por conta/em benefício da ré.
3) A ré foi notificada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15.º-A, n.º 1 da Lei n.º 107/2009, para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação da colaboradora AA.
“4) A ré não regularizou a situação, tendo sido elaborado o correspondente auto de notícia, ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A, n.º 1, da Lei 107/2009, de 14/09, pela prática de contra-ordenação laboral muito grave prevista no artigo 12.º, n.º 2 do Código do Trabalho e remetido ao Ministério Público em 19 de Março de 2024” – (
Alterado
) para a seguinte redacção:
4) Foi elaborado o auto de notícia, ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A, n.º 1, da Lei 107/2009, de 14/09, pela prática de contra-ordenação laboral muito grave prevista no artigo 12.º, n.º 2 do Código do Trabalho e remetido ao Ministério Público em 19 de Março de 2024.
5) A ré tem por objecto social, para além do mais, actividades de apoio social e prática médica de clínica geral.
6) Em 26/02/2024, a inspectora da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), EE, constatou que AA, NIF ..., Cartão de identificação n.º ..., com residência em Rua ..., ..., 1.º Dto., ... Porto, se encontrava no local acima referido a prestar a sua actividade profissional de fisioterapeuta.
7) AA iniciou a prestação de trabalho para a ré através de um contrato epigrafado “Contrato de Prestação de Serviços”, celebrado em 19.10.2018, tendo produzido efeitos a 01.09.2018.
8) O contrato estabelece que: “O tempo de actividade será de 12 horas semanais, distribuídas em 4 horas por manhã, conforme conveniência do Serviço”.
9) Por adenda outorgada em 22.02.2019, com efeitos a 01.02.2019, foi aquele contrato alterado, quanto à “carga horária” a prestar, passando a constar: “
Acréscimo do horário em 18 (dezoito) horas, perfazendo assim uma carga horária de 30 (trinta) horas semanais, com distribuição a definir pelo Centro Clínico ... (…)
”.
10) No mencionado documento consta que a colaboradora AA obriga-se
“(…) a atender e a prestar os cuidados e serviços no âmbito da fisioterapia aos sócios e beneficiários dos Serviços Sociais [da Banco 1...] (…) no Centro Clínico dos Serviços Sociais [da Banco 1...] situado no Porto ou no domicílio de cada sócio e beneficiário sem mobilidade
”.
11) Na cláusula 4.ª do referido contrato consta que “
A actividade prestada pela Segunda Contraente
[AA]
será remunerada à razão de EUR 11,10 (onze euros e dez cêntimos) por hora de consulta, com acréscimo de 20 € (vinte euros) por cada deslocação ao domicílio (…)
”, sendo o pagamento efectuado pelos Serviços Sociais da Banco 1... “
(…) no fim de cada mês (…)
” por crédito na conta bancária de AA.
12) Não obstante a epígrafe e o teor do mencionado contrato e respectiva adenda, AA foi admitida ao serviço da ré, em 01.09.2018, para, sob as suas ordens, direcção e instruções, desempenhar as funções de fisioterapeuta. (
Eliminado
)
13) AA prestava a sua actividade de fisioterapeuta, executando as tarefas de atendimento de utentes, em função da distribuição de serviço definida pela ré através do plano terapêutico estabelecido pela médica fisiatra.
14) Desde então, no exercício da sua actividade, AA sempre utilizou os instrumentos de trabalho disponibilizados pela ré, tais como, computador, ecrã, teclado, rato, marquesa, papel, cremes, aparelhos de ultra-som, correntes, bolas, todos os equipamentos existentes no ginásio (bicicleta e cadeira de quadríceps), banda(s) neuromuscular(es), usando ainda o software “A...” dos Serviços Sociais, onde lhe é disponibilizada a prescrição de cada utente pela médica fisiatra.
15) AA exerce as suas funções nas instalações da ré ou em local por ela determinado, designadamente no domicílio dos utentes.
16) AA, tal como as outras fisioterapeutas, no exercício de funções para a ré, desde então, usa vestuário de trabalho, calças azuis e bata branca com o logo dos “Serviços Sociais”, fornecidos pela ré.
17) A ré disponibilizou, para uso de AA, um cacifo existente numa sala “social” das fisioterapeutas, para que a mesma pudesse colocar a sua roupa, trocando-a pela roupa de trabalho (calças azuis e bata branca).
18) AA acede, por instruções da ré, ao armário dos Serviços Sociais da Banco 1... onde constam as fichas dos utentes que recorrem aos serviços de fisioterapia.
19) A ré atribuiu à trabalhadora AA o seguinte endereço de email: ..........@......
20) E, as horas de início e termo da prestação da actividade de AA sempre foram definidas pela ré,
21) AA, exerce as suas funções diariamente, da seguinte forma das 08:00 às 14:00, às 2ª, 4ª e 6ª, no local de trabalho supra referido; às 3ª, das 9:00 às 13:00 e às 5ª, das 09:00 às 16:00, nos domicílios dos utentes.
22) Mesmo quando não tem utentes atribuídos nos horários referidos em 21), AA permanece nas instalações da ré, desempenhando funções de cariz burocrático e de organização do serviço de fisioterapia, recebendo a respectiva retribuição de €11,10/hora, apenas não lhe sendo pago o acréscimo de €20,00 respeitante aos domicílios, sempre que estes não se realizam.
23) Quando falta, AA avisa a secretaria e as colegas.
24) E solicita à ré autorização quanto aos períodos que em cada ano pretende gozar férias.
25) AA presta a sua actividade quase em exclusivo para a ré, mas numa percentagem superior a 80%. (
Eliminado
)
26) AA participa nas reuniões de toda a equipa de fisioterapia com a Direcção, a Presidente e a Directora de Recursos Humanos da ré, respeitantes ao estado geral do serviço e aferição de oportunidades de melhoria.
27) AA recebia, como contrapartida do trabalho prestado para a ré, com a periodicidade mensal, uma quantia certa no valor de €11,10/hora, acrescida de €20,00 por utente aquando dos domicílios, mediante transferência bancária.
28) A ré não pagava a AA qualquer quantia a título remuneração por férias gozadas, nem subsídios de férias e de Natal.
****
29) No dia 28 de Fevereiro de 2024, entre as 14.00 e as 15.00, foi realizada uma reunião no Centro Clínico ... entre a Presidente da Direcção dos SS Banco 1..., Dr.ª FF e a Vogal da Direcção, Dr.ª GG e a fisioterapeuta AA, na sequência da qual as partes outorgaram contrato de trabalho sem termo a 01.03.2024, contendo os seguintes considerandos:
30) Desde 01.09.2018 até 01.03.2024, AA auferiu os seguintes montantes: [Remete-se e dá-se por reproduzida a tabela constante, deste ponto, da decisão recorrida, atento o disposto no nº 6 do art. 663º do CPC].
31) Os valores pagos foram oscilando ao longo dos anos, consoante o atendimento efectuado nos domicílios e variaram em função das horas prestadas entre 01/09/2018 e 01/02/2019.
32) Nos termos do contrato de trabalho celebrado em 01.03.2024, AA passou a aferir um vencimento de €1.373,13.
33) O Centro Clínico ... tem prestadores de serviços e pessoas em regimes de contrato de trabalho. (
Eliminado
)
34) A médica fisiatra é prestadora de serviços. (
Eliminado
)
35) A existência de equipamento de protecção individual é uma exigência legal em estabelecimentos de saúde, independentemente do regime em que seja desenvolvida a actividade profissional.
36) A autora nunca foi avaliada pela ré.
*
II.B - Factos não provados:
37) As férias de AA sejam autorizadas pela Dra. BB.
38) A oscilação mencionada em 31) ocorreu também após 01/02/2019 em função das horas prestadas por AA. (
Eliminado
)
39) O referido em 31) permitiu a AA que prestasse serviços noutros sítios e tivesse clientes particulares. (
Eliminado
)
40) A dependência de AA superior a 80% em relação à ré só ocorreu num ano. (
Eliminado
)
41) Qualquer médico, enfermeiro ou fisioterapeuta, independentemente do vínculo contratual, utiliza equipamentos desse estabelecimento de saúde. (
Eliminado
)
42) O mencionado em 35) também seja aplicável à farda.”.
*
B) O Direito
-
Impugnação da Decisão de Facto
Começa a recorrente, por se insurgir contra a decisão de facto proferida pelo Tribunal “a quo”, indicando como incorrectamente julgados, os factos 4, 13, 15, 20, 21, 24 e 25 da matéria de facto provada e os factos dados como não provados sob os números 38 a 42. Indica a resposta que, no seu entender, deve ser dada a tal matéria bem como os meios de prova que a sustenta.
Que lhe assista razão, discorda o recorrido.
Vejamos.
Perante esta questão, cumpre, previamente, tecer as seguintes considerações.
Dispõe o nº 1 do art. 662º do CPC (Código de Processo Civil – diploma a que pertencerão os artigos a seguir citados, sem outra indicação) que, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”.
Aqui se enquadrando, naturalmente, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão de facto feita pelos recorrentes.
A apreciação desta questão, da impugnação da decisão proferida, pelo Tribunal “a quo” relativa à matéria de facto por este Tribunal “ad quem” pressupõe que os recorrentes cumpram determinados ónus, sobre os quais dispõe o art. 640º, o seguinte:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”.
Diz, (Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2014, 2ª edição, pág. 230) que, “… a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância”. Apesar de, como refere o mesmo autor (na obra citada, pág. 245), “... a reapreciação da matéria de facto no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662º não pode confundir-se com um novo julgamento, pressupondo que o recorrente fundamente de forma concludente as razões por que discorda da decisão recorrida, aponte com precisão os elementos ou meios de prova que implicam decisão diversa da produzida e indique a resposta alternativa que pretende obter” .
Resulta da análise daquele dispositivo que, o legislador concretizou a forma como se processa a impugnação da decisão, sobre a matéria de facto, tendo reforçado, neste novo regime, os ónus de alegação a cargo dos recorrentes, impondo-lhes que deixem expressa a solução que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação após a reapreciação dos concretos meios de prova que, consideram, impõem decisão diversa da recorrida.
Novamente nas palavras de, (Abrantes Geraldes, na mesma obra, pág. 133), “O recorrente deixará expressa a
decisão
que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço dos ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto;”.
Importa referir que, no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade do julgador ou da prova livre, consagrado no nº 5 do art. 607º e que tem inteira aplicação no âmbito do processo de trabalho, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que tenha formado acerca de cada um dos factos controvertidos, salvo se a lei exigir para a prova de determinado facto formalidade especial, ou aqueles só possam ser provados por documento, ou estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes.
Assim, sobre a reapreciação da prova, impõe-se toda a cautela para não desvirtuar, aquele princípio referente à liberdade do julgador na apreciação da prova, bem como o princípio de imediação que não podem ser esquecidos no convencimento da veracidade ou probabilidade dos factos. Não estando em causa, proceder-se a novo julgamento mas, apenas, examinar a decisão da primeira instância e respectivos fundamentos, analisar as provas gravadas, se for o caso, e procedendo ao confronto do resultado desta análise com aquela decisão e fundamentos, a fim de averiguar se o veredicto alcançado pelo tribunal recorrido quanto aos concretos pontos impugnados assentou num erro de apreciação.
Ou seja, a alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação tem de ser realizada ponderadamente, em casos excepcionais, pontuais e só deverá ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciam a existência de erro de julgamento e sustentam, em concreto e de modo inequívoco, diversa convicção da expressa na decisão recorrida.
Importa, então, transpondo o exposto para o caso, que apreciemos a impugnação deduzida.
No entanto, decorrendo do nº 1 daquele referido art. 662º, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, não só, nas situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pelos recorrentes, previamente, impõe-se-nos que analisemos os pontos da matéria de facto, considerada provada (e também, não provada, atenta a impugnação deduzida quanto a esta) pelo Tribunal “a quo” que contenham, eventualmente, afirmações e expressões conclusivas ou valorativas, que não possam constar do seu elenco, expurgando-os das mesmas e procedendo à sua alteração oficiosamente.
Conforme dispõe o art. 663º, nº 2, na elaboração do acórdão deve observar-se, “na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607º a 612º”. Logo, deverá observar-se o disposto no nº 4 do artº 607º, de onde decorre que à decisão da matéria de facto apenas poderão ser levados factos e não matéria de direito, conclusiva e/ou valorativa.
Pois, como é sabido, a decisão da matéria de facto, apenas, deve contemplar factos, entendidos, estes, como os acontecimentos da vida real e não já matéria de direito, conclusiva ou contendo juízos de valor.
Como se lê e ensinou o Professor, (Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ª Edição, págs. 206 a 215), “(…)
a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior;
b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei;
(…)
Entendemos por factos materiais as ocorrências da vida real, isto é, ou os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos dos homens.
(…)
Em conclusão: O juiz, ao organizar o questionário, deve evitar cuidadosamente que nele entrem noções, fórmulas, categorias, figuras ou conceitos jurídicos; deve inserir nos quesitos unicamente factos materiais e concretos.
(…).”.
No mesmo sentido, refere (Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág.187) que, “O questionário deve conter só matéria de facto. Deve estar rigorosamente expurgado de tudo quanto seja questão de direito; de tudo quanto envolva noções jurídicas (…)”.
Também, na jurisprudência, é entendimento pacífico dos tribunais superiores, nomeadamente, do Supremo Tribunal de Justiça, (vejam-se entre outros, os Acórdãos deste de 23.09.2009, Proc. nº 238/06.7TTBGR.S1, de 19.04.2012, Proc. nº 30/08.4TTLSB.L1.S1, de 23.05.2012, Proc. nº 240/10.4TTLMG.P1.S1, de 14.01.2015, Proc. nº 488/11.4TTVFR.P1.S1 e Proc. nº 497/12.6TTVRL.P1.S1 e de 29.04.2015, Proc. nº 306/12.6TTCVL.C1.S1, disponíveis in
www.dgsi.pt
(sítio da internet onde se encontrarão todos os arestos a seguir citados, sem outra indicação)) as conclusões, apenas, podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada.
Ou seja, só os factos materiais são susceptíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objecto de prova.
Seguindo idêntico entendimento, (no Acórdão, do mesmo STJ, de 12.03.2014, Proc. nº 590/12.5TTLRA.C1.S1), decidiu-se que “Só acontecimentos ou factos concretos podem integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão, sendo, embora, de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes”.
Ainda, mais recentemente, sobre esta questão da delimitação entre factos, juízos de valor sobre factos e valorações jurídicas de factos, que é essencial à ponderação da intervenção levada a cabo por este Tribunal “ad quem”, relativamente à decisão recorrida, pronunciou-se (o Ac. do STJ de 28.01.2016, Proc. nº 1715/12.6TTPRT.P1.S1), nele se fazendo constar o seguinte: “Conforme se considerou no acórdão desta Secção de 24 de novembro de 2011, proferido na revista n.º 740/07.3TTALM.L1.S2, «o n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil, dispõe que “têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”» e «atento a que só os factos podem ser objeto de prova, tem-se considerado que o n.º 4 do artigo 646.º citado estende o seu campo de aplicação às asserções de natureza conclusiva, “não porque tal preceito, expressamente, contemple a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, mas, como tem sido sustentado pela jurisprudência, porque, analogicamente, aquela disposição é de aplicar a situações em que em causa esteja um facto conclusivo, as quais, em retas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objeto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum» — acórdão deste Supremo Tribunal, de 23 de setembro de 2009, Processo n.º 238/06.7TTBGR.S1, da 4.ª Secção, disponível in www.dgsi.pt.”»”.
E continua: “Por
thema decidendum
deve entender-se o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado,…”.
Concluindo com a formulação do seguinte: “Sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de facto que se insira de forma relevante na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta ou componente relevante da resposta àquelas questões, ou cuja determinação de sentido exija o recurso a critérios jurídicos, deve o mesmo ser eliminado.”.
Decorre do que se deixa exposto que, quando tal não tenha sido observado pelo tribunal “a quo”, ou não o tenha sido na totalidade e o mesmo se tenha pronunciado sobre afirmações conclusivas, que essa pronúncia deve ter-se por não escrita. E, significa, também, atentos os mesmos argumentos enunciados, que o tribunal “ad quem” não pode considerar provadas alegações conclusivas que se reconduzam ao
thema decidendum
.
Assim, transpondo o exposto para o caso, verifica-se que os pontos 12, 25, 33 e 34, do elenco dos factos provados [12) Não obstante a epígrafe e o teor do mencionado contrato e respectiva adenda, AA foi admitida ao serviço da ré, em 01.09.2018, para, sob as
suas ordens, direcção e instruções
, desempenhar as funções de fisioterapeuta. 25) AA presta a sua actividade
quase em exclusivo
para a ré, mas
numa percentagem superior a 80%
. 33) O Centro Clínico ... tem
prestadores de serviços e pessoas em regimes de contrato de trabalho.
34) A médica fisiatra é
prestadora de serviços
] e, também, os pontos 38, 39, 40 e 41, do elenco dos factos não provados [38) A
oscilação mencionada em 31) ocorreu também
após 01/02/2019
em função das horas prestadas
por AA. 39) O referido em 31) permitiu a AA que
prestasse serviços noutros sítios
e
tivesse clientes particulares
. 40) A
dependência de AA
superior a 80% em relação à ré
só ocorreu num ano. 41) Qualquer médico, enfermeiro ou fisioterapeuta, independentemente do vínculo contratual,
utiliza equipamentos
desse estabelecimento de saúde.] contém expressões, que deixamos sublinhadas, que não podem de todo manter-se, dado tratarem-se de alegações genéricas e conclusivas, na medida em que encerram juízos valorativos, a formular de factos, eventualmente, alegados e que resultem provados, a que acresce, no caso, estar em discussão a qualificação da relação estabelecida, como de trabalho ou de prestação de serviços.
Em suma, sendo as expressões constantes daqueles pontos, genéricas e comportando conclusões relevantes para a análise da questão jurídica a decidir que, sem dúvida, há-de retirar-se ou não a jusante, na sentença, onde deverá ser feita a apreciação crítica de toda a matéria de facto provada, não podem manter-se, já que não podem constar do elenco dos factos provados.
Em conformidade, na sequência do que se vem a expor,
decidimos, oficiosamente
,
eliminar os factos 12, 25, 33 e 34 dos factos provados
e
os factos 38, 39, 40 e 41 dos factos não provados.
*
Pese embora, as eliminações acabadas de decidir, quanto a alguns dos factos impugnados, há que prosseguir com a análise da pretensão da recorrente, no que aos demais factos impugnados respeita, tendo em conta o que supra se deixou exposto, para que se proceda à requerida reapreciação.
Analisemos, então, se lhe assiste razão ou tal não acontece, como o recorrido defende.
Procedemos, à audição na íntegra de todos os depoimentos produzidos nos autos, especialmente, os que a recorrente considera, impõem decisão diversa da recorrida, em concreto, as passagens entre os minutos que identifica, dos depoimentos das testemunhas AA, DD e CC e, à análise de toda a prova documental produzida nos autos e os demais factos dados como assentes e feita a sua apreciação conjunta, contrariamente ao defendido por aquela, não formámos uma convicção diversa da recorrida quanto aos pontos de facto que são impugnados.
Justificando.
Comecemos, pelo
facto 4.
Neste deu o tribunal “a quo” como provado o seguinte:
- “4) A ré não regularizou a situação, tendo sido elaborado o correspondente auto de notícia, ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A, n.º 1, da Lei 107/2009, de 14/09, pela prática de contra-ordenação laboral muito grave prevista no artigo 12.º, n.º 2 do Código do Trabalho e remetido ao Ministério Público em 19 de Março de 2024.”.
Na fundamentação da decisão de facto, em concreto, quanto a este ponto 4, a Mª Juíza “a quo”, refere: “A convicção do Tribunal fundou-se no conjunto da prova produzida, analisada criticamente à luz das regras da experiência comum, não olvidando desde logo a posição de ambas as partes vertidas nos respetivos articulados e da qual resulta incontroversa a factualidade vertida em 1), 3),
4)
e 5) a qual está igualmente sustentada nos seguintes documentos, que não foram impugnados: participação ao Ministério Público efetuada pela ACT, notificações e auto por inadequação do vínculo que tutela a prestação da atividade e notificação para apresentação de documentos”.
A recorrente discorda pugnando que a resposta ao ponto 4) dos factos provados deveria ter sido:
“
A ré regularizou a situação, no prazo de 10 dias, ao celebrar um contrato de trabalho sem termo com a colaboradora AA
”.
Fundamenta a sua pretensão argumentando que, tendo o Tribunal “a quo” dado como assente o
TEOR DO CONTRATO DE TRABALHO ENTRETANTO OUTORGADO POR AA E A RÉ, COM INÍCIO DE VIGÊNCIA A 01/03/2024,
atendendo ao seu teor, “É INEGÁVEL QUE DAQUELE RESULTA O CONTRÁRIO, OU SEJA, QUE A RECORRENTE DEU CUMPRIMENTO A NOTIFICAÇÃO DA ACT, ENVIOU TODA A DOCUMENTAÇÃO SOLICITADA E INCLUSIVE A AA E A RECORRENTE, NO ÂMBITO DO PRINCÍPIO DA LIBERDADE CONTRATUAL E AUTONOMIA DA VONTADE E DE COMUM ACORDO, RESOLVERAM CELEBRAR UM CONTRATO DE TRABALHO SEM TERMO, COM INÍCIO DE VIGÊNCIA À 01 DE MARÇO DE 2024, CONFORME JUNTO PELA RECORRENTE COMO DOCUMENTO N.º 1. ALIÁS, AA E A RECORRENTE, MAIS UMA VEZ, NO CONTRATO DE TRABALHO CELEBRADO JÁ APÓS A DATA DA ACÇÃO INSPECTIVA DA ACT, RESOLVERAM MAIS UMA VEZ, CLASSIFICAR A RELAÇÃO ANTERIOR (01/10/2018 – 29/02/2024), COMO SENDO UMA RELAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS, CONFORME RESULTA DO CONTRATO DE TRABALHO CELEBRADO. O ALUDIDO DOCUMENTO É APTO A PROVAR QUE A RECORRENTE DEU CUMPRIMENTO Á NOTIFICAÇÃO DA ACT E QUE AS PARTES ENTENDEM E RECONHECEM A RELAÇÃO ENTRE 01/10/2018 E 29/02/2024, ENQUANTO PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS.”.
Que dizer?
Desde logo, cumpre dizer que, a argumentação desenvolvida pela recorrente quanto a este ponto, não permite firmar a convicção que a mesma expressa de modo a dar-se como provado, aquele ponto 4, nos termos que pretende. Não têm essa virtualidade, nem o que decorre do teor do contrato junto, com início em 01.03.2024, nem o que foi dito pela AA, basta atentar no trecho do seu depoimento transcrito pela recorrente.
Acrescendo, que há que referir que a “regularização” da situação laboral de AA passa pela análise, em primeiro lugar, pelo teor da notificação que a recorrente recebeu da ACT e, em segundo lugar, pela análise dos elementos que a recorrente apresentou aquando da notificação a que alude o artigo 15º-A da Lei nº107/2009. Da conjugação de tais elementos é possível concluir, ou não, pela regularização, ou não, daquela situação. Isto para dizer que as expressões “A ré não regularizou”, ou “A ré regularizou”, por si sós, traduzem um juízo conclusivo, a retirar de elementos de facto, os já mencionados.
Deste modo e, atento o que se deixou exposto sobre juízos conclusivos, ainda que não procedendo a pretensão da apelante cumpre, aqui, declarar não escrita a referida expressão constante do facto 4,
passando o mesmo a ter a seguinte redação
:
4) Foi elaborado o auto de notícia, ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A, n.º 1, da Lei 107/2009, de 14/09, pela prática de contra-ordenação laboral muito grave prevista no artigo 12.º, n.º 2 do Código do Trabalho e remetido ao Ministério Público em 19 de Março de 2024.
*
Passemos aos
factos 13 e 15
onde se deu como provado o seguinte:
- “13. AA prestava a sua atividade de fisioterapeuta, executando as tarefas de atendimento de utentes, em função da distribuição de serviço definida pela ré através do plano terapêutico estabelecido pela médica fisiatra.
15. AA exerce as suas funções nas instalações da ré ou em local por ela determinado, designadamente no domicílio dos utentes.”.
Destes discorda a recorrente, pugnando pela sua alteração, sob a alegação de que: “Por insuficiência de prova que possa sustentar os factos em querela, quer documental, quer testemunhal, os factos contidos nos aludidos pontos devem ser reformulados, passando a constar:
“13)
AA PRESTAVA A SUA ACTIVIDADE DE FISIOTERAPEUTA, EXECUTANDO TRATAMENTOS AOS UTENTES, EM FUNÇÃO DO PLANO TERAPÉUTICO TRANSCRITO PELA MÉDICA FISIATRA
.”
“15)
AA EXERCE AS SUAS FUNÇÕES NAS INSTALAÇÕES DA RÉ E EM DOMICÍLIO DOS UTENTES, LOCAL DETERMINADO PELOS UTENTES, EM COMUM ACORDO COM AA
.”
Formula esta conclusão, sob alegação de que, “A factualidade aludida pelo tribunal a quo é manifestamente contrariada pela testemunha CC no seu depoimento,…” e prossegue, supomos, para fundamentar aquela sua alegada convicção, transcrevendo o seguinte trecho, do depoimento daquela testemunha: “
“[18:31] MR – E também contabilizava as deslocações? Ou era sempre com base na palavra dela?
CC (CC): Também contabilizava.
MR: Mas repara, coisa, era com base na palavra dela, não era?
CC: Sim. Com base na palavra dela.
MR: Não ia fazer nenhuma supervisão, ou ligar teve aí. Era na base naquilo que ela lhe indicava, não é? E
mesmo as trocas de dias aos pacientes, trocas dia ou isso, era ela que fazia?
CC: Era a AA que geria.
MR: Que geria, não é?
CC: Exactamente [18:58]”
” e dizendo: “A aludida testemunha apresentou um discurso coerente e coeso, pelo que não se vislumbra porque motivo o Tribunal deu como provada tal factualidade dos pontos 13) e 15), quando em rigor não decorre da prova documental e nem testemunhal tal factualidade.
Como asseverado pela testemunha acima referida, era a AA que geria as deslocações ao domicílio, local, em concordância com os utentes.
Nesta senda,
Mal andou o Tribunal a quo a dar por provado os factos versados nos pontos 13) e 15) da matéria dada como provada, visto inexistir prova cabal que o funde, uma vez que, atentas as mais basilares regras do ónus da prova, servir como elemento probatório para fundar o facto em questão, o qual é inegavelmente não resultou da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.”.
Analisando.
Quanto ao depoimento de CC (depoimento que a recorrente indica para fundamentar a sua pretensão relativamente aos factos 13 e 15) o Tribunal “a quo” deixou consignado na fundamentação da decisão recorrida, o seguinte:
“CC, administrativo na ré desde 18/12/2018, a respeito das reuniões com a Direção, deu conta de que apenas informava as equipas da sua realização por email, não sendo, no entanto, a sua presença obrigatória. Todos os colaboradores, fossem trabalhadores ou prestadores de serviços recebiam essa informação. Negando que AA tivesse obrigação de “picagem do ponto”, referiu que as horas por ela prestadas eram confirmadas, através da plataforma A..., recebendo mesmo que não tivesse utentes para atender (disse que este procedimento é idêntico para todos os prestadores de serviço, o que, julgamos, é difícil de compreender, sobretudo se forem remunerados em função de determinado valor/hora). Confrontado com as oscilações de remunerações descritas no artigo 9.º da contestação, mencionou que as mesmas adviriam especialmente dos domicílios, já que o trabalho em clínica, independentemente de ter utentes/agenda aberta, era pago. Quando faltava, AA avisava o secretariado para bloquear a agenda, o que sucede igualmente com as demais fisioterapeutas. Disse que a maioria dos colaboradores da ré são prestadores de serviços, o que já não sucede com as fisioterapeutas, que, até à celebração do contrato de trabalho com AA, apenas esta não o era. Da sua experiência noutra instituição hospitalar (B...), mesmo os prestadores de serviços possuem farda, têm acesso ao sistema informático e usam os equipamentos da instituição. Nesta parte nem a testemunha DD nem a inspectora da ACT EE confirmaram integralmente este depoimento, referindo que depende de instituição para instituição.
Apesar de ter ensaiado uma resposta relativamente à distribuição serviço entre as fisioterapeutas, AA incluída e sobretudo no que toca aos domicílios
,
confrontado
,
admitiu desconhecer as regras e procedimento adotados
.” (sublinhado nosso).
O acabado de transcrever, é bem elucidativo, de que o que foi dito pela testemunha CC, ao contrário, do que considera a recorrente, não tem qualquer virtualidade para infirmar o que consta dos pontos 13 e 15 dados como provados. Desde logo, não podemos deixar de refutar, a alegação da recorrente, quando diz que foi, “asseverado pela testemunha acima referida, que era a AA que geria as deslocações ao domicílio, local, em concordância com os utentes”. Pois, o mesmo sobre isso, em especial, no que toca aos domicílios, como bem decorre do seu depoimento, quando perguntado sobre como eram marcados os domicílios, o mesmo limitou-se a dizer o que ele presumia. Tanto que, interpelado pela Mª Juíza “a quo” para precisar o que sabia, disse desconhecer. Como bem o diz a Mª Juíza “a quo”, “
admitiu desconhecer as regras e procedimento adotados
”.
Depois é, também, totalmente infundada a alegação da recorrente, quando afirma que “não se vislumbra porque motivo o Tribunal deu como provada tal factualidade dos pontos 13) e 15), quando em rigor não decorre da prova documental e nem testemunhal tal factualidade.”.
Da análise da fundamentação da matéria de facto decorre que a convicção do Tribunal a quo alicerçou-se nos depoimentos das testemunhas AA e DD, conjugados com o depoimento da senhora Inspetora.
Assim, e sempre com o devido respeito, o depoimento da testemunha CC não é idóneo a “contrariar” e “desacreditar” aqueles depoimentos, que se mostraram credíveis.
Aliás, a recorrente nada referiu a respeito dos referidos depoimentos (de AA e DD) no sentido de os mesmos não deverem ser atendidos, tão só dizendo que não foi feita prova credível, o que não é suficiente, para fundamentar a requerida alteração.
Deste modo, não merece qualquer reparo a matéria constante dos factos em análise.
*
Vejamos, agora, os
factos 20 e 21
dados como provados, com o seguinte teor:
“- 20) E, as horas de início e termo da prestação da atividade de AA sempre foram definidas pela ré,
- 21) AA, exerce as suas funções diariamente, da seguinte forma das 08:00 às 14:00, às 2ª, 4ª e 6ª, no local de trabalho supra referido; às 3ª, das 9:00 às 13:00 e às 5ª, das 09:00 às 16:00, nos domicílios dos utentes.”.
Quanto a estes diz a apelante que,
deveriam ser dados como não provados
, sob a argumentação seguinte: “O DOUTO TRIBUNAL A QUO NÃO FUNDA A QUALIFICAÇÃO DOS FACTOS ACIMA ELENCADO E DESCUROU A PROVA PRODUZIDA EM SEDE DE AUDIÊNCIA, TENDO INCORRIDO EM MANIFESTO ERRO DE JULGAMENTO AO CONSIDERAR COMO PROVADO UM FACTO QUE CONTRARIA O DEPOIMENTO DAS TESTEMUNHAS. NÃO ALUDE A SENTENÇA EM CRISE COM BASE EM QUE PROVA OU DEPOIMENTO, QUE FOI DA MAIOR RELEVÂNCIA PARA INFERIR DA VERACIDADE DO FACTO QUE DÁ POR PROVADO NOS PONTOS 20) E 21). SALVO O DEVIDO RESPEITO, É INSOFISMÁVEL E DECORRE DA PROVA DOCUMENTAL, NOMEADAMENTE RECIBOS/FACTURAS, QUE A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DA AA, NÃO É UNIFORME COMO A SENTENÇA EM CRISE TENTA TRANSPARECER NO PONTO 21). COISA DISTINTA, SERIA O DOUTO TRIBUNAL A QUO, REFERIR QUE A AA PRESTAVA OS SEUS SERVIÇOS DE FISIOTERAPIA DENTRO DAQUELE HORÁRIO, CONFORME A DISPONIBILIDADE DA MESMA (UMA VEZ QUE NÃO ERA OBRIGADA A CUMPRIR HORÁRIO E NEM JUSTIFICAR AUSÊNCIAS) E O AGENDAMENTO DE UTENTES AO DOMICÍLIO, QUE DE RESTO ERA GERIDO PELA PRÓPRIA AA, NÃO ERA AVALIADA, NÃO ESTAVA SUJEITA A CONTROLE DE ASSIDUIDADE, CONFORME DEPOIMENTOS DE CC, AA E DD, QUE SE MOSTRARAM CREDÍVEIS QUANTO A ESSES FACTOS E ISENTOS, QUE CONDUZ, FORÇOSAMENTE, A UMA QUALIFICAÇÃO DIFERENTE DA CONCEDIDA AOS PONTOS ORA EM ESCRUTÍNIO. ASSIM,
OS PONTOS 20) E 21) DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA, DEVEM SER DADOS COMO NÃO FACTO NÃO PROVADO
, POIS A RECORRENTE NÃO DEFINIA O INÍCIO E NEM O TERMO DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DA AA, POIS TINHA TOTAL AUTONOMIA EM SE AUSENTAR E FALTAR, ASSIM COMO, NÃO FICOU DEMONSTRADA A REALIDADE DO FACTO 21), UMA VEZ QUE, A AA, NÃO ESTAVA SUJEITO A QUALQUER CUMPRIMENTO DE HORÁRIO DE TRABALHO, EMBORA FOSSE DO SEU INTERESSE PERMANECER NAS INSTALAÇÕES DA RECORRENTE, POIS SÓ RECEBIA AS HORAS QUE PERMANECIA NO POSTO, UMA VEZ QUE A CONTRATAÇÃO DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS, AS PARTES ACORDARAM UM VALOR HORA.”.
E procedendo à reapreciação destes factos, do que a recorrente alega e da prova que invoca nada decorre que contrarie o que consta dos factos provados nos pontos 20 e 21, conforme a resposta pela mesma pretendida de que, sejam dados como não provados.
A argumentação da recorrente de que o Tribunal “a quo” “não funda” a qualificação dos factos 20 e 21 e “descurou a prova produzida” e que, “Não alude a sentença com base em que prova ou depoimento, que foi da maior relevância para inferir da veracidade do facto que dá por provado nos pontos 20) e 21)” é, salvo o devido respeito, totalmente infundada.
Senão, veja-se, o que decorre da fundamentação da decisão recorrida, donde resulta, o que alicerçou a convicção da Mª Juíza “a quo”, para que fossem aqueles dados como provados, transcrevendo-se, em síntese, o seguinte: “(…), atendeu-se ao depoimento de
EE
, inspectora da ACT, que descreveu pormenorizadamente a visita inspectiva que realizou, sustentado ainda no auto de participação acima aludido, o que então pôde constatar nas instalações da ré, designadamente que viu AA a desempenhar a actividade de fisioterapeuta no dia 26/02/2024, devidamente fardada, farda essa contendo o logótipo dos SS Banco 1..., uso de equipamentos da ré e com acesso à aplicação A..., onde era disponibilizada a prescrição da médica fisiatra, definindo os tratamentos de fisioterapia a executar, tinha um endereço de email com o domínio da ré, possuía um cacifo, tal como as demais, na sala da fisioterapeutas, e quando faltava informava a secretaria e as colegas do serviço, procedimento esse idêntico ao seguido pela colega DD, junto de quem confirmou essa informação.
Segundo depoimento então recolhido junto da indicada trabalhadora, a mesma só esporadicamente prestaria serviços de fisioterapia a terceiros, representando a actividade prestada para a ré mais de 80%, o que confirmou no que toca ao ano de 2023.
Obteve ainda a indicação de que AA participou, juntamente com as restantes 6 fisioterapeutas, trabalhadoras da ré, numa reunião com a Direcção.
Possuía horário de trabalho determinado pela ré
e recebia um valor fixo/hora, com um acréscimo na realização dos domicílios, pago por transferência bancária.
As férias não eram pagas, recebia 12 vezes/ano, tendo obtido a informação de que a marcação das férias dependia da sua solicitação e conciliação com a médica fisiatra.
Essencial foi o depoimento de
AA
, que depôs de forma sincera, revelando em alguns momentos até alguma ingenuidade, o que credibilizou o seu depoimento.
Esclareceu quando e porquê foi contratada pela ré, no fim do ano de 2018, com vista a suprir um horário
que uma colega, HH, à data, não podia assegurar, porque se encontrava a realizar o doutoramento. Por isso, podendo aquela apenas assegurar as terças e quintas,
foi contratada para trabalhar nos restantes dias da semana (2.ª, 4.ª e 6.ª), quatro horas por dia, durante a manhã (das 09h00 às 13h00)
. No entanto, quando foi contratada, a expectativa é que o horário fosse aumentado e correspondesse a um horário completo, pois que logo lhe foi dito que iriam iniciar os domicílios, estes a realizá-los às terças e quintas. De resto, antes de ser contratada pela ré trabalhava a tempo inteiro o que só fazia sentido para si manter na ré.
Por hora recebia 11,10€, a que acrescia a quantia de €20,00, por domicílio realizado. Recebia mensalmente e emitia os respectivos recibos verdes.
Pouco tempo depois,
em Fevereiro de 2019, é celebrada uma adenda ao contrato
, porque
passou a substituir uma colega que ficou de baixa médica por gravidez de risco clínico, seguida de licença de parentalidade. Daí que, passasse a cumprir 6 horas diárias, a que correspondiam 30 horas/semanais e a que acresciam ainda os domicílios. Depois disso, não voltou às horas iniciais. Confirmou, no essencial, o horário alegado no artigo 20.º da petição inicial, dado assim como provado
.
Todas as suas colegas de profissão eram trabalhadoras da ré quando foi contratada.
Quando faltava, o procedimento que então seguia era o mesmo que agora, com contrato de trabalho, segue, ou seja, ligava para o serviço, de modo a que as suas colegas pudessem desmarcar os tratamentos e depois ligava para a secretaria. O dia que faltava não lhe era pago.
Aliás, no início do contrato, registava manualmente o horário de entrada e de saída em folhas fornecidas pela ré para o efeito, tal como sucedia com a suas colegas. Só após a informatização do registo deixou de o realizar, por não ter acesso à plataforma. De resto, deixou de fazer qualquer registo, já que o controlo da sua assiduidade era feito com base na agenda disponível no A... e com as suas comunicações de ausência; só em relação aos domicílios é que confirmava a sua realização na secretaria.
Acrescentou com relevância que a distribuição dos pacientes pelas diversas fisioterapeutas se fazia com base nas indicações da fisiatra, levando em conta, designadamente, a especialização de cada fisioterapeuta disponível no serviço, e
sempre teve de cumprir o horário definido mesmo que não tivesse utentes adstritos para tratar. Nestes casos, mesmo que não tivesse a agenda completa, permanecia nas instalações da ré, cumprindo outros trabalhos de cariz mais burocrático/de gestão do serviço (preparação de cremes, por exemplo), recebendo de igual forma
. Só nos domicílios é que não recebia o acréscimo de €20,00 se o mesmo não tivesse lugar. Portanto, mesmo não desempenhando as funções para as quais foi contratada, AA é igualmente remunerada, só não recebendo o acréscimo dos domicílios, simplesmente porque já não tem despesas com a deslocação. Tal facto, por relevante foi aditado à factualidade dada como provada.
A férias que gozava não eram pagas.
Não recebia subsídios de férias e de Natal, o que igualmente se aditou.
Só pontualmente prestava serviços de fisioterapia para terceiros, justificando de forma que se nos afigurou sincera que os rendimentos assim obtidos “não sabe sequer se chegariam aos 500€/ano”, o que nos dá bem a noção da grandeza da sua dependência económica relativamente à ré.
No ano de 2020, por força da pandemia, não fez domicílios, pelo que os seus rendimentos sofreram uma redução. Contudo, manteve-se a trabalhar nas instalações da ré, como as restantes trabalhadoras.
No desempenho da sua actividade usa equipamentos (os alegados no artigo 12.º da petição inicial) disponibilizados pela ré, tem acesso à aplicação informática A..., na qual, além do mais, se encontra acessível a agenda definida pela Dr.ª BB, médica fisiatra, que prescreve os tratamentos. Não realiza tratamentos que não sejam prescritos por aquela médica que, ao que julga, é prestadora de serviços na ré. Usa a farda fornecida pela ré que possui o logótipo dos SS Banco 1... e dispõe de endereço de email por estes fornecido.
Participava nas reuniões convocadas pela Direcção, recebendo, tal como as suas colegas trabalhadoras, o respectivo email a dar conta da sua realização. Tais reuniões destinavam-se, além do mais, a definir a organização do serviço a encontrar formas de o optimizar, tendo participado, por exemplo, num workshop no dia da fisioterapia.
Confirmou que não é avaliada pela ré.
Desde a primeira Direcção da ré que sempre procurou a sua integração nos quadros, ou seja, a sua admissão como trabalhadora. Tal só veio a ser possível depois da visita da ACT e sem efeitos retroactivos. Foi a proposta que lhe foi feita e que aceitou, porquanto, como afirmou de forma espontânea, “queria ter um contrato de trabalho”, questionou até se teria “feito mal” em ter aceitado tal proposta. Nada mudou no seu trabalho desde então, o que faz agora era o que fazia antes, a não ser a circunstância de auferir um valor fixo mensalmente, recebendo apenas, no que toca aos domicílios, o valor correspondente aos custos das deslocações.
Aliás, já antes da celebração do contrato de trabalho cumpria o horário que aí veio a ser consagrado (e que representa mais uma hora diária). Mesmo com o contrato de trabalho ainda presta serviços a terceiros pontualmente, na medida em que não está obrigada a exclusividade
.
DD
, trabalhadora da ré desde 2013, fisioterapeuta, referiu que a sua colega de trabalho AA iniciou as suas funções em 2018, realizando o mesmo serviço que as demais, às segundas, quartas e sextas, intercalando com os domicílios, que só ela faz desde então.
A distribuição de utentes entre as fisioterapeutas é feita de acordo com o plano terapêutico definido pela médica fisiatra, em função das cabines de tratamento disponíveis, aparelhos igualmente disponíveis, etc. É a médica fisiatra que define os tratamentos, na medida em que na execução destes possuem autonomia, daí que a tenha identificado até como “nosso superior”, pois acima dela encontra-se o Director Clínico.
Não foi assertiva quanto ao registo manual dos tempos de trabalho, apenas presumindo que AA o assinava.
O procedimento instituído para o aviso das faltas é idêntico para todas as fisioterapeutas, incluindo AA, corroborando os depoimentos anteriores nesse sentido. Todas usam farda fornecida pela ré e dispõem de um cacifo, usando ainda os equipamentos – que no essencial descreveu – fornecidos pela ré.
Afirmando que o trabalho desempenhado por AA não possuía qualquer diferença relativamente ao prestado pelas fisioterapeutas trabalhadoras
, disse que, porém, a mesma não era avaliada nem utilizava o pontómetro.
Confirmou que mesmo que não tenha utentes atribuídos, AA, tal como as demais, permanece nas instalações da ré, aproveitando para executar trabalho mais burocrático ou tratar da preparação dos instrumentos de trabalho.
Com a celebração do contrato de trabalho nada mudou
.
(…).” (sublinhados nossos).
Acresce, ainda, que o que foi dito, pela testemunha CC, também não tem a virtualidade de infirmar o que se diz naqueles, basta atentar no que consta da fundamentação da decisão recorrida que se transcreveu, aquando da apreciação dos factos 13 e 15 e o que decorre do depoimento do mesmo sobre as horas que eram pagas à AA relativamente à sua permanência no posto. De onde, só é possível concluir que para a recorrente, a AA, desempenhava um horário fixo naquele local.
Em suma, a recorrente, invocando o que decorre de prova documental (nomeadamente recibos/facturas, que não identifica de outro modo) e apenas, com base, nos minutos que transcreve, dos depoimentos de CC, DD e AA, sob a alegação de que “a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo descurou a prova produzida em sede de audiência”, considera que os pontos 20) e 21) da matéria de facto dada como provada, devem ser dados como factos não provados, o que revela sem dúvida que, firmou a recorrente, quanto aos precisos meios de prova produzidos nos autos, que firmaram a convicção do Tribunal recorrido, uma convicção diversa que, em nosso entender, não só é infundada, como é diversa daquela e da que firmámos, após a avaliação integral e conjugada de todas as provas produzidas nos autos.
Improcede, assim, também, quanto a estes pontos a impugnação deduzida.
*
Passemos ao
facto 24
, onde foi dado como provado o seguinte:
“-24) E solicita à ré autorização quanto aos períodos que em cada ano pretende gozar férias.”.
Quanto a este, defende a recorrente que deve ser
dado como não provado
.
Refere para o efeito, nas suas conclusões o seguinte: “O DOUTO TRIBUNAL INCORRE EM ERRO DE JULGAMENTO, POIS NÃO SE ALCANÇA DO
DEPOIMENTO DE QUALQUER TESTEMUNHA OU PROVA DOCUMENTAL
TAL REALIDADE DESCRITA PELO TRIBUNAL A QUO NO PONTO 24).
EMBORA SE ADMITA QUE DECORRE DO DEPOIMENTO DAS TESTEMUNHAS CC E DD
, QUE A AA, APENAS COMUNICAVA AS SUAS FALTAS OU AUSÊNCIAS À SECRETARIA, POR UMA QUESTÃO DE BLOQUEIO DE AGENDA E ASSIM, EVITAR A DESLOCAÇÃO DESNECESSÁRIAS DOS UTENTES AO POSTO CLÍNICO.
O ALUDIDO PELAS TESTEMUNHAS NÃO SÃO APTOS
A DAR POR PROVADO A FACTUALIDADE CONTIDA PELA MMª JUIZ NO PONTO 24) DOS FACTOS PROVADOS, PORQUANTO,
RESULTA, INDUBITAVELMENTE, DA PROVA ACIMA ELENCADA (TRANSCRIÇÃO DOS DEPOIMENTOS
), QUE A AA NÃO SOLICITAVA AUTORIZAÇÃO À RECORRENTE QUANTO OS PERÍODOS DE FÉRIAS QUE PRETENDIA GOZAR, APENAS OCORRIA UMA MERA COMUNICAÇÃO PARA EFEITOS DE BLOQUEIO DE AGENDA, DE MODO A EVITAR A DESLOCAÇÕES DOS UTENTES (DIFICULDADES EM MOBILIDADE) AO POSTO. CONTUDO, NÃO NECESSITAVA DE QUALQUER AUTORIZAÇÃO OU APRESENTAR JUSTIFICAÇÃO, QUER PARA SE AUSENTAR, FALTAR OU MARCAR AS SUAS FÉRIAS. A FACTUALIDADE DESCRITA NO PONTO 24) NÃO CORRESPONDE A VERDADE DOS FACTOS E
NEM TEM QUALQUER CORRESPONDÊNCIA COM A PROVA PRODUZIDA
, DEVENDO ASSIM, SER DADA O PONTO 24) DA SENTENÇA EM CRISE, COMO FACTO NÃO PROVADO.”.
Quanto a este ponto, analisado o que antecede e nada mais sendo referido quanto a ele na alegação da recorrente, só é possível concluir-se que a mesma não indica a prova em que sustenta a impugnação deduzida, o que não se satisfaz com a invocação genérica que faz a toda a prova produzida.
Assim, não tendo dado cumprimento ao art. 640º, nº 1, al. b) quanto a este ponto 24, rejeita-se a impugnação deduzida quanto ao mesmo.
*
Por último, vejamos, a impugnação deduzida quanto ao
ponto 42
, dado como não provado, com o seguinte teor:
“- 42) O mencionado em 35) também seja aplicável à farda.”.
Assim, o entendeu o Tribunal recorrido, com fundamento na seguinte consideração: “Os factos dados como não provados ou estão em contradição com a factualidade dada como provada ou não foi produzida prova suficiente que os sustentasse.”.
Com esta vem a recorrente dizer não se conformar, alegadamente, “porquanto, a mesma só pode resultar de uma errada (des)valorização e apreciação da prova produzida”, ou como mais adiante alega, por considerar a qualificação daquele como não provada “totalmente descabida face a prova produzida na presente demanda.”.
Alegando estar em crer que, a Mª Juíza “a quo” ao considerar que não se logrou fazer prova quanto a este facto, “tal apreciação afronta o esforço probatório da aqui recorrente, visto, descurar, por completo, sem que para tal tenha fundamento, face as regras da experiência comum e do depoimento das diversas testemunhas, nomeadamente CC, DD, que, com a maior isenção e credibilidade, asseveraram no conjunto dos seus depoimentos, e por outro lado, face a notoriedade de tais factos, que decorre da experiência comum, visível e disponível ao homem médio.”.
Por fim alega que, “Atento tudo o quanto foi ora exposto e evidenciado, é insofismável que da prova produzida acima, elencada, resulta, forçosamente, consideração diversa quanto aos factos em querela, consubstanciando a apreciação levada a cabo pelo Tribunal a quo uma valoração deficitária e imponderada de toda a prova produzida, descurando, não só a prova supra referenciada, bem como a prova documental junta aos autos.
Assim,
Da conjugação de toda a prova produzida é forçoso concluir que mal andou o Tribunal a quo a dar como não provado a factualidade vertidas nas alíneas 38), 39), 40) 41 e 42) e da factualidade provada os pontos 4), 13), 15), 20), 21), 24) e 25), sendo, clarividente, subsistir nos autos prova que conduz a decisão contrária.”.
O acabado de transcrever, foi propositado, para demonstrar a razão, porque há que rejeitar a impugnação da recorrente quanto a este facto.
Efectivamente, pese embora, todas as considerações tecidas e a discordância manifestada contra a decisão recorrida que, considerou não ter sido produzida prova que demonstre os factos dados como não provados, imputando ao Tribunal recorrido uma valoração deficitária e imponderada de toda a prova produzida, o certo é que, também quanto a este, a mesma não cumpre os ónus que se lhe impõem, para que à requerida reapreciação pudéssemos proceder. A recorrente não deu cumprimento ao disposto no nº 1, al. b) do art. 640º.
Assim, face ao que supra se deixou exposto, sem necessidade de outras considerações, rejeita-se a impugnação deduzida quanto ao facto 42) dado como não provado.
*
Em suma, com fundamento, na apreciação e análise conjugada que fizemos de todas as provas, nomeadamente, documentais produzidas nos autos, atentas as regras da experiência, a nossa convicção não é diversa daquela que firmou a Mª Juíza “a quo”.
A convicção que a apelante alega ter, defendendo que as respostas que impugna se impõem, em nosso entender, sempre com o devido respeito, não é a acertada, não revelando a ocorrência de qualquer erro de julgamento mas, tão só, uma diversa convicção da mesma.
É nossa firme convicção, de harmonia com aquelas, que não lhe assiste qualquer razão, no que toca à pretendida alteração das respostas dadas aos pontos impugnados, não nos subsistindo quaisquer dúvidas que, a Mª Juíza “a quo” andou bem ao decidir do modo que o fez, não se vislumbrando a ocorrência de erro de julgamento, quanto àqueles factos a cuja reapreciação procedemos.
Sendo que, só no caso de tal ter acontecido é que poderia proceder a pretensão, da recorrente, conforme decorre do nº 1 do art. 662º.
Em consequência, improcede, nesta parte o recurso, considerando-se assente a factualidade supra indicada no presente acórdão, com as alterações que oficiosamente foram determinadas.
*
Passemos, agora, à questão de
saber se a sentença recorrida deve ser revogada
por, como alega a recorrente e conclui em DDD,
ERRADA APLICAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 12.º DO CÓDIGO DO TRABALHO, FACE A FACTUALIDADE PROVADA,
ou seja, dada a inexistência de um contrato de trabalho, como defende a mesma.
Esta questão, surge porque na decisão recorrida se concluiu que a relação, estabelecida entre a trabalhadora, AA e a ré, configura um contrato de trabalho e a recorrente continua a defender, nesta sede, que se trata de um contrato de prestação de serviços.
Sem discussão encontra-se que, a questão de saber sobre a existência, ou não, de um contrato de trabalho entre a trabalhadora e a ré, deverá ser apreciada, dado se ter iniciado em 01.09.2018, ao abrigo do Código do Trabalho de 2009, aprovado pela Lei 7/2009, de 12.02, com entrada em vigor a 17.02, (diploma a que pertencerão os demais artigos a seguir mencionados, sem outra indicação de origem).
Importa, então, para melhor análise do caso, estando em causa a qualificação jurídica da relação estabelecida entre aquelas, tecer algumas considerações sobre os institutos em causa, o contrato de prestação de serviços com assento, apenas, na lei civil e o contrato de trabalho com assento naquela e na lei laboral, sabido que qualificar uma dada situação concreta, pode suscitar sérias dificuldades.
O Código Civil define o contrato de prestação de serviços, no art. 1154º, como “... aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar a outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.”.
E, define o contrato de trabalho no art. 1152º, como “... aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta.”.
Noção que era, integralmente, reproduzida no art. 1º da LCT (Decreto Lei nº 49.498, de 24.11.69) e que não sofreu alterações, no que diz respeito à sua essência, nas definições sucessivas, dadas pelo art. 10º do CT, aprovado pela Lei nº 99/2003 de 27 de Agosto e pelo art. 11º do CT, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro.
Definindo o art. 10º, daquele CT de 2003, ainda que com ligeira alteração de redacção, que o “Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, sob a autoridade e direcção destas”.
E o art. 11º do CT de 2009, ainda que com uma alteração mais significativa, que o: “Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob autoridade destas”.
Decorre do enunciado de qualquer destes dispositivos que os elementos constitutivos da noção de contrato de trabalho são, a prestação de actividade, a retribuição e a subordinação jurídica.
E, atento o que decorre do disposto no art. 342º, nº 1 do CC, recai sobre o trabalhador, no caso, o Ministério Público, que pretende ver reconhecida a existência de um contrato de trabalho, o ónus de alegar e provar os factos necessários ao preenchimento dos elementos constitutivos daquela figura contratual. Nesse sentido, (como entre muitos outros, os Acs. do STJ de 2012.05.30, Proc. nº 270/10.6TTOAZ.P1.S1 e de 2010.03.03, Proc. nº 4390/06.3TTLSB.S1, ambos da 4ª Secção), vem afirmando a jurisprudência, que incumbe ao trabalhador, nos termos daquele art. 342º, nº 1, a alegação e prova dos factos reveladores da existência de uma relação de natureza jurídico-laboral, porque são constitutivos do direito que pretende ver reconhecido.
Importa, então, saber, face aos factos provados, se deve concluir-se pela existência de um contrato de trabalho, entre a trabalhadora e a R., pressuposto necessário para a aplicação da lei laboral, ou tal não ocorreu, tendo existido um contrato de prestação de serviços como pretende a recorrente fazer valer através do presente recurso.
Tipos de contrato que, como é sabido, se diferenciam, fundamentalmente, pelo respectivo objecto, qual seja o da prestação de uma actividade, no caso do contrato de trabalho, ou da obtenção de um resultado, no caso do contrato de prestação de serviço, e pelo relacionamento entre as partes, isto é, a existência de uma relação de subordinação, no primeiro, ou de autonomia, no segundo.
Como é referido pela doutrina, vejam-se, entre outros (Monteiro Fernandes, in “Direito do Trabalho”, 14ª ed., págs. 127 a 137 e Maria do Rosário Palma Ramalho, in “Direito do Trabalho”, Parte II, 3ª ed., págs. 20 a 37), a noção legal do contrato de trabalho permite identificar como elementos essenciais deste tipo de contrato, a actividade laboral, a retribuição e a colocação do trabalhador sob a autoridade e no âmbito da organização do empregador. Consistindo, o primeiro, na natureza da prestação a que o trabalhador se obriga, isto é, a prestação de actividade, que se concretiza em fazer algo, como aplicação ou exteriorização da força de trabalho tornada disponível para a outra parte, através do negócio. Na contrapartida devida ao trabalhador em troca da disponibilidade da força de trabalho sendo, normalmente, paga em dinheiro, consiste o segundo. Por fim, o último elemento, corresponde ao que a jurisprudência e a doutrina, a partir da perspectiva do trabalhador, designam de “subordinação jurídica”, dependendo o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho, da sua verificação.
A subordinação jurídica aparece assim, normalmente, definida como o dever legal do trabalhador acatar e cumprir as ordens e instruções que, em cada momento, lhe sejam dirigidas pelo empregador, emitidas por este no uso do seu poder de direcção da empresa, directivas essas que são vinculativas para aquele devido à obrigação de obediência consagrada na lei.
Além disso, a subordinação jurídica que caracteriza o contrato de trabalho, é o elemento típico deste que, permite distingui-lo quer do contrato de prestação de serviços, (como é o caso em discussão) quer de outros contratos afins, tais como, o contrato de mandato, o contrato de comissão, o contrato de sociedade e outros e decorre daquele poder de direcção que a lei confere à entidade empregadora, conforme os art.s 39º, nº 1 da LCT, 150º do CT/2003 e 97º do CT/2009, a que corresponde um dever de obediência por parte do trabalhador, conforme dos mesmos diplomas, respectivamente, art. 20º, nº1, al. c), art. 121º, nºs1, al. d) e 2 e art. 128º, nºs1 al.e) e 2.
Nas palavras de (Maria do Rosário Palma Ramalho, obra citada, pág.33), “o confronto do elemento da subordinação com os restantes elementos essenciais do contrato de trabalho evidencia a sua importância vital para a distinção do negócio laboral de outros negócios que envolvem a prestação de uma actividade laborativa: enquanto o elemento da actividade é comum e o elemento da retribuição pode estar presente nas várias formas de prestação de um trabalho, o elemento da subordinação é típico e específico do contrato de trabalho”.
Por sua vez, (Monteiro Fernandes, também, na obra citada, págs. 136 e 137) refere que, a subordinação jurídica consiste “numa relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem” e continua assinalando que “a subordinação jurídica pode não transparecer em cada instante do desenvolvimento da relação de trabalho. Muitas vezes, a aparência é de autonomia do trabalhador, que não recebe ordens directa e sistemáticas da entidade patronal; mas, a final, verifica-se que existe, na verdade, subordinação jurídica”, o que acontecerá sempre que em relação à entidade patronal exista “um estado de dependência potencial (conexo à disponibilidade que o patrão obteve pelo contrato”, sem ser necessário que aquela “dependência se manifeste ou explicite em actos de autoridade e direcção efectiva”.
Verifica-se, assim, ser consensual o entendimento sobre os elementos que caracterizam o contrato de trabalho e que na distinção com outros contratos releva a existência de subordinação jurídica. No entanto, o mesmo já não acontece na prática. Para o efeito, contribui a diversidade, de situações concretas que, muitas vezes, dificultam a subsunção dos factos na noção de trabalho subordinado, de modo que, como referem os Autores antes citados, naquelas mesmas obras, (Monteiro Fernandes. Pág. 148 e Maria do Rosário Palma Ramalho, pág. 40 e, também, Bernardo da Gama Lobo Xavier, in “Iniciação ao Direito do Trabalho”, 2ª ed., 1999, pág. 156) implicam a necessidade de se recorrer a critérios acessórios, baseados na interpretação de indícios reveladores dos elementos que caracterizam a subordinação jurídica, os chamados indícios negociais internos, em casos limite, tanto a doutrina como a jurisprudência aceitam a necessidade de os fazer intervir.
São, no dizer daquele último Autor, “zonas cinzentas”, o qual (na obra citada, págs. 156 e 157) refere que “é corrente aplicar-se o método de índices para testar a existência de uma situação de autonomia ou de subordinação”, mencionando como índices mais relevantes:
- Organização do trabalho: se é do próprio que o desempenha, indicia-se trabalho autónomo, se é de outrem, trabalho subordinado.
- Resultado do trabalho: se o contrato tem em vista o resultado, indicia-se trabalho autónomo, se tem em vista a actividade em si mesma, indicia-se trabalho subordinado.
- Propriedade dos instrumentos de trabalho: se estes pertencem ao trabalhador, presume-se autonomia, se não, indicia-se subordinação.
- Lugar de Trabalho: se este pertence ao trabalhador, indicia-se autonomia, se não subordinação.
- Horário de Trabalho: a existência de um horário definido pela pessoa a quem se presta a actividade é um dos mais fortes indícios de subordinação.
- Retribuição: a existência de uma retribuição certa à hora, ao dia, à semana ou ao mês indicia trabalho subordinado, enquanto o pagamento à peça, à comissão ou por produto acabado indicia trabalho autónomo.
- Outros índices: a exclusividade ou não da prestação de serviço relativamente a um único empresário; existência ou não de ajudantes do prestador do serviço, por este pagos; incidência do risco da inutilização do produto.
Além destes, como refere este mesmo autor e assinalam, a doutrina e a jurisprudência, nomeadamente desta Relação, vejam-se entre outros (Ac.s de 12.07.2017, Proc. nº 1374/14.1T8MTS.P2, relatora Desembargadora Fernanda Soares, e de 08.01.2018, Proc. nº 3639/15.6T8VFR.P1 relator Desembargador Jerónimo Freitas, que seguimos de perto), outros elementos assumem relevância para que se faça a distinção entre trabalho autónomo e trabalho subordinado, como sejam, a designação dada ao contrato, inserção do trabalhador na organização produtiva, existência de controlo externo do modo de prestação da actividade laboral, obediência a ordens, sujeição à disciplina da empresa, o direito a férias, pagamento de subsídios de férias e de Natal, o tipo de imposto pago pelo prestador da actividade, a inscrição do prestador da actividade na Segurança Social e a sua sindicalização.
Cada um destes elementos “indícios” tem naturalmente um valor muito relativo e, só por si, não são concludentes quanto à existência de subordinação jurídica, impondo-se um juízo de globalidade em resultado de uma valoração conjunta dos factos provados.
Mas, considerando os mesmos, desse modo, pode chegar-se, assim, a uma conclusão sobre a existência ou não de subordinação típica do contrato de trabalho.
Foi com o objectivo de obviar às dificuldades de prova dos elementos que preenchem a noção de contrato de trabalho, bem como de facilitar a operação qualificativa nas denominadas “zonas cinzentas”, (na expressão de Bernardo Lobo Xavier, supra citado) entre o trabalho autónomo e o trabalho subordinado que, a partir de 2003, o art. 12º do CT/2003, na sua redacção inicial, estabeleceu uma “presunção” de que as partes celebraram um contrato de trabalho assente no preenchimento cumulativo dos requisitos nela enunciados, preceito que, pese embora, alterado pela Lei nº 9/2006, regressou ao actual CT/2009, sem grandes diferenças de redacção em relação à originária de 2003, mas, com uma significativa alteração, na medida em que aligeirou o esforço do trabalhador que apenas terá de provar alguns, dos factos-base, ali enunciados, para que se possa aferir a existência dos elementos caracterizadores do contrato de trabalho, não tendo de provar cumulativamente aqueles, como se lhe exigia na redacção inicial de 2003.
Assim, nos termos do art. 12º do actual CT, aqui aplicável, sob a epígrafe “Presunção de contrato de trabalho”, dispõe-se o seguinte:
“1 - Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A actividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;
b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade;
c) O prestador de actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;
d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de actividade, como contrapartida da mesma;
e) O prestador de actividade desempenhe funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.
(...)”.
Nos termos deste, presume-se a existência de um contrato de trabalho sempre que ocorram alguns dos indícios ali mencionados nas alíneas a) a e), cuja enunciação é meramente exemplificativa, sendo bastante que se verifiquem apenas dois desses indícios para que possa ser presumida a existência de um contrato de trabalho.
Como refere, tal como outros (Maria do Rosário Palma Ramalho, na obra citada, pág. 52), “o tratamento desta matéria no actual Código do Trabalho apresenta três grandes diferenças em relação ao regime anterior: a primeira diferença tem a ver com o tipo de indícios de subordinação indicados pelo legislador, que são agora indícios em sentido próprio, porque não se confundem com os elementos essenciais do contrato de trabalho, antes apontam para tais elementos, designadamente para o elemento da subordinação do trabalhador; a segunda diferença tem a ver com a natureza do enunciado legal destes indícios, que passou a ser exemplificativa, bastando assim teoricamente que apenas dois desses indícios ocorram para que possa ser presumida a existência do um contrato de trabalho”.
Refere, também, (Joana Nunes Vicente in “A fuga à relação de trabalho (típica) em torno da simulação e da fraude à lei”, pág. 135) que, “(…)
a finalidade primordial da norma que contém uma presunção de laboralidade será a de facilitar a prova de um facto, ou melhor, a prova dos elementos que preenchem a noção de contrato de trabalho. A prova é aligeirada, ao permitir que a parte interessada, o trabalhador, não tenha de provar a presença desses elementos, mas de outros factos cuja prova se apresenta mais acessível. Se quisermos densificar semelhante preocupação, não poderemos deixar de atentar nas razões de ordem técnica e material que a iluminam. Por outro lado, reconhecem-se as dificuldades de prova directa sobre os elementos estruturais do contrato de trabalho, sobretudo naquelas situações de subordinação dita «periférica» ou «atenuada». Por outro, porque não dizê-lo, é patente a maior vulnerabilidade em que o sujeito processual interessado na prova desses factos – o trabalhador – se encontra para obter uma decisão de mérito favorável. A diferente situação jurídica, económica e social das partes acabaria por se projectar numa desigualdade no plano processual, máxime, no plano probatório
”
Verifica-se, assim, que a actual lei selecciona um conjunto de elementos indiciários, considerando que a verificação de alguns deles bastará para a inferência da subordinação jurídica.
“Doravante,
provando o prestador que,
in casu,
se verificam algumas daquelas características, a lei presume que haverá um contrato de trabalho, cabendo à contraparte fazer prova do contrário.
Assim, provando-se, p. ex., que a actividade é realizada em local pertencente ao respectivo beneficiário e nos termos de uma horário determinado por este, ou provando-se que os instrumentos de trabalho pertencem ao beneficiário da actividade, o qual paga uma retribuição certa ao prestador da mesma, logo a lei presume a existência de um contrato de trabalho. Tratando-se de uma presunção
juris tantum
(artigo 350.º do CCivil), nada impede o beneficiário da actividade de ilidir essa presunção, demonstrando que, a despeito de se verificarem aquelas circunstâncias, as partes não celebraram qualquer contrato de trabalho.”, como refere (João Leal Amado, in “Contrato de Trabalho”, À luz do novo Código do Trabalho, Coimbra Editora, 2009, pág. 76).
E prossegue o mesmo autor, (pág.s 76 e 77) “de certa forma, esta presunção representa uma
simplificação do método indiciário tradicional
, visto que, como ponto de partida, ela dispensa o intérprete de proceder a uma valoração global de todas as características pertinentes para a formulação de um juízo conclusivo sobre a subordinação”.
Por fim de referir, apenas, como o tem decidido a jurisprudência, entre outros (Ac.s do STJ de 02.05.2007, Proc. nº 06S4668, de 12.05.2010, Proc. nº 1394/06.0TTPNF.P1.S1 e de 2010.12.16, Proc. nº 996/07.1TTMTS.P1.S1), caso não funcione a presunção de laboralidade prevista na lei, pelo preenchimento de um só dos requisitos enunciados em 2009, pode o trabalhador provar que estão preenchidos os elementos constitutivos do contrato de trabalho tal como o mesmo se mostra definido no preceito que o define (art. 11º do CT) ou caso demonstre factos que os integrem ou que constituam índice relevante da sua verificação.
Ou seja, nada impede o trabalhador de alegar e provar todos os elementos essenciais do contrato de trabalho, nomeadamente, que desenvolveu uma actividade remunerada para o empregador, sob a sua autoridade e direcção, integrado na sua estrutura empresarial. Pois, como supra se disse, sobre ele continua a recair esse ónus de alegação e prova dessa realidade, conforme nº 1 do art. 342º do CC. Mas, não logrando fazer essa prova, bastar-lhe-á que consiga provar os factos necessários, apreciados segundo um juízo de globalidade, para demonstrar pelo menos dois dos indícios, enunciados na lei para beneficiar da presunção. Certo que, nesse caso, fica sujeito a que a mesma possa ser ilidida pelo empregador.
Nos termos do art. 344º, nº1 do C. Civil, inverte-se o ónus da prova quando haja presunção legal, sendo que, tal inversão “
está contida em toda a presunção legal, pois a parte, a favor da qual existe, fica liberta da prova do facto presumido (embora não da base da presunção, isto é, do facto em que a presunção assenta) e à parte contrária é imposto o ónus de provar que a presunção não vale
”, refere (Jorge Augusto Pais de Amaral, in Direito Processual Civil, 9ª edição, pág. 300).
*
Aqui chegados, importa perguntar, será que tal foi o que aconteceu, no caso, como defende a recorrente ou tal não aconteceu, como se considerou na decisão recorrida?
E a resposta, podemos adiantar, desde já, é sem dúvida alguma que não assiste razão à recorrente.
Justificando.
Comecemos, por transcrever, em síntese, o que a este propósito, a Mª Juíza “a quo”, ponderando a factualidade provada, fez constar da fundamentação da decisão recorrida: «(...).
Cumpre então analisar a matéria de facto dada como provada à luz do que acima se disse quanto ao principal traço caracterizador da existência de um contrato de trabalho: a existência de subordinação jurídica.
Desde já cumpre salientar que
não consta dos factos provados qualquer referência a poderes disciplinares da ré sobre AA
, sendo certo até que
resultou demonstrado que a mesma não era por aquela avaliada
.
Contudo, conforme se refere
no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21/05/2014, proc. n.º 517/10.9TTLSB.L1.S1, acessível in
www.dgsi.pt
,
“não decorre daqui qualquer óbice à qualificação como laboral do vínculo contratual em causa (nem à qualificação contrária), uma vez que, como bem se nota no Ac. da Rel. Lisboa de 12-07-2012 (Apelação n.º 441/10.5TTLSB.L1 – 4.ª Secção), junto a fls. 653 – 692 dos presentes autos, “tal vertente da subordinação jurídica está latente, adormecida, escondida, podendo nunca emergir e vir a ser exercida ao longo da vigência do contrato de trabalho, mesmo com muitos anos de duração, sem que tal implique a sua inexistência e, por consequência, a descaracterização jurídica em termos laborais”.
Na verdade, como lucidamente refere o Ac. de 9/11/2011, da mesma Relação[21], “do não exercício do poder disciplinar – apenas compreensível em situações de crise contratual – não pode, sem mais, retirar-se a sua não titularidade”, uma vez que o “exercício de prerrogativas laborais tem forte valor indiciário positivo no sentido da qualificação da relação como de trabalho”, mas é de lhe “negar firmemente, na hipótese contrária, valor negativo excludente dessa qualificação”
.
De igual modo,
a circunstância de AA passar “recibos verdes”
, numa situação como a dos autos,
não assume qualquer relevância decisiva
, pois como se observa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado,
“No fundo, o que se encontra subjacente à matéria em discussão nos autos, é a questão de saber se com os documentos que titularam o vínculo contratual em causa se visou, sob a aparência de diverso tipo contratual, ocultar um contrato de trabalho.
Ora, como se compreenderá, a ter sido essa a intenção das partes, não podia o conteúdo de tais documentos deixar de traduzir a aparência de um vínculo jurídico de natureza autónoma (cfr. n.ºs 42 a 44 dos factos provados), através da incorporação das cláusulas que normalmente lhe estão associadas (v.g. pagamento através de “recibos verdes” e faturação de IVA), e, por outro lado, do afastamento dos traços características do contrato de trabalho (v.g. pagamento de subsídios de Natal e de férias e efetivação de ausência de descontos para a Segurança Social e IRS)”
.
Provou-se
que o trabalho era prestado
em instalações da ré ou em local por esta indicado e com equipamentos e instrumentos por ela disponibilizados
, uma vez que o fardamento, mobiliário e material inerente à actividade de fisioterapeuta pertencem à ré e estão instalados no Centro Clínico onde a autora desempenha a sua actividade.
Contudo
, tratando-se a actividade de AA de fisioterapia num Centro Clínico, não se pode concluir que o facto de a actividade ser prestada em instalações da ré e com instrumentos desta se deva a existir dependência da indicada trabalhadora em relação à ré.
A própria natureza da actividade da ré implica que a autora lhe preste a sua actividade em instalações suas ou locais por si indicados
(os domicílios dos utentes).
Apesar disso, importa realçar que, ainda assim, tal indício de laboralidade se verifica,
posto que
a farda foi não só fornecida pela ré, como possuía o logótipo desta e era usava pela indicada trabalhadora e pelas demais fisioterapeutas
, sem qualquer diferenciação.
Além disso
, se equipamentos existem que, pelo seu valor e dimensão, terão necessariamente se ser fornecidos pela ré,
outros há que assim não se poderá concluir
(v.g., papel, cremes, computador, teclado).
Acresce que, AA utilizava o programa informático
onde lhe era disponibilizada a prescrição de cada utente pela médica fisiatra,
acedia ao armário dos SS Banco 1...
, onde constavam as fichas dos utentes, tinha um cacifo disponibilizado pela ré, o qual se situava numa sala destinada a todas as fisioterapeutas e
dispunha de um endereço de email
atribuído pela ré como domínio desta.
Demonstrou-se, por outro lado, que
AA prestava a sua actividade cumprindo os horários definidos pela ré
e que os mesmos eram cumpridos, ainda que não tivesse utentes atribuídos.
Não resulta da factualidade provada (nem tal sequer foi alegado) que os horários assim definidos resultassem de uma prévia comunicação por parte de AA da sua disponibilidade. Antes pelo contrário,
desde o início do contrato que os seus horários foram previamente definidos pela ré
(ainda que sofrendo inicialmente um aumento das 12 horas para as 18 horas semanais, a que acresciam os domicílios) e a distribuição de serviço pelas diversas fisioterapeutas era feita em função do plano terapêutico estabelecido pela médica fisiatra. Daqui resulta que estamos perante um caso em que
a ré era livre de dispor do horário da indicada trabalhadora, ficando esta sujeita ao que por ela fosse determinado
.
Além disso, a factualidade em referência –
a circunstância de a ré remunerar a fisioterapeuta mesmo quando não atendia utentes
-
permite concluir que a ré
não contratou AA para lhe prestar um determinado resultado;
contratou-a, sim, para lhe prestar uma actividade.
Por outro lado, não obstante as partes tivessem fixado o valor da remuneração em função de um valor/hora e que mensalmente a indicada trabalhadora emitia os respectivos recibos, a verdade é que, de facto, a retribuição não era determinada em função daquele critério, já que
a ré remunerava AA mesmo que esta não tivesse utentes para atender
. É certo que mensalmente AA não recebia uma quantia mensal fixa, mas as variações – que, como vimos, nem sequer significativas eram -, dependiam da realização ou não de domicílios, ao invés do número de horas por si prestadas (com excepção da alteração verificada entre a celebração do contrato de prestação de serviços e a respectiva adenda).
Portanto, não vemos que, em face dos factos provado
s a este respeito, se possa concluir que era mais o resultado remunerado do que a mera disponibilidade da força de trabalho.
Por outro lado
, a indicada trabalhadora
prestava a sua actividade quase em exclusivo para a ré
, mas numa percentagem superior a 80%, pelo que, não sendo total a dependência económica daquela em relação à aqui ré é a mesma quase total,
já que ínfimos são os rendimentos que obtém de serviços que eventualmente possa prestar a terceiros
.
A tudo acresce que AA
exercia funções integrada numa estrutura organizativa
– veja-se, designadamente, o procedimento adoptado para a comunicação das suas ausências, que incluía o próprio serviço de fisioterapia, para a marcação das suas férias, para a distribuição de serviço e as reuniões em que participava, tendentes a aferir o estado do serviço e a determinar as oportunidades de melhoria -,
fazendo parte de uma equipa de fisioterapeutas.
É certo que
nunca gozou férias pagas nem auferiu subsídios de férias e de Natal ou sequer alguma vez foi avaliada pela ré, mas, ao que cremos,
tais circunstâncias não são de molde a considerar-se ilidida a presunção da existência de um contrato de trabalho
, que decorre da subsunção dos factos às alíneas a), b) e c) do artigo 12.º, n.º 1, do Código do Trabalho,
pelo que se presume a existência de um contrato de trabalho
.
Uma nota final cumpre fazer a respeito dos termos do contrato de trabalho entretanto celebrado entre as partes, na sequência de reunião mantida com a indicada trabalhadora dois dias após a visita inspectiva da ACT. Como já tivemos oportunidade de salientar na motivação da matéria de facto,
não cremos que o teor do artigo 1.º do contrato contenda com as conclusões a que chegamos a propósito da existência de um contrato de trabalho em momento anterior, dada a posição, de manifesta vulnerabilidade, em que a trabalhadora o outorgou
.
Pelo exposto, não restam dúvidas quanto à existência de uma relação laboral, pelo que AA presta a sua actividade para a ré, sob a autoridade e direcção desta.
Verificada a existência da relação laboral, dispõe o artigo 186.º- O, n.º 8, do Código de Processo do Trabalho que deve ser fixada a data do início da relação laboral.
In casu
, apurou-se que a relação laboral se iniciou no dia 01 de Setembro de 2018, o que se declara.
Assim, impõe-se a procedência total da acção.» (sublinhados nossos).
*
Entendimento que acolhemos.
Pois, ao contrário do que defende a recorrente, sempre com o devido respeito, não nos merece censura.
Analisada a factualidade apurada nos autos e o que deixámos exposto, quanto à presunção de laboralidade estabelecida no art. 12º, a este propósito, só podemos concordar com a Mª Juíza “a quo”, quando concluiu que, no caso, operou a presunção de laboralidade plasmada naquele artigo, por estarem verificados três dos cinco factores indiciários nele enunciados e que presumem a existência de um contrato de trabalho.
Efectivamente, concordamos, que não só dos factos provados se pode formular a conclusão do preenchimento dos factos índice previstos nas al.s a), b), e c) (como, também, como adiante explicaremos a al. d) daquele artigo, como se conclui que, são aqueles factos mais do que suficientes e bastantes, ao contrário do que defende a recorrente, para que se possa concluir pela existência de subordinação jurídica, essencial à caracterização do contrato de trabalho que, bem se considerou naquela, configura a relação estabelecida entre a trabalhadora e a ré/empregadora.
Consideramos, assim, que o Ministério Público provou factos que, não só demonstram vários dos indícios, enunciados naquele art. 12º, como os mesmos, apreciados na sua globalidade, são bastantes para que com a necessária segurança se presuma a existência de um contrato de trabalho estabelecido entre a trabalhadora e a Ré, não tendo esta logrado ilidir aquela. Porque, ao contrário do que alega, a desvalorização que a mesma faz dos indícios apurados e a prevalência que dá a outros, nomeadamente, ao acordo celebrado, aquando do contrato celebrado em 01.03.2024, não são susceptíveis de indiciarem a inexistência de subordinação jurídica, apreciados, no contexto global que se apurou, não o considerou a Mª Juíza “a quo” e não o consideramos nós que tenham a virtualidade de suportar o entendimento que expressa, referindo-se ao art. 12º, de que, a generalidade dos seus requisitos não se encontram preenchidos e de que, por isso a relação existente entre si e a AA era uma mera relação de prestação de serviços, (vejam-se conclusões MMM e NNNN).
Como decorre da fundamentação da decisão recorrida, a Mª Juíza “a quo”, de forma clara, suficiente e, no nosso entender, fazendo a correcta aplicação do direito aos factos, por tudo isso merecendo a nossa concordância, enunciou os indícios presentes, quer num sentido quer noutro, para formular sobre eles um juízo crítico, avaliando-os, numa apreciação global, para num raciocínio lógico, claro e em coerência com os princípios que antes enunciara, acabar por concluir que, no caso em apreciação nos autos, estão verificados factos indiciários que presumem a existência de subordinação jurídica que tipifica o contrato de trabalho e que a Ré não afastou essa presunção, configurando, assim, a relação em análise um contrato de trabalho.
Em contraponto, percorrendo e analisando as alegações e conclusões de recurso,
não encontramos suscitada uma concreta questão de direito para opor àquela fundamentação do Tribunal “a quo”, acrescendo que, a recorrente encabeçou a sua discórdia quanto à decisão de direito, no pressuposto do deferimento da pretensão deduzida quanto à decisão de facto, como o demonstra o expresso na conclusão CCC, onde se lê: “DA CONJUGAÇÃO DE TODA A PROVA PRODUZIDA É FORÇOSO CONCLUIR QUE MAL ANDOU O TRIBUNAL A QUO A DAR COMO NÃO PROVADO A FACTUALIDADE VERTIDAS NAS ALÍNEAS 38), 39), 40) 41 E 42) E DA FACTUALIDADE PROVADA OS PONTOS 4), 13), 15), 20), 21), 24) E 25), SENDO, CLARIVIDENTE, SUBSISTIR NOS AUTOS PROVA QUE CONDUZ A DECISÃO CONTRÁRIA, QUE TAL FACTUALIDADE CONDUZ A UMA VERDADEIRA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DA AA À RECORRENTE”.
Porém, não tendo ocorrido aquelas pretensas “correcções” alegadas pela recorrente, quanto à decisão de facto e, sendo de salientar, que a alteração da matéria de facto a que procedemos, oficiosamente, não tem qualquer relevância a nível de alteração do elenco factual que suportou a decisão recorrida, fica sem suporte aquela sua argumentação que, analisada, se restringe, como dissemos acima, à sua convicção de que não se logrou provar indícios suficientes que permitissem concluir pela existência de um contrato de trabalho e de que, não há a necessária subordinação jurídica e, consequentemente, a alegação de que a decisão recorrida não poderá manter-se, devendo ser revogada.
Mas, como dissemos, não é esse, o nosso entendimento.
Senão, vejamos, tendo em atenção o que se apurou, no caso, como iremos justificar.
E, desde logo, começando por abordar aquele referido argumento da apelante, em que a mesma diz o seguinte: “O TRIBUNAL A QUO, INCREDULAMENTE, DESATENDEU, A DECLARAÇÃO DE VONTADE DAS PARTES E A CONFISSÃO DA AA, AO QUALIFICAR POR DUAS VEZES A SUA RELAÇÃO COM A RECORRENTE, ENQUANTO PRESTADORA DE SERVIÇO À RECORRENTE.”.
Ou seja: pretende a recorrente, atento o teor do facto 29, valorizar a declaração exarada no documento assinado por AA, assim, inquinando o pedido de reconhecimento da existência de um contrato de trabalho desde 01.09.2018.
Desde logo diremos que a apelante não tem razão.
Com efeito, e como se lê no (Acórdão do STJ de 15 de Janeiro de 2014, Proc. nº 32/08.0TTCSC.S1-, reportado a uma professora universitária), “
Como se sabe, o nomen juris utilizado pelas partes na titulação formal dada a um contrato não é decisivo quanto à sua qualificação (e muito menos, naturalmente, no tocante à determinação da correspondente disciplina jurídica), embora seja um dos elementos auxiliares a ter em consideração no esforço interpretativo para alcançar o real sentido das declarações de vontade, sobretudo quando os contraentes são pessoas esclarecidas e no contrato figuram cláusulas características do correspondente tipo negocial”
.
Ou seja, não é pelo facto de as partes terem “qualificado” determinada relação jurídica – no caso como contrato de prestação de serviços – que se tem tal “qualificação” como não susceptível de discussão e de averiguação na presente acção, cujo objetivo é precisamente averiguar a existência, ou não, de um contrato de trabalho.
Por isso, é de todo indiferente a “qualificação jurídica” que as partes atribuíram no contrato referenciado no facto 29.
E posto isto podemos avançar.
Mais, refere a apelante, em síntese, o seguinte: “E PERCORRENDO AS VÁRIAS ALÍNEAS CONTIDAS NO Nº 1 DO ART. 12º DO CT, PODEMOS ADMITIR QUE: A ATIVIDADE É PRESTADA NAS INSTALAÇÕES DA BENEFICIÁRIA (EM PARTE – POIS TAMBÉM É PRESTADA EM DOMICÍLIO DOS UTENTES) - A COLABORADORA UTILIZA EQUIPAMENTOS E INSTRUMENTOS DE TRABALHO PERTENÇA DA RECORRENTE. NÃO SE PROVOU QUAIS MATERIAIS, APENAS GENERICAMENTE SE FEZ ALUSÃO QUE USARIA, MATERIAIS PERTENCENTES AOS POSTO MÉDICO. CONTUDO, NÃO SE DISCUTIU QUAIS OS EQUIPAMENTOS SERIAM USADOS NOS ATENDIMENTOS EM DOMICÍLIO. ORA, NO CASO CONCRETO, A RECORRENTE FORNECE ESTES MATERIAIS AOS SEUS ASSOCIADOS, OS QUAIS ATÉ PAGAM UMA QUOTA PARA BENEFICIAR TAIS CUIDADOS MÉDICOS. POR OUTRO, DECORRE DA INERÊNCIA DA ACTIVIDADE DE FISIOTERAPIA, FACE O GRANDE NÚMERO E DIMENSÕES DE ALGUNS EQUIPAMENTOS, SERIA INCOMPATÍVEL, O PRESTADOR, DIARIAMENTE LEVAR E TRAZER TAIS EQUIPAMENTOS, ASSIM COMO ALGUMAS ESPECIALIDADES MÉDICAS. A COLABORADORA ESTAR SUJEITO A UM HORÁRIO DETERMINADO PELO BENEFICIÁRIO. NO ESPAÇO EM CAUSA FUNCIONAM DIVERSAS CONSULTAS E ATENDIMENTOS, SENDO NATURALMENTE NECESSÁRIO CONJUGAR OS HORÁRIOS CORRESPONDENTES. ESTANDO EM CAUSA TRATAMENTOS DE FISIOTERAPIA, NATURALMENTE QUE TERIA DE EXISTIR UM HORÁRIO, POIS DE OUTRA FORMA OS UTENTES NUNCA SABERIAM COM O QUE CONTAR. O HORÁRIO É MERAMENTE INDICATIVO DENTRO DE UM PERÍODO ESPAÇO DE TEMPO, NÃO EXISTINDO QUALQUER OBRIGATORIEDADE EM CUMPRI-LO NA ÍNTEGRA, POIS BASTAVA A AA NÃO IR TRABALHAR, QUE NÃO HAVIA QUALQUER CONSEQUÊNCIA PARA A MESMA, VISTO QUE RECEBIA A HORA. A PRÓPRIA AA PODIA PROPOR ALTERAÇÕES DOS SEUS DIAS E HORAS, FALTAR, AUSENTAR-SE, SEM ESTAR SUJEITA A PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DA RECORRENTE. NÃO JUSTIFICAVA AS FALTAS. AS FALTAS NÃO TINHAM CONSEQUÊNCIAS DISCIPLINARES. A AGENDA QUE USAVA DESTINAVA-SE A ORGANIZAÇÃO DOS AGENDAMENTOS E NÃO A CONTROLAR HORÁRIOS. AS FÉRIAS, A AA MARCAVA CONFORME A SUA CONVENIÊNCIA, SEM ESTAR SUJEITO A UM LIMITE DE FÉRIAS ANUAIS. PAGAMENTO NÃO ERA UNIFORME, E ERA CONTABILIZADO DE ACORDO COM AS HORAS PRESTADAS E DISPONIBILIDADE DA AA EM AS PRESTAR. O MINISTÉRIO PÚBLICO NÃO LOGROU PROVAR QUE ERA PAGA UMA QUANTIA MENSAL CERTA PARA AA. SE TIVESSE UM VENCIMENTO MENSAL CERTO NÃO SE COMPREENDERIA OS VALORES DISPARES QUE RECEBEU AO LONGO DOS MESES E ANOS EM CAUSA, CONFORME PLASMADO EM MAPA E RECIBOS JUNTOS AOS AUTOS E EXPLICITADO PELAS TESTEMUNHAS. CLARAMENTE SE VÊ A DIFERENÇA DE VALORES RECEBIDOS. ERA A PRÓPRIO QUE EMITIA OS RECIBOS VERDES E ERA PAGO PELO VALOR HORA DO TRABALHO PRESTADO. NÃO TINHA SUBSÍDIO DE ALIMENTAÇÃO OU OUTROS DE OUTRA NATUREZA. NUNCA RECEBEU FÉRIAS, SUBSÍDIO FÉRIAS E SUBSÍDIO DE NATAL, POIS ERA UMA VERDADEIRA RELAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. O MINISTÉRIO PÚBICO NÃO LOGROU PROVAR, QUE MAIS DE 80% DO TRABALHO DA AA ERA PRESTADO À RECORRENTE. NÃO DESEMPENHOU FUNÇÕES DE DIREÇÃO OU CHEFIA NA ESTRUTURA ORGÂNICA DA RÉ, NEM ESTÁ NELA INTEGRADO DE QUALQUER FORMA. MAIS HÁ A TER EM CONTA AINDA: QUE A AA, NÃO ESTAVA SUJEITA A AVALIAÇÕES. NÃO IA À MEDICINA DO TRABALHO. NÃO FREQUENTAVA FORMAÇÕES INDICADAS PELA RECORRENTE AOS SEUS TRABALHADORES, NEM ERA SUJEITA A OBRIGAÇÃO DE FREQUÊNCIA DE FORMAÇÕES. A AA NÃO CONSTA DOS TRABALHADORES DA RECORRENTE INSCRITOS NA SEGURANÇA SOCIAL. NÃO ESTAVA IMPEDIDA DE DESEMPENHAR QUAISQUER OUTRAS FUNÇÕES PARA TERCEIROS. ALIÁS, DESEMPENHAVA FUNÇÕES PARA TERCEIROS, COMO RESULTA EXPLICITADO EM FACTOS PROVADOS. NÃO ESTAVA SUJEITO A ORDENS, INSTRUÇÕES OU AVALIAÇÃO DA RECORRENTE QUANTO AO DESEMPENHO DAS SUAS FUNÇÕES, APENAS NAQUILO QUE DECORRE DA NORMALIDADE DA PROFISSÃO, NA MEDIDA EM QUE UMA FISIOTERAPEUTA ESTÁ SUJEITA A SEQUÊNCIA DE TRATAMENTOS PRESCRITOS POR UMA FISIATRA (QUE ALIÁS, TAMBÉM ESSA É PRESTADORA DE SERVIÇOS DA RECORRENTE E NÃO ERA SUPERIOR HIERÁRQUICO DA AA). NÃO ESTAVA SUJEITO AO PODER DISCIPLINAR DA RECORRENTE. NÃO SE PROVA UMA DEPENDÊNCIA ECONÓMICA DA RECORRENTE, ILUSTRADA PELA INDICIADA PRESTAÇÃO DE ATIVIDADE A TERCEIROS. POSTO ISSO, SENDO MANIFESTO A AUSÊNCIA DOS REQUISITOS CONSTANTES NO ARTIGO 12, É MANIFESTO QUE A RELAÇÃO EXISTENTE ENTRE A RECORRENTE E A AA ERA UMA MERA RELAÇÃO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS.”.
Analisemos, então, tendo em conta a matéria de facto assente, com o esclarecimento de que algumas das razões expostas pela apelante se baseiam em factos que não estão provados e tendo em conta o disposto no referido art. 12º.
Concretizando.
- A
alínea a) do art. 12º
– atividade realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado.
Esta alínea tem a ver com o local de trabalho.
Neste particular provou-se o seguinte: “15) AA exerce as suas funções nas instalações da ré ou em local por ela determinado, designadamente no domicílio dos utentes.”.
Assim sendo, mostra-se preenchido, em face da matéria de facto provada, o circunstancialismo previsto na referida alínea.
- A
alínea b) do artigo 12º
– Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem ao beneficiário da atividade.
Os factos 14, 15 e 16 (“14) Desde então, no exercício da sua actividade, AA sempre utilizou os instrumentos de trabalho disponibilizados pela ré, tais como, computador, ecrã, teclado, rato, marquesa, papel, cremes, aparelhos de ultra-som, correntes, bolas, todos os equipamentos existentes no ginásio (bicicleta e cadeira de quadríceps), banda(s) neuromuscular(es), usando ainda o software “A...” dos Serviços Sociais, onde lhe é disponibilizada a prescrição de cada utente pela médica fisiatra.15) AA exerce as suas funções nas instalações da ré ou em local por ela determinado, designadamente no domicílio dos utentes.16) AA, tal como as outras fisioterapeutas, no exercício de funções para a ré, desde então, usa vestuário de trabalho, calças azuis e bata branca com o logo dos “Serviços Sociais”, fornecidos pela ré”) preenchem, sem margem para dúvidas, a referida alínea.
Deste modo, podemos afirmar encontrar-se preenchido, também, este facto base da presunção.
- A
alínea c) do art. 12º
– A observação de horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da atividade.
Relativamente a esta alínea provou-se: (“20) E, as horas de início e termo da prestação da actividade de AA sempre foram definidas pela ré, 21) AA, exerce as suas funções diariamente, da seguinte forma das 08:00 às 14:00, às 2ª, 4ª e 6ª, no local de trabalho supra referido; às 3ª, das 9:00 às 13:00 e às 5ª, das 09:00 às 16:00, nos domicílios dos utentes. 22) Mesmo quando não tem utentes atribuídos nos horários referidos em 21), AA permanece nas instalações da ré, desempenhando funções de cariz burocrático e de organização do serviço de fisioterapia, recebendo a respectiva retribuição de €11,10/hora, apenas não lhe sendo pago o acréscimo de €20,00 respeitante aos domicílios, sempre que estes não se realizam”).
Estes factos, integram a situação prevista naquela referida al. c).
- A
alínea d) do art. 12º
– Pagamento, com determinada periodicidade, de uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma.
Neste particular provou-se o seguinte: (“27) AA recebia, como contrapartida do trabalho prestado para a ré, com a periodicidade mensal, uma quantia certa no valor de €11,10/hora, acrescida de €20,00 por utente aquando dos domicílios, mediante transferência bancária. 30) Desde 01.09.2018 até 01.03.2024, AA auferiu os seguintes montantes: [Remete-se e dá-se por reproduzida a tabela constante, deste ponto, da decisão recorrida, atento o disposto no nº 6 do art. 663º do CPC]. 31) Os valores pagos foram oscilando ao longo dos anos, consoante o atendimento efetuado nos domicílios e variaram em função das horas prestadas entre 01/09/2018 e 01/02/2019”).
Cremos, assim, que se mostra, também, provado o referido indício. Na verdade, a quantia paga era certa – à hora no valor de € 11,10 e paga mensalmente – não deixando de assim ser pelo facto de no pagamento mensal os valores variarem - [o art. 261º, nº2 do CT prescreve que é certa a retribuição calculada em função do tempo de trabalho].
- A
alínea e) do art. 12º
– O prestador da atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.
Nada se provou a tal respeito.
Em suma, de tudo o que se deixou referido – relativamente à presunção estabelecida no art. 12º – podemos concluir que a AA dela beneficia por se mostrarem provados, não apenas 3, como se considerou na decisão recorrida, mas 4 dos factos base da presunção, precisamente, os das alíneas a), b), c, e d).
Resta, assim, analisar se a Ré logrou ilidir tal presunção, traduzida na prova da “
autonomia do trabalhador ou a falta de outro elemento essencial do contrato de trabalho
”, como refere (Maria do Rosário Palma Ramalho, in obra citada, pág. 49).
-
A vontade real das partes.
Já atrás abordámos tal questão. Na verdade, a denominação dada ao contrato – de prestação de serviços – não releva por si só.
E, o facto de a AA ser fisioterapeuta não significa que ela esteja habilitada a fazer a distinção entre o contrato de trabalho e o contrato de prestação de serviços, sendo que não está provado que ela fosse conhecedora dessa diferença.
Assim sendo, não há que contar com a vontade real das partes por a mesma não se ter provado no que respeita à AA.
-
O local de prestação da actividade e dos instrumentos utilizados.
Não é, a
especial natureza
dos serviços a prestar, que afasta a relevância dos factos base da presunção de laboralidade, no caso, o local de prestação da actividade e os instrumentos de trabalho utilizados. Se no contrato de prestação de serviços está em causa tão só o resultado da actividade, salvo o devido respeito, é indiferente o local em que se exerce essa actividade e com que instrumentos, o que já não acontece quando se está perante um trabalhador por conta de outrem.
-
Da autonomia da apelada.
Provou-se: (“13) AA prestava a sua actividade de fisioterapeuta, executando as tarefas de atendimento de utentes, em função da distribuição de serviço definida pela ré através do plano terapêutico estabelecido pela médica fisiatra. 18) AA acede, por instruções da ré, ao armário dos Serviços Sociais da Banco 1... onde constam as fichas dos utentes que recorrem aos serviços de fisioterapia. 19) A ré atribuiu à trabalhadora AA o seguinte endereço de email:
..........@.....
. 24) E solicita à ré autorização quanto aos períodos que em cada ano pretende gozar férias. 26) AA participa nas reuniões de toda a equipa de fisioterapia com a Direcção, a Presidente e a Directora de Recursos Humanos da ré, respeitantes ao estado geral do serviço e aferição de oportunidades de melhoria”).
Esta matéria, permite afirmar que é a Ré que determina os procedimentos e orientações e, se existe autonomia, ela, reporta-se tão só à concreta especialidade de AA, a fisioterapia, e mesmo esta definida pela Ré através da médica fisiatra.
Por isso, e neste particular, não se encontra ilidida a presunção de laboralidade.
-
Da não inserção da apelada na organização da apelante.
Salvo o devido respeito, por diferente entendimento, os factos atrás enunciados (13, 18, 19 e 26) permitem concluir que a AA está inserida na organização da Ré.
-
Da retribuição
.
Como já anteriormente referimos, a forma de retribuição da apelante preenche a situação prevista na al. d) do art. 12º do CT.
E finalmente cumpre ainda dizer o seguinte.
Certos factos dados como provados são, para nós, irrelevantes tendo em conta que os mesmos ocorreram porque a Ré partiu do princípio de que a apelada era prestadora de serviços, a saber, “28) A ré não pagava a AA qualquer quantia a título remuneração por férias gozadas, nem subsídios de férias e de Natal.36) A autora nunca foi avaliada pela ré.”.
Por isso, salvo melhor opinião, tais factos são irrelevantes para se concluir que a Ré ilidiu a referida presunção.
Ou seja, da factualidade apurada não resulta matéria que permita ilidir a presunção de laboralidade estabelecida naquele art. 12º, nada se apurou que permita concluir pela “
autonomia do trabalhador ou a falta de outro elemento essencial do contrato de trabalho
”, como referimos, citando, (Maria do Rosário Palma Ramalho, in “Direito do Trabalho”, Parte II – Situações Laborais Individuais, 3ª edição, página 49).
É, pois, de concluir que o contrato que vincula a fisioterapeuta, AA e a Ré configura um contrato de trabalho,
com início em 01 de Setembro de 2018.
E, deste modo, resta-nos concluir pela improcedência do recurso.
*
III - DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta secção, da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
*
Custas a cargo da recorrente.
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Porto, 24 de Fevereiro de 2025
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O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos,
Rita Romeira
Germana Ferreira Lopes
António Luís Carvalhão
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/389c3600d37bfc8780258c50005319eb?OpenDocument
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1,762,041,600,000
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CONFIRMADA
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12579/23.4T8PRT-A.P1
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12579/23.4T8PRT-A.P1
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ALBERTO TAVEIRA
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I - O requerente de apoio judiciário que pretenda usufruir da interrupção do prazo nos termos do artigo 24.º, n.º 4 da LAJ tem o dever de diligência de juntar aos autos o comprovativo de tal pedido ainda na pendência do prazo.
II - A comunicação de tal pedido ao Tribunal pode ser feita pelo requerente ou terceiro.
III - Não tendo sido junto aos autos, no decurso do prazo da contestação, qualquer documento comprovativo de que foi requerido nesse prazo a nomeação de patrono, nem informação da qual se pudesse deduzir esse requerimento e a respectiva tempestividade, o prazo para contestar não se interrompeu ao abrigo do n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, ainda que mais tarde se tenha apurado que a ré apresentara esse requerimento na segurança social.
IV - Este entendimento não viola qualquer direito da requerente designadamente do exercício do direito de defesa e de acesso à justiça.
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[
"APOIO JUDICIÁRIO",
"NOMEAÇÃO DE PATRONO",
"FALTA JUNÇÃO AOS AUTOS DO REQUERIMENTO COMPROVATIVO DO PEDIDO FORMULADO",
"EFEITOS"
] |
PROC. N.º
[1]
12579/23.4T8PRT-A.P1
*
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Execução do Porto - Juiz 4
RELAÇÃO N.º 199
Relator: Alberto Taveira
Adjuntos: Anabela Andrade Miranda
Maria da Luz Seabra
*
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
*
I - RELATÓRIO.
AS PARTES
Executada
: AA.
Exequente
: A... Gmbh - Sucursal Em Portugal.
*
Por apenso à execução movida por A... Gmbh - Sucursal Em Portugal contra BB e AA, veio esta deduzir oposição à penhora.
Nos autos de execução foi efectuada a penhora de vencimento ao Centro Nacional de Pensões, da executada, ora oponente cfr. ofício de notificação datado de 17.07.2023.
Foi elaborado auto de penhora da pensão da executada, pensão no valor de 396,74 € - cfr. auto de penhora de 15.01.2024. Constando do mesmo: “
O montante a ser descontado na verba n.º 1, resulta de 1/3 da soma total da pensão líquida da executada e do subsídio de férias/natal. Os descontos tiveram início no mês de Dezembro 2023, e manter-se-ão até perfazer a quantia exequenda e custas judiciais. A penhora ocorre nos meses em que a pensão total líquida for superior ao SMN, nomeadamente nos meses de subsídios de férias/natal.
“
A executada é citada por carta registada com AR, datada de 15.01.2024.
Com data 19.04.2024 a secretaria do Tribunal informa a Agente de Execução “
de que não deu entrada nesta Secretaria, até à presente data, qualquer oposição/embargo
”. Informação renovada a 24.05.2024.
Com data de 28.06.2024 foi dada notícia de que a executada AA formulou pedido de apoio judiciário tendo sido nomeado patrono. Foi junto documento de notificação ao patrono da nomeação com data 28.06.2024.
Com data de 19.07.2024 é dada notícia aos autos da decisão de deferimento do apoio judiciário nas modalidades de nomeação de patrono pagamento de compensação de patrono, e bem como de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo. A decisão tem a data de 28.06.2024.
A oposição à penhora dá entrada a 18.07.2014.
**
*
DA DECISÃO RECORRIDA
É proferida
DECISÃO
, nos seguintes termos:
“
Pelo exposto, indefiro liminarmente a oposição à penhora aqui apresentada, com a sua consequente extinção, determinando-se o oportuno arquivamento destes autos.
Custas pela aqui executada/oponente (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, e 529.º do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário, fixando-se como valor desta causa o da execução (€3.486,33).
“.
*
DAS ALEGAÇÕES
A executada/oponente, vem desta decisão interpor
RECURSO
, acabando por pedir o seguinte:
“
Termos em que revogando-se a douta sentença proferida em I
a
instância será feita inteira justiça
“.
*
A apelante apresenta as seguintes
CONCLUSÕES
:
A.
A aqui apelante e executada discorda, respeitosamente, de que a presente oposição à execução tenha sido apresentada fora de prazo legal, sendo irrelevante para tal o pedido de apoio judiciário, consagrado em 28/06/2024.
B.
E certo que é um dever comunicar o pedido de apoio judiciário ao Tribunal, mas muitas vezes os requerentes não são efectivamente informadas dos procedimentos a adoptar em relação ao pedido de apoio judiciário.
C.
O que in casu aconteceu: a recorrente é pessoa idosa, sem possibilidades económicas, e não foi informada do que teria de fazer.
D.
Dispõe o artigo 24°, n° 4 da Lei n° 34/2004, de 29 de Julho, que a interrupção do prazo previsto no artigo 728°, n° 1 do Código de Processo Civil, efectua-se com a junção aos autos pelo executado do comprovativo do pedido de apoio judiciário.
E.
Admitindo apenas a letra da lei, estamos perante a violação dos direitos de defesa e tutela jurisdicional efectiva, bem como o direito a um processo equitativo, consagrados nos artigos 13° e 20° da Constituição da República Portuguesa.
F.
O instituto do apoio judiciário foi consagrado constitucionalmente para assegurar que a insuficiência económica não seja impeditiva para que os cidadãos que pretendam fazer valer os seus direitos nos tribunais acedam à Justiça. O douto Tribunal recorrido, ao efectuar a interpretação literal e acrítica do artigo 24°, n° 4, da Lei n° 34/2004, de 29 de Julho, mesmo que a aplicando à informação trazida ao processo pelos serviços externos (Ordem dos Advogados e Segurança Social), está a descurar a interpretação teleológica e sistemática do preceito legal acima aludido, parecendo descurar a ratio do instituto do apoio judiciário.
G.
É certo que, a recorrente tinha que apresentar a sua oposição à execução, no decurso do respectivo prazo, requereu a concessão de apoio judiciário junto do Instituto da Segurança Social, IP., pelo que, numa interpretação e redacção conformes com a Constituição da República Portuguesa, sempre se dirá que o prazo de 20 dias a que alude o artigo 728°, n° 1 do Código de Processo Civil, ficou interrompido, com o respectivo requerimento de protecção jurídica apresentado pela apelante junto dos serviços competentes da Segurança Social.
H.
Só com a nomeação de patrono oficioso é que a recorrente teve condições de poder exercer os seus direitos de defesa e de acesso ao direito, tendo sido após a designação daquele que a executada, enquanto beneficiária de apoio judiciário, teve conhecimento claro e cabal dos factos que podia e devia contestar, em que medida o poderia fazer e como enquadrá-los juridicamente, exercendo em termos minimalistas o seu direito a um processo equitativo e ao patrocínio judiciário.
I.
A concretização do artigo 20° da Constituição da República Portuguesa não pode ser impeditiva por acasos burocráticos e por falta de junção a processos judiciais dos comprovativos de pedidos de apoio judiciário, quando requerida com a consequente concessão de patrono oficioso, uma vez que a Constituição pretende, com o n° 2 do normativo referido, que efectivamente a pessoa tenha um patrono judiciário.
J.- Em harmonia com o previsto no artigo 9
o
do Código Civil, não nos devemos cingir à letra da lei, mas, outrossim, reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico.
K.- Com todo o respeito e consideração que nos merece o Tribunal de I
a
instância, e perante um processo executivo, de que está claramente estatuído na Lei Processual Civil a gravidade das consequências para a executada de que a não dedução de oposição implica a confissão dos factos invocados pela exequente, enquanto revelia operante, em conformidade com o preceituado no artigo. 567°, n° 1 do Código de Processo Civil.
L.- Pelo que, decidindo como decidiu o douto Tribunal recorrido, a recorrente perde o seu direito à justiça.
M.- Pelas razões supra enunciadas, no modesto entendimento da recorrente, a interpretação perfilhada pelo douto Tribunal a quo violou, assim, o disposto no artigo 24°, n° 4 da Lei n° 34/2004, de 29 de Julho, bem como os artigos 13° e 20°, ambos da Constituição da República Portuguesa.
N.- Pelo que, deve ser proferido douto acórdão revogando o douto despacho recorrido, considerando-se tempestivo, relevante e legal a oposição à penhora da pensão de reforma da recorrente, e em consequência o prosseguimento dos autos.
O - Entende a aqui a executada e apelante, que os subsídios de Natal e de férias são direitos dos trabalhadores/cidadãos e não meros complementos facultativos, que também estão garantidos pela legislação que garante o salário mínimo nacional.
P
- Os subsídios contribuem para garantia de uma subsistência condigna, permitindo a quem deles aufere, garantir o pagamento de despesas anuais, como seguros ou outras prestações, ou mesmo permitir determinados gastos que, pela exiguidade dos rendimentos mensais, só lhe são permitidas duas vezes ao ano;
Q
- Na penhora de bens da executada, o princípio da dignidade da pessoa humana é um importante travão ao desígnio do cumprimento das obrigações. A satisfação dos direitos de crédito não é um interesse a proteger a qualquer preço, não se podendo esquecer que o artigo I
o
da Constituição da República Portuguesa proclama um dos princípios fundamentais, baseada na dignidade da pessoa humana, o que obriga, no regime da penhora de bens, que se salvaguarde as condições mínimas de uma vida digna da executada e aqui apelante.
R
- A penhorabilidade dos subsídios de férias e de Natal de pensões e salários, face à limitação à penhora de bens instituída no art.° 738° do Código do Processo Civil tem sido objecto de decisões desencontradas nos tribunais e opiniões divergentes na doutrina. Resulta da segunda parte do n.° 3 daquele preceito, que são impenhoráveis os salários e pensões quando a executada não tenha qualquer outro rendimento e estes não excedam o valor do salário mínimo nacional (cf Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07/11/2023, Processo n° 5404/18.0T8VIS-A.C1).
S.- No presente caso, o valor da pensão auferida pela executada não excede, mensalmente, o valor do salário mínimo nacional, pelo que, além das respectivas prestações mensais, também estão a salvo de qualquer penhora os respectivos subsídios de férias e de Natal.
T - Por isso conclui-se que, no confronto do direito do exequente à satisfação do seu crédito com o direito da executada á protecção na doença e velhice através da pensão que lhe garante um mínimo de subsistência, deve prevalecer este último, pois que, a penhora de pensões não superiores ao valor do salário mínimo nacional constitui um sacrifício excessivo e desproporcionado do direito da executada e pensionista, na medida em que esta vê o seu nível de subsistência básico descer abaixo do mínimo considerado necessário para a existência com a dignidade humana que a Constituição da República Portuguesa garante.
U - No caso concreto, sucede que a executada e apelante recebe uma pensão mensal de velhice do Centro Nacional de Pensões de € 649,70, inferior à remuneração mínima mensal garantida (RMMG), nos termos em que foi actualizada pelo Decreto-Lei n° 107/2023, de 17 de Novembro, que fixou em € 820,00 mensais para 2024.
V - Ora, no presente caso das pensões pagas mensalmente com direito a subsídio de férias e de Natal, a impenhorabilidade tem que salvaguardar qualquer uma das suas prestações, incluindo os subsídios, quando estas têm um valor inferior ao salário mínimo nacional.
W - Mesmo o facto, nos meses em que são pagos esses subsídios (de férias e de Natal), a soma do valor da pensão mensal com o valor do subsidio ultrapassar o valor do salário mínimo nacional, não permite que tais prestações passem a estar expostas à penhora para satisfação do direito do exequente, uma vez que elas, por serem pagas no mesmo momento, não deixam de ser necessárias à subsistência condigna do seu titular«
X - A sentença da I
a
instância, atenta, designadamente a clamorosa e injustificada violação do princípio da dignidade da pessoa humana, que salvaguarde as condições mínimas de uma vida digna da executada.
“.
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
***
*
II-FUNDAMENTAÇÃO.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil
Como se constata do supra exposto,
as questões a decidir,
são as seguintes:
A) Da tempestividade da apresentação da oposição à penhora; desconsideração da letra da Lei (artigos 2.º, n.º 4 da Lei n.º 34/2004 de 29.07 – interrupção do prazo); violação de princípios e normas constitucionais.
B) Os subsídios de férias e de Natal não devem ser objecto de penhora.
**
*
OS FACTOS
Os factos com interesse para a decisão da causa e a ter em consideração são os constantes no relatório, e que aqui se dão por reproduzidos.
**
*
DE DIREITO.
A)
Da tempestividade da apresentação da oposição à penhora; desconsideração da letra da Lei (artigos 2.º, n.º 4 da Lei n.º 34/2004 de 29.07 – interrupção do prazo); violação de princípios e normas constitucionais.
Sustenta a apelante, que tendo como assente a dedução da oposição ser intempestiva, discorda da argumentação da primeira instância quando declara que não ocorreu qualquer interrupção do prazo para deduzir oposição à penhora.
Que a não comunicação ao processo de haver formulado pedido de apoio judiciário com nomeação de patrono, que nos termos do artigo 24.º, n.º 4 da LAJ (Lei n.º 34/2004, de 29.07) interrompe o prazo em curso, a leitura da norma em termos literais, conclui a apelante que “
estamos perante a violação dos direitos de defesa e tutela jurisdicional efectiva, bem como o direito a um processo equitativo, consagrados nos artigos 13° e 20° da Constituição da República Portuguesa
”. Que a “
interpretação literal e acrítica do artigo 24°, n° 4, da Lei n° 34/2004, de 29 de Julho, mesmo que a aplicando à informação trazida ao processo pelos serviços externos (Ordem dos Advogados e Segurança Social), está a descurar a interpretação teleológica e sistemática do preceito legal acima aludido, parecendo descurar a ratio do instituto do apoio judiciário
”.
Que o prazo ficou interrompido com o requerimento de apoio judiciário junto dos serviços ad Segurança Social, independentemente da comunicação ou não ao processo de tal pedido. “
Só com a nomeação de patrono oficioso é que a recorrente teve condições de poder exercer os seus direitos de defesa e de acesso ao direito, tendo sido após a designação daquele que a executada, enquanto beneficiária de apoio judiciário, teve conhecimento claro e cabal dos factos que podia e devia contestar, em que medida o poderia fazer e como enquadrá-los juridicamente, exercendo em termos minimalistas o seu direito a um processo equitativo e ao patrocínio judiciário
”.
Vejamos.
Com efeito, a primeira instância fundamenta a sua decisão do seguinte modo:
“
(…)
Como resulta dos autos, foi apresentada pela aqui executada/oponente a presente oposição à penhora da sua pensão de reforma, o que sucedeu no dia 18/07/2024.
No caso em apreciação, está em causa uma execução sumária e foi elaborado auto de penhora da pensão de reforma da executada em 15/01/2024, como se retira dos autos de execução, estando a aqui executada/oponente citada desde 17/01/2024, também para efeitos de oposição à referida penhora, como tudo consta do A/R junto aos autos, mas não ofereceu qualquer oposição à execução e a tal penhora, ficando precludido tal direito.
Por outro lado, foi depois efetuada outra penhora/penhora do crédito/IRS, a qual foi notificada à respetiva executada pela carta de 03/05/2024, mas não foi apresentada qualquer oposição a tal concreta penhora.
Com efeito, a citação postal/pessoal da referida executada ocorreu no dia 17/01/2024, na área desta cidade e Comarca do Porto, sendo citada a executada na sua pessoa, como informou o Sr. AE e consta do A/R junto aos autos e dos demais elementos juntos na execução, sendo de considerar válida e relevante tal citação postal (arts. 228.º, n.ºs 1 a 4, e 230.º, n.º 1, todos do CPC).
Por outro lado, por falta dos requisitos legais, também não se aplica aqui o regime previsto no art.º 24.º, n.ºs 4 e 5, da Lei n.º 34/2004, de 29/07, na atual versão, sob pena de fraude à lei e abuso de direito.
Com efeito, por si só, o facto de ter sido solicitado perante a Segurança Social o aludido apoio judiciário pela aqui executada/oponente não releva nestes autos para efeitos de interrupção do prazo em curso.
É que, conforme resulta dos autos, a aqui executada/oponente nada comunicou aos autos de execução, nem juntou a tal processo executivo qualquer comprovativo de ter efetuado o pedido de apoio judiciário – não cumprindo o ónus de, dentro do prazo que estava em curso, juntar tal documento/pedido de apoio judiciário aos presentes autos.
Assim, no âmbito do apoio judiciário (apenas aqui conhecido em 28/06/2024-com a nomeação de advogado/patrono pela OA, como indicado na execução) e por força deste regime legal, não ocorreu qualquer válida e eficaz interrupção ou suspensão do prazo em curso para apresentar a oposição à execução ou à penhora (cfr., sobre esta temática, entre muitos outros, o Ac. do TRG de 15/09/2011 (relator: Des. Dr. Carvalho Guerra), in www.dgsi.pt/jtrg.; bem como o Ac. do TRL de 21/06/2011 (relator: Des. Dr.ª Filomena Lima), in www.dgsi.pt/jtrl.); e ainda o Ac. do TRP de 15/11/2018 (relator: Des. Dr.ª Anabela Tenreiro), no proc. n.º 30488/15.9T8PRT-A.P1, desta secção/juízo).
O decurso do citado prazo perentório legalmente fixado extinguiu o direito de praticar o ato, inexistindo fundamento válido a permitir a dedução extemporânea/infundada de oposição à penhora.
Assim, é de considerar que a presente oposição à penhora (da pensão de reforma) foi deduzida fora do prazo legal/normal (em 18/07/2024), sendo que para efeitos de oposição à penhora do referido bem/pensão de reforma o prazo normal terminou no dia 06/02/2024.
A presente oposição à execução foi assim apresentada fora do prazo legal, como tudo consta dos autos, sendo irrelevante para tal efeito o pedido de apoio judiciário (apenas aqui conhecido em 28/06/2024, como consta da execução).
O ato em causa também não foi por si praticado nos três dias úteis subsequentes ao termo do prazo (até 09/02/2024), pelo que não se aplica aqui o disposto no art.º 139.º, n.º 5, do CPC.
A presente oposição à penhora foi assim apresentada fora do prazo legal e de forma inválida, sendo de considerar intempestiva, irrelevante e ilegal, ficando perdido o direito de praticar tal ato. (…)
“
Claramente, nestes autos, não se discute em que momento a executada deduziu oposição e que tal momento é para além daquela que a Lei fixa. Isto é, assume a apelante/executada que a dedução da oposição à penhora foi feita fora de tempo.
Argumenta que a mesma deve ser apreciada como tempestiva, pois que quando apresentou e formulou pedido de apoio judiciário de nomeação de patrono ainda não havia tal prazo decorrido na integra, não podendo ser considerado em seu desfavor a “mera” circunstância de não haver comunicado tal pedido ao processo no mesmo momento.
Dispõe o artigo 24.º, n.º 4 da LAJ o seguinte:
“
4 - Quando o pedido de apoio judiciário é apresentado na pendência de acção judicial e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo.
”
Desde já afirmamos que de todo em todo não assiste razão à apelante.
A lei faz depender a interrupção do prazo da verificação de um conjunto de pressupostos:
- o pedido de apoio judiciário formulado tem de incluir o pedido de nomeação de patrono;
- a junção aos autos pelo requerente ou terceiro do documento comprovativo da apresentação desse pedido; e
- a comprovação enquanto o prazo estiver a correr.
Na realidade, tendo sido formulado pedido de apoio judiciário para nomeação de patrono no âmbito de processo judicial, o prazo em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo, a efectuar pelo requerente do apoio judiciário ou por terceiro, designadamente, pelos serviços da Segurança Social.
A consequência de tal não apresentação junto do processo no qual se pretende satisfeita e concretizada tal pretensão é aquela que a Lei determina. A redacção do artigo 24.º da LAJ, nos seus vários números tem sido objecto de inúmeras decisões do Tribunal Constitucional, sempre no sentido da sua constitucionalidade, mais concretamente na questão ora em apreço.
Não estando demonstrado o ónus de apresentação/junção aos autos de documento comprovativo da apresentação do requerimento que deu início ao procedimento administrativo até ao término do prazo em curso, o prazo não se considera interrompido. É essencial e determinante que seja dada notícia aos autos que deu entrada nos serviços da Segurança Social do pedido de apoio judiciário de nomeação de patrono até ao
terminus
do prazo em curso. Quer seja pelo requente do apoio judiciário, quer pela OA, quer pela Segurança Social, ou mesmo terceira pessoa. Importa é que os autos tenham conhecimento da pendência de processo administrativo do apoio judiciário.
É requisito essencial e indispensável para ver interrompido o prazo em curso o cumprimento do comando legal do n.º 4 do artigo 24.º da LAJ. Recai sobre o beneficiário da interrupção do prazo o ónus ou o dever de diligência da junção do comprovativo do requerimento de apoio judiciário no decurso do prazo para contestar. Se, por ventura, no decurso do prazo em curso para contestar, não estiver feita essa comprovação no tribunal onde pende a acção, e o tribunal não aceder de outra forma à comprovação documental do pedido formulado na segurança social, recairão sobre ele os efeitos da omissão do acto processual previsto na norma.
Neste sentido, aferindo da constitucionalidade da norma em causa e a este propósito o
Tribunal Constitucional Acórdão 859/2022
, podemos ler:
“
O artigo 24.º integra o conjunto das disposições da Lei n.º 34/2004 que regulam a proteção jurídica na modalidade de apoio judiciário, dispondo sobre os efeitos do pedido de apoio judiciário quando o requerente pretende a nomeação de patrono (alíneas b) e e) do n.º 1 do artigo 16.º) para assegurar a sua representação no âmbito de uma ação judicial pendente. De acordo com o n.º 4 do referido artigo, tal determina a interrupção do prazo judicial que estiver em curso, o qual se reiniciará nas condições previstas no n.º 5: em caso de deferimento do pedido, com a notificação ao patrono nomeado da sua designação (alínea a)); se a decisão for de indeferimento, com a respetiva notificação ao requerente (alínea b)).
A norma sindicada versa sobre as condições de cuja verificação depende a interrupção do prazo processual já iniciado em ação judicial pendente por efeito da apresentação por quem nela pretenda ou deva intervir de um pedido de apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono. No essencial, o seu sentido é o seguinte: a neutralização do prazo já iniciado no âmbito de ação pendente constitui um efeito da formulação do pedido de apoio judiciário que se produz no processo se e quando for junto aos autos o documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo junto dos competentes serviços da segurança social; se essa junção não ocorrer até à sobrevinda do termo final do prazo em curso, este esgotar-se-á sem antes ter sido interrompido, com todas as consequências que daí advêm para o requerente do apoio judiciário, tendo em conta a natureza perentória e preclusiva que, em regra, caracteriza os prazos que a lei fixa aos interessados para intervirem na lide. Daqui se segue que a pessoa carenciada de meios económicos que recorra ao apoio judiciário para suportar os encargos inerentes ao patrocínio judiciário em causa judicial pendente na qual «[…] tenha um interesse próprio» (artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004) tem um ónus acrescido de comprovar no tribunal, no decurso do prazo em curso, que formulou esse pedido nos serviços da segurança social.
É certo que a norma sindicada não impõe que seja o próprio requerente do apoio judiciário a providenciar pela junção aos autos do documento comprovativo de que o requereu, não excluindo assim que o efeito interruptivo se produza através do conhecimento do pedido de nomeação de patrono por outra via (v.g. comunicação da segurança social, de outro interveniente no processo ou até de pessoa estranha à lide, ou por conhecimento funcional do tribunal), desde que a comunicação e comprovação cheguem ao processo antes de completado o prazo em curso. Porém, sendo ao requerente do apoio judiciário que aproveita a interrupção do prazo em curso na ação em que pretende intervir, tal ónus é-lhe indiretamente imposto pelo n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 34/2004. Em rigor, trata-se do encargo que advém para o requerente do apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono de, no decurso do prazo em curso, fazer a correspondente comprovação no tribunal onde pende a ação judicial, sob pena de, se o não fizer e, até ao termo daquele prazo, o tribunal não aceder à comprovação documental do pedido formulado junto dos serviços da segurança social por outros meios, se produzirem os efeitos correspondentes à omissão do ato processual que àquele incumbia praticar no processo.
É este, em rigor, o conteúdo do ónus que a recorrente considera violar o «disposto nos artigos 1.º, 2.º, 18.º e 20.º, n.ºs 1, 2 e 4, e 65.º da Constituição da República Portuguesa».
10. A norma sindicada foi já apreciada na jurisprudência deste Tribunal, que a não julgou inconstitucional, primeiro no Acórdão n.º 285/2005 e, subsequentemente, nos Acórdãos n.ºs 350/2016 e 586/2016, este por remissão para aquele. (…)
(…)
Como atrás se viu, é há muito pacífica na jurisprudência constitucional a ideia de que o instituto do apoio judiciário, na medida em que «visa obstar a que, por insuficiência económica, seja denegada justiça aos cidadãos que pretendem fazer valer os seus direitos nos tribunais», corresponde, na sua criação, a um «imperativo constitucional plasmado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição», o mesmo é dizer ao resultado de uma prestação normativa a que o legislador se encontra vinculado de forma expressa. Simplesmente, se essa medida não fosse acompanhada de outras, de natureza processual, destinadas a evitar que aquele que recorre ao apoio judiciário na pendência de uma ação judicial veja a sua intervenção no processo dificultada, ou até mesmo obstruída, por essa circunstância, o direito deste aceder aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, através de um processo equitativo que assegure a igualdade de armas e garanta a proibição da indefesa, seria largamente comprometido ou eliminado até. O instituto da interrupção do prazo processual em curso na ação para a intervenção na qual foi requerida a concessão de apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono responde precisamente a essa exigência. Isto é, constitui a medida que, no plano da tramitação processual», acautela «a defesa dos direitos do requerente do apoio judiciário», tendo em conta que, «desacompanhada de mandatário forense, a parte não dispõe de meios para, no processo, defender (ou defender adequadamente) os seus direitos» (Acórdão n.º 98/2004).
Não há dúvidas, pois, de que a interrupção do prazo processual em curso, por efeito da formulação pela parte que dele é destinatária de um pedido de apoio judiciário, na modalidade de nomeação de patrono, constitui, como este Tribunal tem reiteradamente afirmado, uma «garantia inerente ao direito de acesso à justiça e aos tribunais, estatuído no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição» (Acórdão n.º 515/2020). Tendo em conta que a apreciação do pedido de proteção jurídica formulado na pendência da ação pode bem ocorrer após o esgotamento do prazo processual, quase sempre preclusivo, previsto para a intervenção do requerente na ação, qualquer solução que não excecionasse a regra da continuidade dos prazos, designadamente nos termos que resultam dos n.º 4 e 5 do artigo 24.º da Lei n.º 35/2004, comprometeria irremediavelmente a posição dos sujeitos carecidos dos meios económicos necessários à contratação de advogado para fazerem valer as suas razões em juízo, além de pôr em causa o «imperativo constitucional de igualdade entre os cidadãos (artigo 13.º da Constituição), na vertente da igualdade de armas» (idem), e a proibição da indefesa. Porém, de acordo com a norma sindicada, é necessário, para que o efeito interruptivo se produza, que seja dado conhecimento ao processo de que a parte contra quem corre o prazo processual em curso requereu o apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono, isto é, que seja junto aos autos o documento comprovativo desse requerimento. Inexistindo qualquer garantia, ou sequer expetativa, de que essa junção venha a ocorrer por outra via, assegurar que a mesma se efetivará a tempo de se produzir na ação a interrupção do prazo em curso constitui, assim, um ónus do requerente.
”
Para além da citada decisão do Tribunal Constitucional e demais jurisprudências aí citada, temos também que nos Tribunais comuns têm vindo a decidir de modo pacífico o mesmo entendimento.
Entre muitos outros,
Acórdão Supremo Tribunal de Justiça 4833/23.1T8MTS.P1.S1, de 19.09.2014, relatado pelo Cons FERNANDO BAPTISTA
, sumariado “
I. Nos termos do artigo 24.º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, a interrupção do prazo processual em curso, depende da junção aos autos, no decurso desse prazo, do documento comprovativo da apresentação do pedido de apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono. II. Parece, porém, possível (e desejável) interpretar a norma legal como abarcando no seu objecto e fim social a situação em que a comprovação da apresentação do pedido no prazo legal advém não da junção pelo requerente de cópia do requerimento apresentado, mas da chegada aos autos (por iniciativa das partes, de terceiros ou de instituição ou entidades envolvidas), dentro do prazo em curso, de informação que demonstre que o pedido foi apresentado em tempo. III. Assim, não tendo sido junto aos autos, no decurso do prazo da contestação, qualquer documento comprovativo de que a ré requereu nesse prazo a nomeação de patrono, nem informação da qual se pudesse deduzir esse requerimento e a respectiva tempestividade, o prazo para contestar não se interrompeu ao abrigo do n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, ainda que mais tarde se tenha apurado que a ré apresentara esse requerimento na segurança social. IV. Donde não ter lugar a interrupção do prazo processual em curso (in casu, da contestação) apesar de, já depois de esgotado esse prazo, o tribunal ter sido informado que a parte apresentou na Segurança Social um pedido de apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono, apesar de essa apresentação ter sido feita no decurso do prazo.
”,
Acórdão Tribunal da Relação do Porto 3955/22.0T8MAI-B.P1, de 17.06.2024, relatado pela Des ANA OLÍVIA LOUREIRO
, sumariado “
(…) II - A interrupção do prazo em curso por via da dedução de pedido de concessão do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de encargos com patrono depende da comunicação e comprovação desse pedido ao respetivo processo. II - Tal interpretação não viola qualquer direito de efetivo exercício de direitos/defesa nem impõe a quem quer beneficiar de tal interrupção uma diligência desproporcionada ou injustificada.
”,
Acórdão Tribunal da Relação do Porto 5724/23.1T8MTS.P1, de 24.10.2024, relatado pela Des FRANCISCA MOTA VIEIRA
, sumariado “
I - O requerente do apoio judiciário que quer aproveitar da interrupção do prazo encontra-se indirectamente onerado pelo n.º 4 do artigo 24.º da Lei n.º 34/2004 com um dever de diligência na junção do comprovativo no decurso do prazo para contestar. II - Se, no decurso do prazo em curso para contestar, ele não fizer essa comprovação no tribunal onde pende a acção, e o tribunal não aceder de outra forma à comprovação documental do pedido formulado na segurança social, recairão sobre ele os efeitos da omissão do acto processual previsto na norma.
”,
Acórdão Tribunal da Relação do Porto 1546/20.0T8MAI-B.P1, de 07.06.2021, relatado pela Des ANA PAULA AMORIM
e
Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa 10119/23.4T8LSB-A.L1-2, de 26.09.2024, relatado pelo Des ARLINDO CRUA
.
Pelo exposto, improcede a pretensão da apelante.
**
*
B)
Os subsídios de férias e de Natal não devem ser objecto de penhora.
Em face da improcedência do primeiro fundamento do recurso e em face da precedência daquele perante este, ie, sendo julgada extemporânea a oposição à penhora, não se conhece do fundamento em apreço.
***
*
III DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário concedido (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).
*
Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.
…………………………………………………………..
……………………………………………………………
……………………………………………………………
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Porto, de 2025/2/11.
Alberto Taveira
Anabela Andrade Miranda
Maria da Luz Seabra
__________________________
[1]
O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/b86bf11591ba7eb080258c3b00416746?OpenDocument
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1,739,923,200,000
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NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO.
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115/22.4GFPNF.P1
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115/22.4GFPNF.P1
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FERNANDA SINTRA AMARAL
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I – A pena de multa, ainda que se concretizando através de um sacrifício patrimonial, é uma verdadeira pena, dotada de distinta dignidade jurídico-penal, visando a sua aplicação as finalidades descritas no art. 40º do Código Penal, tanto que se procura a sua efectivação através da privação de liberdade, situação que não ocorre relativamente à não satisfação de qualquer outra prestação pecuniária no nosso ordenamento jurídico.
II – Tal específica natureza de pena explica que a suspensão da prisão subsidiária aplicada em consequência do não pagamento da pena de multa, deverá resultar não de uma iniciativa do tribunal, mas sim de um requerimento do condenado, o que se retira da expressão «Se o condenado provar - art. 49º, nº 3, do Cód. Penal, ou ainda da redacção do art. 491º, nº 3, do CPP: «(…) parecer do Ministério Público, quando este não tenha sido o requerente», o que implica que a suspensão tem que ser requerida pelo M.P., ou pelo condenado.
III – Portanto, o recorrente condenado em pena de multa só poderia beneficiar do mecanismo da suspensão da prisão subsidiária caso o tivesse requerido expressamente.
IV – Não tendo o recorrente requerido, junto da 1ª instância, a suspensão da prisão subsidiária, não pode agora fazê-lo, em sede de recurso, perante o Tribunal ad quem.
V – Quando um recorrente vem colocar perante o Tribunal superior uma questão que não foi abordada e, como tal, não tratada, na decisão recorrida, então estamos perante o que se costuma designar de “questão nova”.
VI – É que, por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, relativamente a uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido, pois só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido.
VII – Os recursos visam o reexame, por parte do Tribunal superior, de questões precedentemente resolvidas pelo Tribunal a quo e não a pronúncia do Tribunal ad quem sobre questões novas. E só não será assim quando a própria lei estabeleça uma excepção a essa regra, ou quando esteja em causa matéria de conhecimento oficioso, o que, claramente, não é o caso.
(Sumário da responsabilidade da relatora)
|
[
"PENA DE MULTA",
"NATUREZA",
"NÃO PAGAMENTO",
"PRISÃO SUBSIDIÁRIA",
"SUSPENSÃO DA PENA",
"PRESSUPOSTOS",
"PROCESSO",
"TRIBUNAL DE RECURSO",
"OBJECTO DO RECURSO"
] |
Processo n.º 115/22.4GFPNF. P1 [Recurso Penal]
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo Local Criminal de Penafiel - Juiz 1
Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
I.1
No âmbito do Processo Comum Singular nº 115/22.4GFPNF, que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Penafiel - Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, em que é arguido
AA
, com os demais sinais nos autos, foi proferido despacho, em 17/10/2024 (refª Citius nº 96606861), no qual se decidiu nos termos seguintes [transcrição]:
“(…)
determina-se a conversão da pena de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa em 186 (cento e oitenta e seis) dias de prisão subsidiária (correspondente a dois terços dos dias de multa), nos termos do artigo 49.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código Penal.
(…)”
»
I.2 Recurso da decisão final
Inconformado com tal despacho, dele interpôs recurso o arguido, para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respectiva motivação, da qual extraiu as seguintes
conclusões
[transcrição]:
“(…)
Conclusões:
A – Vem o presente recurso interposto do douto despacho que determinou a conversão da pena de multa a que o recorrente foi condenado em prisão subsidiária (referência citius 96606861, datado de 17 de outubro de 2024).
B – O recorrente não pode conformar-se com tal decisão, pois entende que o tribunal a quo não analisou nem ponderou devidamente os factos relatados pelo agora recorrente, nomeadamente as suas condições económicas e financeiras, que estão na base e origem do incumprimento da pena de multa aplicada. Em função da falta de rendimentos, o recorrente viu-se impossibilitado de efectuar tal pagamento, inconformando-se relativamente à aplicação do direito e recorrendo de tal matéria.
C – É inegável que o Código Penal português tem na sua génese e está orientado no sentido de um profundo pendor humanista, em que a sua intervenção é ordenada e orientada no sentido de recuperar e ressocializar o criminoso, na crença de que isso é sempre possível. Tal orientação vem sendo, cada vez mais, notória a cada reforma que é efectuada ao Código Penal.
D – Nesta senda, a existência das penas de prisão compromete todo este raciocínio do legislador, porquanto as mesmas, principalmente as penas de prisão de curta duração, podem trazer ao criminoso efeitos negativos, que o legislador pretende evitar e, como tal, só deverão ser aplicadas como uma medida de solução extrema, em ultima ratio.
E – Para assegurar o restabelecimento da paz social e a ressocialização do delinquente (duas finalidades da legislação criminal), o legislador adoptou mecanismos adequados e proporcionais de substituição destas penas de prisão, tudo em obediência ao espírito legislativo e por forma a evitar os efeitos negativos que o cumprimento efectivo da pena de prisão poderá acarretar ao delinquente.
F - O facto de o arguido não ter requerido ab initio a suspensão da execução da prisão subsidiária, aquando da apresentação dos motivos que presidiram ao incumprimento da pena de multa, não é motivo para que o tribunal a quo deixe de se pronunciar quanto a essa situação.
G - Porquanto o requerimento em causa foi subscrito apenas pelo recorrente que, não possui, nem é obrigado a possuir, conhecimentos legais suficientes para saber qual a solução adequada ao caso concreto, cometendo, portanto, o tribunal a quo omissão de pronúncia ao não se ter pronunciado quanto a esta questão
(artigo 379, n.º 1, alínea c), do código de Processo Penal).
H - Para assegurar o cumprimento efectivo da pena de multa, o artigo 49.º, n.º 1, do Código Penal prevê que as penas de multa não pagas possam ser convertidas em prisão subsidiária. No entanto, esta regra tem excepções. É o caso do n.º 3, da mesma previsão normativa.
I - Conforme é referido no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 27 de setembro de 2017 (melhor identificado no Corpo do recurso) “ora, estando tal possibilidade fora do alcance de quem se encontra numa situação de insuficiência económica impeditiva do pagamento do montante devido a título de multa, a suspensão da execução prevista no citado artigo 49.º, n.º 3 vem neste contexto assegurar a observância do princípio da Igualdade (artigo 13.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), obstando a que a falta de meios constitua fundamento para uma privação da liberdade que no caso redundaria num tratamento injustificadamente diferenciado.”
J – Assim, se o condenado, por facto que não lhe for imputável, se vir numa situação de impossibilidade, por falta de condições económicas, para o cumprimento da pena de multa, a conversão desta em prisão subsidiária pode ser suspensa, mediante a imposição de deveres e regras de conduta ao condenado de cariz não económico.
K – No nosso modesto entender, é o que deveria ter acontecido nos presentes autos, porquanto, o recorrente não tem, nem teve condições económicas para pagar a pena de multa a que fora condenado, sem que para tal tenha contribuído.
L – O recorrente, conforme elementos juntos aos autos, está desempregado, não recebendo qualquer rendimento ou subsídio, pelo que o mesmo não tem nem teve dinheiro para fazer o pagamento da pena de multa.
M - Conforme jurisprudência deste Venerando Tribunal – acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 11 de outubro de 2017, proferido no processo 1362/14.8PJPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt –, “o termo «imputável», usado na norma do citado preceito aponta para a formulação de um juízo sobre a «culpa» do condenado no não pagamento da multa. A «culpa» consiste no juízo de censura ético-jurídica dirigida ao agente por ter actuado de determinada forma, quando podia e devia ter agido de modo diverso (Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, pg. 316). Quando se ajuíza a «culpa», mais do que a correcta formulação de bons princípios, importa a ponderação do caso concreto, com todas as variáveis conhecidas do julgador.”
N – O tribunal a quo desprezou o teor da documentação apresentada pelo recorrente, de onde se apura que desde a sentença condenatória até data em que foi convertida a multa em prisão, o arguido não encontrou qualquer emprego, donde lhe fosse possível obter rendimentos para efectuar tal pagamento, nem não adquiriu bens ou rendimentos que lhe permitam proceder ao pagamento da pena de multa à qual foi condenado.
O – Não ocorreu qualquer acontecimento superveniente na vida do recorrente que tornasse incobrável a pena de multa, pelo que não se lhe pode imputar qualquer culpa pelo incumprimento, pelo que o seu comportamento não se poderá consubstanciar num juízo de censura ético-jurídica.
P - É maioritário o entendimento de que as condições económicas do condenado desfavoráveis para o pagamento da multa aplicada podem ser contemporâneas ou supervenientes à data da condenação – cfr. Os já citados, entre outros, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra e acórdão do Tribunal da Relação do Porto.
Q – A decisão tomada pelo tribunal a quo e que ora se coloca em crise, leva a que, irremediavelmente, se acabe por sancionar alguém com pena de prisão, não por ser essa a reação penal necessária e adequada para punir o ilícito praticado, mas por falta de meios para satisfazer a sanção pecuniária aplicada, o que viola, claramente, o princípio da igualdade com que todos os cidadãos devem ser tratados – artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa.
R – Em jeito de conclusão e, citando, uma vez mais, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 491/2000, “a suspensão da execução da prisão subsidiária assenta no não pagamento da multa resultante de motivos que não são imputáveis ao condenado, não se detectando no texto da lei nem na natureza e razão de ser do instituto qualquer outro elemento que, a par daqueles se deva considerar verificado. (…)”, pelo que, em função dos elementos probatórios juntos aos autos pelo recorrente, donde se verifica que o não cumprimento da pena de multa se ficou a dever, única e exclusivamente, devido à ausência de condições financeiras para o efeito (sem que o recorrente se tenha colocado propositadamente, ou não, em tal situação), o tribunal a quo deveria ter decidido pela suspensão da execução da prisão subsidiária, subordinada à aplicação de deveres e regras de conduta de conteúdo não financeiro, tal como permitido pelo Artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal.
S – O douto despacho do tribunal a quo violou o disposto nos Artigos 49.º, n.º 3, do Código Penal e artigos 13.º, da Constituição da República Portuguesa.
Espera-se assim, no provimento do recurso, a modificação da decisão do douto despacho a quo e, consequente, a suspensão da execução da prisão subsidiária, pelo período e sujeita aos deveres e regras de conduta que v.ª ex.ª entendam por conveniente fixar, como é da mais inteira e salutar Justiça!
(…)”
»
O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido a 25/11/2024, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
»
I.3 Resposta ao recurso
Efectuada a legal notificação, o Ministério Público junto da 1ª Instância respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua
improcedência
, alegando o seguinte [transcrição]:
“ (…)
Conclusões:
1 - O presente recurso é circunscrito à matéria de direito.
Ora, não tendo o recorrente invocado quaisquer dos vícios referidos no art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal e versando o recurso apenas matéria de direito, é necessário que das suas conclusões constem, sob pena de rejeição, nos termos do disposto no art. 412º, nº 2, daquele diploma legal, as normas violadas, o sentido em que o Tribunal as interpretou, qual o sentido em que as devia interpretar e, havendo erro na norma aplicada, qual a que deveria ter sido aplicada.
Como tais elementos não constam das conclusões das motivações de recurso apresentadas pelo arguido, até pela circunstância de não ter formulado verdadeiras conclusões, mas repetido a parte expositiva, em desrespeito pelo comando do art. 412º nº 1 do C.P.P. deve este ser liminarmente rejeitado.
2 - Dispõe o artigo 49º, nº 1, do Código Penal, no sentido seguinte: "se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do nº 1 do artigo 41º”.
3 - O arguido não cumpriu a obrigação do pagamento da multa, em nenhuma das possibilidades que a lei prevê e não foi possível instaurar execução para o pagamento coercivo por se desconhecer a existência de bens.
4 - Daí que o despacho que determinou a conversão da pena de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa em 186 (cento e oitenta e seis) dias de prisão subsidiária se impusesse.
5 - Não foram violados quaisquer preceitos legais.
Termos em que se conclui sufragando a posição adoptada pela Mma Juiz a quo no douto despacho sindicado, julgando-se o recurso interposto por AA improcedente, como é de toda a JUSTIÇA.
(…)”
»
I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição da Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da
improcedência
do recurso, alegando, em suma, o seguinte [transcrição]:
“(…)
Todavia, e em nossa opinião, o arguido carece de razão, mostrando-se acertada a decisão recorrida no que toca à conversão da pena de multa em que o arguido havia sido condenado em prisão subsidiária e à decisão de ordenar o seu cumprimento, após trânsito em julgado.
De facto, e como é mencionado na decisão em crise, o recorrente “não pagou voluntariamente a multa em que foi condenado, não se afigurando possível a sua cobrança coerciva, não requereu o seu pagamento em prestações e tão-pouco solicitou a sua substituição pela prestação de trabalho a favor da comunidade”.
Por outro lado, as suas condições económicas - que invoca como motivo para o incumprimento e que considera não lhe serem imputáveis - eram as que “já existiam à data da condenação e foram já tidas em consideração aquando da determinação da concreta pena de multa aplicada”, como se refere igualmente na decisão recorrida.
Daí que, atento o disposto no art. 49º, nº 1, do C. Penal, outra decisão não poderia ter tido o Tribunal a quo que não fosse a de ordenar a conversão da multa aplicada em prisão subsidiária.
5. Pelo exposto, somos de parecer que a douta decisão recorrida não deve merecer qualquer censura, pelo que deve ser negado provimento ao recurso interposto e mantida tal decisão, nos seus precisos termos.
(…)”
»
I.5 Resposta
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao dito parecer.
»
I.6 Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
»
II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal (doravante também CPP), bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ
[1]
], e da doutrina
[2]
, são as
conclusões
apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal
ad quem
, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, nº 2, do CPP
[3]
, relativas a vícios que devem resultar directamente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).
»
II.2- Apreciação do recurso
Veio o arguido recorrer unicamente da matéria de direito.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente, da motivação do recurso interposto, as
questões decidendas a apreciar e decidir
são as seguintes:
- se o despacho recorrido é nulo por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, por não se ter pronunciado sobre a possibilidade de suspensão da prisão subsidiária, prevista no art. 49º, nº 3, do Código Penal;
- se a decisão recorrida, por violar o disposto nos arts. 49º, n.º 3 do Código Penal e 13º da Constituição da República Portuguesa, deverá ser substituída por outra que declare a suspensão da prisão subsidiária.
Vejamos.
»
II.2.1 Da decisão recorrida [transcrição]:
“ (…)
Por sentença transitada em julgado em 17-06-2024, foi o arguido, AA, condenado na pena única de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de €5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), perfazendo o montante global de €1.540,00 (mil, quinhentos e quarenta euros), pela prática de 1 (um) crime de condução sem habilitação legal e de 1 (um) crime de falsificação de documentos, previstos e punidos, respetivamente, pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 03-01 e pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea f) e n.º 3, do Código Penal.
O arguido não procedeu ao pagamento voluntário da pena de multa em que foi condenado, não é possível a sua cobrança coerciva e o mesmo não veio requerer a sua substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade.
O Ministério Público promoveu a conversão da pena de multa em prisão subsidiária, nos termos que dimanam da douta promoção a fls. 174.
O arguido foi regularmente notificado para, no prazo de 10 (dez) dias, proceder ao pagamento da pena de multa em que foi condenado ou, no mesmo prazo, justificar o incumprimento, sob pena de conversão daquela pena em prisão subsidiária (cfr. fls. 175).
Nessa sequência, por intermédio do requerimento que antecede, o arguido alegou, em síntese, a ausência de condições económicas que lhe permitissem efetuar o pagamento da pena de multa em que foi condenado. Consequentemente, requereu a revogação da pena aplicada ou, em alternativa, a concessão de um período mais alargado para que possa cumprir a pena em causa. Juntou o extrato de remunerações referentes aos anos 2018, 2019, 2020 e 2023, constante dos autos a fls. 179.
O Ministério Público promoveu o indeferimento do requerido por ausência de fundamento legal.
Cumpre apreciar e decidir, por nada a isso obstar.
*
Dispõe o artigo 49.º, n.º 1, do Código Penal, no sentido seguinte: “se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n.º 1 do artigo 41.º”.
Da leitura da norma em apreço, em conjugação com os artigos 47.º e 48.º do Código Penal, é possível concluir que a lei prevê um sistema múltiplo e sucessivo de etapas no que diz respeito ao cumprimento da pena de multa: “pagamento voluntário através de uma única entrega de quantia monetária; pagamento (voluntário) diferido ou em prestações da multa, após deferimento de requerimento formulado nesse sentido pelo condenado; substituição da pena de multa por dias de trabalho, após deferimento de requerimento formulado nesse sentido pelo condenado; pagamento coercivo; e conversão da multa em prisão subsidiária. Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa não lhe é imputável, pode a execução da prisão subsidiária serlhe suspensa” (assim, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08-05-2018, processo n.º 154/12.3GBALD.C1, relatado por Alice Santos e disponível para consulta em www.dgsi.pt).
No caso em apreço, o arguido não pagou voluntariamente a multa em que foi condenado, não se afigurando possível a sua cobrança coerciva, não requereu o seu pagamento em prestações e tãopouco solicitou a sua substituição pela prestação de trabalho a favor da comunidade.
Alegando condições socioeconómicas precárias, as quais já existiam à data da condenação e foram já tidas em consideração aquando da determinação da concreta pena de multa aplicada, o arguido requer agora a revogação da pena ou, em alternativa, a concessão de prazo adicional para proceder ao pagamento da pena de multa em que foi condenado. Ora, tais pedidos não têm cobertura legal, pelo que se impõe, naturalmente, o seu indeferimento.
Ante o exposto, determina-se a conversão da pena de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa em 186 (cento e oitenta e seis) dias de prisão subsidiária (correspondente a dois terços dos dias de multa), nos termos do artigo 49.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código Penal.
*
Após trânsito em julgado, determina-se que sejam emitidos os competentes mandados de detenção.
*
Nos termos do artigo 491.º/A, n.º 3, do Código de Processo Penal, “para o efeito previsto nos números anteriores, os mandados devem conter a indicação do montante da multa, bem como a importância a descontar por cada dia ou fração em que o arguido esteve detido”. Para este efeito se consigna que o valor da importância a descontar é o resultado equivalente à divisão do montante global da pena de multa pelo número de dias de prisão subsidiária.
*
Notifique, sendo o arguido com a advertência expressa de que pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa em que foi condenado, no valor de €1.540,00 (mil, quinhentos e quarenta euros), ao abrigo do disposto no artigo 49.º, n.º 2, do Código Penal.
(…)”
»
II.2.2 Apreciando o caso concreto.
Vejamos, então, das questões decidendas.
Como vimos, entende o arguido recorrente que, ao abrigo do disposto no art. 49º, nº 3, do Código Penal (CP), deverá ser-lhe aplicada a suspensão da prisão subsidiária decretada, tendo o Tribunal
a quo
incorrido na nulidade de omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP), ao não se pronunciar sobre a mesma, mesmo que tal não tenha sido solicitado pelo arguido, violando assim, também o disposto no art. 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Em resposta, o Ministério Público junto da 1ª instância [no que foi acompanhado pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, junto deste Tribunal da Relação], alegou não assistir razão ao recorrente, alegando, em suma, que o arguido não cumpriu a obrigação do pagamento da multa, em nenhuma das possibilidades que a lei prevê e não foi possível instaurar execução para o pagamento coercivo por se desconhecer a existência de bens, razão porque o despacho que determinou a conversão da pena de multa em prisão subsidiária se impunha, invocando o disposto no art. 41º, nº 1, do CP..
Cumpre apreciar.
II.2.2.a) Da nulidade por omissão de pronúncia
Apreciemos, desde logo, da primeira questão decidenda: se o despacho recorrido é nulo por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, por não se ter pronunciado sobre a possibilidade de suspensão da prisão subsidiária, prevista no art. 49º, nº 3, do Código Penal.
Ora, adiantamos já, no caso revidendo não estamos perante qualquer nulidade processual, nem sequer perante qualquer outra invalidade que ainda possa ser objecto de arguição.
A lei processual penal consagrou, em matéria de invalidades, o princípio da legalidade, segundo o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular – cfr. nºs 1 e 2 do art. 118° do Cód. de Processo Penal.
É verdade que decorre do disposto no art. 97º, nº 5 do Código de Processo Penal a exigência de que os actos decisórios dos juízes sejam sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. Como de forma clara resume o Conselheiro Henriques Gaspar em nota ao citado normativo, no ‘Código de Processo Penal Comentado’ (ed. 2014, pág. 127), “
As decisões judiciais não podem impor–se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz. A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado de fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz
”.
E é verdade também que tal exigência encontra concreta expressão nomeadamente no invocado art. 379º, nº 1, na sua al. c), do Código de Processo Penal, onde se comina com o vício da nulidade a sentença que deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar – o que integra a questão recursiva ora em análise.
Sucede que tal nulidade, sendo específica das sentenças, não se mostra aplicável aos despachos judiciais.
Na verdade, o despacho recorrido – que, recorde-se, determinou a conversão da pena de multa em prisão subsidiária - não consubstancia uma sentença, “
peça processual por excelência que conhece, a final, do objecto do processo; [por contraponto ao] despacho, acto decisório do juiz que conhece de questão interlocutória ou põe termo ao processo fora do caso anterior, na definição enunciada no art. 97º, als. a) e b) [do nº1] do Cód. de Processo Penal
” – cfr. Acórdão do S.T.J. de 28/11/2007 (proc. nº 3754/07), mencionado na ob. supra citada).
Não é, por isso, aqui invocável, como o fez o arguido recorrente, o disposto no art. 379º do Código de Processo Penal, aplicável, como dissemos, apenas aos actos decisórios que sejam sentenças.
Não estando expressamente cominada com o vício de nulidade a falta de fundamentação do despacho recorrido, nem na disposição própria que o regula – art. 49º do Código Penal –, nem vindo uma tal nulidade elencada no âmbito dos arts. 119º e 120º do Código de Processo Penal, a alegada “falta de pronúncia” do despacho em causa constituiria mera irregularidade processual, nos termos do disposto no art. 118º, nº 2 do Código de Processo Penal, onde exactamente se estipula, como acima já se indicou, que nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.
Neste sentido, vejam–se nomeadamente os Acórdãos do S.T.J. (ambos disponíveis www.dgsi.pt/jstj.nsf/) de 21/02/2007 (proc. nº 3932/06) e de 09/02/2012 (proc. nº 131/11.1YFLSB), tendo-se naquele primeiro escrito precisamente que “
a falta de fundamentação das decisões judiciais, situação que se traduz na falta de especificação dos motivos de facto e de direito da decisão – art. 205º, nº1 da CRP e 97º, nº5 do CPP –, constitui mera irregularidade – art. 118º, nºs 1 e 2 – a menos que se verifique na sentença, acto processual que, conhecendo a final do objecto do processo – art. 97º, nº1, al. a) do CPP –, a lei impõe obedeça a fundamentação especial, sob pena de nulidade – arts. 379º, nº1, al. a), e 374º, nº2, do mesmo diploma legal
”.
Veja-se, ainda, com particular relevância para o caso revidendo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/10/2020 (proc. nº 5460/18.0T9PRT.P1), onde se escreveu com particular clareza que “
Na verdade, a omissão de pronúncia imputada ao despacho recorrido não configura uma verdadeira nulidade processual, pois a lei não a comina expressamente como tal. É certo que o art 378º do CPP qualifica como nulidade da sentença (entre outras) a omissão de pronúncia. Todavia, esse preceito legal não é aplicável aos demais despachos – como acontece, por exemplo, nas situações previstas no art. 380º, 3 do CPP. Relativamente aos vícios dos actos jurisdicionais – diferentes da sentença – são aplicáveis as regras gerais e, portanto, só são nulos quando essa cominação estiver expressamente prevista na lei. Isto porque, em processo penal, vigora o princípio da legalidade, segundo o qual, “a violação ou a inobservância da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei” – art. 118º, n.º 1 do CPP. Nos casos em que a lei não cominar expressamente a nulidade, o acto ilegal é irregular, como nos diz o art. 118º, n.º 2 do CPP
”.
Do que vem de ser dito conclui-se, portanto, que inexiste, pois, qualquer nulidade processual que afecte o despacho recorrido por via da sua (alegada) “falta de pronúncia”.
Acresce que sempre se dirá que ainda que se estivesse perante uma eventual irregularidade processual (o que também não é o caso, como veremos infra), a mesma só poderia determinar a invalidade do acto a que se refere se tivesse sido arguida pelo interessado no próprio acto ou, se a este não tiver assistido, nos 3 dias seguintes a contar daquele em que tiver sido notificado para qualquer termo no processo ou intervindo em algum acto nele praticado, nos termos expressamente previstos no nº 1 do art. 123° do Cód. de Processo Penal.
Assim não sucedendo, o eventual vício deverá considerar–se sanado – não sendo ademais aplicável sequer o regime do nº2 do art 123º do Cód. de Processo Penal, onde se prevê a possibilidade de reparação oficiosa de qualquer irregularidade “no momento em que da mesma se possa tomar conhecimento”, pois que tal, manifestamente, só poderá ocorrer enquanto a irregularidade não estiver sanada, sob pena de, como também se aditou no aludido aresto do Tribunal da Relação do Porto, se transformarem “as meras irregularidades em nulidades insanáveis (conhecíveis oficiosamente e a todo o tempo), contrariando frontalmente o disposto no artigo 119º, 1 do CPP, segundo o qual as nulidades insanáveis são apenas as cominadas na lei como tal ”.
No presente caso o alegado vício não foi suscitado pelo interessado no prazo legalmente imposto,
pelo que sempre seria de se considerar sanado
, vindo a sê–lo – na sua substância material – apenas com a interposição do recurso ora em análise.
Sempre, porém, sem que se lhe reconheça qualquer razão.
Senão vejamos.
No presente recurso sustenta o recorrente que o Tribunal
a quo
, deveria ter-se pronunciado sobre a possibilidade de suspensão da prisão subsidiária, prevista no art. 49º, nº 3, do Código Penal, mesmo não tendo tal sido requerido pelo mesmo.
Ora, dispõe o art 49º do CP, nos termos seguintes:
«1 - Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n.º 1 do artigo 41.
2 - O condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado.
3 - Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de 1 a 3 anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou as regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta.
4 – (…)»
Importa, antes de mais, salientar, como ensina o insigne Professor Figueiredo Dias
[4]
, que a pena de prisão subsidiária constitui uma verdadeira
pena de constrangimento
conducente à realização do efeito preferido de pagamento da multa na medida em que o condenado pode a todo o tempo evitar a execução da pena de prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado – artigo 49.º, n.º 2 do Código Penal.
No caso revidendo está em causa a execução de uma pena não privativa da liberdade,
in casu,
de uma pena de multa, que foi convertida em prisão subsidiária no despacho recorrido.
Cumpre destacar que uma das características mais marcantes do actual ordenamento jurídico-penal português, resultante da reforma legislativa de 1982, assenta na ideia de que as sanções privativas da liberdade constituem uma
ultima
ratio
da política criminal, aqui relevando os princípios da necessidade/subsidiariedade da intervenção penal e da proporcionalidade das sanções penais - arts 18º, nº 2 da CRP e arts 70º e 98º do CP
[5]
.
No seguimento de tal orientação, o legislador de 1982 privilegiou a pena de multa, em contraponto com a pena de prisão, elevando-a a pena principal, vertente que veio a ser aprofundada com a revisão operada pelo DL nº 48/95, de 15 de Março, onde se pode ler no preâmbulo que “
Impõe-se, pois, devolver à pena de multa a efectividade que lhe cabe. A dignificação da multa enquanto medida punitiva e dissuasora passa por um significativo aumento, quer na duração (…) quer no montante máximo diário (…). E assim sendo, afastado o carácter residual ou secundário que a pena de multa assumia antes de 1982, o legislador rodeou aquela pena dos mecanismos aptos a acentuar a sua natureza de verdadeira pena criminal, conferindo-lhe a dignidade que esse estatuto reclamava, sob pena de não conseguir responder ao desafio de relegar a pena detentiva para o papel de ultima ratio do sistema penal. E tal desiderato passou – para além do mais - pelo estabelecimento de um sistema de execução da pena orientado para a preservação da dignidade penal da pena pecuniária, visando evitar que esta se convertesse numa (…) forma disfarçada de absolvição ou (…) de uma dispensa ou isenção da pena que se não tem a coragem de proferir
“
[6]
Em conformidade, a interpretação do regime legal relativo à execução da pena de multa, “(…)
deverá ser em sintonia com as finalidades apontadas às penas; sem que se ignore, pois, em momento algum, no decurso da respectiva execução, que constituindo a pena de multa uma verdadeira pena criminal haverá que assegurar sempre a tutela do bem jurídico violado e a reintegração social do condenado, qualquer que seja a modalidade da execução que venha a ser seguida, porquanto é através da execução da pena, qualquer que ela seja, que se confere razão prática à sentença condenatória e se asseguram as finalidades de prevenção. Dito de outro modo, precisamente porque se trata de uma pena criminal, o condenado tem que a sentir como tal, sob pena de frustração das finalidades visadas através da sua aplicação; razão que justifica que as alternativas de cumprimento da pena de multa exijam a sua intervenção concreta e interessada, pois é a ele que cabe explicar o não cumprimento da pena em que foi condenado e para cujo cumprimento foi devidamente notificado sendo, pois, ao condenado que cabe requerer a suspensão da pena de prisão subsidiária e provar que o não pagamento lhe não é imputável
(…)” - – cfr., neste sentido, entre outros, o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/05/2020, processo n.º 36/16.6T9LSA-A.C1 e o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/10/2021, processo nº 85/19.6PTLRA-A.C1, relator: Desembargador João Novais, in www.dgsi.pt, que seguimos de perto, e Paulo Pinto de Albuquerque, C.P.P. anotado, 3ª edição, p. 1237.
Daqui se conclui, pois, que o condenado em pena de multa só poderá beneficiar do mecanismo da suspensão da prisão subsidiária caso o requeira expressamente
.
É essa a conclusão que se impõe, não só face à salvaguarda dos efeitos que a pena de multa deve produzir, atenta a sua dignidade de pena principal, como ainda da interpretação da própria lei.
Assim, o tribunal após decidir pela aplicação de uma pena de multa ao condenado, cabe a este a iniciativa de pedir o diferimento do prazo de pagamento ou o pagamento em prestações, o que resulta das expressões («…o tribunal pode autorizar (…) ou permitir…» - art. 47º, nº 3, do CP.
Tal como se estabelece expressamente, que a substituição da multa por dias de trabalho depende de manifestação de vontade do condenado nesse sentido («A requerimento do condenado (…)» - art. 48º, nº 1, do CP.
E, de harmonia e em coerência de princípios, igualmente
a suspensão da prisão subsidiária aplicada em consequência do não pagamento da pena de multa, deverá resultar não de uma iniciativa do tribunal, mas sim de um requerimento do condenado
, o que se retira da expressão «Se o condenado provar - art. 49º, nº 3, do Cód. Penal, ou ainda da redacção do art. 491º, nº 3, do CPP: «(…) parecer do Ministério Público, quando este não tenha sido o requerente», o que implica que a suspensão tem que ser requerida pelo M.P., ou pelo condenado.
Se o tribunal, como o implicitamente defende o recorrente, tivesse o dever de oficiosamente suspender a aplicação da prisão subsidiária sempre que tivesse conhecimento que aparentemente a situação económica do condenado não lhe permitia pagar a pena de multa, então deixaria de fazer sentido a previsão normativa do n.º 3 do art. 49º do CP; Exigindo o n.º 2 do mesmo art 49º, como pressuposto de conversão da pena de multa em prisão subsidiária, que o tribunal tente a execução patrimonial, no caso de a mesma se frustrar por inexistência de bens (como ocorreu no caso), então imediatamente o tribunal deveria suspender a execução da pena subsidiária, sem qualquer iniciativa do condenado nesse sentido, e sem ter que alegar e provar que a razão do pagamento não lhe é imputável, o que tornaria inútil, e mesmo contraditório o referido n.º 3 do art. 49º.
É que, a pena de multa não se traduz numa indiferenciada prestação patrimonial a favor do Estado, na qual se realizam diligências no sentido de apurar património que possa satisfazer aquela dívida, suspendendo-se o seu pagamento, caso não se encontrem bens ou rendimentos penhoráveis, como se de uma simples execução por custas se tratasse.
A pena de multa, ainda que se concretizando através de um sacrifício patrimonial, é uma verdadeira pena
, dotada de distinta dignidade jurídico-penal, visando a sua aplicação as finalidades descritas no art. 40º do Código Penal, tanto que se procura a sua efectivação através da privação de liberdade, situação que não ocorre relativamente à não satisfação de qualquer outra prestação pecuniária no nosso ordenamento jurídico.
Tal específica natureza de pena exige que após o seu incumprimento, e sua conversão em prisão subsidiária, seja o condenado a requerer especificamente a suspensão dessa prisão, como aliás resulta da interpretação das normas acima citadas, nos termos supra expostos.
Do exposto, resulta, pois, que, não tendo,
in concreto
, o recorrente invocado, junto do Tribunal
a quo
, a suspensão da prisão subsidiária, nos termos do disposto no nº 3, do art. 49º do CP, não tinha este que se pronunciar sobre tal mecanismo ou instituto.
E não se invoque o argumento do “desconhecimento da lei”, como o faz o arguido recorrente ao alegar que “
o requerimento em causa foi subscrito apenas pelo recorrente que, não possui, nem é obrigado a possuir, conhecimentos legais suficientes para saber qual a solução adequada ao caso concreto
” (sic), porquanto a «ignorância da lei a ninguém aproveita», pretendendo com isto significar-se que «a obrigatoriedade dos preceitos da lei se dá independentemente do conhecimento ou desconhecimento dela por parte dos cidadãos, princípio absoluto e sem limitações» (Cabral de Moncada, Lições de Direito Civil, 4ª ed.).
Veja-se o preceituado no artigo 6.º do Código Civil, aplicável ex vi do art. 4º do CPP, nos termos do qual, “
A
ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas
”.
Ainda mais considerando que o arguido tinha, à data, defensor nomeado, a quem poderia e deveria ter recorrido, em caso de desconhecimento, pedindo alteração de defensor ao tribunal, caso tivesse perdido confiança relativamente ao mesmo – o que não aconteceu.
Por tudo quanto se disse, para além da não aplicabilidade,
in casu
, da invocada nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, impõe-se concluir que não se impunha ao Tribunal recorrido pronunciar-se sobre a suspensão da prisão subsidiária, nos termos do disposto no nº 3, do art. 49º do CP, que o recorrente não cuidou de expressamente invocar, não tendo incorrido, ao não fazê-lo, em qualquer nulidade processual, ou qualquer outra invalidade que ainda pudesse ser objecto de arguição.
Improcede, pois, o recurso, neste segmento.
»
II.2.2.b) Da revogação da decisão recorrida, ordenando-se a suspensão da prisão subsidiária
Apreciemos, por fim, da segunda questão decidenda: se a decisão recorrida, por violar o disposto nos arts. 49º, n.º 3 do Código Penal e 13º da Constituição da República Portuguesa, deverá ser substituída por outra que declare a suspensão da prisão subsidiária.
Pretende, pois, o arguido recorrente, com o presente recurso, no final de contas, a declaração da suspensão da prisão subsidiária, ao abrigo daquele primeiro normativo citado, sendo certo que tal pedido não foi feito pelo mesmo junto da 1ª instância.
Ora, quando um recorrente vem colocar perante o Tribunal superior uma questão que não foi abordada e, como tal, não tratada, na decisão recorrida, então estamos perante o que se costuma designar de
”questão nova”
.
É que, por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, relativamente a uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido, pois só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido.
Olvida, portanto, o arguido recorrente que os recursos visam o reexame, por parte do Tribunal superior, de questões precedentemente resolvidas pelo Tribunal
a quo
e não a pronúncia do Tribunal
ad quem
sobre questões novas. E só não será assim quando a própria lei estabeleça uma excepção a essa regra, ou quando esteja em causa matéria de conhecimento oficioso, o que, claramente, não é o caso.
Sobre esta matéria, vejam-se, entre outros, o Ac. STJ, P. nº 05B175, datado de 07/04/2005, o Ac. RG, P. nº 212/16.5T8PTL.G1, datado de 08-11-2018, Ac. RE, P. nº 116/18.7PAABT.E1, datado de 05/04/2022, todos in www.dgsi.pt.
Portanto, não tendo o arguido invocado tal questão perante o Tribunal
a quo
, não pode este, naturalmente, pronunciar-se sobre a mesma. E, não se pronunciando sobre tal matéria, o Tribunal recorrido, não pode a mesma ser invocada, agora, “ex novo”, em recurso, procurando-se contornar o incontornável.
Caso o propósito do arguido fosse a apreciação da possibilidade de suspensão da prisão subsidiária, ao abrigo do disposto no art. 49º, nº 3, do CP, devia tê-lo requerido ou deverá vir ainda a fazê-lo, sendo o requerimento apreciado pela primeira instância, com a admissibilidade de posterior novo recurso para a Relação caso a decisão lhe seja desfavorável.
Por outras palavras, o arguido está inconformado com algo que não foi abordado nem decidido no despacho recorrido.
E a única hipótese que o arguido tem de ver a questão decidida de acordo com a sua pretensão é provocar uma tomada de posição expressa sobre a matéria em causa.
O que não pode suceder é este Tribunal substituir-se à primeira instância e proferir uma decisão sobre uma questão absolutamente nova, que não foi antes submetida a apreciação jurisdicional e não é de conhecimento oficioso. Fazê-lo agora equivaleria a pôr em crise o duplo grau de jurisdição.
Assim, sem necessidade de mais considerações, não se conhece, nesta parte, do recurso.
»
II.3 - Responsabilidade pelo pagamento de custas
Uma vez que o arguido decaiu totalmente no recurso por si interposto, é o mesmo responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal.
Assim, nos termos do disposto no art.º 8º, nº 9, Regulamento das Custas Processuais e da Tabela III a ele anexa, a taxa de justiça varia entre 3 a 6 UC, devendo ser fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela III.
In concreto
, julga-se adequado fixar essa taxa em 4 UC.
»
III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:
-
negar provimento
ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS [artigo 513º, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].
Notifique nos termos legais.
»
Porto, 19 de Fevereiro de 2025
O presente acórdão foi processado em computador pela relatora, sua primeira signatária, e integralmente revisto por si e pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos – art. 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - encontrando-se escrito de acordo com a antiga ortografia)
Os Juízes Desembargadores,
Fernanda Sintra Amaral (Relatora)
Isabel Namora (1ª Adjunta)
José António Rodrigues da Cunha (2º Adjunto)
_________________________________
[1]
Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in
http://www.dgsi.pt
.
[2]
Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.
[3]
Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.
[4]
Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, página 147.
[5]
Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, p. 17, Ed. Almedina.
[6]
Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime», § 123.
|
TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/e789dfe3c87e7bdd80258c460043b038?OpenDocument
|
1,747,094,400,000
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CONFIRMADA A SENTENÇA
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2935/22.0T8GDM.P1
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2935/22.0T8GDM.P1
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RODRIGUES PIRES
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I – Em processo de expropriação, apesar da força probatória das respostas dos peritos ser fixada livremente pelo tribunal, face aos especiais conhecimentos técnicos que são exigidos aos peritos, caso o relatório pericial seja unânime ou maioritário, o tribunal só não deve seguir os valores nele propostos, se verificar a existência de erro ou incumprimento de critérios legalmente estabelecidos a que os peritos se encontrem vinculados.
II – Assim, o especial valor probatório do relatório pericial apenas será de excluir se outros relevantes elementos de prova o infirmarem, designadamente por padecer de erro grosseiro ou por ser contrário a normas legais vinculativas, sendo que, neste caso, o juiz deve pôr em causa o relatório técnico dos peritos, mas com recurso a argumentação técnica ou científica, eventualmente baseada em meios de prova divergentes, de igual ou superior credibilidade.
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[
"EXPROPRIAÇÃO",
"RELATÓRIO PERICIAL",
"VALOR PROBATÓRIO"
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Proc. nº 2935/22.0T8GDM.P1
Comarca do Porto – Juízo Local Cível ... – ...
Apelação
Recorrentes: AA e BB
Recorrido: Município ...
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Pinto dos Santos e Lina Castro Baptista
Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
Nos presentes autos de expropriação, em que é expropriante o Município ... e expropriados BB e AA, foi proferido despacho que adjudicou à entidade expropriante acima identificada a propriedade da parcela nº 1, relativa a 3.321m2 a destacar do prédio sito na Rua ..., Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob os arts. ...20, ...21, ...22, ...23, ...25 e ...29 e na urbana sob o art. ...81, estando descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o n.º ...45/19900315.
Na decisão arbitral fixou-se como justa indemnização a quantia de 546.209,38€.
A entidade expropriante recorreu desta decisão, tendo discordado:
i. do valor de 880,00€ fixado pela decisão arbitral como valor médio do custo de construção à data da DUP;
ii. da percentagem de dedução de despesas necessárias ao reforço das infraestruturas existentes, que fora fixada em 5% e que a expropriante considera dever fixar-se em 20%;
iii. do valor corretivo pela inexistência de risco e do esforço inerente à capacidade construtiva de 5% do valor da avaliação alcançado na decisão arbitral, considerando que tal valor deverá fixar-se em 10%.
Sustenta, a final, que o valor da indemnização se deverá fixar em 450.232,48€, correspondendo 368.232,48€ ao valor da parcela, e 82.000,00€ a benfeitorias.
Os expropriados também recorreram da decisão arbitral discordando, em suma:
i. do valor atribuído a título de índice de utilização média acima do solo, que foi de 0,8 quando os expropriados consideram que deveria ter sido de 1;
ii. da não consideração da possibilidade de construção abaixo do solo;
iii. da percentagem aplicada pelos senhores árbitros a título de localização, qualidade ambiental e acesso a equipamentos, à qual entendem dever ser aplicado um índice de 13%;
iv. do valor de 880,00€ fixado pela decisão arbitral como valor médio do custo de construção à data da DUP, que os expropriados consideram que deverá ser de 1.100,00€;
v. da não atribuição de indemnização pelas benfeitorias;
vi. do preço adotado para reposição da vedação na parcela sobrante, que consideram dever ser de 49.990,00€ + IVA para a construção da entrada, acesso e caramanchões e de 20.750,10€ para o portão.
Foram admitidos ambos os recursos e apresentadas respostas tanto pela entidade expropriante como pelos expropriados.
Procedeu-se à realização de uma perícia, que considerou como valor da justa indemnização a importância de 739.558,00€.
Foram ouvidas as testemunhas indicadas pelas partes.
Notificadas para o efeito, as partes alegaram.
Por fim, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente o recurso dos expropriados BB e AA e improcedente o recurso da entidade expropriante Município ... e, em consequência, condenou este a pagar aos expropriados a quantia 739.558,00€, a atualizar de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor, desde 30.6.2019.
Os expropriados, inconformados com o decidido, interpuseram recurso, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
A. O valor do solo há de ser o que se encontra de acordo com o cálculo dos 5 peritos corrigido o valor de custo da construção, para, pelo menos €1.100,00 por m2.
B. Os peritos aplicaram, como resulta do relatório, como referencial, o valor duma portaria desatualizada, como reconhece o Estado na Portaria 281/2021 de 3 de dezembro que a altera.
C. Desatualizada em duas vertentes, nos preços e nas novas exigências ao nível do desempenho energético dos edifícios, que agravaram o custo do produto final.
D. A prova testemunhal e a prova documental confirmam-no por defeito.
E. O custo da reposição das vedações há-se ser o que efetivamente os expropriados vierem a suportar, que deve ser fixado no dos orçamentos ou relegado por isso, para incidente de liquidação de sentença sem prejuízo de ficar já assente o valor de €82.000,00 já aceite pela expropriante.
F. Se o Tribunal tiver dúvidas acerca dos valores que colocamos em causa, e não se sinta habilitado a aplicar os valores que entendemos justos e provados, requer-se que sejam já fixados os valores da perícia relegando-se o demais para liquidação de sentença.
G. Deste modo, ao ponto 26 a redação que defendemos é a seguinte: O custo médio da construção acima do solo à data da DUP corresponde, pelo menos, a €1.100,00.
H. E, ao ponto 32 a resposta: “O valor unitário do solo é de €214,39 pelo que, sendo área da parcela expropriada 3.321 m2, o valor do terreno é de €711.989,19”.
I. Ponto 34 – O custo da vedação da parte sobrante com vedações idênticas, nomeadamente a construção dum muro em alvenaria de pedra e correspondente entrada com caraterísticas idênticas ao que foi demolido, importa a quantia global de €158.805,30, assim discriminado – muro €50.000,00 + IVA, argamassa para as juntas, argamassa das juntas €8.750,00, lintel €3.500,00, fornecimento e montagem da entrada, com caramanchões €49.990,00, todos os valores mais IVA e o portão €20.750,10.
J. O custo da construção a adotar há de ser o de mercado, Artigo 26º, nº 4 do CE.
K. A Portaria 65/2019 fixava valores que á data da DUP estavam desatualizados e não abrangiam as novas exigências legais à construção de nível térmico.
L. O estudo do Instituto da Construção publicado no Confidencial Imobiliário relativo aos preços do custo da construção é um elemento precioso para se demonstrar que o custo de construção de €1 000,00 é muito desatualizado.
M. O depoimento do Arquiteto CC foi quanto a este aspeto, nas passagens referidas no texto […] elemento precioso e isento para se concluir que o custo de € 1 100,00 está mais próximo da realidade que o de €1 000,00.
N. Os depoimentos das testemunhas, DD, EE e FF, nas passagens assinaladas no texto conjugadas com os orçamentos são idóneas para dar como provados os valores dos orçamentos, desatualizados.
O. Para não prejudicar ou beneficiar qualquer das partes deve ser relegado para incidente de liquidação o valor do encargo com a reposição das vedações, por forma a manter-se a harmonia da unidade predial.
P. E, sem prejuízo da conclusão anterior, sempre terá de ser encarado como dano futuro a diferença entre o real custo da reposição das vedações e o valor adiantado pelos peritos e que a sentença acolheu.
Pretendem assim que o valor do solo seja fixado pela aplicação da fórmula adotada pelos peritos, corrigida com o valor do custo da construção para 1.100,00€ nos termos sobreditos e fixado o valor da reposição da vedação nos valores dos orçamentos, ou relegado para liquidação de sentença ou, então ficar relegado para dano futuro a liquidar.
A entidade expropriante respondeu ao recurso, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida.
Formulou as seguintes conclusões:
a) Os recorrentes, nas suas alegações de recurso, indicam que a douta sentença recorrida andou mal ao fixar o valor aplicado ao custo de construção em 1.000,00€/m2 conforme relatório pericial de junho de 2023, devendo o mesmo ter sido fixado em 1.100,00€/m2.
b) Assim como consideram os recorrentes que o valor da justa indemnização relativa à reposição da vedação não corresponde ao valor de 82.000,00€, por desconsideração do tribunal recorrido da prova documental e testemunhal junta pelos recorrentes aos autos.
c) Ora, carecem de qualquer cabimento as alegações de recurso dos recorrentes expropriados.
Senão vejamos,
d) O douto Tribunal recorrido teve em conta toda a prova documental e testemunhal produzida, conforme as suas motivações.
e) Considerando a douta sentença recorrida que os depoimentos das testemunhas indicadas pelos recorrentes não foram suficientes para colocar em causa o relatório dos senhores peritos, ao abrigo do seu inato princípio da livre apreciação da prova.
f) E, quanto ao estudo publicado pelo Confidencial Imobiliário, introduzido pelos recorrentes, este nunca teria acolhimento nem seria relevante para a decisão do douto tribunal recorrido.
g) O estudo no qual se baseiam os recorrentes, atribui um valor de custo de construção aos concelhos da Área Metropolitana do Porto, fora o concelho ..., que se demonstra lato, desmerecedor de credibilidade, porquanto a A.M.P engloba, fora o concelho do Porto, 16 municípios, todos eles diferentes.
h) Os senhores peritos, no relatório pericial de junho de 2023, utilizaram os critérios legais do n.º 5 do artigo 26.º do Cexp, atualizando o valor segundo as tabelas dos índices de revisão de preços, divulgadas pelo IMPIC, até à data da DUP, e inclusivamente estabelecendo uma majoração de 20,00 % ao valor, no cumprimento estrito do n.º 1 do artigo 23.º do Cexp.
i) Daí que, o valor atribuído pelos senhores peritos, após sua análise, sempre se encontraria como o mais correto, uma vez que analisaram o custo corrente de construção para aproveitamentos construtivos economicamente normais na zona, e não num contexto macro.
j) Pelo que, sempre deverá ser improcedente o recurso, relativamente ao pedido de alteração do valor do custo de construção de 1.000,00€/m2 para 1.100,00€/m2.
k) Relativamente ao valor da reposição da vedação, referido a ponto 9 do relatório pericial dos senhores peritos de junho de 2023, considerou a douta sentença recorrida, a página 13, que as declarações das testemunhas, não foram suficientes para fazer desabar um acórdão de cinco senhores peritos que, em conjunto, e na sua indubitável experiência e perícia, decidiram o valor da benfeitoria, veja-se, segundo um valor normal de mercado e não segundo um valor que uma empresa decide unilateralmente praticar.
l) O que se confirme na posição do douto tribunal recorrido a página 10 da douta sentença recorrida, quanto à prova testemunhal apresentada pelos recorrentes, “…os seus depoimentos, sendo certo que apoiados na experiência profissional que todos revelaram ter, não foram de molde a colocar em causa o juízo pericial previamente formulado, por unanimidade, pelos Srs. Peritos”.
m) Ora, conforme Acórdão do Tribunal da Relação de Évora n.º 334/07.3TBASL.E1, de 05-05-2011, para os recorrentes terem legitimidade para pedir a alteração de pontos de facto, teria de apresentar elementos que impusessem forçosamente, isto é, em juízo de certeza (que não de mera probabilidade ainda que elevada) e sem margem para quaisquer dúvidas outra decisão, o que não aconteceu.
n) Pelo que, deve o presente recurso improceder
.
O recurso foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo e subida nos próprios autos.
Cumpre, então, apreciar e decidir.
*
FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
*
As questões a decidir são as seguintes:
I.
O valor do solo da parcela expropriada
;
II
.
O valor referente à reposição das vedações
.
*
É a seguinte a factualidade dada como provada na sentença recorrida:
1. Foi adjudicada à entidade expropriante a parcela nº 1, relativa a 3.321m2 a destacar do prédio sito na Rua ..., Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob os artigos ...20, ...21, ...22, ...23, ...25 e ...29 e na urbana sob o artigo ...81, estando descrito na Conservatória do Registo Predial com o n.º ...45/19900315.
2. A Declaração de Utilidade Pública da Expropriação (DUP), foi publicada no Diário da República, 2ª Série, Parte C, nº 232 de 30 de Novembro de 2021, na sequência do despacho n.º 161/2021 do Secretário de Estado da Descentralização e da Administração Local de 18 de Novembro de 2021 – cfr. D.U.P.
3. A vistoria
ad perpetuam rei memoriam
realizou-se em 14 de Fevereiro de 2022.
4. O prédio situa-se na Rua ..., Lugar ..., ..., ... e possui as seguintes confrontações – cfr. vistoria
ad perpetuam rei memoriam
:
a. Norte: GG e HH
b. Sul: estrada e II
c. Nascente: caminho público e caminho de servidão
d. Poente: caminho de servidão
5. O local da parcela é no centro da freguesia ..., junto ao Centro Escolar .../... e possui as seguintes confrontações – cfr. vistoria
ad perpetuam rei memoriam
:
a. Norte: restante prédio
b. Nascente: Rua ...
c. Sul: Rua ...
d. Poente: Centro Escolar .../...
6. A parcela encontra-se classificada na Carta de Ordenamento do Plano Director Municipal ... como Solo Urbano – Solo Urbanizado Tipo II, classificação que abrange as frentes para as ruas da Estrada ... e Rua ..., enquanto a quase totalidade do prédio, que se desenvolve para norte e noroeste, se encontra classificada como Reserva Agrícola Nacional – cfr. vistoria
ad perpetuam rei memoriam.
7. A parcela, com a área de 3.321m2, tem formato trapezoidal e desenvolve-se apoiada em dois arruamentos, a sul pela Rua ... e a nascente pela Rua ..., vias públicas que se encontram pavimentadas a betuminoso e dotadas das seguintes infraestruturas – cfr. vistoria
ad perpetuam rei memoriam
: passeios em todo o perímetro da parcela, rede de abastecimento de água, rede de drenagem de águas residuais, ligação a estação de tratamento de águas residuais, rede de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão, rede telefónica, rede de gás na Rua ....
8. Ao longo dos dois arruamentos, a parcela encontra-se delimitada por muros, que se caracterizam do seguinte modo – cfr. vistoria
ad perpetuam rei memoriam
:
a. Ao longo da Rua ..., temos um muro em perpianho de granito com 0,30m de espessura e altura de 2,10m, mais fundação, com a extensão de 55 m que incorporam um portão de 2,40m de largura;
b. Ao longo da Rua ..., temos um muro que no gaveto da Rua ..., ...,80m de altura e no vértice mais a norte tem 2m de altura, mais fundação; este muro é em alvenaria de granito e tem a extensão de cerca de 63 m;
c. Na concordância destes dois muros existe uma antiga construção de um Posto de Transformação que se encontra em ruína;
d. Do muro que delimita a Rua ... e num vértice sensivelmente em frente às primeiras casas, existe um outro muro interior, com características semelhantes, com cerca de 2m de altura e que será afectado em cerca de 15m;
e. O portão acima referido, que serve de entrada principal do prédio, tem 2,40m de largura e cerca de 5m de altura e encontra-se cravado em dois pilares/ombreiras de 0,60m x 0,60m em granito aparelhado, com capitéis trabalhados e encimados por uma esfera de granito com cerca de 0.40m de diâmetro;
f. Ladeando estes dois pilares, existem uns caramanchões, internamente acessíveis por uma escadaria de dez degraus com 1m de largura em pedra inteira de granito, os quais se encontram rematados, sobre os muros, por pedras de granito aparelhado;
g. O portão, com cerca de 5m de altura, é em ferro forjado, sendo uma parte em chapa com motivos decorativos, contornada por grade trabalhada, ate aos 2m de altura, e acima desta altura o portão é constituído por grade trabalhada, encontrando-se em bom estado de conservação;
h. Tanto o portão como os muros encontram-se em bom estado de conservação.
9. A parcela faz parte de uma exploração agrícola com a área de 87.200m2, dos quais 700m2 estão ocupados com a casa de habitação e arrumos e um estábulo com 200m2, destinado a vacaria de engorda que tem em permanência cerca de 75 cabeças de gado bovino – cfr. vistoria
ad perpetuam rei memoriam.
10. Na exploração do prédio são utilizados os seguintes equipamentos agrícolas – cfr. vistoria
ad perpetuam rei memoriam
: três tactores, um reboque, uma máquina de apanhar batata, uma máquina de apanhar espigas de milho e um espalhador de adubo.
11. A parcela em si, que sendo sensivelmente plana tem declive para poente e forma uma linha de talvegue a meio do seu percurso no sentido nascente-poente, possui solos de boa qualidade para fins produtivos sob o ponto de vista agrícola, nomeadamente para produtos hortícolas, encontra-se plantada a nabos e possui uma parte coberta com ramadas e árvores de fruto, que se caracterizam do seguinte modo – cfr. vistoria
ad perpetuam rei memoriam
:
a. No seguimento do portão de entrada, possui uma ramada de vinho verde, com cerca de 3m de vão, apoiada em esteios com cerca de 4m de altura (incluindo fundação) e ligados superiormente por pontas de vigota, onde se apoiam 9 fios de arame. Desta ramada serão incluídos na expropriação 26 esteios e 75 pés de videira;
b. Ao longo do muro que delimita a Rua ... e para nascente do portão, existe uma ramada que será totalmente incluída na expropriação e que possui 3 esteios com 3m de altura e 12 pés de videira;
c. Ao longo do muro interior da parcela existe uma ramada apoiada em esteios de granito com 3m de altura e serão afectados 11 pés de videira;
d. Serão ainda afectadas cinco árvores de fruto: três cerejeiras, uma figueira e uma ameixeira, todas adultas;
e. Existem ainda 78 cedros plantados ao longo do muro que separa a parcela do Centro Escolar .../....
12. O Local é bem servido de transportes públicos assegurados pela empresa A... (linha 55) e pelos B... (Serviço de Transportes Coletivos do Porto), com destino ao Porto (linha 803), cujas paragens ficam a cerca de 50m da parcela expropriada. A Estação ... 805 dos B... fica a cerca de 280 metros. A Estação ... (linha férrea – CP) fica a cerca de 275 metros e a estação de Metro a cerca de 650 metros. Todas as distâncias atrás referidas foram calculadas por trajeto a pé. – cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
13. O acesso à VCI e à Rede Nacional de Autoestradas fica a cerca de 3 km. – cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
14. O prédio insere-se em zona urbana e o local oferece comércio, equipamentos escolares (Centro Escolar .../... e Colégio ...) e serviços diversos. A envolvente urbana caracteriza-se, ao longo das vias públicas, predominantemente por edifícios unifamiliares e edifícios multifamiliares (predominantemente habitacionais e alguns com comércio e serviços). Existem também alguns terrenos agrícolas. – cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
15. A parcela está sensivelmente à cota do arruamento e à data da DUP o seu uso era agrícola. – cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
16. De acordo com o Plano Diretor Municipal ..., aprovado pela Assembleia Municipal ... em 29 de junho de 2015 e tornado público pelo aviso 13057/2015 de 9 de novembro, alterado e republicado pelo aviso 3337/2018 de 13 de março, a parcela encontra-se inserida na Planta de Ordenamento – Qualificação do solo e nela classificada como Solo Urbano – Solo Urbanizado – Espaços Residenciais – Tipo II – cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
17. O solo dispõe de acesso rodoviário, passeio, rede de águas residuais domésticas com ligação a estação de tratamento de águas residuais, rede de águas pluviais, rede de abastecimento de água, rede de energia elétrica, rede de gás e rede de telecomunicações – cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
18. O solo integra-se em núcleo urbano existente – cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
19. O solo está destinado, de acordo com instrumento de gestão territorial, a adquirir as características descritas na alínea a) do n.º 2 do artigo 25.º do CE – cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
20. Segundo o artigo 25.º do CE, o solo do prédio e da parcela expropriada é classificado como solo apto para a construção – cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
21. O aproveitamento económico normal para o terreno seria um edifício multifamiliar, sendo também considerada a construção de cave para estacionamento, considerando também a exigência do cumprimento de cedências ao domínio público e parqueamentos - cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
22. O índice de utilização viável e possível para o solo corresponde a 0,80 m2 de construção por m2 de área de terreno, a que corresponderá a seguinte área de construção acima do solo: 3.321 m2 x 0,80 m2/m2 = 2.656,8 m2 - cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
23. Tendo por base a área de construção acima do solo de 2.656,8 m2, é admissível o seguinte número de fogos: 2.656,8 m2: 120 m2 = 22,14 fogos - cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
24. Considerando em média 1,5 lugares de garagem por fogo (atendendo a que num aproveitamento economicamente normal haverá fogos de tipologias diversas, cabendo a alguns fogos 2 lugares de garagem e a outros 1 lugar de garagem) e considerando uma área bruta de 35 m2 por lugar de estacionamento (para atender às áreas de acesso, circulação, manobras e lugar de estacionamento propriamente dito) a área bruta de construção em cave para estacionamento é de: 22,14 fogos x 1,5 lugares de estacionamento x 35 m2 = 1.162,35 m2 - cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
25. O que corresponde a um índice de construção abaixo do solo de 0,35 m2/m2 (1.162,35m2/3.321m2) - cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
26. O custo médio de construção acima do solo à data da DUP, corresponde a 1 000€/m2 - cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
27. O custo médio de construção abaixo do solo à data da DUP, corresponde a 500€/m2 - cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
28. O valor do solo apto para construção corresponde a 13% do custo da construção, em função da localização da parcela, sua qualidade ambiental e dos equipamentos existentes na zona - cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
29. A que acrescem 10% dos totais das restantes infraestruturas - cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
30. É de 7% a percentagem para fazer face aos custos do reforço das infraestruturas - cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
31. É de 5% o fator corretivo pela inexistência de risco e esforço inerente à atividade construtiva - cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
32. O valor unitário do solo é de 198€/m2 pelo que, sendo a área da parcela expropriada de 3.321m2, o valor do terreno é de 657 558,00 € (3 321 m2 x 198 €/m2) - cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
33. A parte sobrante do prédio não sofre qualquer depreciação mantendo proporcionalmente a capacidade e o valor que possuía antes da expropriação, havendo apenas a contemplar a reposição das benfeitorias correspondentes às vedações que existiam - cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023.
34. O custo da vedação da parte sobrante com vedações idênticas às demolidas, nomeadamente a construção de um muro em alvenaria de pedra e correspondente entrada, com características idênticas ao que foi demolido importa a quantia global de 82.000,00€, o qual se subdivide do seguinte modo - cfr. relatório de peritagem junto aos autos em 29/06/2023:
a. Fornecimento e execução de muro de vedação de duas faces, em alvenaria de pedra de granito com 0,30 m de espessura e 2,5 metros de altura média, com junta argamassada: 100 m x 2,5m x 150 €/m2 = 37.500,00€
b. Lintel de fundação em betão ciclópico e/ou alvenaria de granito, com 0,80 m x 0,60m para assentamento do muro em pedra: 100 m.l. x 30 €/m.l. = 3 000,00€
c. Construção de entrada e acesso, idêntico ao que existia, incluindo portão metálico e caramanchões (valor global) = 41 500,00€.
*
Passemos à apreciação do mérito do recurso.
Estabelece o art. 62º, nº 2 da Constituição da República que
«a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.»
Por seu turno, o Cód. Civil no art. 1308º estatui que
«ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade, senão nos casos fixados por lei»
e no art. 1310º diz-nos que
«havendo expropriação por utilidade pública...é sempre devida a indemnização adequada ao proprietário e aos titulares de outros direitos reais afetados.»
Não definiu o legislador constitucional o conceito de “justa indemnização”, relegando para o legislador ordinário a definição dos critérios que permitem concretizar esse conceito.
Ora, o Código das Expropriações, aprovado pela Lei nº 168/99, de 18.9., dispõe no seu art. 23º, nº 1 que
«a justa indemnização não visa compensar o benefício alcançado pela entidade expropriante, mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efetivo ou possível numa utilização económica normal, à data da publicação da declaração de utilidade pública, tendo em consideração as circunstâncias e condições de facto existentes naquela data.»
Este preceito remete assim, em particular quando conjugado com o seu nº 5, para o critério do valor venal do bem expropriado, ou seja do valor de mercado em situação de normalidade económica (cfr. PERESTRELO DE OLIVEIRA, “Código das Expropriações Anotado”, 2ª ed., pág. 87).
Sobre esta mesma questão escreve ALVES CORREIA
(
in “As garantias do particular na expropriação por utilidade pública”, 1982, págs. 129/130) que “de uma maneira geral, entende-se que o dano patrimonial suportado pelo expropriado é ressarcido de uma forma integral e justa, se a indemnização corresponder ao valor comum do bem expropriado, ou, por outras palavras, ao respectivo valor de mercado ou ainda ao seu valor de compra e venda... Sendo concedida ao expropriado uma indemnização correspondente ao valor de mercado do bem, aquele é teoricamente colocado na situação de poder voltar a adquirir uma coisa de igual espécie e qualidade, um objecto de valor equivalente”
De referir ainda que o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 50/90 (in DR, I-A, de 30.3.90), decidiu que justa indemnização há de corresponder ao valor adequado que permita ressarcir o expropriado da perda que a transferência do bem lhe acarreta, devendo ter-se em atenção a necessidade de respeitar o princípio da equivalência de valores: nem a indemnização deve ser tão reduzida que o seu montante a torne irrisória ou meramente simbólica, nem, por outro lado, nela deve atender-se a quaisquer valores especulativos ou ficcionados, por forma a distorcer, positiva ou negativamente, a necessária proporção que deve existir entre as consequências da expropriação e a sua reparação.
Uma vez feitas estas considerações prévias, há que passar agora à apreciação das questões concretamente colocadas no presente recurso.
*
I.
O valor do solo da parcela expropriada
1.
No relatório de peritagem junto aos autos em 29.6.2023 os Srs. Peritos, em laudo unânime, escreveram o seguinte no ponto 7.1. referente ao custo de construção:
“7.1 - Em cumprimento do n.º 5 do artigo 26.º do CE e num aproveitamento economicamente normal, considerou-se como referência para o custo de construção, o mencionado na Portaria 65/2019 de 19 de fevereiro, que revê o regime de habitação de custos controlados, com a redação em vigor à data da DUP.
7.1.1 - Segundo a Portaria, o custo de construção por área bruta, corresponde ao valor de 710,00€, com referência a 1 de Janeiro de 2019, atualizado conforme tabelas de revisão de preços.
7.1.2 - Segundo as tabelas dos índices de revisão de preços, divulgadas pelo IMPIC, Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção, o índice de referência a 1 de janeiro de 2019, com base 100 a 2014, para edifícios de habitação (fórmula tipo F01 - Despacho n.º 1592/2004, publicado no D.R., II Série, n.º 19, de 23 de janeiro de 2004) correspondia a 131,496, assim determinado:
F01 = 0,44 Mão-de-obra + 0,02 M03 + 0,01 M06 + 0,05 M09 + 0,02 M10 + 0,01 M18 + 0,06 M20 + 0,06 M24 + 0,03 M25 + 0,03 M26 + 0,02 M29 + 0,01 M32 + 0,03 M40 + 0,03 M42 + 0,03 M43 + 0,01 M45 + 0,02 M46 + 0,02 Equipamento de apoio + 0,10 (constante) Nota – M03 a M46 (índices relativos a materiais)
F01 (janeiro de 2019) = 0,44 x 145,40 + 0,02 x 99,1 + 0,01 x 96,40 + 0,05 x 98,0 + 0,02 x 89,50 + 0,01 x 365,80 + 0,06 x 156,30 + 0,06 x 165,70 + 0,03 x 150,30 + 0,03 x 128,10 + 0,02 x 300,60 + 0,01 x 123,80 + 0,03 x 128,60 + 0,03 x 99,70 +0,03 x 167,40 + 0,01 x 178,70 + 0,02 x 163,90 +0,02 x 117,90 + 0,10 = 131,496
7.1.3 - Segundo as tabelas dos índices de revisão de preços, divulgadas pelo IMPIC, Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção, o índice de referência à data da DUP, 30 de novembro de 2021, com base 100 a 2014, para edifícios de habitação (fórmula tipo F01 – Despacho n.º 1592/2004, publicado no D.R., II Série, n.º 19, de 23 de janeiro de 2004) correspondia a 155,527.
F01 (novembro de 2021) = 0,44 x 162,40 + 0,02 x 108,40 + 0,01 x 90,90 + 0,05 x 119,10 + 0,02 x 97,60 + 0,01 x 543,70 + 0,06 x 168,70 + 0,06 x 242,50 + 0,03 x 153,50 + 0,03 x 195,80 + 0,02 x 332,70 + 0,01 x 207,90 + 0,03 x 124,00 + 0,03 x 116,90 +0,03 x 241,80 + 0,01 x 272,70 + 0,02 x 197,80 +0,02 x 125,10 + 0,10 = 155,527
Dados obtidos em:
https://www.impic.pt/impic/pt-pt/indices-de-revisao-de-precos-em-empreitadas/publicacao-em-diario-da-republica
7.1.4 - O custo de construção segundo a portaria 65/2019, à data da DUP, corresponde a 710€ x (155,527/131,496) = 839,75 €/m2 de área bruta.
7.1.5 - Conforme referido, o aproveitamento estimado para o solo, corresponde a construção de habitação multifamiliar.
7.1.6 - Para o local, os Peritos preveem que a construção, num aproveitamento economicamente normal para a zona, terá um custo 20% superior ao da habitação a custos controlados.
7.1.7 - Nestes pressupostos, o custo médio de construção à data da DUP, corresponderá a 839,75€ x 1,2 = 1007,70 €/m2 de área bruta, ou seja, aproximadamente 1 000 €/m2 e que na análise e opinião dos Peritos corresponde ao custo corrente de construção para aproveitamentos construtivos economicamente normais na zona.
7.1.8 – Para a construção abaixo do solo estima-se um custo unitário de 50% do custo de construção acima do solo:
1 000 €/m2 x 0,50 = 500 €/m2
”
E mais adiante nos pontos 7.7 a 7.10 escreveram o seguinte:
“7.7 - Resumo dos parâmetros definidos para a avaliação:
Área do solo expropriado
3.321 m2
Índice de utilização (acima do solo)
0,8m2/m2
Índice de construção abaixo do solo (para estacionamento)
0,35m2/m2
Custo unitário da construção acima do solo
1 000 €/m2
Custo unitário da construção abaixo do solo
500€/m2
Percentagem dos n.ºs 6 e 7 do art.º 26.º do CE
23%
Reforço de infraestruturas (n.º 9 do art.º 26.º do C.E.)
7 %
Percentagem para o risco (n.º 10 do artigo 26.º do C.E.)
5%
7.8 - O valor unitário do solo da parcela expropriada corresponde a:
(0,8m2/m2 x 1 000€/m2 + 0,35m2/m2 x 500€/m2) x 0,23 x (1-0,07) x (1–0,05) = 198,12€/m2
7.9 - Valor que se arredonda para 198€/m2 e que na opinião unânime dos Peritos signatários corresponde ao valor real e corrente do terreno da parcela expropriada com referência à data da DUP.
7.10 - A área da parcela expropriada é de 3 321 m2, pelo que o valor real e corrente do terreno da mesma é de:
3 321 m2 x 198 €/m2 = 657 558,00€”
Com base neste relatório de peritagem deram-se como assentes na sentença recorrida os factos com os nºs 26 e 32 cuja redação é a seguinte:
- 26. O custo médio de construção acima do solo à data da DUP, corresponde a 1 000€/m2;
- 32. O valor unitário do solo é de 198€/m2 pelo que, sendo a área da parcela expropriada de 3.321m2, o valor do terreno é de 657 558,00 € (3 321 m2 x 198 €/m2).
2.
Sucede que os expropriados, no segmento relativo ao custo de construção, se insurgem em via recursiva contra a sentença recorrida, e, em particular, contra estes dois pontos factuais, sustentando que aquele deve ser elevado para, pelo menos, 1.100,00€/m2, e, como consequência, o valor do terreno da parcela expropriada deverá também ser elevado para 711.989,19€ com referência ao valor unitário de 214,39€.
Assentam a sua argumentação na circunstância de os Srs. Peritos no seu laudo terem aplicado uma portaria – 65/2019, de 19.2. – que, à data da DUP (Declaração de Utilidade Pública), consideram desatualizada, aludindo ainda a um estudo publicado no “Confidencial Imobiliário” e ao depoimento prestado pela testemunha CC, de que referiram algumas passagens.
Vejamos então.
3.
Antes de mais, cumpre referir que a portaria cuja aplicação é reclamada, no presente caso, pelos expropriados – a nº 281/2021 –, que alterou alguns dos artigos da Portaria nº 65/2019 e aditou outros, apenas foi publicada em 3.12.2021 e entrou em vigor no dia seguinte (4.12.2021).
Ora, datando a publicação da DUP de 30.11.2021, logo se verifica que nessa data ainda não tinha sido publicada a dita Portaria nº 281/2021, donde terá que se concluir que a referência feita no laudo pericial à redação então em vigor da Portaria nº 65/2019, não merece qualquer censura.
Os expropriados reportam-se igualmente, nas suas alegações, ao estudo efetuado pelo “SICC- Sistema de Indicadores de Custos de Construção”
[1]
, referente ao ano de 2021, publicado na “Confidencial Imobiliário”
[2]
, do qual resulta que, para esse ano, na área metropolitana do Porto, se determinaram os seguintes valores: para as construções mais económicas, que designaram por percentil 25, o custo de 1.011,00€; para as construções médias o custo de 1.119,00€, e para a superior, que designaram por percentil 75, o valor de 1.217,00€.
Tal significa que na linha deste estudo, inserindo-se o concelho ... na área metropolitana do Porto, o custo de construção seria para o ano de 2021, no percentil mais baixo, de 1.011,00€/m2 e com IVA de 1.243,53€/m2.
Ouvimos também o depoimento da testemunha
CC
.
Este é arquiteto e faz acompanhamento de obras. Com base na sua experiência profissional disse que em 2021 não se construía por menos de 1.200,00/1.300,00€/m2, com IVA, e que a construção abaixo do solo rondava pelos 500,00/600,00€/m2.
4.
A questão está então em saber se este depoimento, prestado por pessoa com conhecimento na área da construção, e o estudo publicado na “Confidencial Imobiliário”, ambos apontando para um custo de construção superior ao que foi considerado no laudo pericial e depois acolhido na sentença recorrida, deverão prevalecer sobre este.
Estatui o art. 388º do Cód. Civil que
«a prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial»
, e depois o subsequente art. 389º logo nos diz que
«a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal.»
Na expropriação litigiosa a prova pericial constitui meio probatório não só necessário, porque legalmente imposto, como decorre do nº 2 do art. 61º do Cód. das Expropriações, mas também essencial à determinação da “justa indemnização”, já que, pela sua natureza técnica, é o que melhor habilita o julgador a apurar o valor da coisa expropriada.
Por isso, mesmo que juiz não esteja vinculado ao resultado do laudo pericial, a tecnicidade de que se revestem as questões debatidas no processo expropriativo justifica que se atribua particular relevância a este meio probatório.
Com efeito, escreve-se, por ex., no Ac. Rel. Coimbra de 10.11.2009 (proc. nº 2623/06.5 TBVIS.C1, relator GONÇALVES FERREIRA, disponível in www.dgsi.pt.) que “…a prova pericial é a prova rainha em matéria desta natureza, dada a sua especificidade, onde os conhecimentos especializados dos peritos fazem, de facto, toda a diferença”, acrescentando-se depois que “…o tecnicismo das questões postula se dê particular atenção a tal género de prova que é, por vezes, a única com virtualidade para resolver a questão”.
Esmiuçando mais a questão do valor da prova pericial em sede de processo expropriativo referiremos agora o Ac. Rel. Évora de 10.9.2020 (proc. 84/18.5 T8CCH.E1, relatora ALBERTINA PEDROSO, disponível in www.dgsi.pt.), citado na sentença recorrida, onde se escreve, com inteira pertinência, o seguinte:
“Acresce que o Código das Expropriações estabelece para o efeito regras especiais, uma vez que esta avaliação é efectuada por cinco peritos - desde logo ressaltando desta imposição uma maior exigência do que a geralmente adoptada, porquanto dos artigos 468.º, n.º 1, e 469.º, n.º 1, do CPC, resulta que a perícia é, em regra, singular, e excepcionalmente colegial -, designando cada parte um perito e sendo os três restantes nomeados pelo tribunal, e escolhidos de entre os que constam da lista oficial – artigo 62.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do citado diploma legal.
Ora, os peritos e árbitros constantes das listas oficiais estão sujeitos às especiais regras de recrutamento e às condições de exercício de funções - quer no âmbito dos procedimentos anteriores à declaração de utilidade pública quer no âmbito do processo de expropriação – que se encontram previstas no DL n.º 125/2002, de 10 de Maio, que aprovou o Estatuto dos Peritos Avaliadores (cfr. artigo 1.º). Assim, os mesmos são recrutados mediante concurso, tendo de possuir curso superior adequado, e sujeitos a provas de selecção – cfr. artigos 3.º, 5.º, 6.º e 7.º do EPA. Seleccionados, efectuam um curso de formação no Centro de Estudos Judiciários, são sujeitos a classificação final, são ajuramentados perante o presidente do tribunal da relação do respectivo distrito judicial – artigos 9.º-A, 9.º-B e 11.º do EPA – e têm que frequentar obrigatoriamente duas acções de formação permanente, sendo excluídos se deixarem de cumprir os seus deveres funcionais – artigos 12.º e 13.º do EPA. Tudo para dizer que os peritos que integram a lista oficial estão sujeitos a especiais exigências com vista a acautelar a sua qualidade técnica.
Acresce que os mesmos não podem intervir como peritos avaliadores indicados pelas partes em processos de expropriação que corram em Tribunal – artigo 15.º do EPA - e estão sujeitos aos impedimentos previstos no artigo 16.º e aos fundamentos de suspeição definidos no artigo 17.º, ambos do Estatuto dos Peritos Avaliadores, tudo com vista a garantir a sua isenção e imparcialidade.
Por fim, devem proceder à elaboração dos laudos periciais de acordo com as normas legais e regulamentares aplicáveis e devem fundamentar claramente o cálculo do valor atribuído – artigo 21.º do EPA - donde decorre, por exigência legal, que têm de se pautar por critérios objectivos.
De facto, «[c]oncorrendo indirectamente a função pericial para um “processo justo e equitativo”, como se extrai do princípio geral contido no art. 2º do CExp., esta exigência de objectividade resulta ainda de uma interpretação da norma em conformidade com a garantia subjacente ao art. 6º da CEDH, tal como tem sido interpretado pela jurisprudência do TEDH, ao pressupor o princípio da imparcialidade objectiva (cf. Ireneu Barreto, Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 2ª ed., pág.153 e segs).
Daí que, os tribunais, de forma uniforme, e apesar de, como se disse, a prova pericial produzida não ser vinculativa, entendam que em processo de expropriação, sendo a peritagem obrigatória e tratando-se de um problema essencialmente técnico – a avaliação do bem expropriado -, o tribunal deve aderir, em princípio, ao parecer dos peritos, dando preferência ao valor resultante desses pareceres, desde que sejam coincidentes, e, por razões de imparcialidade e independência, quando não sejam coincidentes, optar pelo laudo dos peritos nomeados pelo tribunal porquanto este é o meio de prova que melhor habilita o julgador a apurar o valor do bem expropriado, com vista à atribuição da justa indemnização.
Na verdade, para além da presumida competência técnica que se lhes reconhece, a posição assumida pelos peritos nomeados pelo tribunal é aquela que, em princípio, oferece maiores garantias de independência e de imparcialidade, face à distanciação que mantém em relação às posições do expropriante e do expropriado, os quais, amiúde, defendem a atribuição de valores, respectivamente inferiores e superiores aos atribuídos por aqueles.
Por todas estas razões, tem-se entendido que este especial valor probatório do relatório pericial apenas será de excluir se outros preponderantes elementos de prova o infirmarem, mormente por padecer de erro grosseiro ou por ser contrário a normas legais vinculativas, caso em que o juiz deve pôr em causa o relatório técnico dos peritos, mas com recurso a argumentação técnica ou científica, eventualmente baseada noutros meios de prova divergentes, de igual ou superior credibilidade, e que podem, por exemplo, decorrer dos relatórios minoritários ou ainda do cotejo deste relatório com o laudo arbitral e o relatório de avaliação, todos efectuados por peritos igualmente integrados na referida lista oficial
.”
[3]
De resto, se o juiz não dispõe de conhecimentos especiais na área a que respeita a perícia, salvo em casos de erro grosseiro, não está em condições de sindicar o juízo técnico-científico expresso na perícia, situação esta que é até melhor considerada na área do processo penal – art. 163º, nº 1 do respetivo Código -, onde se estabelece que este juízo - técnico, científico ou artístico - está subtraído à livre apreciação do julgador.
[4]
5.
Retornando ao caso concreto, impõe-se, desde logo, salientar que o laudo pericial se mostra unânime, tendo sido subscrito pelos três peritos nomeados pelo tribunal e também pelos peritos que foram indicados pela entidade expropriante e pelos expropriados, o que lhe confere uma força probatória acrescida.
Uma vez que os Srs. Peritos tomaram em consideração acertadamente a redação da Portaria nº 65/2019 em vigor à data da DUP, pois a Portaria nº 281/2021 ainda não havia sido publicada, os meios probatórios referidos pelos expropriados, em sede recursiva, com vista a infirmar o laudo pericial no tocante ao custo de construção e, por consequência, quanto ao valor do terreno da parcela expropriada, cingem-se ao depoimento prestado pela testemunha CC, arquiteto e conhecedor da área da construção, e ao estudo constante do “SICC- Sistema de Indicadores de Custos de Construção”, publicado na “Confidencial Imobiliário”.
Acontece que nenhum destes elementos probatórios – um de carácter documental e outro testemunhal –, embora apontando para um custo de construção mais elevado, permite concluir que os Srs. Peritos, no seu laudo unânime, tenham cometido qualquer erro grosseiro ou contrariado normas legais vinculativas, tanto mais que este, conforme resulta do segmento atrás transcrito, se encontra adequada e pormenorizadamente fundamentado, com reporte, inclusive, à data da DUP, às tabelas dos índices de revisão de preços, divulgadas pelo IMPIC, Instituto dos Mercados Públicos do Imobiliário e da Construção.
[5]
Assim, nesta parte, soçobra o recurso interposto pelos expropriados [conclusões A a D, G e H e J a M], sendo de manter em 1.000,00€/m2 o custo médio de construção acima do solo à data da DUP e o valor do terreno da parcela expropriada em 657.558,00€, o que significa igualmente a manutenção na matéria de facto, sem qualquer alteração, dos seus nºs 26 e 32.
[6]
*
II
.
O valor referente à reposição das vedações
1.
No relatório de peritagem junto aos autos em 29.6.2023, em laudo unânime, os Srs. Peritos escreveram o seguinte no ponto 9. referente à reposição de benfeitorias:
“9.1 - As benfeitorias que existiam na parcela expropriada, num aproveitamento economicamente normal da mesma para construção, seriam demolidas/retiradas. No entanto e tal como estipula o n.º 2 do artigo 29.º do C.E. haverá que contemplar o custo da vedação da parte sobrante com vedações idênticas às demolidas, nomeadamente a construção de um muro em alvenaria de pedra e correspondente entrada, com características idênticas ao que foi demolido.
9.2 - Os valores correspondentes são os seguintes
9.2.1 - Fornecimento e execução de muro de vedação de duas faces, em alvenaria de pedra de granito com 0,30 m de espessura e 2,5 metros de altura média, com junta argamassada: 100 m x 2,5m x 150 €/m2 = 37 500,00€
9.2.2 - Lintel de fundação em betão ciclópico e/ou alvenaria de granito, com 0,80 m x 0,60m para assentamento do muro em pedra: 100 m.l. x 30 €/ m.l. = 3 000,00€
9.2.3 – Construção de entrada e acesso, idêntico ao que existia, incluindo portão metálico e caramanchões (valor global) = 41 500,00€
O valor total da reposição das vedações é de:
37 500,00€ + 3 000,00€ + 41 500,00€ = 82 000,00€”.
Com base neste relatório, na sentença recorrida deu-se como provado o facto nº 34 que tem a seguinte redação:
- O custo da vedação da parte sobrante com vedações idênticas às demolidas, nomeadamente a construção de um muro em alvenaria de pedra e correspondente entrada, com características idênticas ao que foi demolido importa a quantia global de 82.000,00€, o qual se subdivide do seguinte modo (…)
a. Fornecimento e execução de muro de vedação de duas faces, em alvenaria de pedra de granito com 0,30 m de espessura e 2,5 metros de altura média, com junta argamassada: 100 m x 2,5m x 150 €/m2 = 37.500,00€
b. Lintel de fundação em betão ciclópico e/ou alvenaria de granito, com 0,80 m x 0,60m para assentamento do muro em pedra: 100 m.l. x 30 €/m.l. = 3 000,00€
c. Construção de entrada e acesso, idêntico ao que existia, incluindo portão metálico e caramanchões (valor global) = 41 500,00€.
2
. Sucede que os expropriados não concordam com estes valores, sustentando que os mesmos são insuficientes para que se possa levar a cabo a reposição das vedações, e, em consonância, defendem que a redação deste nº 34 seja alterada pela seguinte forma:
“O custo da vedação da parte sobrante com vedações idênticas, nomeadamente a construção dum muro em alvenaria de pedra e correspondente entrada com caraterísticas idênticas ao que foi demolido, importa a quantia global de €158.805,30, assim discriminado – muro €50.000,00 + IVA, argamassa para as juntas, argamassa das juntas €8.750,00, lintel €3.500,00, fornecimento e montagem da entrada, com caramanchões €49.990,00, todos os valores mais IVA e o portão €20.750,10.”
No sentido desta alteração aludiram aos orçamentos juntos aos autos em 12.10.2022 e também aos depoimentos prestados pelas testemunhas DD, JJ e KK, de que referenciaram passagens com indicação horária.
Ouvimos esses depoimentos.
DD
é sócio gerente das “C...” e fez o orçamento para o fornecimento e montagem da entrada em condições iguais às fotografias que lhes foram enviadas, tendo apresentado o valor de 49.990,00€, sem IVA.
JJ
é serralheiro e legal representante da “D...”. Fez orçamento para o portão no valor de 16.870,00€, mais IVA, mas sem a colocação, acrescentando que é um preço barato. A colocação andaria pelos 1.000,00€.
KK
é encarregado-geral na empresa “E...” e fez um orçamento para o muro de vedação, em alvenaria de pedra, à volta de 225,00€/m2. Também fez orçamento para o lintel. Acrescentou que os valores não englobam IVA.
3
. Neste segmento o montante indemnizatório colhe o seu fundamento no art. 29º, nº 2 do Cód. das Expropriações, referente às expropriações parciais, do qual resulta que quando a parte não expropriada ficar depreciada pela divisão do prédio ou desta resultarem outros prejuízos ou encargos, aí se incluindo a construção de vedações idênticas às demolidas, deverão ser especificados, em separado, os montantes da depreciação ou encargos, que acrescem ao valor da parte expropriada.
Foi isto que os Srs. Peritos fizeram no ponto 9 do seu laudo pericial, ao calcularem o custo da vedação da parte sobrante com vedações idênticas às demolidas, e, em particular, a construção de um muro em alvenaria de pedra e correspondente entrada, com características idênticas ao que foi demolido.
O valor que os Srs. Peritos fixaram para tal efeito foi o de 82.000,00€, a que os expropriados, em sede recursiva, opuseram o de 158.805,30€, fundando-se, para tal efeito, nos orçamentos que juntaram ao processo e nos depoimentos prestados por quem os elaborou.
Acontece, porém, que tendo em atenção as considerações que já acima fizemos, no ponto I. 4., no tocante à força probatória do relatório pericial, para onde remetemos, entendemos que a junção destes orçamentos e os depoimentos testemunhais produzidos a tal propósito, embora apontando para importâncias mais elevadas, não são de molde a infirmar o valor fixado unanimemente pelos Srs. Peritos para a reposição das vedações.
Assim, também nesta parte soçobra o recurso interposto pelos expropriados [conclusões E e F, I e N a P], sendo de manter o valor de 82.000,00€ para a reposição de vedações, o que significa ainda a permanência na matéria de facto do seu nº 34, sem qualquer alteração de redação.
A sentença da 1ª Instância será, pois, confirmada “in totum”.
*
Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. Proc. Civil):
…………………………………………..
…………………………………………..
…………………………………………..
*
DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos expropriados AA e BB e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida
.
Custas, pelo seu decaimento, a cargo dos recorrentes.
Porto, 13.5.2025
Eduardo Rodrigues Pires
Pinto dos Santos
Lina Castro Baptista
___________________________
[1]
O SICC é um sistema de informação que visa apurar estatísticas de custos de construção, com base na amostragem de orçamentos elaborados para efeitos de financiamento à promoção imobiliária (in confidencialimobiliario.com).
[2]
A Ci - Confidencial Imobiliário (Ci) é um databank independente, orientado para a satisfação das necessidades de informação dos operadores do mercado imobiliário, no contexto da tomada de decisão quanto a investimentos e estratégias de venda. É especializada na produção de indicadores de análise do mercado, produzindo índices e bases de dados exclusivas sobre venda e arrendamento do mercado habitacional. Detém a revista Confidencial Imobiliário, a mais antiga publicação periódica focada no mercado imobiliário português, lançada em 1988.
[3]
Cfr. também, por ex., Ac. Rel. Coimbra de 6.12.2011, p. 445/09.0 TBSEI.C1, relatora JUDITE PIRES; Ac. Rel. Guimarães de 13.6.2019, p. 6209/17.0 T8GMR.G1, relatora CRISTINA CERDEIRA; Ac. Rel. Porto de 24.3.2025, p. 3344/22.7 T8MAI.P1, relatora TERESA PINTO DA SILVA, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[4]
Cfr. Ac. Rel. Coimbra de 31.5.2011, p. 1197/05.9 T8GRD.C2, relator CARLOS QUERIDO, disponível in www.dgsi.pt.
[5]
Neste contexto, a questão de os Srs. Peritos terem considerado no valor do custo de construção a incorporação de uma taxa de IVA de 6% ou de 23% não se nos afigura ser de relevar, tanto mais que o valor por eles fixado de forma unânime – 1.000€/m2 - se acha devidamente fundamentado, não enfermando, como já se referiu, de qualquer erro que se evidencie como grosseiro.
[6]
Regista-se ser duvidosa a técnica seguida na sentença recorrida ao ter reproduzido largos excertos do relatório de peritagem na factualidade assente, o que levou à inclusão nesta de vários pontos de cariz conclusivo, como sucede, em particular, com o nº 32.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/eb0e16bc8018ab6980258c98004a6b64?OpenDocument
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1,746,403,200,000
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IMPROCEDENTE
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15025/16.6T8SNT-E.L1-2
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15025/16.6T8SNT-E.L1-2
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PEDRO MARTINS
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I – Um contrato de crédito para a aquisição de habitação própria permanente e garantido por hipoteca sobre bem imóvel, cai no âmbito da previsão do art. 2/1 do DL 227/2012.
II – O PERSI deve ser cumprido mesmo em relação aos herdeiros do executado parte nesse contrato de crédito, sendo que a qualificação do contrato é determinada no momento da celebração.
III – As circunstâncias previstas no art. 17/2 do DL 227/2012 como fonte do poder de extinção do PERSI pelo credor bancário, não lhe permitem dispensar-se ou exonerar-se de integrar o devedor no PERSI, ou fazer juízos de inexigibilidade, de impertinência ou de inviabilidade do PERSI, regime imperativo que tem de cumprir, salvo situações, com rigorosos pressupostos específicos, em que se comprove que a invocação da falta da condição de admissibilidade da execução incorreria em abuso de direito.
IV – Tanto mais que aquelas circunstâncias (como, por exemplo, o facto de o imóvel hipotecado ter sido arrestado ou penhorado, ou ter sido doado ou alienado, ou já ter havido um outro PERSI ou um outro qualquer processo de regularização) não implicam a extinção automática do PERSI pois que estão sujeitas (com posterior controlo judicial) aos critérios da proporcionalidade, de inexigibilidade e da boa fé.
V – No caso dos autos não há quaisquer indícios de que o executado habilitado embargante esteja a incorrer em abuso de direito ao invocar a falta de condição de admissibilidade da execução, ainda para mais porque há prova de i\ pagamentos de prestações posteriores à data do alegado incumprimento do contrato, ii\ de que continuaram a ser feitas prestações, iii\ de que ainda à data dos embargos o credor bancário continuava a aceitar amortizações e iv\ há quantias correspondentes a mais de 4 ou 6 anos de amortizações depositadas na conta por onde elas se processavam.
VI – A execução sumária (sem citação prévia à penhora) não pode ser usada para executar o alegado vencimento antecipado de um crédito garantido por uma hipoteca quando não se alega a interpelação do devedor (art. 550/1-2c do CPC), pois que a citação posterior à penhora não pode servir de interpelação, o que, no caso seria, só por si, uma causa de extinção da execução e mais um indício da má fé da exequente inicial e não do executado habilitado embargante.
VII – “A exequente tinha o ónus de exigir da seguradora o pagamento da dívida, dentro dos limites do capital seguro; A inobservância do ónus de exigir da seguradora o pagamento da dívida, dentro dos limites do capital seguro, determina a inexigibilidade da obrigação exequenda.” No entanto, este fundamento da extinção da execução e também da má fé da exequente, estaria dependente da prova da subsistência do seguro por ter estado a ser pago o prémio do mesmo (até à doença e/ou morte do 1.º executado), prova que caberia ao executado embargante, pelo que, aqui, ainda não poderia ser utilizado.
VIII - No âmbito de um contrato de crédito para aquisição de habitação própria, a entidade bancária não pode ceder o crédito a terceiro (instituição não bancária) sem ter previamente cumprido as exigências decorrentes do regime decorrente do DL 227/2012, pelo que a actual exequente não teria legitimidade para prosseguir a execução sem extinção do PERSI.
|
[
"HIPOTECA",
"PERSI",
"ABUSO DE DIREITO",
"CITAÇÃO",
"INTERPELAÇÃO",
"VENCIMENTO ANTECIPADO",
"TRANSMISSÃO"
] |
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
A 27/07/2016, a C-SA intentou contra FM e AF uma execução
para obter dele o pagamento de 114.875,04€ de capital, mais juros vencidos de 14/05/2015 a 29/06/2016 no valor de 3.323,50€; mais comissões no valor de 197,90€; mais imposto de selo, no valor de 132,94€; mais os juros vincendos e imposto selo vencido e vincendo, devidos até efectivo e integral pagamento.
Alegou que
por escritura notarial
(doc.1 que junta)
de 14/04/2009 emprestou ao 1.º executado, pelo prazo de 41 anos, a importância de 103.000€, a liquidar 492 em prestações mensais. A taxa de juro contratada foi a Euribor a 3 meses, acrescida de um
spread
de 1,85%. Em caso de mora ou incumprimento, tal taxa seria elevada em 4%. Para garantia de todas as dívidas que emergissem [de tal empréstimo] para o 1.º executado, o 2.º constituiu-se, individual e solidariamente, fiador e principal pagador, com expressa renúncia do benefício da excussão prévia, cf. o doc.1. Também, para garantia do pontual cumprimento das obrigações emergentes do contrato, o 1.º executado constituiu uma hipoteca a favor do exequente sobre a fracção autónoma, designada pela letra “BM”, descrita na 1ª Conservatória do Registo Predial de S sob o número 0001 da freguesia de A, e inscrita na respectiva matriz predial sob o artigo 0002, hipoteca que se encontra-se registada a título definitivo a favor da C pela inscrição AP.
3
4 de
26/09/2001
de 24/03/2009
[a C confundiu as apresentações; a correcção foi feita por este TRL, sendo que o erro também é assinalado pela embargada]
, que garante o montante máximo de capital e acessório de 144.960,14€, conforme se alcança da certidão predial/doc.2. A quantia emprestada foi efectivamente disponibilizada ao 1.º executado, mediante crédito processado na sua conta de depósitos à ordem, domiciliada na agência da C, cf. doc.1, que movimentou e utilizou em proveito próprio, confessando-se devedor da mesma perante a C, cf. doc.1. Por aditamento ao contrato exarado a 16/10/2014, as partes acordaram que o prazo do contrato passaria a ser de 45 anos contados desde 14/04/2009, e que a C teria a faculdade de, a todo o tempo, capitalizar os juros remuneratórios em caso de incumprimento da obrigação de pagamento de juros remuneratórios, tudo cf. doc.3. O executado interrompeu o pagamento das prestações do empréstimo acima referido em 14/05/2015, nada mais tendo pago por conta do mesmo, apesar das diversas diligências suasórias desenvolvidas pela C, situação que determinou, nos termos legais e contratuais, o direito de considerar vencida toda a dívida, reportada à data da última prestação paga, e, consequentemente, exigir o pagamento imediato de todo o capital em dívida, à data daquela última prestação paga. A partir de 29/06/2016 exclusive, a dívida será agravada diariamente em 16,86€, encargo correspondente a juros calculados à taxa de 5,271%, acrescida do imposto de selo devido e das despesas extrajudiciais que a C efectue de responsabilidade do devedor.
Não o diz, mas consta do contrato que o crédito é para a compra de habitação (própria permanente como é acrescentado no documento complementar do contrato; consta também deste documento que a quantia foi entregue na conta 301/4, onde seriam feitos os pagamentos; que o empréstimo é regulado pelo DL 349/98, que o
spread
foi atribuído tendo em conta a relação que o devedor vem mantendo com a C e com empresas do Grupo, relevando para este efeito a sua adesão aos seguintes produtos,
pack
Caixa e
pack
ligação - o qual integra os produtos seguintes: seguro de vida do devedor em seguradora do Grupo e que se o devedor vier, por qualquer forma, a extinguir aqueles
packs
a C poderá alterar o
spread
, podendo os mesmos ser extintos se por qualquer forma se extinguir qualquer um dos respectivos produtos; que a C poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento no caso, designadamente, de incumprimento pelo devedor de qualquer obrigação decorrente deste contrato: cláusula 14, dita de ‘incumprimento/exigibilidade antecipada’).
Sobre a fracção autónoma do executado e hipotecada à C recaíam as seguintes penhoras [cf. certidão de teor predial junta aos autos
[a 03/08/2016 – este TRL corrigiu a identificação do exequente e do processo da segunda penhora; o erro também é assinalado pela embargada]:
(a) AP. 5 de 26/09/2011 – data da penhora: 26/09/2011 - Quantia exequenda: 5.804,23€; exequente Fazenda Nacional, concretizadas no âmbito de um processo de execução fiscal; (b) AP. 6 de 26/06/2015 - data da penhora: 23/05/2014 - Quantia exequenda: 3.160,20€ – exequente BSCP-SA, processo executivo comum.
A 03/08/2016, o Agente de Execução penhorou o imóvel a favor da C – registada nessa data - no âmbito destes autos e enviou cartas para citação dos executados.
A 19/08/2016, o 2.º executado (citado a 16/08/2016) deu conhecimento aos autos do falecimento do 1.º
Na consulta ao registo da Segurança Social o 1º executado já constava como falecido.
O assento de óbito foi junto a 01/09/2016, sendo o falecimento de 06/11/2015, no estado de solteiro, com 45 anos (foi lavrado com base em certidão de óbito civil suíça, já que foi em Genebra que faleceu).
A 01/09/2016, o AE suspendeu a instância.
A 30/11/2018, no incidente de habilitação deduzido pela C (apenso A) foram habilitados no lugar dele, os “herdeiros” do 1.º executado: IK (mãe de pelo menos as duas filhas menores); MLM; MAM; e AMEM. Todos eles foram citados (na pessoa de uma “prima”, a 24/08/2018) na morada da fracção penhorada: […]. Na participação de transmissões gratuitas para a Autoridade Tributária, junta a 16/04/2018, constam apenas os 3 filhos como descendentes e herdeiros (já que foi 1/3 para cada um deles); as duas menores dadas como residentes no imóvel em causa; o filho maior dado como residente em Madrid; a mãe das filhas menores exercia o cargo de cabeça-de-casal por ser a representante das duas filhas; no requerimento de habilitação de herdeiros, feito pela C, todos eles, mãe e 3 filhos foram dados como residentes no imóvel, indicando-os a todos como herdeiros: juntou os assentos de nascimento da mãe e das duas filhas de ambos: uma nascida a 16/06/2009, por isso, à data do falecimento do pai com 6 anos; a outra nascida a 17/02/2012; não juntou assento de nascimento do filho mais velho).
Tentou-se a citação pessoal dos executados habilitados para os termos da execução e da penhora a 07/06/2019, sem êxito, pelo que foram depois citados por edital por determinação do AE a 13/06/2019.
A 17/07/2019 consta folha a dar notícia do cancelamento da penhora da FN e da renovação da execução do BSCP.
Na consulta do registo predial de 08/10/2019 constata-se o cancelamento da penhora da execução do BSCP.
A 15/10/2019, o AE cita o MP em representação dos executados habilitados.
Na consulta do registo predial de 12/11/2019 constata-se o cancelamento da penhora da execução fiscal.
A 22/11/2019 e 17/12/2019 foram juntos ofícios de nomeação de patrono aos executados habilitados.
A 03/12/2019, a AE, depois das citações dos credores, começa as diligências de venda.
A 06/01/2020, a C requer que a fracção autónoma seja vendida em leilão electrónico.
A 20/01/2020, a AE anuncia a venda em leilão electrónico.
A 06/02/2020, a execução recebe notícia da sentença de graduação de créditos (apenso B).
A 24/06/2020, a EO-S.A., requereu (apenso C) um incidente de habilitação de cessionário contra os (herdeiros de) FM e C, com base numa cessão de créditos da C à requerente.
Por sentença de 15/07/2020 a requerente foi julgada habilitada para prosseguir a execução no lugar da C.
A 01/10/2020, o AE deu notícia de que concluído o leilão electrónico, verifica-se que a melhor proposta é superior a 85% do valor base, pelo que será promovida a adjudicação do bem ao proponente […].
A 03/11/2020, dá-se notícia de que vão ser entregues 100.000€ + 12.719,14€ de resultados obtidos na execução [com a venda] à C [mas foram entregues à exequente habilitada]. Os comprovativos são enviados para a mandatária da C (a 15/11/2020 no processo electrónico – conferir, por exemplo, junção da procuração pela C a 05/03/2020).
A 19/04/2021, o adquirente da fracção autónoma vem requerer que seja ordenada a entrega imediata do imóvel ao requerente e seja autorizado o auxílio da força pública para a entrega coerciva do imóvel ao requerente.
A 19/10/2021, o AE notifica o morador no imóvel de “que iremos proceder à entrega do imóvel com recurso ao arrombamento das portas e mudança de fechaduras, com auxílio da força policial, no próximo dia 26/10/2021.
Nesse dia (26/10/2021) não se realizou a diligência, porque se encontrava a ocupar a fracção autónoma a Sr.ª AK e que seria irmã da mãe das filhas do 1.º executado), e não tinha condições para sair e ir para outro local.
A 03/11/2021,
AMEM
, na qualidade de herdeiro do 1.º executado, requereu, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 851 do CPC a anulação da execução, o que fez nos termos e com os seguintes fundamentos (com alguma síntese feita por este TRL):
O 1.º executado faleceu em 06/11/2015, no estado de solteiro; como seus únicos e universais herdeiros, seus filhos: AMEM maior, solteiro; e MLM e MAM, ambas menores; o executado adquiriu o imóvel no dia 14/04/2009; após o falecimento do executado, continuaram os herdeiros a efectuar o pagamento do crédito à C, conforme conjunto de recibos que se juntam como doc.3; tendo ficado a residir no imóvel uma sobrinha do executado e os filhos do executado quando visitam Portugal ai ficam instalados; após reunião junto da C realizada durante Nov/2019, entre a representante dos herdeiros menores (mãe) foi-lhe transmitido que deveriam continuar a efectuar o pagamento da prestação mensal referente ao crédito bancário e apenas depois de liquidado o empréstimo se poderia fazer a escritura de partilha do imóvel; assim, fizeram os herdeiros; até ao passado dia 19/10/2021 os herdeiros do executado falecido não tinham conhecimento da existência da presente execução; nunca foram notificados/citados para intervir nos autos nem tão pouco receberam notificações/citações endereçadas ao falecido; tais factos consubstanciam fundamento para a invocação, que pode ser feita a todo o tempo, dos fundamentos previsto no artigo 696/e do CPC; pelo que vêm os herdeiros requerer que se declare a anulação da venda realizada no âmbito dos presentes autos, ordenando de imediato que sejam sustados todos os termos da execução uma vez que existe uma ordem de despejo para ser cumprida até ao final do presente mês; tal efectivação desse despejo significaria não só a violação do direito de propriedade dos herdeiros do executado como representaria uma tragédia familiar; foi ainda violado o direito de remição nos termos do disposto no art. 842 e seguintes do CPC dos descendentes do executado; o reclamante tem legitimidade, está em tempo, nos termos do disposto no artigo 851 do CPC para requer a presente anulação.
Juntou 11 recibos de 11/10/2011, 13/08/2021, 09/06/2021, 11/05/2021, 13/04/2021, 12/01/2021, 03/06/2020, de 08/05/2020, de 17/04/2020, de 10/03/2020, de 14/02/2020, de depósito de 350€ na conta ... do 1.º executado, no total de 3850€. Juntou habilitação de escritura notarial de habilitação de herdeiros (só os três filhos).
A exequente não contestou o incidente (apesar de notificada para o efeito – registos no processo electrónico de 01/04/2021).
A 15/07/2023, foi proferida decisão a julgar procedente o incidente de nulidade e declarada nula a citação edital efectuada ao executado/habilitado AMEM, bem como os actos posteriores à mesma,
nomeadamente a venda judicial realizada nos autos, devendo o Sr. AE, de imediato, proceder à devolução do montante liquidado pelo adquirente, e comunicar à CRP.
A 20/05/2024 é junto aos autos [de execução] o a/r da carta enviada ao executado habilitado filho AMEM da citação para a execução e para a penhora do imóvel efectuada a 16/04/20254.
A 06/06/2024, AMEM, na qualidade de executado habilitado, deduziu embargos de executado alegando, entre o mais, o seguinte (na parte que importa):
O seu pai foi vítima de doença perlongada, tendo dado entrada no Hospital Universitário da Genebra em data que não se consegue precisar onde veio a falecer; no dia 01/01/2013 entrou em vigor o DL 227/2012, de 25/10, instituindo o chamado plano de acção para o risco de incumprimento – PARI, e veio regulamentar o procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento – PERSI”, o qual é aplicável aos 2 contratos objecto dos autos nos termos do disposto no artigo 2/1-a-b-c-d; atento o disposto nos artigos 12 a 21 do citado diploma, resulta a obrigatoriedade do exequente enquanto instituição de crédito, implementar o PARI e iniciar o PERSI. Nos termos do disposto nos artigos 13 e 21 do regime daquele DL, o exequente tinha a obrigação de, no prazo máximo de 15 dias após o vencimento da obrigação de informar os 2 executados/iniciais, e, posteriormente de os integrar no PERSI, “entre o 31.º dia e o 60.º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação em causa.” E no âmbito de tal procedimento, apresentar uma ou mais propostas de regularização da situação adequada à sua capacidade financeira para reembolsar o capital, designadamente através de renegociação das condições do contrato ou da sua consolidação com outros contratos de crédito – art. 15. Estando obrigado a informar o fiador, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 21/3. Conforme resulta do art. 18/1-a-b, entre a data de integração dos executados e fiadores no PERSI e a extinção deste procedimento, a exequente estava impedida de intentar acções judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito. A exequente não integrou os 2 executados iniciais no PERSI, que nem sequer implementou, o que sucedeu igualmente com os 2 executados
[sic]
que nunca interpelou ou contactou nesse sentido. Pelo que era-lhe vedada a interposição da execução e por isso o requerimento executivo devia ter sido indeferido liminarmente: art. 726/2-b do CPC, pois a falta de inclusão do executado no PERSI e a sua comunicação ao fiador, constitui uma “excepção dilatória insuprível inominada por falta de condição objectiva de procedibilidade”, de conhecimento oficioso: neste sentido, os acórdãos do STJ de 13/04/2021, proc.
1311/19.7T8ENTB.E1.S1
, de 19/05/2020, proc.
6023/15.8T8OER-A.L1.S1
, e 19/05/2020, proc.
4701/16.3T8MAI-A.P1.S2
. Sendo as supra-referidas disposições legais têm natureza imperativa conforme firmado pelo TRC
[sic]
: […] normas imperativas, uma ordem pública de protecção do cliente/devedor/consumidor em situação de mora no cumprimento, visto como parte frágil na relação e, por isso, carecido de especial protecção, deixando a cargo da contraparte (uma entidade de crédito) especiais deveres de informação, esclarecimento e protecção.” Resultando, de forma indubitável que a violação de tais normas, como efectivamente sucedeu, acarreta a nulidade insanável, nos termos do disposto no artigo 294 do CC. Estando em tempo, requer ao tribunal se digne apreciar a invocada excepção de conhecimento oficioso.
Por outro lado, verifica-se a falta de resolução do contrato de mútuo; claro que perante o incumprimento do contrato pelo consumidor, por falta de pagamento das prestações, assiste ao credor o direito à resolução do contrato; mas isso só depois de verificar-se o incumprimento definitivo do contrato, o qual apenas ocorre quando preenchidas as condições estabelecidas no art. 20/1-a-b do DL 133/2009 de 02/06, o que não aconteceu no caso concreto. Ora, se a execução é instaurada, sem que se mostrem preenchidas estas condições, tal implica a verificação de mais uma excepção dilatória inominada ou atípica, que conduzirá à absolvição dos executados da instância executiva, excepção esta de conhecimento oficioso.
Ainda, a verdade é que a falta de resolução do contrato de mútuo acarreta uma consequência para o exequente – o seguro de vida subscrito obrigatoriamente na data da celebração do contrato encontra-se válido. Seguro de vida que prevê que em caso de morte o valor de empréstimo ainda por liquidar é amortizado. Assim como prevê que no caso de situação comprovada de incapacidade do tomador, nomeadamente por doença também existe previsão de amortização de crédito ou suspensão de pagamentos. O contrato foi solicitado ao Banco e este não o cedeu aos herdeiros, pelo que se requer que seja ordenada a junção aos autos de todos os documentos subscritos pelo executado inicial e que fazem parte integrante do contrato de mútuo celebrado, tais como, os seguros inerentes subscritos. Como se comprovará o executado mutuário deixou de pagar as prestações por impossibilidade involuntária e que uma vez dado conhecimento ao exequente, acarreta da parte deste o accionamento do seguro de vida. Coisa, que o exequente não fez, convenientemente, quando a ex-companheira do falecido deu conhecimento do seu internamento na Suíça.
Por fim, cumpre informar que se encontra depositada na conta bancária titulada pelo falecido executado, na qual eram debitadas as prestações referentes ao contrato de mútuo, a quantia de 17.365,98€, conforme declaração da C que se junta como doc.3. Ora, não conseguimos apurar desde quando tais quantias se encontram depositadas, mas sabemos que se destinavam ao pagamento das prestações do mútuo e é importante esclarecer a data em que tal quantia foi depositada, mas o banco negou a informação ao herdeiro.
Não podemos deixar de relembrar as várias nulidades já verificadas nos autos desde o início do processo, tendo inclusive conduzido a anulação da venda judicial do imóvel realizada.
A actual exequente contestou impugnando o alegado pelo executado habilitado e excepcionando; alega para o efeito, em suma, o seguinte:
Da alegada falta de interpelação/resolução do contrato: A C interpelou o mutuário para pagamento das prestações vencidas, conforme doc. 1 que se junta e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, não tendo procedido à sua regularização, pelo que se encontra legitimada a cobrança do contrato vencido. Para além do disposto no artigo 781 do Código Civil que prevê o vencimento antecipado por falta de pagamento de prestações, também o contrato executado contém essa previsão nos casos de incumprimento contratual, nos termos da cláusula 14.ª do documento complementar anexo à escritura, que prevê o vencimento antecipado nos casos de propositura contra a parte devedora de qualquer execução, oneração do imóvel e diminuição das garantias do crédito.
Nos termos do disposto no artigo 2.º/1-a do DL 133/2009, de 02/06, estão excluídas do seu âmbito de aplicação, as operações relativas a contratos de crédito garantidos por hipoteca sobre coisa imóvel, que corresponde à operação executada nos presentes autos. Pelo que não procede todo o invocado pelo embargante ao abrigo do supracitado DL
No caso, estamos perante a inexigibilidade de integração em PERSI, não se verificando a invocada excepção dilatória inominada: nos termos do disposto no artigo 17/2-a do DL 227/12, o PERSI pode ser extinto pela instituição de crédito se existir penhora a favor de terceiros sobre bens do devedor. Ora, à data do incumprimento e da instauração da presente execução, encontravam-se registadas penhoras a favor de terceiros sobre o prédio objecto de garantia. Pelo que, não se vislumbra pertinência num procedimento, cujo fundamento para a sua extinção se encontrava, à partida, verificado. O facto de à data do incumprimento do contrato em apreço correrem termos execuções movidas por terceiros, a favor das quais foram registadas penhoras sobre o imóvel garantia do contrato torna inviável a possibilidade de regularização ou reestruturação do crédito. A este propósito diz-nos o ac. do TRE [de 08/11/2018], proc.
246/16.0T8MMN-A.E1
“Se à partida se sabe que procedimento a iniciar vai ser extinto pelo facto de já existir penhora a favor de terceiro, sobre os bens do devedor, não faz sentido, até, atento o principio de limitação dos actos, a realização de actos inúteis, não devendo a não integração no PERSI, no caso em apreço, ser obstáculo à instauração da presente acção executiva no que concerne ao incumprimento do contrato de mútuo (…)”. Sendo que. essas execuções também representam uma diminuição da garantia, o que determina a perda do benefício do prazo, nos termos do disposto no artigo 780 do CC. Não se concebe a tentativa de regularização de um crédito vencido, com a implementação do PERSI, quando se verifica o incumprimento do mesmo por razões diversas da mora. Além disso, existem outras situações que, embora concorrendo com uma situação de mora do cliente bancário, se podem sobrepor à mesma, seja no sentido de excluírem a aplicação do PERSI, seja no sentido de extinguir o PERSI que tenha sido iniciado. Tais situações correspondem às previstas no art. 17/2 do DL. No mesmo sentido, o ac. do TRC de 13/12/2022, proc.
2314/20.4T8ACB-A.C1
. Invoca ainda uma decisão do Juízo de Execução do Porto - Juiz 7, de 12/06/2024, proc. 5823/21.4T8PRT [que junta e que segue os outros dois].
Assim, não se mostrando preenchidos os pressupostos para a aplicação do regime PERSI, improcede também a alegada falta de integração neste procedimento.
Da alegada existência de contrato de seguro de vida válido: De acordo com a informação facultada pelo banco cedente, o seguro de vida subscrito na Fidelidade aquando da contratação do empréstimo encontra-se cancelado desde o início da subscrição por falta de pagamento. Também os herdeiros não comunicaram o óbito, nem apresentaram qualquer documentação para efeitos de accionamento de eventual seguro de vida. Nem o embargante fez qualquer prova da sua existência e validade, conforme lhe competia, o que, de todo o modo, nunca seria possível, face a informação dada pela entidade cedente.
O alegado seguro de vida foi subscrito pelo mutuário e por entidade terceira, não tendo a ora exequente conhecimento dos seus termos, pelo que se impugna especificamente os artigos 46 e 47 dos embargos. Tal como não são do conhecimento pessoal da exequente os factos alegados pelo embargante quanto à situação de saúde do mutuário e as diligências que terá alegadamente encetado para fazer prova da mesma, designadamente, nos artigos 3, 4 e 49, pelo que se impugnam. Sendo certo que não foi comunicado à ora exequente o alegado internamento do mutuário, pelo que impugna o artigo 50 dos embargos. Por último, a exequente desconhece a proveniência e/ou finalidade de qualquer/quaisquer quantias que se encontrem depositadas na conta do mutuário, pelo que se impugnam os artigos 53 e 54 dos embargos.
Juntou 3 folhas impressas, duas com alegadas cartas dirigidas ao 1.º executado a pedir a regularização do incumprimento em 30/10/2015 e 25/01/2016 (onde não se fazem referências ao vencimento antecipado de toda a dívida) e uma a informar da remessa para o tribunal em 18/04/2016 (para cobrança da totalidade da dívida), sem juntar outra prova do envio de tais cartas.
A 13/09/2024, depois da contestação, a actual exequente juntou uma demonstração da nota de débito do valor peticionado, emitida pela C a 29/06/2016, onde consta, entre o mais, que a última prestação paga foi em 13/10/2015 e da qual resulta que, por exemplo, a prestação 85, de 14/05/2016, teria o valor total de: 339,48€ [= 109,26€ de amortização, 215,05€ de juros, 0,40€ de juros de mora, e 14,77€ de comissões] e, a de 10/05/2015 foi paga com 256,96€ [100,79€ da capital, 156,17€ de juros].
A 25/10/2024 foi proferido despacho saneador sentença, julgando verificada a excepção dilatória inominada de omissão da obrigação de integração do executado/opoente no PERSI, e decidindo absolver o executado/opoente da instância executiva, ordenando-se a extinção da execução.
A sentença recorrida tem a seguinte fundamentação:
Como consta do preâmbulo do DL 2
27
/2012, visa o mesmo “promover a adequada tutela dos interesses dos consumidores em incumprimento e a actuação célere das instituições de crédito na procura de medidas que contribuam para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários.”
A par de um plano de acção para o risco de incumprimento (PARI), traduzido em procedimentos e medidas de acompanhamento da execução dos contratos de crédito, foi definido um procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), “no âmbito do qual as instituições de crédito devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objectivos e necessidades do consumidor”.
Este diploma – que foi desenvolvido através do
Aviso do Banco de Portugal 17/2012, de 17/12
[TRL: está revogado pelo Aviso do Banco de Portugal n.º 7/2021] - introduziu, assim, na nossa ordem jurídica, princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e regularização das situações de falta de cumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários (susceptíveis de serem qualificados como consumidores para efeitos da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei 24/96, de 31/07) e criar uma rede extrajudicial de apoio a esses clientes no âmbito da regularização dessas situações (vide Portaria 2/2013, de 02/01).
Entrou o mesmo em vigor em 01/01/2013 – artigo 40 -, ou seja, em momento muito anterior àquele no qual ocorreu o incumprimento por parte do executado/opoente.
Considerando que o imóvel que serve de garantia ao contrato de mútuo com hipoteca celebrado entre a requerente e os executados corresponde à casa de morada de família dos primeiros (habitação própria e permanente), do qual faz parte o ora opoente – facto que resulta da escritura, foi alegado pelo executado/opoente e não impugnado pelo exequente –, dúvidas inexistem quanto a estar o mesmo abrangido pelo regime consignado no citado DL – como prescreve o respectivo artigo 2.º.
Porque pertinente, veja-se que o artigo 4.º determina:
1 – No cumprimento das disposições do presente diploma, as instituições de crédito devem proceder com diligência e lealdade, adoptando as medidas adequadas à prevenção do incumprimento de contratos de crédito e, nos casos em que se registe o incumprimento das obrigações decorrentes desses contratos, envidando os esforços necessários para a regularização das situações de incumprimento em causa. 2 – Os clientes bancários devem gerir as suas obrigações de crédito de forma responsável e, com observância do princípio da boa fé, alertar atempadamente as instituições de crédito para o eventual risco de incumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito e colaborar com estas na procura de soluções extrajudiciais para o cumprimento dessas obrigações” (As entidades bancárias deverão, pois, criar mecanismos de vigilância e, ocorrendo uma situação de incumprimento, terão de actuar no sentido de viabilizar a regularização dessa mesma situação […])
Nestes casos, ocorrendo, por parte dos clientes bancários, mora ou incumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, as instituições têm obrigatoriamente de os integrar no PERSI – artigos 12 e 14 -, por forma a viabilizar um mútuo acordo tendente a evitar o recurso à via judicial (privilegiando-se, assim, a renegociação do contrato).
O início do procedimento é imposto obrigatoriamente desde que se verifique uma de três situações: a) manutenção do incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito, entre o 31.º e 60.º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação em causa - artigo 14/1; b) solicitação por parte do cliente bancário em mora, da sua integração no PERSI, considerando-se que essa integração ocorre na data em que a instituição de crédito recebe a referida comunicação – artigo 14/1-a; e c) constituição em mora por parte do cliente bancário que antecipadamente alertou para o risco de incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito, considerando-se a integração no PERSI na data do referido incumprimento – artigo 14/2-b.
Tal procedimento desenrola-se em três fases distintas: a) uma fase inicial – artigo 14; b) uma fase de avaliação e proposta – artigo 15; e c) uma fase de negociação – artigo 16.º.
O mencionado objectivo em alcançar um consenso extrajudicial sai reforçado pelo próprio teor do artigo 18/1, segundo o qual,
“No período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de: a) Resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento; b) Intentar acções judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito; (…)”.
Ou seja, a acção judicial apenas poderá ser intentada pela instituição de crédito contra o cliente bancário, devedor mutuário, após a extinção do PERSI.
Tendo, no caso, a exequente intentado execução contra o executado/mutuário sem que previamente tenha cumprido com a obrigação de o integrar no PERSI (nos moldes decorrentes do DL 227/2012) - como, aliás, o próprio exequente reconhece não ter sucedido –, estar-se-á, perante uma violação, por omissão, de normas imperativas, a saber, os artigos 14 e 18/1-b.
Tal omissão, como tem vindo a ser decidido pela jurisprudência, configura uma excepção dilatória inominada, insuprível, de conhecimento oficioso, que impede
ab initio
a instauração de acções judiciais e que, como tal, terá de acarretar a absolvição da instância do executado - artigos 576/2, 577 e 578, todos do CPC (atendendo a que tal excepção não se reporta ao mérito da acção, uma vez cumprido o PERSI, a instituição de crédito poderá propor nova acção contra o cliente bancário, caso não seja alcançado qualquer acordo para regularização da dívida ou o mesmo se revele incapaz de cumprir com as respectivas obrigações.)
Como se defendeu no ac. do TRE de 31/01/2019, proc.
832/17.0T8MMN-A.E1
, “existe uma situação de um crédito que não é exigível, por incumprimento de norma imperativa, a qual constitui, do ponto de vista adjectivo – com repercussões igualmente no domínio substantivo -, uma condição objectiva de procedibilidade.” (Para além do acórdão citado, no mesmo sentido, vide: do TRE, acórdãos de 08/03/2018, proc.
2267/15.0T8ENT-A.E1
, e de 28/06/2018, proc.
2791/17.0T8STB-C.E1
; do TRC, acórdãos de 19/06/2018, proc.
29358/16.8YIPRT.C1
e de 15/12/2020, proc.
6971/18.3T8CBR-A/B.C1
; do TRL, acórdãos de 07/06/2018, proc.
144/13.9TCFUN-A.L1-2
, e de 08/10/2020, proc.
14235/15.8T8LRS-A.L1-6
; e do STJ, acórdão de 13/04/2021, proc.
1311/19.7T8ENT-B.E1.S1
.
Também o TRP, no seu acórdão proferido em 14/01/2020, proc.
4097/14.8TBMTS.P1
, defendeu: “E o certo é que a execução não poderia ter sido instaurada sem ter ocorrido previamente o dito PERSI. Do prisma do demandante este era uma condição de acção. Mais precisamente, uma específica condição de acção cuja inexistência conduz à carência da acção, causa de extinção do processo sem julgamento de mérito. Do ponto de vista da defesa do demandado é uma excepção dilatória, isto é, uma circunstância que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância. Uma excepção de cunho eminentemente processual visto o moderno entendimento da autonomia entre o processo e o direito material. Ela opera no plano da eficácia: não intenta extinguir a pretensão exercida mas apenas neutralizá-la ou retardá-la.”
Será, porém, que o facto de, sobre o imóvel, existirem anteriores penhoras registadas a favor de terceiros “dispensava” a integração dos executados no PERSI, como defende o exequente?
Relevante para a apreciação desta questão é a existência de penhoras registadas anteriormente.
Nessa medida, numa primeira leitura, sempre se poderia questionar a utilidade de a exequente integrar os executados (máxime, o ora opoente) no PERSI, uma vez que o artigo 17/2 refere expressamente que “A instituição de crédito pode, por sua iniciativa, extinguir o PERSI sempre que: a) Seja realizada penhora ou decretado arresto a favor de terceiros sobre bens do devedor; (…)”.
Isto é, poder-se-ia defender que, existindo execução movida por terceiro, com registo de penhora anterior ao início do incumprimento pelos executados, mesmo que estes tivessem sido submetidos ao PERSI e o contrato sido regularizado ou reestruturado, nunca a venda judicial do imóvel poderia ser impedida naquela execução.
Porém, para além de a extinção do PERSI com esse fundamento não ser automática (sendo apenas uma mera faculdade à qual a instituição de crédito pode ou não recorrer), importa igualmente não olvidar que, na presente situação, estamos perante execuções fiscais e, estando em causa a casa de morada de família dos executados/mutuários (habitação própria e permanente), há que atender ao prescrito pelo artigo 244/1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo DL 433/99, de 26/10, na redacção conferida pela Lei 13/2016, de 23/05 (esta lei visou precisamente proteger a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, sendo de aplicação imediata (inclusive àqueles processos que se encontravam pendentes à data da sua entrada em vigor)), cujo teor é o seguinte: “Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efectivamente afecto a esse fim.” Tal salvaguarda apenas não é aplicável na situação a que alude o n.º 2 do mesmo artigo (e que não se verifica no caso em análise).
Mais acrescenta o artigo 4/1 da mesma Lei 13/2016 que “Quando haja lugar a penhora ou execução de hipoteca, o executado é constituído depositário do bem, não havendo obrigação de entregar o imóvel até que a sua venda seja concretizada nos termos em que é legalmente admissível”.
Tanto assim é que, embora as penhoras se mostrem registadas desde 2011, ainda não se concretizou, nos processos a que respeitam, a venda do imóvel.
Tais execuções não traduzem, na prática, uma expectável venda judicial do imóvel que garante o cumprimento dos contratos, razão pela qual, ao contrário do defendido pela exequente, não será possível afirmar que uma restruturação ou regularização do contrato de mútuo não constituiria impedimento a que venda fosse concretizada na execução movida por terceiro.
Nessa medida, a existência das mencionadas penhoras não constituía qualquer entrave a que a exequente (ou a cedente) integrasse o executado, quer o primitivo, quer os seus herdeiros ora habilitados no PERSI.
Aqui chegados, resta concluir, reforçando o que atrás se deixou dito, no sentido de que a grande maioria da jurisprudência dos tribunais superiores tem entendido que:
“a preterição de sujeição do devedor ao (PERSI), por parte da instituição de crédito credora, traduz-se no incumprimento de norma imperativa e que, em termos adjectivos, consiste numa condição objectiva de procedibilidade da pretensão, que deve [ser] regulada, com as adaptações que se revelem necessárias, pelo regime jurídico das excepções dilatórias.
As excepções dilatórias, nominadas ou inominadas, salvo as excepções contempladas no artigo 578 do CPC, são de conhecimento oficioso. A preterição de sujeição do devedor ao PERSI é de conhecimento oficioso; como tal a sua invocação pela parte, ou a sua apreciação oficiosa, não está sujeita ao prazo concedido para apresentação da defesa, pelo que, atento o estatuído no artigo 573/2 in fine do CPC, não está abrangida pelo princípio da preclusão.” – cf. ac. do TRL de 29/09/2020, proc.
1827/18.2T8ALM-B.L1-7
.
Em idêntico sentido pronunciaram-se os ac. do TRE de 1/05/2016, proc.
715/16.1T8ENT-B.E1
; de 16/05/2019, proc.
4474/16.9T8ENT-A.E1
; do TRP de 09/05/2019, proc.
21609/18.0T8PRT-A.P1
; e do TRL, de 21/11/2019, proc. 22063/17.0T8SNT-A.L1 [não publicado: TRL], que recaiu sobre sentença proferida neste juízo de execução.
Mais se pode concluir que a pendência de execuções, com registo de penhora a favor da Fazenda Nacional em data anterior àquela em que deixaram de ser cumpridas as obrigações resultantes do contrato de crédito, não dispensa a integração dos devedores no PERSI, quando tais penhoras incidam sobre o imóvel que seja casa de morada de família (habitação própria e permanente) dos clientes bancários – ver, neste sentido, o ac. do TRL de 12/10/2021, proc.
4270/21.2T8SNT-B.L1-1
; no mesmo sentido se decidiu no processo 4947/21.2T8SNT-juiz 2 deste tribunal.
A actual exequente diz o seguinte contra o que antecede:
C\ O tribunal decidiu partindo do pressuposto que o imóvel constitui casa morada de família do executado, o que não procede.
D\ Refere a decisão sob recurso que “Considerando que o imóvel que serve de garantia ao contrato de mútuo com hipoteca celebrado entre a requerente e os executados corresponde à casa de morada de família dos primeiros (habitação própria e permanente), do qual faz parte o ora opoente – facto que resulta da escritura, foi alegado pelo executado/opoente e não impugnado pelo exequente –, dúvidas inexistem quanto a estar o mesmo abrangido pelo regime consignado no citado DL – como prescreve o respectivo artigo 2.º.”
E\ Referência com a qual a ora exequente não se conforma e que impugna.
F\ Não existe prova de que o imóvel constitua a casa morada de família do 1.º executado devedor no processo de execução fiscal.
G\ Pelo contrário, a mesma nunca poderá constituir casa morada de família do 1.º executado uma vez que o mesmo faleceu em 2015, na Suíça, conforme assento de óbito junto com os embargos.
H\ Nem sequer existe prova que o executado habilitado e embargante, fizesse parte do agregado familiar do 1.º executado.
I\ Aliás, conforme resulta de documentação junta aos autos – Ref. Citius 25404955, de 08/04/2024 - quem reside no imóvel é uma tia do embargante.
J\ Ora, considerando o exposto supra, não podem considerar-se preenchidos,
in casu
, os pressupostos de aplicabilidade do disposto no artigo 244.º/2 do CPPT.
K\ Pelo menos, desde 2015, que o imóvel não constitui habitação própria e permanente do devedor [1.º executado], não sendo a residente do imóvel - tia do Embargante - membro integrante do agregado familiar do devedor.
L\ O tribunal
a quo
faz ainda menção, a propósito do imóvel ser casa de morada de família dos executados que: “resulta da escritura, foi alegado pelo executado/opoente e não impugnado pelo exequente”.
M\ Ora, a escritura foi celebrada em 2009, ainda antes do registo de penhora fiscal, em 2011, pelo que a informação constante na data da escritura não pode fazer prova da sua residência à data do incumprimento contratual e instauração da execução.
N\ Mais, a decisão não refere suporte documental e/ou qualquer outra prova, quanto à suposta alegação pelo executado e suposta falta de impugnação pelo exequente, que permita à ora exequente sindicar tal afirmação, inclusive, se se verifica o efeito cominatório que o tribunal refere.
O\ A exequente não verifica qualquer menção a tal facto no requerimento de oposição à execução, sendo que, de todo o modo, o mesmo foi contestado.
P\ Por outro, uma das penhoras registadas sobre o imóvel não provém de um processo de execução fiscal, mas sim de execução de terceiro.
Q\ Pelo que a argumentação aduzida pelo tribunal
a quo
não procede, já que não se verifica a inviabilidade da venda nestes casos.
R\ Uma vez não verificada a inviabilidade da venda – quer quanto ao processo de execução fiscal, quer quanto à execução civil – cumpre referir e reiterar os argumentos de que,
in casu
, estamos perante a inexigibilidade de integração em PERSI, não se verificando a invocada excepção dilatória inominada.
S\ Nos termos do disposto no artigo 17/2-a do DL 227/12, o PERSI pode ser extinto pela instituição de crédito se existir penhora a favor de terceiros sobre bens do devedor.
T\ Ora, à data do incumprimento e da instauração da presente execução, encontravam-se registadas penhoras a favor de terceiros sobre o prédio objecto de garantia – Ap. 5, de 26/09/2011 (penhora fiscal) e Ap. 6, de 26/06/2015 (penhora cível) – conforme certidão predial junta com o requerimento executivo.
U\ Pelo que, não se vislumbra pertinência num procedimento, cujo fundamento para a sua extinção se encontrava, à partida, verificado.
V\ O DL em apreço, visa promover a prevenção do incumprimento e a regularização de situações de incumprimento dos clientes bancários com as instituições de crédito.
W\ O facto de à data do incumprimento do contrato em apreço correrem termos execuções movidas por terceiros, a favor das quais foram registadas penhoras sobre o imóvel garantia do contrato torna inviável a possibilidade de regularização ou reestruturação do crédito.
X\ A este propósito veja-se o já citado ac. do TRE, proc. 246/16.0T8MMN-A.E1 […].
Y\ Sendo que essas execuções também representam uma diminuição da garantia, o que determina a perda do benefício do prazo, nos termos do disposto no artigo 780 do CC.
Z\ Não se justificando a implementação de um procedimento para tentativa de regularização da mora, quando existem, desde logo, circunstâncias que determinam o incumprimento contratual.
AA\ De facto, a propositura contra a parte devedora de qualquer execução e a oneração do imóvel, constituem causas de incumprimento e vencimento imediato do contrato, nos termos da cláusula 14 do documento complementar anexo à escritura.
BB\ Ora, não se concebe a tentativa de regularização de um crédito vencido, com a implementação do PERSI, quando se verifica o incumprimento do mesmo por razões diversas da mora – a este propósito veja-se a decisão dos juízos de execução do Porto, junta com a contestação.
CC\ Assim, não se mostrando preenchidos os pressupostos para a aplicação do regime PERSI, improcede a alegada falta de integração neste procedimento.
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Questão que importa decidir:
se o pressuposto da integração do executado no PERSI era inexigível ou dispensável.
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Factos:
no saneador-sentença recorrido foi transcrito o que consta do requerimento executivo (com erros de datas vindos do RE, já assinaladas) e descritas as duas penhoras referidas (com erros que já foram referidos). Neste acórdão serão tidos em conta as ocorrências processuais, os factos que inequivocamente resultam como provados acima (como os referidos a documentos ou a peças do processo electrónico) e os factos que irão sendo assinalados expressamente para o efeito (quando fosse possível a dúvida).
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Apreciação:
Qualificação do contrato
O âmbito de aplicação do DL
227/2012
abrange, entre outros, os seguintes contratos de crédito celebrados com clientes bancários: a) Contratos de crédito para a aquisição […] de […] habitação própria permanente […] b) Contratos de crédito garantidos por hipoteca sobre bem imóvel; […] (art. 2/1 na redacção original do DL, a aplicável ao caso dada a data do RE).
Sendo que, para efeitos do diploma, entende-se por: […] ´Cliente bancário’ o consumidor, na acepção dada pelo n.º 1 do artigo 2.º da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela
Lei 24/96
, de 31/07, alterada pelo
DL 67/2003
, de 08/04, que intervenha como mutuário em contrato de crédito.
Ou seja, considera-se “consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.”
No caso dos autos não há dúvida de que o contrato que serve de título à execução, é um contrato de crédito, garantido por hipoteca, para aquisição de habitação própria permanente [tudo como consta do RE e do título junto com ele, nos termos reproduzidos acima – que são factos provados], pelo que naturalmente se destina a uso não profissional, e o crédito foi concedido por um banco que visa com a sua actividade obter benefícios.
Portanto, o caso cai, de pleno, na previsão normativa do âmbito de aplicação do DL 227/2012.
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A sentença recorrida, chega à mesma conclusão dizendo que o contrato foi celebrado entre a C e os executados e que a casa corresponde à casa de morada de família dos executados, da qual faz parte o executado que deduziu os embargos.
Com base nesta argumentação, a actual exequente (que sucedeu à C), vem dizer que a sentença incorre em erro, (i) porque o executado já tinha morrido (em 2015, antes de ser intentada a execução) e tinha morrido na Suíça (pelo que não vivia no imóvel hipotecado); (ii) porque o embargante é um executado habilitado que não se prova que fizesse parte do agregado do executado primitivo; (iii) porque quem vive (em Abril de 2024) é uma tia do executado habilitado; e (iv) a tia do executado habilitado não faz parte do agregado do executado primitivo.
*
Data em que a condição de admissibilidade tem de estar verificada
Está em causa, no caso, a aplicação de uma condição de admissibilidade de acção (que resulta do art. 18 do DL 227/2012, nos termos referidos na sentença recorrida e que não estão postos em causa no caso dos autos), no caso uma execução.
Tratando-se de admitir ou não que seja requerida uma execução, a data que conta para o efeito é a data em que ela foi requerida, em 2016, e com os dados que constavam do requerimento executivo.
Assim, por exemplo, o acórdão do TRE de 27/01/2022, proc.
1373/13.0TBBNV.E1
: Não permitindo a lei o recurso aos tribunais sem que, antes, se mostrem cumpridas as formalidades de PERSI (nos termos do artigo 18/1 do DL 227/2012), no momento em que a instituição de crédito opta por ir a tribunal exigir o cumprimento coercivo da dívida tem concomitantemente de fazer a prova de ter cumprido tais formalidades.; e o acórdão do STJ de 19/05/2020, proc.
6023/15.8T8OER-A.L1.S1
: no texto do acórdão esclarece-se: A demonstração de que a entidade financeira/exequente integrou o consumidor/executado no PERSI ou lhe proporcionou a oportunidade para tal, nos termos dos artigos 12º e seguintes do DL 227/2012, constitui um pressuposto específico da acção executiva para pagamento de quantia certa (quando a obrigação exequenda respeita a financiamento de uma entidade financeira a um consumidor), equiparável à existência do título executivo, cuja ausência constitui uma excepção dilatória inominada (dado o carácter não taxativo do art. 577 do CPC) de conhecimento oficioso (como se extrai da regra estabelecida no art. 578), que nos termos do art. 576/2 e art.726/2-b do CPC determina a absolvição da instância executiva. […] Ao mover a presente acção executiva, a exequente tinha o ónus de ter logo demonstrado que havia cumprido as obrigações impostas pelo regime do PERSI, demonstrando, assim, que o seu acesso à via judicial não se encontrava bloqueado pelo art.18. Ora, da factualidade provada nada consta que permita concluir que a exequente tenha cumprido as obrigações que lhe eram impostas pelo DL 227/2012. No ponto 14 das conclusões das suas alegações de revista a exequente/ recorrente afirma que: “deu pleno cumprimento ao PERSI, tendo integrado e informado a executada da existência do referido procedimento, o qual veio a ser extinto por falta de colaboração daquela, nos termos legais”. A ser assim, quando moveu a acção executiva, devia a exequente ter dado cumprimento ao ónus que resulta do art.18 do DL 227/2012, de demonstrar que, por ter integrado a devedora no PERSI (sem obter sucesso na regularização extrajudicial da dívida), lhe assistia o direito de mover a acção executiva. Não o tendo feito, são-lhe assacáveis as consequências da inobservância desse ónus, como decorre do princípio da auto-responsabilidade das partes. Não assiste, assim, razão à recorrente quando alega que o cumprimento do regime do PERSI era uma questão nova, e uma questão que tinha necessariamente de ter sido suscitada pela executada no requerimento dos embargos. Conclui-se, pelo exposto, que o acórdão recorrido não merece censura, pois fez a correcta aplicação do direito ao caso concreto, ao absolver a executada da instância.
Assim sendo, embora a actual exequente tenha razão quanto ao erro do tribunal na fundamentação aduzida [i\ o contrato não foi celebrado entre a C e os executados, ii\ não há prova de que o imóvel corresponda à casa de morada de família dos executados (supõe-se que a decisão recorrida se está a referir aos executados habilitados)
,
iii\ nem de que o executado que deduziu os embargos seja parte desse agregado], não tem razão quanto ao essencial, que é a questão de saber se a decisão está errada; ora, a decisão está certa, como se demonstrou acima, pois que a situação dos autos, embora por razões diferentes das aduzidas na sentença, cai, de pleno, no âmbito de aplicação do DL 227/2012.
*
Da alegada inexigibilidade do PERSI
A sentença recorrida rebate a argumentação da actual exequente – qual seja, a de que não lhe era exigível integrar o executado no PERSI porque o imóvel estava penhorado já antes do incumprimento do contrato; ou seja, de que não havia pertinência no PERSI, porque essas penhoras possibilitavam a extinção do PERSI; isto é, essas penhoras tornavam inviável a possibilidade da regularização ou restruturação do crédito; ou ainda, porque essas penhoras representavam, para os efeitos do art. 780 do CC (perda do benefício do prazo), uma diminuição da garantia; isto é, as situações do art. 17/2 do DL sobrepõem-se à situação de mora, seja no sentido de excluir a aplicação do PERSI, seja no sentido do o extinguirem – começando por dizer que a extinção do PERSI com esse fundamento não é automática.
O que está certo e é suficiente para afastar a suposta inexigibilidade do PERSI no caso.
Veja-se:
O PERSI está previsto num DL que institui um regime imperativo e por isso não está na disponibilidade da vontade das instituições de crédito dispensarem-se de o cumprir. As disposições imperativas da lei são para serem cumpridas e as instituições de crédito não estão acima da lei.
O facto de a lei dar às instituições de crédito o poder de extinguir o PERSI em dadas circunstâncias, depois de o terem iniciado nos termos legais, não é nada de comparável ao poder de não o iniciarem. Se a lei, tendo conhecimento dessas circunstâncias, apensas previu o poder de extinguir e não também o poder de não iniciar, não pode deixar de o ter feito conscientemente – o que aliás se presume: art. 9/3 do CC – e, por isso, não se pode invocar o poder de extinguir para se construir um poder de não iniciar.
Por outro lado, como lembra a sentença recorrida, verificadas as circunstâncias que atribuem a possibilidade de extinguir, essa extinção não é automática, já que da verificação das circunstâncias decorre o poder, não o efeito de extinguir o PERSI.
Para além disso, o poder só pode ser exercido nos termos legais que resultam do conjunto do sistema jurídico, não sendo, por isso, um poder arbitrário, mas antes sujeito a determinadas condições. Desde logo, como devia ser evidente, não é qualquer penhora, isto é, uma penhora por qualquer valor, que pode dar o poder de extinguir o PERSI.
Como lembra o Prof. Manuel Januário da Costa Gomes: “Há naturalmente que fazer intervir o princípio da proporcionalidade: não será – não poderá ser – qualquer penhora ou arresto de quaisquer bens que pode legitimar a medida” (pág. 971 do estudo sobre Renegociação e modificação unilateral de contratos de crédito, publicado em Estudos de direito do consumo, vol. II, do IDC/CIDP/Almedina, 2023; sobre o princípio da proporcionalidade, lembra, entre o mais, o estudo de Brandão Proença, Da “justa medida” (proporcionalidade) no Titulo I (das obrigações em geral) do Livro II do CC, Estudos de direito das obrigações, da UCE/Porto, 2018 págs. 133-171).
Sendo que o mesmo Prof. vai ainda fazendo referência, para as várias hipóteses do art. 17/2 do DL 227/2012, por exemplo, à inexigibilidade como requisito para a resolução nos contratos duradouros e ao princípio da boa fé, concluindo, “numa análise geral das várias situações”, que “constituem, em rigor, causas de resolução com base numa justa causa – objectiva ou subjectiva – cuja verificação torne inexigível a subsistência do PERSI […]” (mesmo estudo, páginas 971-972), naturalmente sujeitas a controlo judicial, pelo que o respectivo poder nunca poderia ser exercido arbitrariamente e nunca pode ser equiparado a uma causa de extinção automática do PERSI.
Em suma, a existência de penhoras – e muito menos de quaisquer penhoras, por quaisquer montantes, em quaisquer circunstâncias não apuradas - anteriores ao incumprimento não é nunca, só por si, fonte suficiente do poder de extinguir um PERSI, nem, muito menos, uma causa de inexigibilidade de iniciar o PERSI ou de exclusão do PERSI, nem nunca podem dar lugar a um juízo de falta de pertinência do PERSI, ou de falta de viabilidade do mesmo. E, como decorre do que antecede, uma causa de perda do benefício do prazo, para os efeitos do art. 780 do CC, não está prevista na lei como causa de inexigibilidade de PERSI (por isso não deixa de ter razão, para evitar o efeito que se quer tirar da cláusula que se segue, o ac. do TRL de 08/02/2024, proc.
901/23.8T8ALM-B.L1-8
, quando diz que II - Uma cláusula contratual inserta no contrato de mútuo que preveja a resolução do mesmo, em caso de penhora do imóvel hipotecado, colide com as normas imperativas do PERSI e, como tal, é ferida de nulidade, nos termos do artº 294 do Código Civil. III - O princípio da autonomia privada tem como limite a imperatividade da lei).
Aliás, sendo a maior parte das situações previstas no art. 17/2 do DL 227/2012, em termos materiais, indícios de degradação da capacidade financeira do cliente bancário para cumprir as obrigações decorrentes desses contratos de crédito, que as instituições de crédito devem, com diligência e lealdade e de boa fé, tentar identificar para prevenir o incumprimento de contratos de crédito e, quando este aconteça, integrar o cliente num PERSI (artigos 4/1 e 9/1 do DL), é contraditório com o conjunto do regime jurídico em causa, para além de um contra-senso, entendê-las como causas de inexigibilidade, de exclusão, de dispensa, de falta de pertinência ou de viabilidade do PERSI.
*
Aquilo que vária jurisprudência dos tribunais da relação e a jurisprudência do STJ tem dito sobre a situações paralelas que potencialmente podem ser vistas como preenchendo outras previsões do art. 17/2 do DL 227/2012, e que, por isso, segundo a actual exequente seriam causas de inexigibilidade do PERSI, vai no sentido do que antecede:
No ac. do TRE de 16/01/2025, proc.
792/23.9T8OLH.E1
, disse-se que: 2 – A viabilidade da regularização da situação de incumprimento, em função da gravidade da situação financeira do devedor, não constitui um pressuposto da integração do devedor em PERSI. A sua ponderação apenas tem lugar no decurso deste procedimento. 3 – Um mero juízo, formulado pela instituição de crédito, de que será improvável que o devedor venha a receber notificações no âmbito de um PERSI, não constitui fundamento de dispensa da instauração deste procedimento.
No ac. do STJ de 10/04/2024, proc.
10897/18.2T8SNT-A.L1.S1
, lembrou-se que I – A circunstância de o cliente bancário e mutuário devedor ter optado pelo regime extraordinário de protecção de devedores de crédito à habitação em situação económica muito difícil aprovado pela Lei 58/2012, de 9/11, quando foi informado pela instituição financeira credora da possibilidade de beneficiar do PERSI, não lhe retira os direitos resultantes da integração no regime do DL 227/2012, de 25/10, enquanto procedimento extrajudicial prévio à instauração da acção (declarativa ou executiva), na medida em que não se trata de regimes que se substituam entre si (ou um ou o outro), salvaguardando-se a sua autonomia de aplicação e funcionamento. II – Com efeito, existindo um primeiro procedimento junto da entidade financeira, nos termos do regime extraordinário de protecção de devedores de crédito à habitação em situação económica muito difícil, que se gorou, a lei não impede que os clientes bancários, no que respeita aos contratos tipificados no artigo 2.º do DL 227/2012, possam ainda assim beneficiar de nova oportunidade de restruturação da sua dívida no âmbito do PERSI. IIII - Não o vedando a lei – como efectivamente não veda – não é de considerar manifestamente abusivo, à luz do regime genérico previsto no artigo 334 do CC, que o mutuário/executado procure, nestas circunstâncias, uma nova oportunidade de renegociação da dívida que o sistema lhe confere, acontecendo que na situação
sub judice
os embargantes não fizeram sequer qualquer referência à sua integração no PERSI (não a invocando como forma de extinção da execução contra si pendente), tendo sido o tribunal de 1.ª instância, durante a própria audiência de julgamento e face à imperatividade da aplicação da legislação referente ao PERSI, que decidiu oficiosamente exigir à exequente a demonstração da integração no mesmo, o que esta não realizou.
Este acórdão revogou o do TRL de 14/09/2023, proc.
10897/18.2T8SNT-A.L1
, que dizia, seguindo o mesmo tipo de fundamentação de alguns outros, que 1. A circunstância de não ter sido formalmente integrado no PERSI não retirou qualquer direito ao embargante uma vez que a acção executiva só foi instaurada depois de gorada a integração no REX. 2. Invocar a não aplicação do PERSI para concluir que o Banco estava impedido de intentar acção judicial para satisfação do seu crédito quando foi o próprio embargante que rejeitou a aplicação do procedimento e após negociações que duraram cerca de um ano ao abrigo do REX, configura um abuso de direito por parte do apelante.»
O ac. do STJ de 09/01/2024, proc.
2764/18.6T8STB-B.E1.S1
lembra que, para que não fique frustrado o regime do PERSI, não pode o reclamante de créditos, enquanto único credor no processo de reclamação, executar o imóvel, pois mantém-se a força de caso julgado da extinção da execução em relação ao credor Banco, por inobservância dos requisitos do PERSI.
Na mesma linha, o ac. do TRC de 10/07/2024, proc.
3223/09.3TBVIS-E.C1
, esclarece I - O credor reclamante que pediu a renovação da instância executiva, para obter a cobrança do seu crédito, nos termos do artigo 850 do CPC, está obrigado a cumprir o PERSI – DL 227/2012 –, sob pena se lhe ser oposta a excepção dilatória inominada resultante da sua inobservância. II - A circunstância do executado ter sido notificado do pedido de renovação da instância executiva, por parte do credor reclamante, e ter dito que não se opunha ao prosseguimento da execução, não preclude a invocação e posterior decisão relativamente à mencionada excepção.
No ac. do TRL de 10/10/2023, proc.
2375/22.1T8FNC-A.L1-7
, esclareceu-se que V – A instituição bancária não pode prevalecer-se contra o fiador do vencimento automático antecipado da obrigação garantida decorrente da insolvência do devedor afiançado, que originou uma situação de incumprimento definitivo, que, por via disso, tornaria desnecessário o cumprimento do regime do PERSI, precisamente porque não diligenciou, como devia, junto do fiador, pela sua interpelação, com vista a tentar a regularização da situação de mora.
No ac. do STJ de 02/02/2023, proc.
1141/21.6T8LLE-B.E1.S1
, que revogou um outro, do TRL, que tinha decidido em sentido contrário, esclareceu-se que: IX. A doação, pelo devedor/mutuário, sem autorização ou conhecimento da entidade mutuante, do imóvel sobre que incidem as hipotecas a favor da mutuante, não constitui uma causa de extinção imediata do PERSI – não desonera os devedores do pagamento da dívida, nem desonera a instituição bancária das suas obrigações de integração dos executados em PERSI, e de informação/comunicação da extinção do mesmo. X. Aliás, sendo a garantia do crédito uma hipoteca, que, porque goza de sequela (
ut
art. 686 do CC), acompanha a coisa em todas as suas vicissitudes, não pode dizer-se, sem mais, que esteja em perigo a garantia, pois o credor pode fazer-se pagar pelo valor da coisa onde quer que ela se encontre. A que acresce que a lei não admite a extinção automática do PERSI.
No ac. do STJ de 15/12/2022, proc.
3364/18.6T8CBR-A.C2.S1
, que, numa revista que teve que ser admitida por via excepcional, revogou um outro, do TRC, que tinha decidido em sentido contrário, disse-se que deve ser respondida negativamente a questão de saber se o vencimento antecipado da dívida quanto a um dos co-obrigados e a venda de imóveis hipotecados em sede de processo de insolvência prejudica a possibilidade de o outro co-devedor (neste caso, o ex-cônjuge, aqui executado) se opor à execução da dívida, por incumprimento pelo banco exequente do PERSI, bem como no artigo 27 do DL 74-A/2017. IV. Concluindo-se, assim, que o vencimento antecipado da dívida e a determinação da venda de imóveis hipotecados em sede de processo de insolvência não impede que se extraia, quanto ao ora executado embargante, a consequência legal decorrente da não observância, por parte do banco exequente, dos deveres de comunicação no âmbito do PERSI, que é a extinção da instância de execução.
No ac. do STJ de 16/11/2021, proc.
21827/17.9T8SNT-A.L1.L1.S1
, que também revogou um outro de sentido contrário do TRL, o facto de o cliente-bancário ter alienado o imóvel hipotecado, garantia do mútuo, não evitou que o STJ tenha considerado que a C não podia instaurar execução contra ele sem antes extinguir o PERSI; e esclareceu que a alienação do imóvel sobre o qual incide a garantia prestada não desonera a instituição bancária das suas obrigações de integração dos executados em PERSI e de o extinguir nos termos da lei [a exequente dizia que a alienação do imóvel, pelos executados, sem autorização e conhecimento da C, constitui uma causa de extinção imediata do PERSI, ao abrigo do artigo 17/2e) do DL 227/2012, por colocar em perigo a garantia, pelo que não estava impedida de intentar a acção executiva], nem paralisa o direito de os executados solicitarem a integração em PERSI e tentarem negociar as melhores condições para o pagamento da dívida; e, para além disso, lembrou que a aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária, só a ele sendo lícito recorrer na falta de uma norma jurídica que resolva, de forma adequada, a questão em causa e que a invocação pelo cliente-bancário das normas jurídicas do regime jurídico do PERSI a seu favor não constitui um abuso do direito mesmo naquele caso (em que alienou o imóvel hipotecado garantia do mútuo).
*
Por outro lado, o mesmo tipo de fundamentações ou tentativas
a posteriori
de justificar a falta de integração dos devedores bancários no PERSI, tem levado, em muitos casos, que se recuse um novo PERSI com o simples pretexto de que os executados já beneficiaram de um outro.
Fundamentações que são afastadas, por exemplo, pelos acórdãos do STJ de 09/12/2021, proc.
4734/18.5T8MAI-A.P1.S1
; do STJ de 02/02/2023, proc.
1141/21.6T8LLE-B.E1.S1
, do STJ de 28/01/2025, proc.
3200/22.9T8OER-A.L1.S1
; do TRC de 23/04/2024, proc.
1820/22.0T8ACB-A.C1
; do TRP de 04/05/2022, proc.
3751/20.0T8MAI.P1
; e do TRP de 07/03/2022, proc.
121/20.3T8VLG-A.P1
.
*
Por fim, é o mesmo tipo de fundamentações utilizado pela actual exequente que serve de base à invocação do abuso de direito, e que também a jurisprudência das relações e do STJ tem tido que afastar, lembrando que a válvula de escape da cláusula geral do abuso de direito tem rigorosos pressupostos específicos que têm de se verificar para que possa ser aplicada.
Assim, por exemplo:
- do STJ de 02/02/2023, proc.
1141/21.6T8LLE-B.E1.S1
: XI. A aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária, só a ele sendo lícito recorrer na falta de uma norma jurídica que resolva, de forma adequada, a questão em causa, exigindo-se a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo, sob pena de se tratar de uma remissão genérica e subjectiva para a materialidade da situação.
- do STJ de 19/11/2021, proc.
21827/17.9T8SNT-A.L1.L1.S1
: I - A aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária, só a ele sendo lícito recorrer na falta de uma norma jurídica que resolva, de forma adequada, a questão em causa. II - Dada a integração automática do cliente-devedor em mora no PERSI (e o dever do Banco proceder à mesma), tem de se considerar que os executados estão abrangidos por este regime de regularização da dívida, que só se extingue em situações tipificadas na lei (artigo 17/1-2 do DL 227/2012) e mediante comunicação aos clientes bancários-devedores, nos termos do artigo 17/3 do diploma que criou o PERSI. III – Não constando da matéria de facto que tenha ocorrido a extinção do PERSI, nem que a exequente tenha comunicado aos executados, nos termos da lei, essa eventual extinção, conclui-se que o Banco exequente instaurou a execução durante o período de vigência do PERSI, numa fase em que estava impedido de o fazer, por força da lei (artigo 18/1-b do DL 227/2012). IV – Neste contexto, e na falta de factos indiciadores de má-fé, a invocação pelo cliente-bancário das normas jurídicas do regime jurídico do PERSI a seu favor não constitui um abuso do direito, mesmo que tal tenha sucedido após a alienação do imóvel, garantia do mútuo. V – Não se pode esquecer, como se salienta no Preâmbulo do diploma legal que prevê o PERSI, que estamos perante uma relação jurídica caracterizada por uma acentuada assimetria informativa, em que a lei inculca uma especial responsabilidade nas instituições bancárias e considera o cliente bancário-consumidor como a parte mais fraca
[o TRL tinha revogado a sentença e julgado os embargos improcedentes com base no abuso de direito, entendendo que uma resposta da exequente, nos termos da qual comunica as condições em que aceita analisar a reestruturação das dívidas, era uma proposta de regularização adequada à situação financeira dos clientes e/ou a avaliar propostas alternativas dos próprios clientes (artigos 15 e 16º), dado que a integração no PERSI é automática e, por isso, os devedores deviam ter apresentado contra proposta para chegar a acordo e não o tinham feito, chegando
[sic]
à situação de alienarem o imóvel. Este comportamento pode ser entendido como recusa da proposta apresentadas]
.
- do STJ de 12/01/2021, proc.
2689/19.8T8GMR-B.G1.S1
: “o abuso de direito não significa uma desaplicação de normas com base numa remissão genérica para sentimentos de justiça. Os tribunais exigem a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo, de acordo com modelos experimentados ao longo da história pelo labor da jurisprudência”.
- do STJ de 19/05/2020, proc.
6023/15.8T8OER-A.L1.S1
: Por outro lado, alegou a recorrente, também a título subsidiário, que a executada teria incorrido em abuso de direito quando invocou o incumprimento do PERSI pela exequente. Pelo exposto nos pontos anteriores, é manifesto que não existiu qualquer abuso de direito da executada, pois esta limitou-se a clamar pela aplicação do regime do PERSI, que legalmente se impõe à exequente e que esta tinha o ónus de demonstrar que cumpriu para poder mover a acção executiva.
- do TRL de 14/07/2022, proc.
6804/14.0T8ALM-C.L1-2
: IX - Não se mostrando comprovado que tenha ocorrido a integração dos executados em PERSI, nos termos em que a isso a mutuante se encontra vinculada, a decisão recorrida, que indeferiu liminarmente o incidente suscitado pelos executados – invocando a sua não integração em PERSI - com fundamento em que a invocação dos executados era abusiva, não poderá, pois, subsistir, por a mesma contender com o regime jurídico vertido no DL 227/2012, que determinava a (prévia) inclusão dos executados no PERSI.
- do TRP de 04/05/2022, proc.
3751/20.0T8MAI.P1
: V - A arguição da referida excepção, com invocação, pelos devedores das normas jurídicas do regime jurídico do PERSI a seu favor, não constitui abuso do direito, antes o normal e legítimo exercício de direitos conferidos por lei em salvaguarda da parte mais fraca na relação contratual.
- do TRC de 08/03/2022, proc.
824/20.2T8ANS.C1
: IV - Na falta de factos indiciadores de má-fé, a invocação pelo devedor das normas jurídicas do regime jurídico do PERSI a seu favor não constitui um abuso do direito.
- do TRG de 10/02/2022, proc.
5978/19.8T8VNF-A.G1
: 3 – As normas que consagram a obrigatoriedade das comunicações da integração do cliente bancário no PERSI e da extinção deste têm carácter imperativo […]. 4 – Não constitui abuso do direito a invocação por consumidores clientes bancários de tais normas no âmbito da acção executiva contra si instaurada, numa situação em que “deixaram de cumprir as suas obrigações” em 30/12/2018, emergentes de contrato de crédito celebrado em 05/06/2002 para aquisição de habitação própria permanente, aquando da interpelação para pagamento (em 02/07/2019) deviam 1.514,03€, a resolução foi operada por comunicação de 11/09/2019, a execução foi instaurada em 25/09/2019 e em 21/04/2021 a dívida cifrava-se apenas em 994,59€, quando no período do incumprimento fizeram vários pagamentos de montantes em dívida e a instituição de crédito, para além da postura activa de interpelação para pagamento e de diligência para recuperar o crédito, limitou-se a esperar que fosse “convocada” pelos clientes bancários em dificuldades e a “analisar” as propostas que estes lhe fizeram chegar, sem integrar os consumidores no PERSI e cumprir as respectivas obrigações.
- do TRL de 21/05/2020, proc.
5585/15.4T8FNC-A.L2-2
: IV - Não configura abuso do direito a invocação pelos executados dessa excepção se, em face do factos provados, não se descortina nenhuma razão objectiva para que a exequente pudesse confiar que, caso instaurasse (como fez, em 01/10/2015) uma acção executiva contra os mesmos fundada no incumprimento, verificado a partir de 01/05/2015, dos contratos de mútuo (celebrados em 28/12/2012), eles se iriam abster de invocar na sede própria as garantias de que beneficiavam por força de lei imperativa, tão pouco se podendo considerar que estivessem manifestamente a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
*
Da inexistência de abuso de direito
Ora, no caso dos autos nada disto está minimamente indiciado, estando antes indiciado o contrário:
Para além do que dirá mais à frente, não há de facto qualquer indício, nos autos, de que os executados habilitados sejam devedores voluntários de má fé que se estejam a aproveitar da situação: são três filhos do executado, duas delas com menos de 6 anos à data do óbito do 1.º executado, um deles maior provavelmente há pouco tempo (tendo em conta a idade do 1.º executado), que não há razão para dizer que, à data em que se verificou o incumprimento, não estivessem a viver no imóvel hipotecado; por outro lado, há notícia de que a dívida exequenda continuou a ser paga (o facto está provado pela nota junta pela própria exequente depois da contestação dos embargos): a actual exequente juntou certidão emitida pela C de que tinha sido paga até Out2015; e ainda: foram pelo menos pagos, ou entregues para pagamento, mais 3850€ em 2020 e 2021 (como provam os 11 talões juntos com o requerimento de arguição de nulidade de 03/11/2021, não impugnados pela actual exequente); e ainda: o executado habilitado maior juntou certidão da existência de um depósito de 17.365,98€ em 22/05/2024 na conta da C através da qual eram feitas as amortizações (foi junta certidão emitida pela C não impugnada pela actual exequente apesar de estar colocada, pela cessão do crédito, no lugar da anterior e não poder afirmar desconhecer a realidade dos factos que aquela certifica, tanto mais que vai dando informações que aquela lhe deu já no decurso da execução: art. 574/3 do CPC): a 350€ por mês, temos o valor de 50 prestações, mais de quase 4 anos de pagamentos assegurados; a 250€ são 69,5 prestações, cerca de 6 anos, a somar a tudo o resto. E ainda: o executado habilitado diz que continuaram a ser feitos pagamentos e a C a aceitá-los, o que a actual exequente não pôs em causa e não podia, como já afirmado, impugnar, dizendo que ignorava.
Aliás, perante tudo isto (pagamento de prestações posteriores à data que constava do RE, existência de fundos na conta utilizada para pagamento; afirmação, não impugnada devidamente, de amortizações ainda aceites mais de 9 anos depois de requerida a execução), a questão do abuso de direito (corolário lógico dos juízos de inexigibilidade que a actual exequente pretende fazer) pode colocar-se do lado activo da execução, como se vê, por exemplo, do ac. do TRP de 01/07/2021, proc.
3523/18.1T8MAI-A.P1
: I - A execução, para além da obrigação exequenda, que o título executivo inquestionavelmente afirma, pressupõe o incumprimento o qual, se não resultar do titulo executivo em si mesmo, deverá constar do requerimento executivo e documentos para que remete, em termos que permitam ter como exigível e liquida a obrigação exequenda. II - Deve considerar-se que não é exigível e líquida a obrigação exequenda documentada em nota de débito quando o embargante alega e prova pagamentos efectuados, o exequente não prova por sua vez que, conforme alegava havia aplicado tais valores à amortização de prestações vencidas anteriormente. III - A actuação do banco exequente, que após negociações com vista à reestruturação do débito, aceita os pagamentos feitos pelos executados para amortização das prestações do empréstimo ao longo do período que decorreu entre 2012 e a instauração da execução em 2018, sem comunicar aos executados qualquer incumprimento, e, remetendo mensalmente ao executado devedor extractos bancários, com os valores da amortização do empréstimo que assim iam sendo efectuadas é adequada a gerar nestes a crença e confiança de que o contrato estava regularizado, levando a levou a que estes adaptassem o seu comportamento à situação de confiança assim gerada. IV - Neste contexto a autuação da credora, ao considerar ter havido incumprimento do contrato de mútuo para, com fundamento na cláusula contratual considerar exigíveis todas as prestações vincendas, exigindo o seu pagamento em execução instaurada apenas em 2018, consubstancia um claro
venire contra factum proprium
e simultaneamente uma situação de
supressio
como tal ilegítima nos termos do art. 334 do CC.
*
A sentença acrescenta àquela argumentação – que como se viu está certa – a seguinte: ainda se tem de ter em conta que as duas penhoras resultam de processos de execução fiscal; para, de seguida, a sentença concluir, com base no regime da protecção da casa de morada da família previsto na legislação fiscal, que tais execuções não traduzem uma expectável venda judicial do imóvel, pelo que não será possível fazer o juízo de inviabilidade do PERSI.
A sentença incorre, aqui, no lapso assinalado pela actual exequente, já que uma das penhoras não resulta de uma execução fiscal.
Mas, como resulta do que antecede, este acrescento de argumentação não era necessário e não impede que o resultado antes alcançado se mantenha (isto é, que a existência das duas penhoras anteriores ao incumprimento, não são causa de inexigibilidade do PERSI, nem são fundamento de qualquer juízo de inviabilidade do PERSI).
*
Da forma do processo e da falta de interpelação
Posto isto e indo para além da argumentação explícita da actual exequente, vê-se que ela invoca implicitamente o facto de o executado já estar morto à data do requerimento de execução.
Isto em nada altera o que antecede, muito antes pelo contrário, pela multiplicidade de questões que levanta, como se passa a ver.
Antes de mais, e como já se disse, a execução deve ser apreciada de acordo com os elementos constantes do requerimento executivo; pelo que nada tendo sido dito pela exequente primitiva em tal requerimento, a questão não se colocava e, por isso, não podia evitar o indeferimento liminar do RE (art. 726/2b do CPC), ou a rejeição da execução logo que o juiz se apercebesse disso (art. 734 do CPC).
O tribunal não pôde indeferir liminarmente o RE porque a C – a exequente primitiva – lhe retirou esse poder por ter requerido a execução em processo sumário (o que aliás é mais um fundamento para se considerar indiciada a má-fé da exequente inicial e não do executado habilitado embargante).
O que a C não o podia ter feito, por força do art. 550/1 e 2-c,
a contrario
do CPC [1 - O processo comum para pagamento de quantia certa é ordinário ou sumário. 2 - Emprega-se o processo sumário nas execuções baseadas: […] c) Em título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida, garantida por hipoteca ou penhor], já que a C não tinha alegado que tinha interpelado o executado para que tivesse ocorrido o vencimento (antecipado) da obrigação (art. 781 do CC, na interpretação estabilizada doutrinária e jurisprudencialmente de que a hipótese de perda de benefício do prazo aqui prevista apenas “concede ao credor a possibilidade de exigir antecipadamente o cumprimento de todas as prestações e, deste modo, constituir o devedor em mora quanto às prestações vencidas. Se o credor quiser usar o benefício que a lei lhe concede terá de manifestar a sua vontade, interpelando o devedor para cumprir antecipadamente todas as prestações vincendas” – Ana Afonso, anotação ao artigo 781 do CC, no Comentário ao CC, Direito das Obrigações, Das obrigações em geral, UCP/FD/UCE, 2018, página 1071, e qualquer cláusula contratual com o mesmo tipo de redacção desta norma tem de ser lida do mesmo modo; sendo que no caso a cláusula contratual 14/1 [facto provado] apenas dava à C o poder de considerar vencida toda a dívida [“poderá considerar”] e exigir o seu imediato pagamento nalguma das eventuais hipóteses habituais, não a dispensando de interpelar o devedor: sem a interpelação, o devedor não pode saber que a C utilizou o poder de considerar vencida toda a dívida e que tem de pagar toda a dívida com antecipação do prazo).
Ora, o que antecede implica mais um fundamento para que a rejeição da execução (art. 734 do CPC), já que a interpelação posterior à penhora não podia substituir a interpelação para vencimento. Neste sentido, o ac. do STJ de 09/03/2023, proc.
3541/19.2T8ALM-A.L1.S1
, e toda a jurisprudência e doutrina aí citada), que explica que IV - No que respeita a execuções sob a forma de processo sumário, tendo já sido efectuada a penhora e a subsequente citação, razões de simplificação procedimental e de economia de meios não são susceptíveis de permitir que a interpelação opere com a citação: o devedor/executado não pode ter-se por interpelado com a respectiva citação. Como a execução sob a forma de processo sumário prossegue sem citação, não pode considerar-se que esta serve de interpelação, de um lado e, de outro, como é a interpelação que provoca o vencimento da dívida, a dívida não está nem fica vencida.
No mesmo sentido, veja-se o ac. do TRC de 20/02/2024,
2548/19.4T8VIS-A.C1
(com voto de vencido): III - Relativamente a obrigações que possam ser liquidadas em duas ou mais prestações, na falta de convenção em contrário, a falta de pagamento de uma não implica o vencimento automático das demais, mas apenas as torna imediatamente exigíveis, por isso se vencendo em função da interpelação do credor, a qual pode ser extra judicial ou judicial, podendo, neste caso, decorrer de citação para a execução. IV – Na situação dos autos, em que a exequente utilizou execução para pagamento de quantia certa na forma sumária e se limitou a referir no requerimento executivo ter procedido à interpelação extra judicial do executado, o que não se provou, provou-se, no entanto, que este foi citado há cerca de 10 anos numa outra execução que tinha por objecto as obrigações que estão em causa na presente execução, e que a mesma foi sustada e depois suspensa para negociações entre as partes, no âmbito das quais o executado procedeu a vários pagamentos. V- Cabia à exequente, ao interpor a presente execução, ter feito a demonstração da ocorrência desses factos, valendo-se do incidente previsto no art 715 CPC. VI – A falta de demonstração e prova da exigibilidade das obrigações através desse meio pode ter comprometido o direito de defesa do executado, mas, de todo o modo, resultou em prejuízo das suas garantias, por se ter feito iniciar execução sob a forma de processo sumário sem a comprovação de que as obrigações a executar se mostravam vencidas, como é pressuposto desse processo, nos termos do art 550/2-c. VI – Deste modo, seja por inexigibilidade das obrigações exequendas, seja por insuficiência do título executivo, há que julgar extinta a execução.
*
Do seguro
Ao requerer a execução em Jul/2016, a C disse que o mutuário tinha deixado de pagar as amortizações do empréstimo em Maio de 2015. Portanto, desde tal data a C estava obrigada a integrar o mutuário no PERSI. E nessa altura, como se sabe, o executado estava vivo. Sendo que não foi alegada qualquer razão para que a C não tivesse dado cumprimento à exigência legal.
Para integrar o mutuário no PERSI, a C estava obrigada a promover as diligências necessárias à implementação do PERSI (art. 12 do DL 227/2012).
Ao fazer tais diligências, com lealdade e de boa-fé, a C poderia dar-se conta (a ser verdade, o que é provável, visto que o executado veio a falecer menos de 6 meses depois), de que, como diz o embargante, o mutuário estava doente e internado num Hospital e que era por isso, eventualmente, que não estava a pagar as amortizações bancárias.
Ora, isto coloca outra questão, qual seja, a da existência de seguro, que está pressuposta/provada pelo contrato que serve de título à execução. Ora, havendo seguro, a C estava obrigada a, de boa fé, accionar o mesmo.
E continuava obrigada a fazê-lo no caso de o mutuário morrer, não podendo, por isso, exigir o pagamento da dívida do executado ou dos herdeiros sem prova de que o seguro não cobria a incapacidade ou a morte do executado.
Isto porque I – A exequente tinha o ónus de exigir da seguradora o pagamento da dívida, dentro dos limites do capital seguro; II - A inobservância do ónus de exigir da seguradora o pagamento da dívida, dentro dos limites do capital seguro, determina a inexigibilidade da obrigação exequenda. (São conclusões do ac. do STJ de 04/07/2024, proc.
781/12.9TBSXL-A.L1.S1
).
Acórdão que, como é por ele referido, vem na sequência dos acórdãos do STJ de 26/06/2014, proc.
3220/07.3TBGDM-A.P1.S1
, de 24/11/2016, proc.
7531/12.8TBMTS-A.P1.S1
, e de 07/11/2019, proc.
4118/17.2T8GMR-A.G1.S2
, dizendo o primeiro que: “[a]ge em abuso do direito, por violação manifestamente excessiva do princípio da boa fé, o banco que, num mútuo para habitação, garantido com seguro de vida do mutuário a seu favor, hipoteca, fiança com a cláusula de ‘principais pagadores’ e seguro do imóvel, sendo informado da morte do devedor, move execução ao mesmo mutuário – com habilitação posterior dos herdeiros – e aos fiadores, invocando falta de pagamento das prestações, sem se dirigir primeiro àquela seguradora”. Ora, “[c]oncluindo-se pelo abuso de direito, o crédito exequendo surge como inexigível”, como diz o último. Tal como o segundo: II -Tendo o banco celebrado com os executados um contrato de mútuo garantido por hipoteca e com um seguro de vida que impôs aos executados como condição do mútuo, seguro esse de que é beneficiário o Banco EE/ AA e tendo sido informado do sinistro coberto pelo referido contrato de seguro, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, quando em vez de accionar directamente a seguradora com vista à satisfação do seu crédito, exige antes dos executados o pagamento do crédito numa execução pela via da reclamação de créditos, o que configura o exercício ilegítimo do direito enquadrável na previsão do art. 334 do C Civil.
Ora, estando a actual exequente a fazer juízes de pertinência e de viabilidade do PERSI que dispensassem a C de o iniciar, na lógica de que era impertinente e inviável, a existência de um seguro de vida a favor do 1.º executado, que tornava inexigível o crédito exequendo em relação aos executados, põe em causa a necessidade da própria execução e por isso a possibilidade de fazer aqueles juízos de pertinência e de inviabilidade.
No entanto há que ter em conta que a prova da subsistência do contrato de seguro (no momento da doença e do falecimento do 1.º executado), por ter estado a ser feito o pagamento do prémio do mesmo, dizendo respeito à existência da obrigação de cobrir o risco, cabe ao embargante e tendo sido negada pela actual exequente, ainda tinha de ser feita (ou seja, estava dependente de prova a produzir que, aliás, foi requerida pelo embargante).
*
Dos herdeiros
O facto de o mutuário ter entretanto falecido não era obstáculo ao cumprimento, embora tardio, da exigência legal: assim como a C teria de averiguar quem eram os herdeiros do mutuário para se poder cobrar da dívida da herança (o que fez mas só depois de ter instaurado a execução contra um devedor falecido há mais de meio ano), assim teria de aplicar o PERSI àqueles que viessem a ser colocados, como herdeiros, no lugar do mutuário. Se há uma dívida que pode ser cobrada, aquele que a pode pagar, no lugar do executado, também há-de ter o direito de a regularizar para retomar o contrato.
Pelo que, quando se apura, já no âmbito da execução, o falecimento do executado antes de ser instaurado a execução e a existência de herdeiros do executado que podem ser colocados no lugar do executado, deve continuar a exigir-se da aplicação do PERSI, que tinha de ter por alvo os herdeiros, e, por isso, justifica-se a extinção da execução por falta do preenchimento do pressuposto respectivo.
Aliás, nestas situações, por norma, ainda mais se justifica a aplicação do PERSI: a situação de um progenitor que morre numa situação de incumprimento das amortizações de um imóvel adquirido para habitação permanente, e pode ter deixado filhos menores a viver no imóvel que poderão vir a ter de abandonar, deve levar a que o credor bancário, se diligente, leal e de boa fé, faça as diligências necessárias à averiguação da situação e da possibilidade de a regularização. E lembre-se que o contrato é um contrato celebrado com um consumidor, independentemente de quem vier a nele ingressar por sucessão, porque “a qualificação como contrato de consumo é determinada no momento da celebração do contrato, cristalizando, e importando a sua sujeição a um determinado regime legal imperativo […]” (Sandra Passinhas,
Incumprimento do contrato de crédito à habitação, cessão de créditos e direitos do consumido, Revista de Direito Comercial
, 2021, pág. 107).
(no mesmo sentido da aplicação do PERSI aos herdeiros, veja-se, por exemplo, o ac. do TRP de 12/09/2024, proc.
6491/22.1T8MAI-A.P1
, embora com uma fundamentação não coincidente e com uma ressalva não fundamentada que não se acompanha: “Ainda que os executados (que adquiriram a posição de mutuários
mortis causa
) só respondam até ao valor das forças da herança do primitivo mutuário, beneficiam da protecção proporcionada pelo PERSI, quando tenham a qualidade de consumidores (tal como o falecido mutuário), ao menos quando a situação de incumprimento é ulterior à data da abertura da sucessão”; no mesmo sentido, sem a ressalva, o ac. do TRG de 10/07/2023, proc.
94253/20.0YIPRT.G1
; no ac. do TRL de 04/06/2024, proc. 1912/22.6T8LSB.L1-7, dá-se a sugestão de que no caso de herança jacente a situação seria diferente, mas não tem fundamentação para o efeito: “[…A]pesar de os réus não serem, por si, partes no contrato, já o são [no pressuposto de se provar a celebração daquele] na qualidade de herdeiros, em representação do falecido cliente bancário, ocupando a mesma posição que este – cf. art. 2024 do CC: os réus, mediante a sucessão, ingressaram na titularidade das relações jurídicas patrimoniais do seu pai e, portanto, passaram a ocupar no contrato invocado pela autora a mesma posição do
de cujus
, ou seja, passaram a ter a qualidade de clientes bancários, em representação do cliente falecido. Note-se que, no caso dos autos, não estamos perante uma herança jacente, enquanto património autónomo sem titular determinado, por não ter havido aceitação, mas sim perante uma herança indivisa, com titulares perfeitamente determinados que assumiram a qualidade de herdeiros”; que os próprios bancos aplicam o PERSI aos herdeiros, vê-se, por exemplo, na descrição do caso constante do ac. do TRE de 30/01/2025, proc.
2277/22.1T8ENT-A.E1
, tendo o acórdão aceite a extinção do PERSI que tinha sido aplicado aos herdeiros [o sumário não dá bem conta do que está em causa e tem um voto de vencido que não tem a ver com o que aqui importa]; na mesma linha da argumentação inicial, mas para uma questão análoga, veja-se, apenas para esta questão, ainda o ac. do TRP de 24/10/2023, proc.
24105/19.5T8PRT-B.P1
: I – Por força do disposto no art. 698/1 do CC o terceiro que vem a adquirir a coisa hipotecada tem o direito de opor ao credor todos os meios de defesa que o devedor tinha em relação ao crédito, sejam eles próprios ou do devedor. II – Por esse motivo, se o devedor relativamente ao crédito exequendo pode opor ao credor, como meio de defesa, a sua não integração no PERSI, o adquirente da coisa hipotecada, como executado/embargante, também poderá opor ao credor essa mesma não integração do devedor no PERSI.; contra, sem fundamentação que convença, no sentido de o PERSI não se aplicar quando está em causa uma herança jacente, veja-se a decisão singular do TRE de 08/05/2023, no proc.
2354/22.9T8ENT.E1
; mais ou menos no mesmo sentido, também sem fundamentação que convença, o ac. do TRL de 06/03/2025, proc.
18692/16.7T8SNT-C.L1-6
: “II- No caso dos autos, em que o devedor faleceu, facto que não era do conhecimento do credor à data do incumprimento, daí decorrendo que também desconhecia quem eram os seus herdeiros, o regime do PERSI não é de aplicar, seja por absoluta inutilidade (quanto ao devedor), seja por impossibilidade (quanto aos herdeiros, desde logo por desconhecimento do óbito por parte do credor, tendo tido dele conhecimento após a instauração da acção executiva), e, por conseguinte, o incumprimento do mesmo não se configura como obstativo ao prosseguimento da execução.”
*
Da cessão do crédito
Por último, à actual exequente – que não é nem se apresentou como uma instituição de crédito, nem como sociedade financeira, nem como uma sociedade de titularização de créditos - nunca poderia ser reconhecida legitimidade para prosseguir a execução, neste caso relativo a contrato de crédito para aquisição de habitação permanente com hipoteca, sem que estivesse comprovada a extinção do PERSI, por estar impossibilitada de permitir a reversão do incumprimento (da perda do benefício do prazo ou da resolução – embora a lei só fale na resolução, é evidente que também para a perda de benefício do prazo interessa a retoma: falando nas duas situações, veja-se o ac. do STJ de 29/10/2024, citado a seguir) o que decorre do que se segue:
O art. 18 do DL 227/2012 dispõe:
1 - No período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de:
[…]
c) Ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito;
[…]
2 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do número anterior, a instituição de crédito pode:
[…]
b) Ceder créditos para efeitos de titularização; ou
c) Ceder créditos ou transmitir a sua posição contratual a outra instituição de crédito.
[…]
4 - Antes de decorrido o prazo de 15 dias a contar da comunicação da extinção do PERSI, a instituição de crédito está impedida de praticar os actos previstos nos números anteriores, no caso de contratos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e em que a extinção do referido procedimento tenha por fundamento a alínea c) do n.º 1 ou as alíneas c), f) e g) do n.º 2 todas do artigo anterior.
E o art. artigo 28 do DL 74-A/2017 – em vigor desde 01/01/2018 (art. 47/1) – DL que aprova o regime dos contratos de crédito relativos a imóveis, nos termos do artigo seguinte, estabelecendo nomeadamente as regras aplicáveis ao crédito a consumidores garantido por hipoteca […] (art. 1/1) e que se aplica aos seguintes contratos de crédito, celebrados com consumidores: a) Contratos de crédito para a aquisição […] de habitação própria permanente […]; c) Contratos de crédito que, independentemente da finalidade, estejam garantidos por hipoteca […] (art. 2/1) – dispõe:
Retoma do contrato de crédito:
1 - O consumidor tem direito à retoma do contrato no prazo para a oposição à execução relativa a créditos à habitação abrangidos pelo presente decreto-lei ou até à venda executiva do imóvel sobre o qual incide a hipoteca, caso não tenha havido lugar a reclamação de créditos por outros credores, e desde que se verifique o pagamento das prestações vencidas e não pagas, bem como os juros de mora e as despesas em que o mutuante tenha incorrido, quando documentalmente justificadas.
2 - Caso o consumidor exerça o direito à retoma do contrato, considera-se sem efeito a sua resolução, mantendo-se o contrato de crédito em vigor nos exactos termos e condições iniciais, com eventuais alterações, não se verificando qualquer novação do contrato ou das garantias que asseguram o seu cumprimento.
[…]
Sendo este o regime que vale para grande parte das questões dos contratos celebrados ao abrigo do DL 349/98, como é o caso dos autos, entre elas as questões da retoma do contrato (como se retira de Rui Pinto Duarte, O novo regime do crédito imobiliário a consumidores, uma apresentação, Almedina, 2018, páginas 7-8, 16-17, 77 a 79, e de Sandra Passinhas, estudo citado, pág. 65).
Por fim, o art. 37 do DL 74-A/2017 dispõe: Fraude à lei:
1 - São nulas as situações criadas com o intuito fraudulento de evitar a aplicação do disposto no presente decreto-lei.
2 - Configuram, nomeadamente, casos de fraude à lei:
a) A transformação de contratos de crédito sujeitos ao regime do presente decreto-lei em contratos de crédito excluídos do âmbito da aplicação do mesmo;
[…]
Assim:
Ac. do TRE de 27/02/2025, proc.
1012/22.9T8ENT-B.E1
: Tratando-se de crédito à habitação abrangido pelo regime inserto no DL 74-A/2017, enquanto assistir ao devedor o direito à retoma do contrato de crédito, enferma de nulidade a respectiva cessão em favor de entidade que não seja instituição de crédito; Sendo nula a cessão do crédito, não resta outra sorte à habilitação do cessionário que não seja a improcedência.
Ac. do TRC de 28/01/2025, proc.
466/22.8T8SRE-A.C1
: Por força do disposto no artigo 37/2-a (Fraude à lei) do DL 74-A/2017, é nula a cessão do crédito à habitação efectuada para uma entidade não submetida à supervisão do Banco de Portugal, improcedendo, por isso, o pedido de habilitação formulado pela cessionária na pendência da execução.
Ac. do STJ de 14/11/2024, proc.
451/14.3TBMTA-C.L2.S1
: VI. Considerando que o legislador do DL 227/12 teve o cuidado de plasmar todo um conjunto de garantias de defesa aos clientes em situações de mora ou incumprimento,
maxime
no art. 18 (Garantias do Cliente bancário), estando o mutuário/devedor em situação de lhe ser aplicado o PERSI, a entidade bancária não pode ceder o crédito a terceiro (instituição não bancária) sem ter previamente cumprido as exigências decorrentes do regime ínsito no […] DL 227/2012 [estava em causa um crédito para aquisição de habitação - TRL]. VII. De outro modo, estaria encontrada uma via expedita para as instituições de crédito se subtraírem à obrigatória sujeição ao regime decorrente do DL 227/2012 (bastando que, em violação desse diploma legal, se abstivessem de integrar obrigatoriamente o cliente bancário no PERSI e cedessem o seu crédito a um terceiro que não é uma instituição de crédito, o que permitiria que este (cessionário) não ficasse sujeito às proibições ou impedimentos elencados no art. 18 e pudesse obter de imediato a satisfação do crédito cedido). VIII. O que representaria uma autêntica fraude à lei, pois era uma forma de deixar entrar pela janela o que o legislador proibiu que entrasse pela porta, frustrando-se completamente o objectivo prosseguido com a criação do PERSI.
Ac. do STJ de 29/10/2024, proc.
5920/22.9T8MAI-A.P1.S1
: Numa execução promovida por cessionário de um crédito originalmente concedido por instituição de crédito para aquisição, por consumidor, de habitação própria, sujeito ao regime do DL 74-A/2017, é nula a cessão de crédito que fundamenta o direito do exequente por este não estar em condições de permitir a retoma do contrato, a que se reporta o artigo 28 do DL 74-A/2017, quando ainda é possível o exercício deste direito, e o mesmo pressupõe a qualidade de instituição de crédito, que o exequente não tem.
Ac. do TRP de 18/03/2024, proc.
2003/17.7T8PRT-C.P1
: V - A retoma do contrato de crédito à habitação própria é um incidente, previsto em legislação avulsa, a poder ser deduzido na execução, até à venda do imóvel e na verificação dos pressupostos consagrados no art. 28 do DL 74-A/2017, cabendo aos executados que pretendam exercer o direito à retoma do contrato de crédito, com vista à extinção da execução, o ónus de alegar e comprovar (art. 342/1 do CC), que reúnem as condições impostas, designadamente, o, efectivo, pagamento das prestações vencidas e não pagas, bem como, os juros de mora e as despesas em que o mutuante tenha incorrido, quando documentalmente justificadas.
Ac. do TRC de 28/03/2023, proc.
2194/20.0T8SRE.C1
: I- A retoma do contrato de crédito à habitação própria é um incidente previsto em legislação avulsa, enxertado no processo executivo, que pode ou não ser deduzido mediante embargos à execução ou extrajudicialmente por acordo entre credor e devedor, até à venda do imóvel. II – A retoma do contrato de crédito à habitação própria acarreta a extinção da execução. III – Os direitos do devedor quanto à possibilidade de retoma do crédito, não podem ser postergados pelo facto de o credor ceder o seu crédito, a uma outra instituição de crédito. IV – O princípio do inquisitório não afasta a auto-responsabilidade das partes, quanto à obrigação de indicarem, nos momentos próprios, os meios de prova necessários à demonstração do que alegam.
Ac. do STJ de 02/02/2023, proc.
1141/21.6T8LLE-B.E1.S1
, com teor idêntico ao do ac. do STJ de 14/11/2024, proc.
451/14.3TBMTA-C.L2.S1
e também estava em causa um crédito para aquisição de habitação.
Ac. do TRP de 24/01/2023, proc.
7228/21.2T8PRT-A.P1
: I - O cumprimento prévio dos deveres impostos pelo regime do PERSI constitui um pressuposto específico da acção executiva, uma condição objectiva de procedibilidade, cuja ausência se traduz numa excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, insanável, que conduz à absolvição da instância. II - A exigência deste pressuposto não é afastada pela cessão do crédito [estava em causa um crédito para aquisição de habitação - TRL], ainda que para efeitos de titularização. III - Aceitar-se que a cessionária do crédito possa resolver validamente o contrato por factos ocorridos antes da cessão traduzir-se-ia numa violação do regime jurídico da titularização de créditos previsto no DL 453/99, de 05/11,
maxime
das normas que visam assegurar a neutralidade dessa operação perante o devedor, bem como numa violação do regime jurídico do PERSI,
maxime
das normas que proíbem cessões de créditos que permitam às instituições de crédito subtraírem-se àquele regime, numa verdadeira fraude à lei, pelo que essa solução deve ser rejeitada.
Ac. TRC de 08/03/2022, proc.
824/20.2T8ANS.C1
, que, perante situações exactamente iguais à dos autos, considerou que a entidade bancária está proibida de ceder os seus créditos a terceiro que não seja uma instituição de crédito. Estava em causa um crédito para beneficiação de habitação própria.
Ac. do TRG de 30/01/2020, proc.
5520/18.8T8VNF-A.G1
: I - A falta de integração obrigatória do cliente bancário no PERSI, quando reunidos os pressupostos para o efeito, constitui impedimento legal a que a instituição de crédito, credora mutuante, ceda o seu crédito [destinado à aquisição de habitação - TRL] a quem não é uma instituição de crédito. II- De outro modo, a cedência ou a transmissão poderia importar uma desvirtuação do regime consagrado no Dec. Lei 227/2012, na medida em que se a cessionária não for uma instituição de crédito abrangida pelo âmbito de aplicação daquele diploma legal não estaria obrigada a dar cumprimento ao PERSI.
No mesmo sentido, já Sandra Passinhas, estudo citado, páginas 104-108, espec. pág. 108, “[a] cessão de crédito, em PERSI, a uma qualquer empresa de gestão de cobrança ou de recuperação de crédito é, pois, nula, nos termos do artigo 294.º, do Código Civil, por contrariedade a norma legal imperativa.”
E Carlos Filipe Fernandes de Andrade Costa, no estudo Incumpri-mento de contratos de crédito pelos consumidores: regime aplicável e medidas de prevenção e regularização de situações de inadimplemento, publicado nos
Estudos de Direito do Consumidor n.º 18, 2022
, páginas 395-396.
*
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras) pela exequente.
Lisboa, 08/05/2025
Pedro Martins
Laurinda Gemas
Susana Maria Mesquita Gonçalves
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/a1743ba94f1840a580258c8b00492fbc?OpenDocument
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1,750,118,400,000
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REVOGAÇÃO
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7025/24.9T8PRT.P1
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7025/24.9T8PRT.P1
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ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
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I – Para que se verifique uma situação de incumprimento definitivo, é necessário que o credor, em consequência da mora, perca o interesse que tinha na prestação ou que esta não seja realizada dentro do prazo que este razoavelmente tenha fixado (cfr. artigo 808.º, n.º 1, do CC).
II – A perda de interesse na prestação é apreciada objectivamente (cfr. artigo 808.º, n.º 2, do CC), não se bastando com um juízo valorativo subjectivo e arbitrário do próprio credor, e corresponde ao desaparecimento da necessidade que aquela prestação visava satisfazer, ou seja, ao desaparecimento da sua utilidade.
III – A interpelação admonitória referida na segunda parte daquele n.º 1 pressupõe a fixação de um prazo suplementar, que acresce ao prazo inicial para cumprimento da obrigação, quer este tenha sido fixado por acordo das partes, quer decorra da interpelação prevista no artigo 805.º do CC, pois só então a obrigação se considera vencida.
IV – Tal interpelação deve conter três elementos: a intimação para o cumprimento; a fixação de um termo peremptório para esse cumprimento; a declaração admonitória de que a obrigação se terá por definitivamente incumprida se não for cumprida no referido prazo.
V - O artigo 801.º, n.º 1, do CC, equipara ao incumprimento culposo a impossibilidade culposa de cumprimento da obrigação, por considerar que o devedor falta culposamente ao cumprimento da obrigação se a prestação se tornou impossível por culpa sua.
VI – São ainda equiparadas ao incumprimento definitivo a recusa expressa, por parte do devedor, do cumprimento da obrigação ou a adopção, pelo mesmo, de um comportamento concludente nesse sentido.
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[
"INCUMPRIMENTO DEFINITIVO",
"PERDA DE INTERESSE NA PRESTAÇÃO",
"INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA",
"IMPOSSIBILIDADE CULPOSA DE CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO"
] |
Processo: 7025/24.9T8PRT.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
A..., Lda.
, com sede na Rua ..., ...., ... ..., ...,
AA
e
BB
, residentes na Rua ..., ... ...,
intentaram a presente acção declarativa comum contra
B..., Lda.
, com sede na Rua ..., ..., ... ..., pedindo a condenação da ré:
A) A reconhecer a resolução do contrato de prestação de serviços estabelecido com a autora A..., Lda.;
B) A pagar à autora o montante global de 71.282,69€, correspondente à soma do montante de 49.470,58 € relativo ao montante a devolver à autora, acrescido do montante de 1.812,11 € relativo ao montante dos juros de mora vencidos até à presente data e de 20.000,00 € a título de indemnização por danos patrimoniais, presentes danos patrimoniais futuros e lucros cessantes;
C) A pagar aos Autores AA e BB o montante de 5.000,00 € a título de compensação/indemnização pela afectação da sua saúde física e psicológica e necessidade de acompanhamento médico e medicamentoso adequados;
D) Ao pagamento do montante da indemnização, ainda não possível de quantificar e que será liquidado em execução de sentença, em que a Autora A..., Lda., venha a ser condenada em acção que venha a ser intentada pelo dono da obra C..., Lda.;
E) A pagar à Autora o montante dos juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento.
A ré apresentou contestação, pugnando pela improcedência da acção.
Foi realizada audiência prévia, na qual, depois de frustrada a tentativa de conciliação, foi facultada aos mandatários das partes a discussão de facto e de direito da causa, tendo em vista o (já anteriormente anunciado) conhecimento do mérito total da acção em sede de despacho saneador.
Veio a ser proferido saneador sentença, que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu a ré de todos os pedidos.
*
Inconformada, a autora apelou desta decisão, apresentando a respectiva alegação, que termina com as seguintes conclusões:
(…)
Não foi apresentada resposta à alegação do recorrente.
Embora o Sr. Juiz
a quo
não tenha apreciado a nulidade da decisão alegada pelo recorrente, conforme determinam os artigos 617.º, n.º 1, e 641.º, n.º 1, do CPC, não se considera indispensável mandar baixar o processo para esse efeito (cfr. artigo 617.º, n.º 5, do CPC).
*
II. Fundamentação
A. Objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o
Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
No caso concreto, no requerimento em que interpõe o recurso, a recorrente manifesta a sua discordância quando ao saneador-sentença que absolveu a ré de todos os pedidos por si formulados. Contudo, nas conclusões com que termina a sua alegação, restringe o objecto do recurso aos pedidos que formulou na petição inicial sob as alíneas A) e B), aos quais está intimamente ligado o pedido formulado na al. E), deixando de fora do objecto do recurso não apenas o pedido formulado pelos autores não recorrentes na al. C), mas também o pedido formulado pela recorrente na al. D). Tal restrição é feita de modo expresso na conclusão FFF) e está em total consonância com a argumentação desenvolvida ao longo da alegação e sintetizada nas demais conclusões.
Pelo exposto, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, importa decidir se a decisão recorrida padece de alguma das nulidades previstas no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), do CPC, se a matéria de facto julgada provada deve ser ampliada, se o Tribunal
a quo
errou ao julgar totalmente improcedente a acção e se deve ser determinado o prosseguimento dos autos, com enunciação dos temas da prova e posterior realização de audiência de julgamento, para apreciação dos pontos A), B) e E) do pedido.
*
B. Nulidade da decisão
No que concerne às nulidades da decisão invocadas pela recorrente, importa começar por recordar que a jurisprudência e a doutrina nacionais vêm alertando, de modo uniforme e insistente, para a necessidade de distinguir entre as nulidades da decisão, previstas e reguladas no artigo 615.º do CPC, e o erro de julgamento. A este respeito, afirma-se o seguinte no acórdão do STJ de 03.03.2021 (proc. n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode encontrar a demais jurisprudência citada sem indicação da origem): «Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (
error in procedendo
) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (
error in judicando
) que resulta de uma distorção da realidade factual (
error facti
) ou na aplicação do direito (
error juris
), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual – nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma – ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma».
No caso concreto, a recorrente afirma que a decisão é nula por omissão de pronúncia, nos termos previstos no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, alegando que:
- «A suposta falta de interpelação admonitória e a interpretação do Meritíssimo Juiz a quo de que os factos dados como provados não constituíam fundamento para a resolução, com justa causa, do contrato de empreitada por parte da Apelante, - por não corresponderem a uma situação de ultrapassagem efectiva de um prazo essencial fixado que levasse à perda de interesse da Autora na prestação -, que serviram de fundamentação à decisão proferida no saneador-sentença, impediram, objectivamente, a apreciação e decisão sobre matéria de facto que tinha sido alegada o que faz incorrer a sentença proferida na nulidade prevista no nº 1, al. d), do artº 615º, do CPC» (cfr. conclusão VV);
- «O Meritíssimo Juiz a quo não se pronunciou - talvez devido ao erro de julgamento que o fez não dar como provados factos e documentos que o deveriam ter sido - sobre matéria de facto que tinha sido alegada, o que faz incorrer o saneador-sentença proferido na nulidade prevista no nº 1, al. d), do artº 615º, do CPC» (cfr. conclusão CCC).
O que decorre desta alegação da recorrente é, com toda a clareza, a afirmação de erros de julgamento, tanto no que concerne aos factos como ao direito, não se descrevendo ali qualquer vício formal relativo à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão. A própria recorrente o admite, ao afirmar que a falta de pronúncia quanto a determinados factos se ficou a dever a um erro de julgamento.
A recorrente afirma ainda que a decisão é nula ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, pois não refere «qual o raciocínio lógico-dedutivo seguido ou utilizado para formar ou justificar a sua decisão», como impõe o artigo 607.º, n.º 4, do CPC (cfr. conclusão DDD)
Compreende-se mal esta afirmação. Como é pacífico na jurisprudência, a nulidade prevista naquela al. b) apenas diz respeito à ausência absoluta dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito da decisão. Ora, a decisão recorrida discrimina os factos que julga provados, fundamenta este juízo na admissão de tais factos por acordo, após o que expõe os fundamentos de direito da total improcedência da acção. Não padece, assim, deste ou qualquer outro vício formal que afecte a sua estrutura ou a sua inteligibilidade, ainda que se possa discutir o seu acerto.
Pelo exposto, sem necessidade de outros desenvolvimentos ou explicitações, julgam-se improcedentes as alegadas nulidades da decisão recorrida.
*
B. Os factos
1. Factos provados
São os seguintes os factos julgados provados pelo Tribunal
a quo
:
1 – Em Maio de 2022, a C..., Lda., representada pelo seu sócio gerente, Dr. CC, adjudicou à aqui Autora a empreitada da obra designada Centro Médico ..., para a realização dos trabalhos de remodelação interior do referido centro médico, sito no Edifício ..., da cidade do Funchal.
2 – Em 15/06/2022, a Autora subempreitou na Ré os trabalhos de carpintaria conforme orçamentos juntos à p.i. como doc.s 11 a 15, pelo preço global de € 100.545,80, acrescidos de IVA à taxa legal, no total de € 123.671,33.
3 – O contrato de subempreitada não foi reduzido a escrito.
4 – Para efeito da aceitação da adjudicação da subempreitada, a Ré solicitou à Autora o pagamento antecipado do montante de € 61.835,79 (sessenta e um mil oitocentos e trinta e cinco euros e setenta e nove cêntimos), por meio do envio da respectiva factura nº FT 2021/121, daquele valor e datada de 15/06/2022.
5 – A Autora pagou à Ré o montante de € 61.835,79, relativo à factura nº FT 2021/121, daquele valor e datada de 15/06/2022, em duas prestações:
- Em 20/06/2022, o montante de € 31.835,79, por meio da transferência bancária efectuada pelo Banco 1..., com a Referência 344881137485.
- Em 21/07/2022, o montante de € 30.000,00, por meio da transferência bancária efectuada pelo Banco 1..., com a Referência 344881183075.
6 – Em 20/06/2023, os sócios da Autora (e aqui também Autores) AA e BB, enviaram ao sócio gerente da Ré, Engº. DD, o email junto como Doc. nº 10.
7 – Onde escreveram que, de acordo com a reunião efectuada nesse mesmo dia, a Ré tinha acordado em colocar na obra, até ao dia 15 de Julho de 2023, o primeiro contentor com as peças necessárias para a instalação e montagem dos armários em melamina.
8 – e a conclusão da execução dos trabalhos de carpintaria até ao dia 31 de Setembro de 2023, conforme orçamentos com as referências nºs OR 2021/48, OR 2021/49, OR 2021/52, OR 2021/53 e OR 2021/54
9 – No referido email de 20/06/2023, os sócios da Autora advertiram-na que caso persista o incumprimento dos prazos de execução da obra pela ré, “tal situação impede objectivamente a viabilidade futura dos serviços contratados por motivo alheio a nós e ao nosso cliente. C..., lda, tornando necessária, consequentemente, a devolução do valor da adjudicação. Para evitar tal situação e dar continuidade à execução da obra, pedimos a confirmação da execução desta nos termos e prazos mencionados no presente email”
10 – A Ré respondeu à Autora por email 03/07/2023, (Doc.nº 16 da p.i.), confirmando que “(…) até ao dia 25 de julho todas as melaminas dos mobiliários da clínica ... estarão prontas sendo despachadas de imediato. Os restantes materiais estarão prontos em Setembro para a conclusão dos trabalhos.”
11 – em 10/10/2023, os sócios da Autora, deslocaram-se às instalações da Ré
12 – com intenção de resolver o contrato de subempreitada celebrado e fazer cessar a respectiva prestação de serviços.
13 – Em 13/12/2023, a Autora enviou uma carta registada com AR à Ré, recebida por esta no dia seguinte, onde refere, em suma que:
- em 15/6/2022 adjudicou os trabalhos de carpintaria na Obra Centro Médico ... No Funchal pelo valor global de 123.671,33€;
- pagou metade em 20/6/2022 e 21/7/2022;
- para além do fornecimento de umas calhas, que nem sequer foram colocadas na obra, com medidas incorrectas e que tiveram que ser substituídas, bem como umas melaminas brancas para alguns interiores dos armários e montagem dos mesmos, decorrido um ano e meio da data da adjudicação nada mais V.exas. fizeram na obra.
- acresce que foram emitidas as seguintes facturas:
- FT nº 2022/5, de 23/11/2022, no valor de € 3.437,85;
- FT nº 2023/42, de 18/05/2023, no valor de € 3.126,07;
- FT nº 2023/46, de 19/05/2023, no valor de € 1.875,64;
- FT nº 2023/67, de 19/07/2023, no valor de € 16.832,55
.Tais facturas não correspondem a trabalhos ou materiais para a obra, pelo que aguarda a emissão de nota de crédito relativamente à factura 2022/5 e as restantes foram devolvidas.
Os prazos aceites por V.Exas. para a execução e conclusão da obra estão largamente ultrapassados
Face ao supra exposto, serve a presente comunicação para resolver, com justa causa e com efeitos imediatos, o contrato de subempreitada acordado para os Trabalhpos de Carpintaria na Obra Centro Médico ... no Funchal”.
*
2. Ampliação da matéria de facto
Nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Esta alteração compreende, naturalmente, a ampliação do acervo factual que serve de fundamento à decisão, caso o tribunal
a quo
não se tenha pronunciado sobre algum facto relevante para a decisão da causa que deva considerar-se provado – o que, em sede de despacho saneador, apenas poderá suceder relativamente a factos que tenham sido validamente admitidos por acordo das partes ou relativamente aos quais se tenha produzido prova plena.
No presente caso, para além de alusões genéricas e, por isso, inconsequentes à falta de impugnação, expressa ou tácita, de factos e de documentos ou de parte do teor destes (cfr. conclusões G, H e I), a recorrente alegou o seguinte:
- A ré aceitou a resolução do contrato e propôs um acerto de contas que apresentou à autora no documento n.º 17 junto à PI e que não foi impugnado, pelo que a respectiva existência e teor deveriam ter sido dados como provados (cfr. conclusão Z).
- Encontrando-se alegado e não impugnado que a ré demonstrou aceitar, ainda que tacitamente, a resolução do contrato celebrado com a autora, o Meritíssimo Juiz
a quo
deveria ter dado tal facto como provado e não o fez, erradamente, violando com a respectiva interpretação, o disposto no artº 217º, nº 1 (in fine) e 235º, nº 2, do Código Civil (cfr. conclusão TT).
- Tendo dado como provados os factos “por acordo”, - por aceitação e/ou falta de impugnação por parte da Ré -, o Meritíssimo Juiz
a quo
deveria ter aplicado o mesmo raciocínio aos outros factos (e documentos que os sustentam) que não foram impugnados pela ré, aqui apelada, designadamente, o alegado nos artigos 35º a 38º da PI, que estavam suportados no Doc. 18 da PI que não foi impugnado (cfr. conclusão ZZ).
Não assiste razão à recorrente, revelando-se totalmente acertada a decisão de não incluir do elenco dos factos provados o acordo das partes de resolução do contrato em discussão nos autos ou o teor dos documentos – ou melhor, a interpretação que a recorrente faz do teor dos documentos – juntos com a petição inicial sob os n.ºs 17 e 18.
Ainda que se aceite que a autora alegou, na petição inicial, a resolução do contrato por acordo das partes – questão a que voltaremos mais adiante – é inquestionável que a ré, na contestação, impugnou expressa e reiteradamente a existência de tal acordo, afirmando que sempre pretendeu executar e concluir a obra, que mantém esse propósito e que não aceitou a pretensão da autora de o revogar (cfr., entre outros, os artigos 21, 22, 24 e 31 da contestação).
Acresce que a existência de tal acordo também não está plenamente provada pelos documentos invocados pela recorrente.
O documento n.º 17 não está assinado nem é da autoria da ré recorrida (cfr. artigos 374.º e 376.º do Código Civil), correspondendo a um
email
remetido pelos autores BB e AA para um dos sócios gerentes da ré, cujo conteúdo foi expressamente impugnado no artigo 19.º da contestação.
O documento n.º 18, embora a ré reconheça a sua autoria, não se encontra assinado por esta, nem contém qualquer declaração de factos contrários aos interesses da mesma, mas apenas referências a diversos valores. Na tese da autora, a ré verteu neste documento o valor dos trabalhos que executou e o valor a devolver à primeira por força do acordo de resolução do contrato (cfr. artigos 36.º e 37.º da petição inicial). A ré impugnou expressamente esta tese (cfr. artigo 23 da contestação), esclarecendo que foram os sócios gerentes da autora que questionaram o sócio gerente da ré sobre os valores que tinha colocado em obra despesas efectuadas (cfr. artigo 20 da contestação), mais impugnando o alegado nos artigos 36 e 37 da petição inicial (cfr. artigo 23 da contestação), que a recorrente afirma estarem suportados naquele documento n.º 18.
Pelas razões expostas, improcede a pretendida ampliação da matéria de facto julgada provada.
*
C. O direito
A decisão recorrida julgou ilícita a resolução do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida, por considerar que os factos alegados e os factos provados evidenciam apenas a mora da ré no cumprimento das obrigações contratualmente assumidas perante a autora, mas não demonstram o incumprimento definitivo do contrato, seja por via da interpelação admonitória, seja por via da perda de interesse da autora no cumprimento daquela obrigação.
É contra este entendimento que a recorrente se insurge, por considerar que os factos já julgados provados demonstram a conversão da mora em incumprimento definitivo por via da interpelação admonitória da ré, que a perda de interesse da recorrente no cumprimento do contrato podia e devia ter sido apurada em sede de audiência de julgamento e que foi alegado e está demonstrado que resolução do referido contrato foi aceite pela recorrida, ainda que posteriormente esta tenha negado essa aceitação.
Apreciemos cada uma destas questões.
1.
O direito de resolução, regulado nos artigos 432.º e seguintes do Código Civil (CC), é um direito potestativo extintivo, dependente de um fundamento legal ou convencional. Assim, a resolução do contrato nunca é
ad nutum
, só se considerando legítima se estiver demonstrado o fundamento erigido na lei ou no acordo das partes como causa dessa resolução. Dito de outro modo, tem de ocorrer um facto que crie aquele direito, isto é, um facto ou uma situação a que a lei ou o próprio contrato liguem como consequência a constituição (o surgimento) desse direito potestativo.
Ao contrário do que sucede com as invalidades resultantes dos vícios genéticos ou de formação do acto ou contrato (como a nulidade e a anulabilidade), a resolução (tal como a revogação e a denúncia) deixa incólume a validade deste e aponta directamente para a relação contratual. Não obstante, na falta de disposição especial, o artigo 433.º do CC equipara-a, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, com ressalva do disposto nos artigos 434.º e 435.º do mesmo código. Assim, como escreve Antunes Varela (
Das Obrigações em Geral
, Vol. II, 6.ª ed., p. 273), a «resolução é a destruição da relação contratual, operada por um dos contraentes, com base num facto posterior à celebração do contrato», que goza, por regra, de eficácia retroactiva (cfr. artigo 289.º do CC), salvo se a retroactividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução (cfr. artigo 434.º, n.º 1, do CC).
Nos termos dos artigos 798.º e 801.º do CC, o incumprimento culposo de uma obrigação emergente de um contrato bilateral confere ao respectivo credor o direito à resolução desse contrato (sem prejuízo do direito à indemnização), sendo certo que a culpa do devedor inadimplente se presume, nos termos do artigo 799.º do CC (cfr. J. Baptista Machado,
Pressupostos da Resolução por Incumprimento
”,
in Estudos em Homenagem ao Prof. J.J. Teixeira Ribeiro,
Boletim da Faculdade de Direito, 1979, pp. 348 e 349).
Menezes Leitão (
Direito das Obrigações
, vol. II, p. 223 e segs.) descreve o incumprimento culposo «como a não realização da prestação devida, por causa imputável ao devedor, sem que se verifique qualquer causa de extinção da obrigação», em contraposição com a definição de cumprimento consagrada no artigo 762.º, n.º 1, do CC: «O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado».
A resolução do contrato com fundamento no seu incumprimento tem, portanto, de ser consequência da violação do programa negocial. Mas não é admitida sem que a mora se converta em incumprimento definitivo, seja pela interpelação admonitória, seja pela perda, objectivamente considerada, do interesse do credor, nos termos previstos no artigo 808.º, nºs 1 e 2, do CC.
Como preceitua o artigo 406.º, n.º 1, do CC, os contratos devem ser cumpridos pontualmente. Nos termos do artigo 804.º, n.º 2, do CC, «o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido». Por sua vez, o artigo 805.º, n.º 1, do mesmo diploma, estabelece que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação, se ocorrer uma das situações previstas no nº 2 da disposição legal em análise: se a obrigação tiver prazo certo, se provier de facto ilícito ou se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.
Para que se verifique uma situação de incumprimento definitivo, é necessário que o credor, em consequência da mora, perca o interesse que tinha na prestação ou que esta não seja realizada dentro do prazo que este razoavelmente tenha fixado, nos termos do já citado artigo 808.º do CC, que preceitua sobre a conversão da situação de mora em não cumprimento definitivo. É «como medida complementar de justa e indispensável tutela do credor da obrigação insatisfeita» que aquela norma estabelece que, tendo o credor perdido, em consequência da mora, o interesse que tinha na prestação, ou não sendo esta realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, se considera para todos os efeitos não cumprida a obrigação (cfr. Antunes Varela,
RLJ
, Ano 118, p. 54).
A segunda parte do n.º 1 da referida disposição legal tem em vista evitar os danos que poderiam advir ao credor de uma mora perpétua do devedor, possibilitando-lhe tornar a mora em incumprimento definitivo. Assim, nos casos em que o credor ainda tem interesse na prestação (e tal interesse é apreciado objectivamente e, em rigor, significa o desaparecimento objectivo da necessidade que a prestação visava satisfazer) mas não pretende manter os seus interesses subordinados à mora do devedor, a lei põe ao seu dispor a possibilidade de converter a mora em incumprimento definitivo.
A interpelação admonitória a que se refere o segmento da norma em análise (interpelação formal dirigida ao devedor moroso e destinada a permitir ao credor pôr cobro a uma situação de mora perpétua daquele) deve «conter três elementos: a) a intimação para o cumprimento; b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento; c) admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo» (Baptista Machado, cit., pp. 382 e 383).
O artigo 801.º, n.º 1, do CC, equipara ao incumprimento culposo a impossibilidade culposa de cumprimento da obrigação. Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela (
Código Civil Anotado
, Vol. II, 3.ª ed., p. 59), a regra desta norma «constitui uma aplicação do princípio geral contido no artigo 798.º. O devedor falta, na verdade, culposamente ao cumprimento da obrigação, se a prestação se tornou impossível por culpa sua».
No caso vertente, dos factos julgados provados na decisão recorrida e dos próprios factos articulados pelas partes nos seus articulados parece decorrer que a obrigação contratualmente assumida pela ré começou por configurar uma obrigação pura – cuja mora depende da interpelação do devedor para cumprir (cfr. artigos 777.º e 805.º, n.º 1, do CC) – pois não consta daquela factualidade que as partes tenham estipulado, no momento em que celebraram o acordo de que emerge a obrigação em causa, um prazo certo para o seu cumprimento.
De acordo com aquela factualidade – tanto a alegada como a já julgada provada – o referido acordo foi celebrado verbalmente em 15.06.2022, mas apenas em 20.06.2023 terá sido acordado colocar na obra, até ao dia 15 de Julho de 2023, o primeiro contentor com as peças necessárias para a instalação e montagem dos armários em melamina e concluir a execução dos trabalhos de carpintaria até ao dia 31 de Setembro de 2023. Assim sendo, só então a obrigação em causa passou a poder considerar-se uma obrigação com prazo certo, cuja mora passou a dispensar a interpelação do devedor, por força do disposto no artigo 805.º, n.º 2, al. a), do CC, sendo certo que nada obstava à fixação do prazo mediante acordo posterior ao negócio constitutivo da obrigação (neste sentido, Maria Graça Trigo e Mariana Nunes Martins,
Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral
, UCP Editora, Lisboa, 2024, p. 1129).
É certo, porém, que no
email
de 20.06.2023, junto como documento n.º 10 da petição inicial, cujo teor foi dado como integralmente reproduzido no artigo 10.º da petição inicial, se afirma que havia sido «apalavrado que a execução da obra teria o seu início em meados do mês de Maio de 2023» e se acrescenta que no referido dia 20.06.2023 a execução da obra ainda não tinha tido início. Mas, para além dos termos vagos em que é descrito o acordo relativo ao início da obra, não se invoca, no referido documento ou nos factos articulados pelas partes, a estipulação prévia de alguma data para conclusão da obra, ainda que por via da determinação do tempo de execução da mesma.
Em todo o caso, ainda que, em 20.06.2023, se pudesse configurar uma situação de mora quanto ao início do cumprimento da obrigação, o que resulta do documento apresentado pela autora e do alegado nos artigos 10.º a 13.º da petição inicial, é que naquela data as partes contratantes terão acordado prorrogar esse prazo de início da obra até 15 de Julho de 2023, mais acordando, pela primeira vez, um prazo certo para a conclusão da mesma obra, fixando-o em 31 de Setembro de 2023 (que deve ser lido como “30 de Setembro de 2023”, por não existir o dia 31 de Setembro). Assim, o que se infere deste documento é, quando muito, a extinção da mora ocorrida no início da execução da obra, por via da concessão de uma moratória, ou seja, por via da «celebração de um novo acordo, por meio do qual se difere para o futuro o vencimento da obrigação [de dar início à execução da obra], extinguindo a mora» (
ob. cit.
, p. 1127), e a determinação de um prazo certo para a conclusão da mesma obra.
O que a missiva de 20.06.2023 não configura é, seguramente, uma interpelação admonitória para os efeitos do artigo 808.º, n.º 1, do CC. Nessa missiva, a autora não intima a ré a iniciar a obra até 15.07.2023 e a terminá-la até 30.09.2023 sob pena de considerar definitivamente não cumprida a obrigação. A autora limita-se a comunicar que na reunião realizada nesse dia ficou acordado que a ré colocará na obra, até ao dia 15 de Julho de 2023, o primeiro contentor com as peças necessárias para a instalação e montagem dos armários em melamina – assim prorrogando o prazo inicialmente «apalavrado» – e concluirá a execução dos trabalhos de carpintaria até ao dia 3o de Setembro de 2023.
De resto, naquele dia 20.06.2023, não se poderia falar em mora da ré quanto à conclusão da obra, pois só então foi acordado o respectivo prazo, pelo que a ré apenas de se poderia constituir em mora depois de expirado esse prazo sem que tivesse concluído a obra em causa.
Ainda que se entendesse que a missiva que vimos analisando corresponde a uma interpelação da ré para cumprir a sua obrigação nos prazos aí fixados, a mesma não poderia configuraria uma interpelação admonitória. Quando muito, poderia equacionar-se se configura uma interpelação para a constituição em mora do devedor de uma obrigação pura, nos termos previstos no artigo 805.º, n.º 1, do CC, sendo certo que os dois tipos de interpelação não se confundem.
A interpelação admonitória pressupõe a fixação de um
prazo suplementar
para cumprimento da obrigação, pelo que, em regra, sobrevém à constituição em mora (por alguma das vias previstas no artigo 805.º do CC, onde se inclui a fixação ou a prorrogação do prazo por acordo das partes e a interpelação cumprimento de uma obrigação pura). Tal não significa que a interpelação admonitória tenha de ser necessariamente posterior à constituição em mora. Pelo contrário, admite-se que a fixação do prazo suplementar possa ser estabelecido no próprio momento da constituição do vínculo obrigacional, com a cominação de que, findo esse prazo suplementar, a obrigação se considera definitivamente incumprida. Mas significa que o prazo suplementar deve acrescer ao prazo inicial de cumprimento da obrigação, quer este tenha sido fixado por acordo das partes, quer decorra da interpelação prevista no artigo 805.º do CC, pois só então a obrigação se considera vencida, e deve ser fixado com a cominação antes mencionada.
Ora, na missiva de 20.06.2013, a autora não fixa um prazo suplementar, que devesse acrescer aos prazos iniciais de execução da obra. Para além de prorrogar por acordo o prazo que havia sido «apalavrado» para dar início à sua execução, fixa pela primeira vez, igualmente por acordo das partes, o prazo para a conclusão da obra, ou seja, para cumprimento integral da obrigação.
Pelas razões expostas, concordamos com o tribunal
a quo
quando conclui que a missiva de 20.06.2023 não configura uma interpelação admonitória, passível de converter a mora da ré em incumprimento definitivo, pois naquele momento nem sequer se verificada uma situação de mora.
Em suma, ainda que os factos alegados e os factos julgados provados possam demonstrar a constituição da ré em mora (o que sempre se deveria considerar controvertido, na medida em que a ré impugnou o acordo de quaisquer prazos de execução ou conclusão da obra – cfr., entre outros, os artigos 7 e 17 da contestação – e alegou que foi a autora quem impediu a execução da obra pela autora - cfr. artigos 29 a 32 do mesmo articulado), tais factos não são passíveis de demonstrar a conversão dessa mora em incumprimento definitivo por via do mecanismo da interpelação admonitória.
2.
Importa agora aferir se a autora alegou factos susceptíveis de demonstrar que o incumprimento dos prazos acordados – ou seja, a mora da ré – determinava, por si só, a perda do interesse da autora no cumprimento da respectiva obrigação da ré, assim convertendo aquela mora em incumprimento definitivo, nos termos disposto no artigo 808.º do CC.
No já referido documento n.º 10 da petição inicial, para cujo teor a petição inicial remete, a autora antecipa que a ultrapassagem dos prazos aí referidos inviabilizará o cumprimento do contrato, o que faz nos seguintes termos:
«Conforme mencionado, a adjudicação prematura da obra nos dias 20 de junho e 21 de julho de 2022, deveu-se à insistência por parte da sociedade B..., Lda., em assegurar o preço das matérias primas necessárias à obra, tendo em conta as circunstâncias conjunturais que se vive atualmente (matérias primas cuja aquisição nunca nos foi dada a comprovar).
Pelo exposto, declara-se desde logo que caso a mencionada situação persista, nomeadamente o incumprimento dos prazos de execução da obra por parte da sociedade B..., Lda., tal situação impede objetivamente a viabilidade futura dos serviços contratados por motivo totalmente alheio a nós e ao nosso Cliente, C..., Lda., tornando necessária, consequentemente, a devolução do valor de adjudicação.
Para evitar tal situação e dar continuidade à execução da obra, pedimos a confirmação da execução desta nos termos e prazos mencionados no presente e-mail».
Desta comunicação resulta que a própria ré insistiu na adjudicação da obra com cerca de um ano de antecedência relativamente ao início previsto para o início da sua execção e no pagamento antecipado de 50% do respectivo preço (parte em 20.06.2022 e o restante em 21.07.2022), para poder adquirir as matérias primas necessárias à execução daquela obra aos preços então praticados, deste modo afastando o risco inerente à subida desses preços, que não poderia repercutir no preço a pagar pela autora, uma vez que este foi fixado
a forfait
.
Mas daquela comunicação não resulta, nem a autora recorrente alega, que deste circunstancialismo se possa inferir que o não cumprimento dos prazos acordados para a execução da obra importava o desaparecimento da necessidade que a prestação da ré visava satisfazer, da utilidade dessa prestação, ou seja, a perda objectiva do interesse da autora nessa prestação.
Se o preço a pagar pela autora à ré estivesse dependente da flutuação do preço das matérias primas necessárias à execução da obra, isto é, se a sua fixação tivesse em conta o preço das matérias primas à data da execução da obra, poder-se-ia equacionar se a ultrapassagem dos prazos de execução importava a perda de interesse da autora no cumprimento do contrato. Na verdade, esta perda de interesse do credor pode resultar de diversas circunstâncias, inclusivamente do prejuízo que a sua realização fora de tempo lhe poderá causar. Mas nada disto foi alegado. Como vimos, resulta dos factos alegados e provados que o preço a pagar pela autora à ré foi fixado
a forfait
, não dependendo da variação dos preços das matérias primas ou de quaisquer outros factores. Assim, quer a ré tenha adquirido as matérias primas antecipadamente, beneficiando dos preços praticados à data da adjudicação da obra e do adiantamento pela autora de metade do preço, quer as tenha adquirido mais tarde, mesmo que por preços superiores, quer não as tenha adquirido ainda, o preço a pagar pela autora pela execução da obra sempre seria o mesmo. Por conseguinte, a mora da ré não é passível de gerar o aumento do preço da obra a pagar pela autora, pelo que a perda do interesse desta no cumprimento da obrigação da ré não pode basear-se nesse aumento.
Pelo exposto, a afirmação, constante da missiva em análise, de que a mora da ré impede objetivamente a viabilidade futura dos serviços contratados por motivo totalmente alheio à autora e à sua cliente, dona da obra, tornando necessária a devolução do valor de adjudicação, não está aí sustentada em qualquer facto objectivo, sendo certo que o apuramento da perda de interesse na prestação não se basta com a sua afirmação em termos puramente conclusivos, ou melhor, não se basta com um juízo valorativo subjectivo e arbitrário do próprio credor, exigindo-se que decorra de factos concretos, que, no caso concreto, não foram alegados.
Resta, assim, saber se aquela a perda de interesse na prestação da ré e a consequente conversão da mora desta em incumprimento definitivo do contrato está sustentada em factos alegados no próprio articulado em que a autora expõe os fundamentos de facto e de direito do seu pedido.
A resposta é, a nosso ver, afirmativa.
Como a própria recorrente afirma na alegação de recurso, nos artigos 59.º e 60.º da petição inicial, a autora manifesta a sua indisponibilidade para receber as madeiras que não chegaram a ser colocadas na obra e que se mantêm na posse da ré, alegando que as mesmas já não têm, para si, qualquer aplicação ou utilidade. Apesar de vaga ou, mesmo, ambígua, esta afirmação pode ser interpretada num sentido que dê consistência ao que a autora havia afirmado na missiva de 20.06.2023: que o atraso na execução da obra inviabiliza a execução dos serviços acordados.
Mas a autora vai mais longe na sua alegação – embora o faça de forma algo deslocada, quando está a descrever os danos que alegadamente sofreu e irá sofrer no futuro –, afirmando nos artigos 88.º a 90.º da petição inicial que o contrato de empreitada que celebrou com a sua cliente C..., Lda. foi revogado, em virtude do atraso da execução da obra por parte da subempreiteira, aqui ré.
Para melhor esclarecimento, passamos a transcrever essa alegação (tendo sido acrescentados por nós os itálicos que sublinham algumas passagens):
«88º
Atenta a culposa actuação da Ré e de que a Autora
(por ser completamente alheia a tal actuação)
é vítima, a Autora vê-se, neste momento e por efeito da resolução do contrato de empreitada celebrado com a sua cliente C..., Lda
, na iminência ou plausível previsibilidade de vir a ser demandada por este em processo judicial, intentado para efeito da sua condenação no pagamento de uma indemnização destinada a ressarcir o C..., Lda dos prejuízos que tenha suportado, ou venha a suportar, decorrentes do atraso na execução e entrega da obra.
89º
Ainda decorrente da culposa actuação da Ré (e de que a Autora é vítima) e da resolução do contrato de empreitada celebrado com a sua cliente C..., Lda,
a Autora deixará de vir a beneficiar, (perdendo-as), das margens de comercialização relativas à parte da obra que está por concluir, e que neste momento também não lhe é possível determinar e quantificar.
90º
Ainda como consequência da perda da C..., Lda como cliente, (que decorrerá da resolução do contrato de empreitada celebrado entre ambos),
advirão à Autora futuros e previsíveis prejuízos decorrentes:
-
da sua perda de
credibilidade perante o C..., Lda e, consequentemente,
qualquer hipótese de poder vir a reestabelecer e retomar qualquer relação comercial com ele
- ou com quaisquer parceiros do C..., Lda e/ou do Centro Médico ..., noutros projectos;
- e da negativa afectação do bom nome e imagem da Autora no mercado em que labora;
que, seguramente, se repercutirão no número de possíveis clientes e das obras que lhe pudessem vir a ser entregues e na perda das receitas e lucros que de tal actividade lhe adviriam e que, neste momento, também não lhe é possível determinar e quantificar».
Admite-se que também esta alegação possa suscitar a dúvida se a resolução do contrato de empreitada já ocorreu ou se traduz apenas um receio da autora.
Em qualquer dos casos, dada a relevância dos factos anteriormente analisados para o desfecho da acção, entendemos que o tribunal
a quo
estava obrigado pronunciar-se sobre eles, convidando a autora a suprir as insuficiências ou imprecisões da sua alegação, ao abrigo do disposto no artigo 590.º, n.º 4, do CPC, se considerasse necessário tal aperfeiçoamento, ou, julgando tal diligência dispensável, incluindo essa factualidade nos temas da prova, visto estar em oposição com a defesa, como decorre desde logo do artigo 30.º da contestação, onde a ré afirma que a autora acabou por concluir a obra.
O que ficou exposto deixa claro, a nosso ver, que o processo não permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação dos pedidos objecto deste recurso, ao abrigo do disposto no artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC, ao contrário do que entendeu o tribunal
a quo
.
3.
Não obstante o exposto, entendemos que não fica prejudicado o conhecimento da última das questões suscitadas neste recurso, visto que a sua procedência poderá prejudicar o prosseguimento da acção para apuramento dos pressupostos legais da resolução do contrato.
Resta assim verificar se, como afirma a recorrente, foi oportunamente alegada a resolução do contrato por acordo das parte ou, melhor dizendo, a revogação do contrato por mútuo acordo, o que naturalmente dispensaria a recorrente de demonstrar o fundamento da resolução,
maxime
o incumprimento definitivo.
Mas a verdade é que tal acordo revogatório não foi alegado. Percorrida a alegação articulada na petição inicial, verifica-se que a autora descreve os esforços que desenvolveu no sentido de chegar a um acordo de revogação do contrato com a ré, mas descreve igualmente o insucesso dessas tentativas, que a levaram a resolver unilateralmente o contrato, por carta que remeteu à ré em 13.12.2023, onde invocou apenas a ultrapassagem dos prazos acordados.
Na verdade, a autora alega que, na sequência do atraso na execução da obra e da falta de resposta da ré às suas tentativas de contacto, os seus sócios se deslocaram às instalações da demandada com a intenção de resolver o contrato de subempreitada celebrado (cfr. artigos 30.º e 31.º), tendo aí tentado chegar a um acordo no sentido de o sócio gerente da ré apresentar o valor de todos os trabalhos executados e do material neles empregue até à data e proceder à devolução do remanescente do valor entregue com a adjudicação (cfr. artigo 34.º), e que, em nova reunião realizada no dia 16.10.2023, o referido gerente da ré apresentou aos sócios da autora o manuscrito junto como documento n.º 18, onde fixa em 25.754,99 € o montante dos trabalhos executados pela ré e em 36.080.80 € o montante a devolver à autora, mais propondo que a autora procedesse a tal devolução em quatro prestações mensais (cfr. artigos 35.º a 38.º). Mais alega que, por
email
de 17.10.2023, os sócios da autora apresentaram uma contraproposta, nos termos da qual o valor dos trabalhos executados pela ré ascendia a 21.590,22 €, pelo que teria de lhe ser devolvido o valor de 40.245,57 €, proposta que a ré não aceitou (cfr. artigos 39.º a 42.º). Alega ainda que tentou contactar o gerente da ré no sentido de negociar e acertar os valores propostos e contrapropostos por ambas as partes, que este não respondeu a esses contactos e que em 03.11.2023 enviou à ré uma minuta de um “contrato de revogação do contrato de subempreitada da obra Centro Médico ... no Funchal e confissão de dívida e acordo de pagamento”, mas as negociações mantiveram-se num impasse (cfr. artigos 43.º a 51.º), pelo que em 13.12.2023 a autora enviou à ré uma carta registada com AR, que esta recebeu, onde expunha os factos ocorridos desde a data da adjudicação da subempreitada, o incumprimento da ré e declarava resolvido o contrato celebrado entre ambas, tendo a ré respondido por carta de 18.12.2023, não aceitando a revogação do contrato e propondo o respectivo cumprimento em prazo a estabelecer entre ambas (cfr. artigos 52.º a 54.º).
Da alegação acabada de resumir decorre, com toda a clareza, não ter havido acordo das partes no sentido de revogar o contrato celebrado entre ambas. Deste modo, ainda que o acordo revogatório ou mútuo dissenso constitua uma forma de extinção dos contratos, prevista no artigo 406.º do CC enquanto corolário do princípio da autonomia privada, que se aproxima da resolução quando tem efeitos retroactivos, os pedidos em apreciação não se podem basear num acordo revogatório que não foi alegado.
Do que fica exposto também já decorre que os factos alegados pela autora não revelam ter havido por parte da ré uma declaração expressa de que não iria cumprir o contrato ou um
comportamento concludente
da vontade de não o cumprir, situações que, pacificamente, são equiparadas ao incumprimento definitivo do contrato e, por isso, são passíveis de fundamentar a resolução do contrato. Pelo contrário, o que resulta da alegação da autora (e é corroborado pela alegação da ré) é que esta sempre manifestou o seu interesse em cumprir o contrato celebrado entre as partes.
4.
Pelas razões antes expostas, o estado do processo não permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação dos pedidos objecto deste recurso, pelo que se impõe revogar a decisão recorrida e determinar o prosseguimento dos autos, nos termos previstos nos artigos 596.º e seguintes do CPC, sem prejuízo do recurso ao mecanismo previsto no artigo 590.º, n.º 2, al. b), e n.º 4, do CPC, se tal for julgado pertinente.
Na procedência da apelação, as respectivas custas são suportadas pela recorrida, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
*
Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
………………………………………………………..
………………………………………………………..
………………………………………………………...
*
IV. Decisão
Pelo exposto, na procedência da apelação, os juízes do Tribunal da Relação do Porto revogam a decisão recorrida e determinam o prosseguimento dos autos, nos termos previstos nos artigos 596.º e seguintes do CPC.
Custas pela recorrida.
Registe e notifique.
*
Porto, 17 de Junho de 2025
Relator: Artur Dionísio Oliveira
Adjuntos: Rodrigues Pires
Alberto Taveira
|
TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/6a62965468ec862380258cb6003127e9?OpenDocument
|
1,762,128,000,000
|
CONFIRMADA
|
1012/20.3T8VIS.C1
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1012/20.3T8VIS.C1
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ALBERTO RUÇO
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Entendendo o tribunal que a avaliação correta é a realizada no laudo maioritário dos peritos (os nomeados pelo tribunal, mais o perito da expropriada), não pode, depois, aplicar ao laudo de arbitragem um dos parâmetros constante do laudo pericial maioritário, se tal operação conduzir à fixação de um valor inferior para as parcelas expropriadas, contrário ao valor que o tribunal entende ser o correto, isto é, ao indicado no laudo pericial maioritário, que o tribunal só não aplicou ao caso, devido ao princípio da proibição da
reformatio in pejus.
(Sumário elaborado pelo Relator)
|
[
"PROCESSO DE EXPROPRIAÇÃO",
"INDEMNIZAÇÃO",
"RECURSO INTERPOSTO PELA EXPROPRIANTE",
"LAUDO ARBITRAL",
"LAUDO PERICIAL",
"REFORMATIO IN PEJUS"
] |
*
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra,
*
Juiz relator……………...Alberto Augusto Vicente Ruço
1.º Juiz adjunto….……..José da Fonte Ramos
2.º Juiz adjunto…………João Manuel Moreira do Carmo
*
Sumário: (…)
*
Recorrente
………………….
Município de Viseu
;
Recorrido
……………………
A... – SGPS S. A
.
*
I. Relatório
a)
O presente recurso insere-se num processo de expropriação e respeita à indemnização a atribuir pelas parcelas nº s 1 e 2, destinadas à construção da obra denominada «Alargamento do Troço da EN 229 – Rotunda do Matadouro», em Viseu.
O acórdão arbitral, datado de 13/11/2020, fixou a indemnização, quanto à parcela nº 1, em 67.009,83 euros e quanto à parcela 2 em 167.605,76 euros.
Apenas o Município de Viseu interpôs recurso quanto ao valor de ambas as parcelas.
Em sede de recurso da decisão arbitral, os peritos fixaram as seguintes indemnizações:
Parcela n.º 1
Perito da Expropriante: 114.544,77 + 12.728,41 =127.273,18 euros
Restantes peritos: 58.109,15 + 9.625,00 = 67.734,15 euros.
Parcela n.º 2
Perito da Expropriante: 114.544,77 +12.728,41=127.273,18 euros.
Restantes peritos: 140.793,98 +34.123,00 + 15.645,27 = 190.562,25 euros.
Realizou-se a audiência de julgamento e foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Nestes termos, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso da entidade expropriante, o Município de Viseu, fixando o valor da justa indemnização para a parcela 1 em 67.009,83€ e quanto à parcela 2 em 133.747,76 €, no valor global de 200.757,59€, a pagar pela entidade expropriante.
Este valor terá de ser atualizado de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor, com exclusão da habitação, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística, relativamente ao local da situação dos bens, desde a data da publicação da declaração de utilidade pública até à disponibilização aos expropriados de parte do depósito da entidade expropriante e, quanto ao restante, até à data do trânsito desta decisão. e nos termos sobreditos.
Custas na proporção do decaimento – cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 do Código do Processo Civil.»
b)
É desta decisão que vem interposto recurso para o tribunal da Relação por parte da Expropriante, cujas conclusões são as seguintes:
«Não tendo a Expropriada recorrido das Decisões Arbitrais proferidas no âmbito dos presentes autos para as Parcelas n.º 1 e n.º 2 necessárias à construção da obra denominada “Alargamento do Troço da EN229 - Rotunda do Matadouro”, em Viseu, entendeu o Mmº Tribunal
a quo
– como, aliás, defendido pela Expropriante – não poder fixar um valor indemnizatório superior àquele que foi estabelecido nas mesmas, por força do princípio da proibição da
reformatio in pejus
.
B. Deste modo, o Tribunal
a quo
considerou como limite da condenação os valores fixados nos Acórdãos Arbitrais que para a Parcela n.º 1 foi fixado em €67.009,83 e para Parcela n.º 2 foi fixado em €167.605,76.
C. No que respeita às concretas questões suscitadas no recurso da Expropriante entendeu o Tribunal
a quo
que não sendo perito de engenharia, aderia ao que foi dito pela maioria dos Senhores peritos, à exceção da questão do reservatório de água que entendeu não considerar, por falta de outros elementos, que é uma benfeitoria e nem o seu valor.
D. Assim, decidiu que o valor a atribuir à parcela 1 se mantinha nos 67.009,83€; já no que concerne à parcela 2 entendeu ser parcialmente procedente o recurso da Expropriante, retirando do valor a indemnizar o que foi atribuído ao reservatório de água – 33.858,00€ (vide fls. 353), na medida em que, não se tendo apurado se o mesmo funcionava e se tinha alguma utilidade, a sua existência, atenta a finalidade do solo, poderá até ser uma menos valia.
E. Donde, feitos os cálculos, entendeu que o valor da justa indemnização para a Parcela n.º 2 é de 133.747, 76€ (167.605,76 €-33.858,00€), e por conseguinte, fixou o valor global da justa indemnização de ambas as parcelas em 200.757,59€, a pagar pela entidade expropriante. (cfr. douta Sentença recorrida)
F. Ora, com o devido e maior respeito, entende-se que o Mº Tribunal
a quo
não só não podia ter acolhido alguns dos critérios constantes dos Acórdãos Arbitrais porque, por errados, conduzem consequentemente a uma indemnização injusta, como, também se entende, que embora o Tribunal
a quo
faça uma correcta valoração da prova produzida quanto à não consideração de benfeitorias na Parcela n.º 2 acaba por errar relativamente ao valor a deduzir a esse título ao montante global da indemnização. Vejamos então as razões que nos levam a discordar com o decidido, o que, por razões de facilidade de leitura, se fará para cada umas das parcelas de per si.
G. II. PARCELA n.º 1 - 1. Índice de Construção/Área Edificável: Relativamente ao índice de construção a Decisão Arbitral considerou um índice de 1,00/m2, entendimento que foi sufragado pelos Srs Peritos em sede de avaliação e acolhido pela douta Decisão em recurso, índice que se entende não estar devidamente fundamentado.
H. De facto, considerando os parâmetros e condicionantes previstos nos artigos 88º e 90º do PDM de Viseu, designadamente, o Índice volumétrico (≤ 3,5 m3/m2, com um máximo de 6 m no plano lateral), e o Índice de ocupação (≤ 50 %), e feitos os cálculos necessários para convolar o volume de área, em índice de utilização, 3,5:6, temos um valor final de índice de utilização para as parcelas expropriadas de 0,58m2/m2 de terreno.
I. Pelo que, para determinar qual a capacidade construtiva das parcelas expropriadas para efeitos de avaliação deve aplicar-se o índice de utilização correspondente a 0,58/m2 por m2 de terreno, único critério legal admissível e à data em vigor.
Ao decidir como decidiu o Tribunal
a quo
violou os artigos 88º e 90º do PDM, pelo que deverá ser revertida em conformidade.
J. 2. Quanto à aplicação do factor correctivo previsto no artigo 26º, n.º 10 do C.
Na aplicação deste critério os Sr.s Árbitros consideraram uma percentagem de 4,2%, (cfr. fls. 6/14 da D.A. - Parcela 1), quando todos os cinco peritos que procederam à Avaliação entenderam ser de aplicar uma percentagem de 10% em detrimento dos 4,2% constantes da Decisão Arbitral.
K. Ora, embora não resulte especificado é forçoso concluir que ao condenar a Expropriante no pagamento da indemnização global decidida no Acórdão Arbitral, é esta percentagem, de 4,2%, que acaba por ser acolhida pela douta Sentença recorrida.
L. Assim, considerando, como se transcreveu, que o Tribunal
a quo
diz ter aderido ao decidido pela maioria dos Senhores peritos, mas acaba por condenar de acordo com a Decisão Arbitral, parece-nos, salvo melhor opinião, estarmos perante uma causa de nulidade da sentença na medida em que os fundamentos estão em oposição com a decisão (cfr. art.º 615, n.º 1, alínea c) do CPC). Sem prescindir e ainda que assim não se entenda,
M. Nada existindo na Decisão em recurso que contrarie a posição defendida pelos Sr.s Peritos em sede de Avaliação, nem tendo o Mmº Tribunal
a quo
sustentado que se deve manter a aplicação da percentagem da Decisão Arbitral de 4,2%, para efeitos de aplicação do artigo 26º, n.º 10 do CE, entende-se que a Sentença recorrida está ferida de nulidade por falta de fundamentação.
N. Ao ter decidido como decidiu, a Decisão ora apelada decidiu mal, violando o art. 26º, n.º 10 do C.E, estando, ainda, ferida de nulidade nos termos do artigo 615º, n.º 1, al. c) e b) do CPC), devendo ser proferida Decisão que, para efeitos de aplicação do artigo 26º, n.º 10 do CE, considere a percentagem unanimemente considerada no Relatório pericial de 10%.
O. 3. Depreciação por divisão do prédio - Num único parágrafo e sem que procedesse aos cálculos exigidos no artigo 29º do CE, que prescreve como deve ser feito o cálculo do valor nas expropriações parciais - como é o caso
sub iudice
– a Decisão Arbitral atribuiu o valor de 14.689,51€ a título de desvalorização da parcela sobrante.
P. Não concordando com o decidido pelos Sr.s Árbitros - por não procederem ao referido cálculo, por não fundamentarem, nem esclarecerem que “condicionantes” pelo acesso e reposicionamento do parque de estacionamento determinaram a atribuição de uma percentagem de 3% e porquê – no seu recurso a Expropriante defendeu não haver lugar a qualquer indemnização a este título, entendimento seguido, de forma unânime, pelos cinco Senhores Peritos
Q. Acontece que, pese embora o Tribunal
a quo
diga ter aderido ao decidido pela maioria dos Senhores peritos - que não atribuem qualquer valor pela depreciação da sobrante - condena a Expropriante no pagamento da indemnização global decidida no Acórdão Arbitral, € 67.009,83, valor onde está incluído uma parcela no montante de € 14.689,51 respeitante à desvalorização da parcela sobrante.
R. Assim, considerando, como se transcreveu, que o Tribunal
a quo
diz ter aderido ao decidido pela maioria dos Senhores peritos, mas acaba por condenar no valor fixado na Decisão Arbitral, onde está incluída uma parcela de € 14.689,51 pela desvalorização da sobrante, parece-nos, salvo melhor opinião, estarmos perante uma causa de nulidade da sentença na medida em que os fundamentos estão em oposição com a decisão (cfr. art.º 615, n.º 1, alínea c) do CPC). Sem prescindir e ainda que assim não se entenda,
S. Nada existindo na Decisão em recurso que contrarie a posição defendida pelos Sr.s Peritos em sede de Avaliação, nem tendo o Mmº Tribunal a quo sustentado que se deve manter o entendimento da desvalorização da sobrante considerado na Decisão Arbitral e consequentemente a atribuição de um valor de € 14.689,51 a esse título, entende-se que a Sentença recorrida está ferida de nulidade por falta de fundamentação.
T. Ao ter decidido como decidiu, a Decisão ora apelada decidiu mal, violou o art. 29º do C.E, o Princípio da Justa Indemnização e da Proporcionalidade, estando ferida de nulidade nos termos do artigo 615º, n.º 1, al. c) e b) do CPC), devendo ser proferida Decisão em conformidade que conclua, tal como a unanimidade os Sr.s Peritos, pela não desvalorização da área sobrante e, consequentemente, não
ser devido qualquer montante indemnizatório a este título.
U. III. PARCELA 2, 1. Índice de Construção/Área Edificável - Relativamente ao índice de construção a Decisão Arbitral considerou um índice de 1,00/m2, entendimento que foi sufragado pelos Sr.s Peritos em sede de avaliação e acolhido na douta Decisão em recurso, índice que se entende não estar devidamente fundamentado.
V. De facto, considerando os parâmetros e condicionantes previstos nos artigos 88º e 90º do PDM de Viseu, designadamente, o Índice volumétrico (≤ 3,5 m3/m2, com um máximo de 6 m no plano lateral), e o Índice de ocupação (≤ 50 %), e feitos os cálculos necessários para convolar o volume de área, em índice de utilização, 3,5:6, temos um valor final de índice de utilização para as parcelas expropriadas de 0,58m2/m2 de terreno.
W. Pelo que, para determinar qual a capacidade construtiva das parcelas expropriadas para efeitos de avaliação deve aplicar-se o índice de utilização correspondente a 0,58/m2 por m2 de terreno, único critério legal admissível e à data em vigor. Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou os artigos 88º e 90º do PDM, pelo que deverá ser revertida em conformidade.
X. 2. Quanto à aplicação do factor correctivo previsto no artigo 26º, n.º 10 do C. E - Na aplicação deste critério os Sr.s Árbitros consideraram uma percentagem de 5,4% (cfr. fls. 7/13 da D.A. - Parcela n.º 2), quando todos os cinco peritos que procederam à Avaliação entenderam ser de aplicar uma percentagem de 10% em detrimento dos 5,4% constantes da Decisão Arbitral.
Y. Ora, embora não resulte especificado é forçoso concluir que ao condenar a Expropriante no pagamento da indemnização global decidida no Acórdão Arbitral, é esta percentagem, de 5,4%, que acaba por ser acolhida pela douta Sentença recorrida.
Z. Assim, considerando, como se transcreveu, que o Tribunal
a quo
diz ter aderido ao decidido pela maioria dos Senhores peritos, mas acaba por condenar de acordo com a Decisão Arbitral, parece-nos, salvo melhor opinião, estarmos perante uma causa de nulidade da sentença na medida em que os fundamentos estão em oposição com a decisão (cfr. art.º 615, n.º 1, alínea c) do CPC). Sem prescindir e ainda que assim não se entenda,
AA. Nada existindo na Decisão em recurso que contrarie a posição defendida pelos Sr.s Peritos em sede de Avaliação, nem tendo o Mmº Tribunal a quo sustentado que se deve manter a aplicação da percentagem da Decisão Arbitral de 5,4%, para efeitos de aplicação do artigo 26º, n.º10 do CE, entende-se que a Sentença recorrida está ferida de nulidade por falta de fundamentação.
BB. Ao ter decidido como decidiu, a Decisão ora apelada decidiu mal, violando o art. 26º, n.º 10 do C.E, estando, ainda, ferida de nulidade nos termos do artigo615º, n.º 1, al. c) e b) do CPC), devendo ser proferida Decisão que, para efeitos de aplicação do artigo 26º, nº10 do CE, determine a percentagem unanimemente considerada no Relatório pericial de 10%.
CC. 3. Quanto às benfeitorias - Na Decisão Arbitral os Senhores Árbitros atribuíram ao depósito de água de 330m2 em betão armado uma indemnização de € 70.000,00 (setenta mil euros), valor que a Expropriante impugnou por entender que o mesmo não se encontrava minimamente fundamentado.
DD. Na Avaliação, os Sr.s Peritos nomeados pelo Tribunal e o Sr. Perito indicado pela Expropriada consideraram ser de atribuir, pelo referido depósito, o valor de € 33.123,00.
EE. Acontece, porém, que, quanto a esta matéria, entendeu o Mmº Tribunal a quo (na nossa óptica bem) que, por falta de elementos e atenta a prova produzida, não se poderia considerar nem que este reservatório de água configurava uma benfeitoria, nem, tão pouco, considerar o seu valor. E, assim, não atribuiu qualquer valor ao reservatório de água.
FF. Ora, pese embora se concorde com o decidido quanto a esta matéria pelo Tribunal
a quo
, não se pode de todo em todo concordar com o cálculo que foi feito e com o valor que pelo mesmo foi considerado deduzir ao montante global indemnizatório: o valor de € 33.858,00 atribuído pelos Sr.s Peritos.
GG. Ao julgar procedente esta parte do recurso, ao decidir não atribuir qualquer valor ao reservatório de água, considerando o raciocínio/cálculo efectuado, o Tribunal teria de retirar ao valor total do montante indemnizatório que entende ser de atribuir, não o valor de €33.858,00 considerado pelos Sr.s Peritos, mas o valor real e parcelar constante da Decisão Arbitral e que foi objecto de recurso, o valor parcelar de € 70.000,00, valor que corresponde - efectivamente - ao montante que foi dado pelos Sr.s Árbitros pelo depósito de água enquanto benfeitoria. Ao decidir como decidiu o Mmº Tribunal
a quo
violou o artigo 25º do C.E, estando a Sentença recorrida ferida de nulidade nos termos do artigo 615º, n.º 1, al. c) e b) do CPC).
HH. Deste modo, deve ser proferida Decisão que não atribua qualquer valor ao reservatório de água, não podendo o montante indemnizatório contemplar qualquer parcela a este título, sendo que, a proceder o cálculo efectuado na Decisão recorrida sempre deverá ser deduzido o valor parcelar de € 70.000,00, valor que corresponde - efectivamente - ao montante que foi dado pelos Sr.s Árbitros pelo depósito de água enquanto benfeitoria.
II. 4. Depreciação por divisão do prédio - Num único parágrafo e sem que procedesse aos cálculos exigidos no artigo 29º do CE que prescreve como deve ser feito o cálculo do valor nas expropriações parciais - como é o caso
sub iudice
- a Decisão Arbitral atribuiu o valor de 5.128,65€ a título de desvalorização da parcela sobrante.
JJ. Não concordando com o decidido pelos Sr.s Árbitros - por não procederem ao referido cálculo, por não fundamentarem, nem esclarecerem que “condicionantes” pelo acesso e reposicionamento do parque de estacionamento determinaram a atribuição de uma percentagem de 3% e porquê – no seu recurso a Expropriante defendeu não haver lugar a qualquer indemnização a este título.
KK. Ora, ao condenar a Expropriante no pagamento da indemnização global decidida no Acórdão Arbitral, €167.605,76, valor onde está incluído uma parcela no montante de €5.128,65 respeitante à desvalorização da parcela sobrante, o Tribunal
a quo
decidiu erradamente estando a Sentença recorrida ferida de nulidade por falta de fundamentação.
LL. Ao ter decidido como decidiu, a Decisão ora apelada decidiu mal, violou o art. 29º do C.E, o Princípio da Justa Indemnização e da Proporcionalidade, estando ferida de nulidade nos termos do artigo 615º, n.º 1, al. b) do CPC), pelo que, deverá ser proferida Decisão em conformidade que conclua pela não desvalorização da área sobrante e, consequentemente, não ser devido qualquer montante indemnizatório a este título.
TERMOS EM QUE, Confiando-se no Douto suprimento de Vossas Excelências, Deve ser dado provimento ao presente recurso, com todas as consequências legais. ASSIM SE FAZENDO INTEIRA J U S T I Ç A.»
c)
Foram produzidas contra-alegações, nos seguintes termos:
«1) A douta sentença recorrida, aderindo ao defendido pelo expropriante, entendeu que, não tendo a expropriada recorrido da decisão arbitral, não pode vir a ser fixado um montante indemnizatório superior ao que foi fixado por aquela decisão.
No caso presente, o acórdão arbitral fixou o valor da justa indemnização em 67.009,83 € para a parcela nº 1, e 167.605,76 € para a parcela nº 2.
Esses valores constituem, assim, um valor máximo indemnizatório que o tribunal estará obrigado a respeitar.
Nessa linha de entendimento, a douta sentença aderiu ao que foi dito e decidido pela maioria dos peritos, à excepção do depósito de água, por, segundo explicou, não dispor de elementos que lhe permitam classificá-lo como benfeitoria.
Desse modo, a douta sentença recorrida fixou os seguintes valores:
1. Quanto à parcela 1, aquele valor de 67.009,83 €;
2. Quanto à parcela 2, o valor de 133.747,76 €, correspondente àqueles 167.605,76 € menos o valor de 33.858,00 €, atribuído pelo relatório arbitral ao valor do depósito de água.
2) No seu recurso, o MUNICÍPIO recorrente não impugna a matéria de facto fixada pela douta sentença de1ª instância, a qual se deve, por isso, considerar definitivamente fixada.
Mas, não obstante isso, vem impugnar os valores indemnizatórios fixados por aquela sentença.
Fá-lo, porém, “atacando”, não a sentença propriamente dita, mas os relatórios arbitral e de perícia.
Ora, em 1º lugar, não se vê como, para além de, enquanto parte interessada, ver a sua isenção e a sua independência seriamente afectadas, possui o recorrente conhecimentos técnicos superiores aos dos peritos subscritores dos relatórios arbitral e pericial ao ponto de poder impôr o seu próprio entendimento ao tribunal, em desvalor ou anulação do juízo técnico dos peritos.
E, em 2º lugar, não se vê como possa o recorrente, não tendo impugnado a matéria de facto considerada provada pela douta sentença, que acolhe, sem reserva, o resultado do relatório arbitral e do relatório pericial, vir, pela via da discussão do mérito da sentença, pôr em causa factos e valores constantes daqueles relatórios, que, por sua vez, foram levados à matéria de facto provada e não impugnada.
3) Como já se notou, a douta sentença aderiu ao que foi dito e decidido pela maioria dos peritos, com excepção da questão do valor dado ao do depósito de água.
Fê-lo, como explicou, porque entende que o Tribunal “não é perito de engenharia”.
Com efeito, na linha do decidido pelo nosso STJ (Ac. de 02-05-2019, Proc. nº 1650/06,
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), é uniforme, na nossa jurisprudência o entendimento segundo o qual, estando-se, como se está, no âmbito de matéria para a qual o julgador carece de adequados conhecimentos técnicos, na fixação do montante indemnizatório é de atribuir particular relevo ao laudo pericial, com especial destaque para o emitido pelos peritos designados pelo tribunal, dada a sua particular isenção.
… o referido entendimento não é ditado pela lei, sendo antes, e só, um critério a seguir pelas instâncias na apreciação da prova produzida e na subsequente fixação da factualidade provada.
Na verdade,
Muito embora a força probatória das respostas dos peritos seja fixada livremente pelo julgador, atendendo à especial conformação legal da avaliação em processo de expropriação, e aos especiais conhecimentos técnicos exigidos aos peritos nomeados para a efectuarem, caso o relatório pericial seja unânime ou maioritário, o tribunal só deve afastar-se dos valores por aqueles propostos com base em especiais conhecimentos que o mesmo não possui, se verificar a existência de erro ou incumprimento pelos peritos dos critérios legalmente estabelecidos e aos quais estes também se encontram vinculados. – Acs. da RC, de 15-1-2013, Proc. 637/10 e da RE de 10-9-2020, Proc. 84/18, ambos em
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Como também já entendia a Relação de Lisboa, no seu acórdão de 07-07-2009, proferido no processo n.º 61/1996.L1-1, acessível também em
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, «[…] Apesar da sua liberdade de apreciação das provas, incluindo a pericial, o julgador não pode, sem fundamentos suficientemente sólidos, afastar-se do resultado das peritagens, sobretudo quando são unânimes ou quando os peritos formaram maioria e oferecem garantias de imparcialidade, ainda mais quando os maioritários são peritos do tribunal. […] Um tal afastamento só se justificará, por exemplo, quando o tribunal concluir que os peritos basearam o seu raciocínio em erro manifesto ou num critério ilegal. De contrário, não apresentando o relatório pericial qualquer desses vícios, e à falta de elementos mais seguros e objectivos, há que aceitar o valor proposto pelos técnicos.»
Revisitando o citado acórdão da RE de 10-9-2020,1
“O especial valor probatório do relatório pericial apenas será de excluir se outros preponderantes elementos de prova o infirmarem, mormente por padecer de erro grosseiro ou por ser contrário a normas legais vinculativas, caso em que o juiz deve pôr em causa o relatório técnico dos peritos, mas com recurso a argumentação técnica ou científica, eventualmente baseada noutros meios de prova divergentes, de igual ou superior credibilidade, e que podem, por exemplo, decorrer dos relatórios minoritários ou ainda do cotejo deste relatório com o laudo arbitral e o relatório de avaliação, todos efectuados por peritos igualmente integrados na referida lista oficial.
A perícia constitui um meio de prova de natureza técnica na medida em que ao perito, ao invés do que ocorre quanto às testemunhas, para além da narração dos factos que percepciona, está também cometida a tarefa de apreciar ou valorar esses factos de acordo com os especiais 1 Em linha com o posterior entendimento do Ac. da RG de 11-5-2022, Proc. nº 266/12, acessível em
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. conhecimentos técnicos que possui na matéria, e que não são do conhecimento do julgador, podendo inclusivamente trazer ao tribunal apenas a apreciação e valoração dos factos.
… o Código das Expropriações, com vista à determinação do valor do bem objecto da expropriação, prevê a intervenção de peritos em todas as fases do processo, desde o procedimento relativo à declaração de utilidade pública, ao procedimento atinente à efectivação da posse administrativa, e, já no processo de expropriação litigiosa, quer na fase de arbitragem, quer no recurso desta, designadamente para efeitos dos respectivos artigos 61.º e 62.º, ou seja, designadamente, da avaliação.
“Esta diligência pericial, obrigatória, que visa essencialmente a avaliação dos bens em causa, com vista à determinação do montante indemnizatório concernente, é tão relevante para o efeito que a lei atribui a sua presidência ao próprio juiz.
A referida obrigatoriedade, ao invés do que decorre em relação aos outros meios de prova, deriva essencialmente da complexidade técnica da avaliação das várias espécies de bens, e, por isso, da necessidade de colaboração de pessoas com conhecimentos específicos de que a generalidade das pessoas não dispõe”.
Assim sendo, e “não dispondo o juiz de conhecimentos especiais na área a que respeita a perícia (…), salvo casos de erro grosseiro, não estará em condições de sindicar o juízo científico emitido pelo perito, …afigurando-se, por isso, bem mais ajustada às actuais realidades da vida, a norma do Código de Processo Penal relativa ao valor da prova pericial (artigo 163.º, n.º 1), que estabelece a presunção de que o juízo técnico, científico ou artístico, está subtraído à livre apreciação do julgador”.
Acresce que o Código das Expropriações estabelece para o efeito regras especiais, uma vez que esta avaliação é efectuada por cinco peritos - desde logo ressaltando desta imposição uma maior exigência do que a geralmente adoptada, porquanto dos artigos 468.º, n.º 1, e 469.º, n.º 1, do CPC, resulta que a perícia é, em regra, singular, e excepcionalmente colegial -, designando cada parte um perito e sendo os três restantes nomeados pelo tribunal, e escolhidos de entre os que constam da lista oficial – artigo 62.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, do citado diploma legal.
Ora, os peritos e árbitros constantes das listas oficiais estão sujeitos às especiais regras de recrutamento e às condições de exercício de funções - quer no âmbito dos procedimentos anteriores à declaração de utilidade pública quer no âmbito do processo de expropriação – que se encontram previstas no DL n.º 125/2002, de 10 de Maio, que aprovou o Estatuto dos Peritos Avaliadores (cfr. artigo 1.º). Assim, os mesmos são recrutados mediante concurso, tendo de possuir curso superior adequado, e sujeitos a provas de selecção – cfr. artigos 3.º, 5.º, 6.º e 7.º do EPA.
Seleccionados, efectuam um curso de formação no Centro de Estudos Judiciários, são sujeitos a classificação final, são ajuramentados perante o presidente do Tribunal da Relação do respectivo distrito judicial – artigos 9.º-A, 9.º-B e 11.º do EPA – e têm que frequentar obrigatoriamente duas acções de formação permanente, sendo excluídos se deixarem de cumprir os seus deveres funcionais – artigos 12.º e 13.º do EPA.
Tudo para dizer que os peritos que integram a lista oficial estão sujeitos a especiais exigências com vista a acautelar a sua qualidade técnica.
Acresce que os mesmos não podem intervir como peritos avaliadores indicados pelas partes em processos de expropriação que corram em Tribunal – artigo 15.º do EPA - e estão sujeitos aos impedimentos previstos no artigo 16.º e aos fundamentos de suspeição definidos no artigo 17.º, ambos do Estatuto dos Peritos Avaliadores, tudo com vista a garantir a sua isenção e imparcialidade.
Por fim, devem proceder à elaboração dos laudos periciais de acordo com as normas legais e regulamentares aplicáveis e devem fundamentar claramente o cálculo do valor atribuído – artigo 21.º do EPA - donde decorre, por exigência legal, que têm de se pautar por critérios objectivos.
Daí que os tribunais, de forma uniforme, e apesar de, como se disse, a prova pericial produzida não ser vinculativa, entendam que em processo de expropriação, sendo a peritagem obrigatória e tratando-se de um problema essencialmente técnico – a avaliação do bem expropriado -, o tribunal deve aderir, em princípio, ao parecer dos peritos, dando preferência ao valor resultante desses pareceres, desde que sejam coincidentes, e, por razões de imparcialidade e independência, quando não sejam coincidentes, optar pelo laudo dos peritos nomeados pelo tribunal porquanto este é o meio de prova que melhor habilita o julgador a apurar o valor do bem expropriado, com vista à atribuição da justa indemnização.
Na verdade, para além da presumida competência técnica que se lhes reconhece, a posição assumida pelos peritos nomeados pelo tribunal é aquela que, em princípio, oferece maiores garantias de independência e de imparcialidade, face à distanciação que mantêm em relação às posições do expropriante e do expropriado, os quais, amiúde, defendem a atribuição de valores, respectivamente inferiores e superiores aos atribuídos por aqueles.
Por todas estas razões, tem-se entendido que este especial valor probatório do relatório pericial apenas será de excluir se outros preponderantes elementos de prova o infirmarem, mormente por padecer de erro grosseiro ou por ser contrário a normas legais vinculativas, caso em que o juiz deve pôr em causa o relatório técnico dos peritos, mas com recurso a argumentação técnica ou científica, eventualmente baseada noutros meios de prova divergentes, de igual ou superior credibilidade, e que podem, por exemplo, decorrer dos relatórios minoritários ou ainda do cotejo deste relatório com o laudo arbitral e o relatório de avaliação, todos efectuados por peritos igualmente integrados na referida lista oficial.
4) Ora, no caso dos presente autos, não existem quaisquer elementos de facto que levem a desacreditar os valores indicados, quer pelos árbitros, por unanimidade, quer, depois, pelos peritos, neste caso por unanimidade dos peritos designados pelo tribunal, formando maioria com o perito indicado pela expropriada.
Ambos os relatórios, o arbitral e o pericial, mostram-se fundamentados e acompanhados das explicações devidas a perceber as suas conclusões.
5) Nas suas alegações do presente recurso, o recorrente MUNICÍPIO vem pôr em causa, perante o tribunal, e querer com este discutir, não a sentença em si, mas aspectos e questões de natureza técnica dos dois relatórios – o arbitral e o pericial.
Esquece-se, porém, que, como parte, não lhe são reconhecidos conhecimentos técnicos – nem a isenção e a independência – necessários e suficientes para poder pôr em causa o trabalho técnico e independente dos árbitros e dos peritos.
E que o tribunal, como já atrás se salientou, também não é portador desses conhecimentos.
Com efeito, estamos no âmbito de matéria para a qual o tribunal carece de adequados conhecimentos técnicos.
Ora o tribunal, justamente por o juiz não possuir conhecimentos técnicos, não pode pôr em causa o relatório técnico dos peritos, sem o recurso a argumentação técnica ou científica, baseada noutros meios de prova divergentes, de credibilidade igual ou superior aos relatórios e aos peritos que os subscreveram.
2 Entendimento uniformemente adoptado pelas instâncias, no uso de um critério sufragado pelo STJ, no seu referido Ac. de 02-05-2019, Proc. nº 1650/06,
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.
E, não com base na argumentação da própria parte, por muito respeitável que seja.
Justamente porque as declarações/alegações da parte não fazem prova a seu favor e não é de presumir que ela tenha conhecimentos técnicos superiores aos dos árbitros e peritos.
E porque o expropriante, enquanto parte interessada, não reúne condições de objetividade e isenção. Muito menos para pôr em causa o relatório e a opinião técnica dos peritos.
Como já se disse, tem-se entendido que o especial valor probatório do relatório pericial apenas será de excluir se outros preponderantes elementos de prova o infirmarem, nomeada e especialmente por padecer de erro grosseiro ou por ser contrário a normas legais vinculativas, caso em que o juiz deve pôr em causa o relatório técnico dos peritos, mas com recurso a argumentação técnica ou científica, eventualmente baseada noutros meios de prova divergentes, de igual ou superior credibilidade, e que podem, por exemplo, decorrer dos relatórios minoritários ou ainda do cotejo deste relatório com o laudo arbitral e o relatório de avaliação, todos efectuados por peritos igualmente integrados na referida lista oficial.
Ora, no caso dos presentes autos, não ocorre nenhuma dessas circunstâncias que levassem a colocar em crise o valor técnico do relatório de avaliação subscrito, por unanimidade, pelos peritos nomeados pelo Tribunal.
Nem o relatório pericial enferma de erro grosseiro nem as alegações do Município, enquanto parte interessada, têm a natureza de prova de igual ou superior credibilidade.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, e pelo mais de direito do douto suprimento, devem ser julgadas improcedentes as questões colocadas no recurso e este ser julgado improcedente, confirmando-se a douta sentença recorrida.
com custas e demais encargos conforme for de Direito.»
II. Objeto do recurso.
As questões que o recurso coloca são as seguintes:
1
– Nulidades de sentença.
a)
A recorrente argui diversas nulidades de sentença, as quais se reconduzem ao mesmo fundamento, ou seja, os fundamentos estão em oposição com a decisão (cfr. art.º 615, n.º 1, alínea c) do CPC), porquanto se afirma na sentença que a decisão segue o laudo da maioria dos peritos, mas acaba por condenar de acordo com a decisão arbitral, bem como à falta de fundamentação.
Exemplificando, nas alíneas «K» e «L» refere o seguinte:
«K. Ora, embora não resulte especificado é forçoso concluir que ao condenar a Expropriante no pagamento da indemnização global decidida no Acórdão Arbitral, é esta percentagem, de 4,2%, que acaba por ser acolhida pela douta Sentença recorrida.
L. Assim, considerando, como se transcreveu, que o Tribunal
a quo
diz ter aderido ao decidido pela maioria dos Senhores peritos, mas acaba por condenar de acordo com a Decisão Arbitral, parece-nos, salvo melhor opinião, estarmos perante uma causa de nulidade da sentença na medida em que os fundamentos estão em oposição com a decisão (cfr. art.º 615, n.º 1, alínea c) do CPC). Sem prescindir e ainda que assim não se entenda…».
b)
Verificar se as questões suscitadas relativamente às nulidades da sentença são também alegadas em sede de mérito, porquanto também foram alegadas pela recorrente com a finalidade de obter a sua análise pelo tribunal.
2
– Do índice de construção.
A Recorrente argumenta que o índice de construção/área edificável de 1,00/m2, considerado pelos peritos e acolhido na decisão arbitral está errado, não podendo ser superior a 0,58m2/m2 de terreno, porquanto os artigos 88º e 90º do PDM.
3
– Para o caso de se entende que a argumentação jurídica não procede relativamente à arguição de nulidades, verificar se tal argumentação pode ser aproveitada para análise do mérito da causa, colocando-se então as seguintes questões:
(a)
Quanto à aplicação do
fator corretivo previsto no artigo 26º, n.º 10
do Código das Expropriações, a recorrente sustenta que deve aplicar-se a percentagem de 10% em detrimento dos 4,2% e 5,4% constantes da decisão arbitral, devendo ser aquela a taxa de correção aplicável a ambas as parcelas.
(b)
Relativamente à Parcela n.º 1, saber se ocorre depreciação da parcela sobrante devido à divisão do prédio devendo-se entender que não, segundo a Recorrente, e, por isso, devem retirar-se da indemnização a verba atribuída a esse título pelos árbitros.
(c)
Relativamente à benfeitoria da Parcela n.º 2.
Na Decisão Arbitral os Senhores Árbitros atribuíram ao depósito de água de 330m2 em betão armado uma indemnização de €70.000,00 (setenta mil euros), valor que a Expropriante impugnou
Como o tribunal entendeu que não era devida qualquer indemnização, logo devia ter subtraído à indemnização fixada não os 33.123,00 indicados pelos peritos, mas os 70.000,00 fixados pelos árbitros.
III. Fundamentação
A) Nulidades de sentença
(I)
A recorrente alega diversas nulidades de sentença as quais se reconduzem ao mesmo fundamento, ou seja, os fundamentos estão em oposição com a decisão (cfr. art.º 615, n.º 1, alínea c) do CPC), porquanto se afirma na sentença que a decisão segue o laudo da maioria dos peritos, mas acaba por condenar de acordo com a decisão arbitral.
Exemplificando, nas alíneas «K» e «L» refere o seguinte:
«K. Ora, embora não resulte especificado é forçoso concluir que ao condenar a Expropriante no pagamento da indemnização global decidida no Acórdão Arbitral, é esta percentagem, de 4,2%, que acaba por ser acolhida pela douta Sentença recorrida.
L. Assim, considerando, como se transcreveu, que o Tribunal
a quo
diz ter aderido ao decidido pela maioria dos Senhores peritos, mas acaba por condenar de acordo com a Decisão Arbitral, parece-nos, salvo melhor opinião, estarmos perante uma causa de nulidade da sentença na medida em que os fundamentos estão em oposição com a decisão (cfr. art.º 615, n.º 1, alínea c) do CPC). Sem prescindir e ainda que assim não se entenda…»
Vejamos.
Como referiu o Prof. Alberto dos Reis, «Quando os fundamentos estão em oposição com a decisão, a sentença enferma de vício lógico que a compromete. A lei quer que o juiz justifique a sua decisão. Como pode considerar-se justificada uma decisão que colide com os fundamentos em que ostensivamente se apoia?» e acrescenta, «Há contradição entre os fundamentos e a decisão quando «…os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto» -
Código de Processo Civil Anotado
. Coimbra Editora, 1984. Vol. V (Reimpressão), pág. 141.
Esta nulidade ocorre quando o juiz conduz a argumentação que consta da fundamentação jurídica da sentença num certo sentido e, depois, no dispositivo da sentença, tira uma conclusão inesperada, isto é, contraditória com a argumentação anterior.
É nisto que consiste a contradição apontada nesta norma.
Ora, tal contradição não ocorre no caso dos autos, pela seguinte razão:
A Expropriante recorreu com o fim de obter a diminuição da indemnização a pagar à expropriada pela expropriação das duas parcelas.
O tribunal de 1.ª instância disse que aderia ao laudo maioritário em detrimento do laudo apresentado pelo Sr. perito indicado pela expropriante.
Sucede que o laudo dos peritos maioritários atribuiu uma indemnização superior à indemnização atribuída na decisão arbitral, o que implicou segundo o raciocínio do tribunal recorrido a improcedência do recurso apresentado pela expropriante.
O tribunal, referindo que não podia prejudicar quem recorre, colocando-o em situação mais desfavorável do que aquela em que estaria se não tivesse recorrido (princípio da
reformatio in pejus
consagrado no artigo 635.º, n.º 5, do Código de Processo Civil), fixou a indemnização, não nos valores indicados no laudo maioritário dos peritos, mas nos valores indicados na decisão arbitral.
Face ao que fica exposto, não ocorre a apontada contradição entre os fundamentos e a decisão, pois quando o juiz adere à fundamentação do laudo maioritário, adere à respetiva argumentação, que só não segue depois na fixação da indemnização porque, afirma, tal lhe está vedado pela norma da
reformatio in pejus
.
Não existe, por isso, qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão.
Com efeito, se um leitor hipotético fizer o exercício de ocultar o dispositivo da sentença e ler de seguida apenas a respetiva fundamentação, se esse leitor tivesse de escrever a decisão após ter lido a fundamentação, concluiria no mesmo sentido que consta do dispositivo da sentença sob recurso, isto é, a conclusão (decisão) da sentença é a esperada face às premissas que o juiz fez constar da fundamentação.
Quando a parte discorda da fundamentação indicada na sentença, tal discordância insere-se na questão jurídica de fundo, de mérito, mas não respeita a matéria de natureza processual, como é o caso das nulidades de sentença.
Improcedem, pelo exposto, a invocada nulidade de sentença.
Esta argumentação é comum às demais nulidades de sentença arguidas, pelo que improcedem as apontadas nulidades de sentença.
(II)
Estas questões suscitadas relativamente às nulidades da sentença serão analisadas mais abaixo em sede de mérito, porquanto também foram alegadas pela recorrente com a finalidade de obter a sua análise pelo tribunal.
É o que resulta das seguintes conclusões:
«… devendo ser proferida Decisão que, para efeitos de aplicação do artigo 26º, nº 10 do CE, determine a percentagem unanimemente considerada no Relatório pericial de 10%.» - Conclusão BB.
«… sempre deverá ser deduzido o valor parcelar de €70.000,00, valor que corresponde - efectivamente - ao montante que foi dado pelos Sr.s Árbitros pelo depósito de água enquanto benfeitoria.» - Conclusão HH.
«… pelo que, deverá ser proferida Decisão em conformidade que conclua pela não desvalorização da área sobrante e, consequentemente, não ser devido qualquer montante indemnizatório a este título» - Conclusão LL.
(III)
Também não ocorre a falta de fundamentação da sentença porquanto, embora ligeira, encontra-se fundamentada, percebendo-se claramente as razões da decisão.
B) 1. Matéria de facto – Factos provados
1) A parcela nº 1 refere-se ao prédio registado a favor da R. com o nº ...52 e inscrito na matriz da freguesia ... com o art.º urbano ...98 (proveniente do art.º ...54º – docs de fls 3 e 4 dos autos principais.
2) a parcela nº 2 refere-se ao prédio da R., registado sob o nº ...18º e inscrito na matriz predial urbana sob o nº ...88º - vide fls 2 e 3 do apenso B
- Foi declarada a utilidade pública das parcela nº e da nº 2 por despacho do Sr SE de 27 feveriro 2019, publicado no DR , 2ª serie , nº 52, de 14 de março – fls 21 e 22
Parcela 1
3) O auto de vistoria
ad perpetuam rei memoriam
da parcela 1 encontra-se a fls 7 e segs e é datado de 10 de junho de 2019
4) A A. / Requerente, avaliou a parcela 1 em 51.854,58€ (fls 9 do apenso A) e a Ré, na altura a “B... SA”, em 245.787,00€ - fls 40- auto de posse administrativa em 11/12/2019
Parcela 2
-5) O AVAPRM da parcela nº 2 mostra-se a fls 8 e segs do apenso B e, após reclamação, foi complementado em agosto de 2019, designadamente a propósito do depósito de abastecimento de água
6) A entidade expropriante avaliou esta parcela em 89.015, 85€ - vide fls 26 – e, posteriormente em 97.236.97 – vide fls 53 verso
7) A expropriada, na altura a empresa “B... SA” avaliou esta parcela em 339.690,52€ - vide fls 41 do apenso B
8) O relatório pericial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, não foi unânime, tendo a oposição do perito da A.
Assim, fixa como valor de justa indemnização para a parcela 1 o perito da expropriante o valor de 42.277.46€ e os restantes, do tribunal e dos expropriados, 67.734,15€
E para a parcela 2, respetivamente, os valores de 127.273, 18€ e de 190.562€
9) No que concerne à Parcela 1, a expropriar, possui uma área total de 629.50 m2 com localização semelhante à do prédio, com as seguintes confrontações:
Norte - AA e parte restante do prédio
Sul – EN 229 e Estrada Municipal
Nascente – EN 229 e
Poente – Parte restante do prédio
10) Da expropriação resulta uma sobrante no sentido noroeste com a área de 7.100,50 m2.
11) De acordo com a V.a.p.r.m., foram descritos:
- “a sua configuração numa forma retangular com cerca de 70 m de extensão por 8 m de largura…
- a natureza habitacional da zona envolvente
- na área sobrante do prédio (da parcela) objeto de expropriação existem edificações de características industriais, administrativas, habitacionais e que não são afetadas
- Infraestruturas urbanas
- Benfeitorias – muros de vedação em alvenaria de blocos de granito fechada a argamassa de cimento com coroamento em laje de betão e um poço”
12) A parcela está inserida em “Unidades Operativas de Planeamento e Gestão Tipo 4
– Espaços de atividades económicas”.
13) Aquando da visita ao local os Peritos constaram que a parcela já estava ocupada pela obra já realizada que motivou a expropriação.
14) O prédio insere-se em zona com boa qualidade ambiental apenas prejudicada pelo tráfego da EN 229.
15) Quanto a infraestruturas em serviço junto/próximo do prédio, de acordo com o mesmo documento (V.a.p.r.m.), existiam as seguintes:
• • Acesso rodoviário, pavimentado em betuminoso, junto ao prédio e parcela, em bom estado de conservação;
• • Rede de abastecimento domiciliário de água, com serviço junto ao prédio e parcela;
• • Rede de saneamento com coletor em serviço, junto ao prédio e parcela;
• • Rede de distribuição de energia elétrica em baixa tensão, com serviço junto ao prédio e parcela;
• • Estação depuradora em ligação com a rede de coletores de saneamento com serviço junto ao prédio e parcela e
• • Rede telefónica junto ao prédio e parcela.
16) O Plano Diretor Municipal (PDM) de Viseu em vigor à data da DUP é o publicado no D.R., 2.ª série, n.º 188, de 30 de setembro de 2013. De acordo com este PDM planta de ordenamento – classificação e qualificação do solo, o terreno da parcela expropriada estava inserido em mancha classificada como Solo Urbano – Solo Urbanizado – Espaços de Atividades Económicas (fonte
https://websig.cmviseu.pt/gomunicipal/viseu/geo
)
As principais disposições genéricas referentes ao solo urbano são as seguintes:
O terreno da parcela expropriada integra ainda a UOPG 4
17) A metodologia seguida pelos senhores peritos para obtenção do valor da justa indemnização devida, contemplou:
1. Visita à parcela, prédio e análise de mercado;
2. Classificação do Solo, de acordo com art.º 25º do CE;
3. Definição dos critérios e cálculo do valor do solo, tendo presente a sua classificação;
4. Cálculo do valor das benfeitorias existentes, caso existam e se justifique;
O valor obtido é à data da Declaração de Utilidade Pública.
De acordo com o previsto no “Código de Expropriações” – C.E., aprovado pela Lei Nº 168/99 de 18 de setembro e posteriores alterações, no seu Artº 25º nº 1 define-se que, para efeitos de cálculo da indemnização por expropriação, o solo se classifica em:
• a) Solo apto para construção;
• b) Solo para outros fins;
18) O Valor do solo da parcela expropriada (629,50 m2) teve em conta os
seguintes parâmetros:
- Tipo de edificação possível de efetuar: Comércio e/ou Serviços
- Índice de construção:
- Acima do solo ..................................................................................1,00 m2/m2
- Acima do solo (Perito da Expropriante) ...............................................488 €/m2
- Acima do solo (Peritos do Tribunal e da Expropriada)………………12,84 €/m2
- Valor do terreno - percentagem sobre o valor da construção
Perito da Expropriante...................................................................................18 %
Peritos do Tribunal e da Expropriada……………………………………………20%
- Despesas com prolongamento de infraestruturas (n.º 9 art.º 26.º C.E.)……5%
Perito da Expropriante....................................................................................5 %
Peritos do Tribunal e da Expropriada.……………………………………………0%
- Percentagem referente ao n.º 10 do artigo 26.º do C.E. ……....................10 %
Segundo a maioria dos peritos “os índices de construção considerados tiveram em atenção o estipulado no Regulamento do PDM e o que os Peritos entendem ser o aproveitamento económico normal (que como é usual parte do máximo e melhor aproveitamento construtivo possível com respeito pelas disposições legais aplicáveis) tendo em atenção a localização do prédio. De acordo com a subalínea “a3” da alínea “a” do n.º 2 do artigo 90.º do Regulamento do PDM de Viseu, o índice máximo volumétrico é de 3,5 m3/m2.
Haverá, no entanto, que atender a que a altura lateral máxima é de 6 metros, a menos de situações específicas relacionadas com a atividade, e que o índice de ocupação máximo é de 50%, o que corresponde a edificar em cada piso acima do solo 0,5 m2 por m2 de área de terreno, pelo que da conjugação destes dois parâmetros resulta que o aproveitamento económico normal corresponde a um edifício com dois pisos e um índice de construção de: 2 pisos x 0,5 m2/m2 = 1,0 m2/m2 que é inferior ao índice máximo volumétrico possível.
De referir que este índice de utilização é possível de implementar respeitando os parâmetros exigíveis, nomeadamente o altimétrico, podendo, por exemplo, ser adotada uma cota para o 1.º piso ligeiramente abaixo em relação à cota de soleira principal de forma a ultrapassar qualquer constrangimento decorrente de pés direitos regulamentares.
Para além desta área de construção acima do solo possível de edificar e dentro do que é corrente considerou-se ainda a área possível de edificar abaixo do solo.
O custo da construção considerado teve como referencial a Portaria n.º 353/2013, de 4 de dezembro que fixou para o ano de 2014 o custo da construção na zona I (onde se insere o concelho de Viseu) em 801,06 €/m2 de área útil de construção.
19) A Parcela 2, possui uma área total de 1.535,23 m2 com localização semelhante à do prédio, com as seguintes confrontações:
Norte - Regato
Sul – Matadouro Regional de Viseu
Nascente – Herdeiros de BB e
Poente – CC
20) Da expropriação resulta uma sobrante no sentido nordeste e outra no sentido sudoeste, ambas com a área de 2.824,77 m2.
21) De acordo com a V.a.p.r.m., foram descritos:
- “a natureza habitacional da zona envolvente
- O terreno de natureza granítica, pleno, fundo e fresco, abaixo do nívea da via pública…ocupado por árvores florestais de grande porte…choupos
- Infraestruturas urbanísticas (proximidade)
- Benfeitorias – depósito de abastecimento de água, construção de forma cilíndrica e com cobertura em laje de betão armado, com cerca de 10,30 m de diâmetro e 4,0 m de altura
12 choupos de DAP entre o,25 e 0,35 m
1 cedro de DAP de 0,30 m
1 cedro de DAP de 0,20 m”
23) A parcela está inserida em “Unidades Operativas de Planeamento e Gestão Tipo 4
– Espaços de atividades económicas”.
24) O prédio insere-se em zona com boa qualidade ambiental apenas prejudicada pelo tráfego da EN 229.
25) Quanto a infraestruturas em serviço junto/próximo do prédio, de acordo com o mesmo documento (V.a.p.r.m.), existiam as seguintes:
Acesso rodoviário, pavimentado em betuminoso, junto ao prédio e parcela, em bom estado de conservação;
Rede de abastecimento domiciliário de água, com serviço junto ao prédio e parcela;
Rede de saneamento com coletor em serviço, junto ao prédio e parcela;
Rede de distribuição de energia elétrica em baixa tensão, com serviço junto ao prédio e parcela;
Estação depuradora em ligação com a rede de coletores de saneamento com serviço junto ao prédio e parcela e Rede telefónica junto ao prédio e parcela.
26) O terreno da parcela expropriada estava inserido em mancha classificada como Solo Urbano – Solo Urbanizado – Espaços de Atividades Económicas (de acordo com o PDM em vigor)
27) o Valor do solo da parcela expropriada (1535,23 m2), calculada nos mesmos termos referidos quanto à 1
- Tipo de edificação possível de efetuar: Comércio e/ou Serviços
- Índice de construção:
- Acima do solo ................................................................................1,00 m2/m2
- Custos de construção por m2 de área bruta à data da DUP:
- Acima do solo (Perito da Expropriante) ..............................................488 €/m2
- Acima do solo (Peritos do Tribunal e da Expropriada) …………….512,84 €/m2
- Valor do terreno - percentagem sobre o valor da construção
Perito da Expropriante..................................................................................18 %
Restantes Peritos…………………………………………………………….…….20%
- Despesas com prolongamento de infraestruturas (n.º 9 art.º 26.º C.E.)
Perito da Expropriante......................................................................................5 %
Peritos do Tribunal e da Expropriada .…………………………………………....0%
- Percentagem referente ao n.º 10 do artigo 26.º do C.E…………..……..…..10 %
Os índices de construção considerados tiveram em atenção o estipulado no Regulamento do PDM e o que os Peritos entendem ser o aproveitamento económico normal (que como é usual parte do máximo e melhor aproveitamento construtivo possível com respeito pelas disposições legais aplicáveis) tendo em atenção a localização do prédio.
De acordo com a subalínea “a3” da alínea “a” do n.º 2 do artigo 90.º do Regulamento do PDM de Viseu, o índice máximo volumétrico é de 3,5 m3/m2.
Haverá, no entanto, que atender a que a altura lateral máxima é de 6 metros, a menos de situações específicas relacionadas com a atividade, e que o índice de ocupação máximo é de 50%, o que corresponde a edificar em cada piso acima do solo 0,5 m2 por m2 de área de terreno, pelo que da conjugação destes dois parâmetros resulta que o aproveitamento económico normal corresponde a um edifício com dois pisos e um índice de construção de:
2 pisos x 0,5 m2/m2 = 1,0 m2/m2 que é inferior ao índice máximo volumétrico possível.
De referir que este índice de utilização é possível de implementar respeitando os parâmetros exigíveis, nomeadamente o altimétrico, podendo, por exemplo, ser adotada uma cota para o 1.º piso ligeiramente abaixo em relação à cota de soleira principal de forma a ultrapassar qualquer constrangimento decorrente de pés direitos regulamentares.
O custo da construção considerado teve como referencial a Portaria n.º 353/2013, de 4 de dezembro que fixou para o ano de 2014 o custo da construção na zona I (onde se insere o concelho de Viseu) em 801,06 €/m2 de área útil de construção.
E é distinta, também nesta parte, a posição do Sr. Perito da expropriante.
28) Construções / Benfeitorias
Encontram-se descritas na Vistoria ad perpetuam rei memoriam como benfeitorias e construções afetadas pela expropriação:
a) Para a maioria dos peritos - O depósito de água com 10,3m de diâmetro e 4,0m de altura, teria uma capacidade de cerca de 300m3, teria um custo de reposição em novo de cerca de 81.000,00€. Usando a Tabela de ROSS-HEIDECKE para a depreciação das construções e admitindo que o depósito já tem 50% da sua vida útil e que o seu estado de conservação é “reparos simples e importantes” – Código F, a depreciação seria de 58,20%. Resultam as valorizações:
Depósito de água 81.000,00€ x 0,418 = 33.858,00€
12 Choupos 240,00€
2 Cedros 25,00€
34.123,00€
b) Para o perito da expropriante não é de considerar como benfeitorias nem os muros nem o poço, que terão de ser demolidos / entulhados.
29) Desvalorização da parcela sobrante: A área da parcela a expropriar representa mais de 35% do terreno original. Neste caso é considerado que a parte sobrante ficará com um interesse económico ainda mais reduzido. Então dadas dimensões da parcela sobrante ponderou-se a percentagem em 6% do valor do custo de construção considerado, donde resulta que o valor a fixar é de 15.645,27€ (posição da maioria dos peritos)
30) Donde, tudo calculado, a maioria dos senhores peritos, do Tribunal e dos Expropriados calculam a junta indemnização em 190.562,25€ e o Sr Perito da A. calcula-a em 127.273,18€
31) O depósito de água existente na parcela 2 não estava em funcionamento e era obsoleto, apresentando sinais de degradação pela idade.
2. Matéria de facto – Factos não provados
Era possível repor o depósito em funcionamento e o custo seria de 81.000,00 euros.
C) Apreciação das restantes questões objeto do recurso
1
– Não se farão considerações sobre o enquadramento jurídico geral dos factos, por estar já feito na sentença e não ter sido colocada em causa no recurso, seguindo-se diretamente para análise das questões colocadas no recurso.
Apenas se dirá que este Tribunal da Relação também adere às conclusões do laudo maioritário dos peritos por não encontrar razões de discordância.
2 –
Questão relativa ao índice de construção
.
A Recorrente argumenta que face a um índice volumétrico de ≤ 3,5 m3/m2, e o índice de ocupação de ≤ 50 %), «…os cálculos necessários para convolar o volume de área, em índice de utilização, 3,5:6, temos um valor final de índice de utilização para as parcelas expropriadas de 0,58m2/m2 de terreno.
Assim, o índice de construção/área edificável de 1,00/m2, considerado pelos peritos e acolhido na decisão arbitral está errado, não podendo ser superior a 0,58m2/m2 de terreno, porquanto os artigos 88º e 90º do PDM de Viseu, impõem uma altura máxima de 6 metros, o que implica que não possam ser construídos dois pisos, mas, quando muito, um pavilhão ou um bloco com um piso intermédio para albergar os respetivos serviços administrativos.
Não assiste razão à Recorrente.
O Regulamento do Plano Diretor Municipal de Viseu (Diário da República, 2.ª série — N.º 188 — 30 de setembro de 2013, pág. 29794) dispõem, efetivamente, no seu artigo 90.º n.º 1, que «As áreas inseridas em Unidades Operativas de Planeamento e Gestão Tipo 4, designadas por UOPG 4, e devidamente cartografadas na planta de ordenamento destinam -se a atividades económicas, e que no seu todo agregam o solo urbanizado e urbanizável.»
E, mais à frente, refere-se neste artigo que «a3) Índice volumétrico ≤ 3,5m3 /m2, com um máximo de 6 m no plano lateral, salvo situações específicas relacionados com a tipologia da atividade» e «a4) Índice de ocupação ≤ 50 %, desde que não seja em banda contínua;»
Verifica-se que quer os árbitros, quer os peritos, indicaram um índice de construção de 1,00/m2, no pressuposto de que era possível uma construção com dois pisos.
A recorrente não mostra, indicando alturas máximas dos pisos e espessura mínima do piso intermédio, que seja inviável essa construção em dois pisos.
Por outro lado, nem todas as construções para «atividades económicas» referidas no artigo 90.º do PDM implicam a construção de um pavilhão. Muitas empresas que prestam serviços não carecem de funcionar em pavilhões.
Será o caso de uma empresa que preste serviços, por exemplo, na área da informativa, do imobiliário, da arquitetura ou da topografia, etc., as quais não carecem de funcionar num pavilhão.
Improcede, pelo exposto, esta pretensão recursiva.
3 -
Quanto à aplicação do fator corretivo previsto no artigo 26º, n.º 10 do C.E.
A recorrente alega que o tribunal aderiu ao laudo maioritário dos peritos e, por isso, quando optou por estabelecer a indemnização fixada pelos árbitros, quando devia ter seguido aquilo que os peritos referiram a respeito do mencionado fator corretivo.
Com efeito, quanto à Parcela n.º 1, os árbitros consideraram uma percentagem de 4,2% e 5,4% quanto à Parcela n.º 2, quando é certo que todos os cinco peritos que procederam à avaliação entenderam ser de aplicar uma percentagem de 10% em detrimento dos 4,2% e 5,4% constantes da decisão arbitral, daí que a Recorrente defenda que deva «… ser proferida Decisão que, para efeitos de aplicação do artigo 26º, nº 10 do CE, determine a percentagem unanimemente considerada no Relatório pericial de 10%.» - Conclusão BB.
Não assiste razão à Recorrente, pelas seguintes razões:
(I) Aceita-se que existindo, como existe unanimidade entre os peritos, o tribunal pudesse considerar, dado o conhecimento especializado destes técnicos, que a percentagem a aplicar seria essa de 10%.
Aplicando essa taxa, os resultados da aplicação, tendo em conta o laudo da arbitragem, seriam os seguintes:
▪ Parcela n.º 1
Índice fundiário =18.00% x (1- 0,10)
Índice fundiário =16,2%
Valor unitário do solo = 400,00€ x 0,162 x 1,00 = 64,80 €/m2
Valor do solo da Parcela
629,50 m2 x 64,80 € =
40 791,60 €
▪ Parcela n.º 2
Índice fundiário =16.00% x (1-0,10)
Índice fundiário =14,4%
Valor unitário do solo = 400,00€ x 0,144x1,00 =57,60 €/m2
Valor do solo da Parcela
1535,23 m2 x 57,60 € =
88.429,25 €
(II)
Estes valores conduzem a valores inferiores ao da arbitragem, que estabeleceu o valor do solo da Parcela n.º 1 em 43.410,32 euros e o da Parcela n.º 2 em 92.912,11 euros.
Sucede, porém, que o valor atribuído pelos peritos ao valor do solo para a Parcela n.º 1 foi de 58.109,15 euros e de 140.793,98 euros para a Parcela n.º 2, valores estes superiores aos estabelecidos pelos árbitros.
Coloca-se a questão de saber se tendo o tribunal aderido à totalidade do laudo dos peritos, mas não podendo fixar o valor da indemnização na quantia indicada pelo laudo pericial, devido ao princípio de que o recorrente não pode ficar mais prejudicado que ficaria se não tivesse recorrido (
reformatio in pejus
), poderá servir-se de uma parte do laudo dos peritos para o enxertar na decisão arbitral e chegar a um valor mais baixo que o fixado na decisão arbitral, como resulta das contas que ficaram acima indicadas no ponto «(I)».
A resposta é negativa porque se o tribunal recorrido entendeu que a avaliação correta era aquela que foi realizada no laudo maioritário, como este tribunal da Relação também entende, o qual aplicando aquela taxa de 10%, mesmo assim, estabeleceu o montante de 58.109,15 euros como valor do solo para a Parcela n.º 1 e 140.793,98 euros para a Parcela n.º 2, então não pode depois aplicar esta percentagem de 10% aos restante parâmetros do laudo de arbitragem, porque tal procedimento conduziria a um valor inferior para as parcelas, contrário ao valor que o tribunal declarou ser o correto, isto é, ao indicado no laudo pericial maioritário, que o tribunal só não aplicou ao caso devido à proibição da
reformatio in pejus
(«…o parágrafo exclui a
reformatio in pejus
: o julgamento do recurso não pode agravar a posição do recorrente, tornando-a pior do que seria se ele não tivesse recorrido» - Prof. Alberto dos Reis,
Código de Processo Civil Anotado
, Vol. V (Reimpressão), Coimbra/1984. pág. 311).
Daí, que, com base neste raciocínio, o tribunal recorrido tenha fixado o valor do solo em montante igual ao do laudo arbitral.
Por outras palavras, tendo o tribunal concluído que a avaliação correta era a indicada no laudo pericial, não podia depois, sob pena de contradição, retirar um dos parâmetros do laudo pericial para o aplicar ao laudo arbitral porque, procedendo assim, resultaria daí um valor de indemnização mais baixo e, por conseguinte, contrário aquele valor que tribunal tinha como adequado.
4 -
Relativamente à Parcela n.º 1 – Depreciação da parcela sobrante devido à divisão do prédio.
Relativamente à Parcela n.º 1, a decisão arbitral atribuiu o valor de 14.689,51 euros a título de desvalorização da parcela sobrante.
No recurso, a Expropriante defendeu não haver lugar a qualquer indemnização a este título, entendimento seguido, de forma unânime, pelos cinco peritos, concluindo: «… pelo que, deverá ser proferida Decisão em conformidade que conclua pela não desvalorização da área sobrante e, consequentemente, não ser devido qualquer montante indemnizatório a este título» - Conclusão LL.
Por conseguinte, deve excluir-se esta verba de 14.689,51 euros da indemnização relativa à Parcela n.º 1.
Não assiste razão à Recorrente, pelas razões antes referidas.
A indemnização relativa à Parcela n.º 1 incluiu o valor do solo (43.410,32), das benfeitorias (8.910,00), não questionadas no recurso, e a desvalorização (14.689,51) agora contestada.
Como se disse atrás, se o tribunal entendeu que a avaliação correta era aquela que tinha sido realizada no laudo maioritário, que desconsiderou a existência de qualquer desvalorização, mas, mesmo assim, estabeleceu o montante de 58.109,15 euros para o valor do solo da Parcela n.º 1, mais 9.625,00 euros a título de prejuízo por benfeitorias, não pode depois o tribunal aplicar este juízo (não existência de desvalorização) aos restante parâmetros do laudo de arbitragem porque tal aplicação conduziria a um valor inferior para a Parcela n.º 1, contrário ao valor que o tribunal declarou ser o correto, isto é, o valor indicado no laudo pericial maioritário, que o tribunal só não aplicou devido à proibição da
reformatio in pejus.
Daí, que, com base neste raciocínio, o tribunal recorrido tenha fixado o valor da indeminização para a Parcela n.º 1 em 67.009,83 euros, coincidente com o laudo arbitral.
Improcede, pelo exposto, este argumento recursivo.
5
– Relativamente ao valor da benfeitoria na Parcela n.º 2.
Na decisão arbitral os senhores árbitros atribuíram ao depósito de água, de 330 m2, em betão armado, uma indemnização de 70.000,00 euros, valor que a Expropriante impugnou.
Os peritos consideraram ser de atribuir, pelo referido depósito, o valor de 33.123,00 euros.
O tribunal entendeu que não era devida qualquer indemnização.
Por conseguinte, a Expropriante sustenta que o tribunal
a quo
devia ter subtraído à indemnização fixada não os 33.123,00 euros indicados pelos peritos, mas os 70.000,00 euros fixados pelos árbitros, e, por isso, pede que esta Relação restabeleça a coerência da decisão recorrida.
Também aqui não assiste razão à Recorrente, pelas mesmas razões.
Como o tribunal entendeu que a avaliação correta era aquela que tinha sido realizada no laudo maioritário, que considerou o valor das benfeitorias em 33.123,00 euros, então tinha de ser este o valor a deduzir e não o valor de 70.000,00 atribuído pelos árbitros.
Improcede, pois, este argumento recursivo, cumprindo manter a decisão recorrida.
IV. Decisão
Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a sentença recorrida.
Custas do recurso pela recorrente.
*
Coimbra, …
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TRC
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https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/96a3ddc98687930480258c530052f0a6?OpenDocument
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1,745,971,200,000
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IMPROCEDENTE
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13321/23.5T8SNT.L1-8
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13321/23.5T8SNT.L1-8
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ANA PAULA NUNES DUARTE OLIVENÇA
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(elaborado pela relatora - art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. Só é de reapreciar a matéria de facto se essa análise for susceptível de desembocar em resultado útil para a acção, podendo a reapreciação ser meramente parcial.
|
[
"REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO",
"INUTILIDADE"
] |
Acordam as Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório
AA, residente na Rua …, Lisboa, veio intentar a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AGEAS Portugal Companhia de Seguros, S.A., com sede na Praça …, Lisboa, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 6.444,00, acrescidas de juros vincendos à taxa legal, desde a data da citação até pagamento integral.
Para tanto, alegou em síntese:
- Contratou com a Ré um contrato de seguro denominado “riscos múltiplos habitação – PTL Plus” e por via da qual a seguradora assumiu, a partir do dia 01.08.2022, a responsabilidade pela verificação de danos provocados pelos sinistros indicados na apólice;
- O seguro foi contratado tendo, como capitais seguros, o de 75.906,42 € (para o imóvel) e de 43.809,06 € (para os conteúdos);
- Entre as coberturas contratadas, incluem-se as inundações e danos por água;
- No início de Agosto de 2022, a A. detectou, no imóvel segurado, uma fuga de água que começou a assumir proporções grandes, ao ponto de começar a inundar algumas divisões do imóvel (cozinha e despensa, sobretudo, mas também o W.C.).
- Tal fuga foi comunicada à Ré em 11.08.2022;
- A A., através do técnico contratado, procedeu à reparação do tubo, nos locais das fissuras que provocaram a fuga tendo sido necessário partir previamente as paredes internas do imóvel, abrindo roços nas mesmas, ao nível da cozinha, das instalações sanitárias e da despensa do imóvel e proceder à substituição de toda a canalização de águas limpas, aplicando a nova canalização nos locais respectivos;
Após, foi necessário o reboco das paredes e à colocação de azulejo (na cozinha e nas instalações sanitárias) sobre as zonas de parede intervencionadas;
- A A também mandou pintar a zona de parede não intervencionada com azulejo, após a substituição da canalização;
- A A. pagou, o valor de 6.444,00 € (seis mil, quatrocentos e quarenta e quatro euros);
- Os técnicos da Ré, a mando e em serviço desta, deslocaram-se ao local e procederam à elaboração do respectivo “Relatório de Serviço” que foi enviado à A em finais de Agosto de 2022;
- No referido relatório de serviço, a Ré identificou e reconheceu o sinistro, referindo-se à necessidade de a Autora ter sido obrigada a contratar o canalizador “que realizou a pesquisa e reparação da rotura na tubagem de abastecimento de água que se encontrava na casa de banho junto à zona do autoclismo.”;
- O relatório reconheceu ainda que na visita técnica foi possível verificar “a abertura dos roços na zona da casa de banho, despensa e cozinha da fracção segura e a colocação de tubagens novas. Foi também possível observar a tubagem antiga que o segurado guardou para nossa visualização.”;
- Concluiu o relatório com a recomendação de que se deveria de aguardar pela secagem das paredes de modo que a reparação não ficasse com humidade no interior, “de acordo com as especificações dos materiais.”;
- A Ré, no entanto, veio a declinar o pagamento do valor das obras, alegando a falta de manutenção.
*
A Ré, devidamente citada, apresentou contestação.
Alega, com relevo, que averiguado o evento participado, que lhe foi transmitido que atendendo ao mau estado de conservação da tubagem de abastecimento de água do imóvel, optou a segurada e o seu marido, pela substituição de toda a tubagem de abastecimentos de água e não apenas daquela que se encontrava no wc.
Era evidente o mau estado de conservação da canalização;
Assim o evento dos autos não terá resultado de um dano de carácter súbito e imprevisto, conforme determina o disposto no ponto 17, do artigo 17.º das Condições Gerais da apólice, tendo os danos verificados corrido em consequência da falta de manutenção do imóvel seguro, sem o carácter súbito e imprevisto que é exigível, não podendo recair sobre si qualquer responsabilidade pela reparação dos danos reclamados no âmbito dos autos.
*
Foi proferido despacho saneador, e atenta a simplicidade, ao abrigo do disposto no art.6º do CPCivil, dispensou-se a selecção do objecto do litígio e dos temas da prova.
*
Foi proferida sentença que, a final, decidiu julgar a acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido.
*
Não se conformando com a decisão, dela vem recorrer a A. concluindo como segue:
«a) O presente recurso tem como objecto a douta sentença proferida no dia 12.11.2024, nos autos supra indicados, que julgou improcedente a acção que visa responsabilizar a recorrida por um sinistro verificado no objecto seguro – a saber, o imóvel da recorrente, devidamente identificado nos autos.
b) No que tange à matéria de facto, o tribunal a quo deu como não provado que a recorrente pagou, pelos danos verificados, a BB, o valor de 6.444,00 €; sucede que tal julgamento factual está em total colisão com o depoimento desta testemunha (BB), que, no minuto 11 do seu depoimento (gravado de 14:31:30 a 15:10:25 no sistema integrado de gravação digital disponível no tribunal a quo) declarou que, embora não se recordasse do valor concreto, este terá sido entre 4 e 5 mil euros.
c) Pelo que o tribunal a quo deveria ter dado como provado que a recorrente pagou o valor de 5.000,00 € ao reparador, pelos danos, ainda que tomasse como não provada a totalidade do valor alegado em sede de petição inicial; pelo que pede, em sede de recurso, que seja dado como provado que a recorrente pagou 5.000,00 € ao reparador, como consequência do sinistro.
d) Sinistro cuja ocorrência, note-se, nunca foi colocada em causa pelo tribunal a quo.
e) No que respeita ao facto D) da matéria não provada (nunca foi comunicado à recorrente, na data da contratação do seguro, nem posteriormente, as respectivas condições gerais), também este facto foi erradamente julgado como não provado, quando deveria ter sido dado como provado;
f) Com efeito, e no âmbito das condições gerais do contrato de seguro, movemo-nos em sede de cláusulas contratuais gerais, que o tribunal a quo vanificou;
g) Perante a alegação da recorrente de que tais condições lhe não foram comunicadas ou transmitidas, invertera-se o ónus da prova, nos termos do art.º 5.º/3 do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro (Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais);
h) O que significa que competia à recorrida o ónus de provar que a referida comunicação ocorrera, o que esta não fez; isto, porque fora a recorrida quem predispusera das referidas cláusulas contratuais, tendo-as aprovadas internamente, sem permitir qualquer tipo de negociação ou alteração.
i) Pelo que impunha-se julgar provado o facto que, erradamente, o tribunal a quo julgou como não provado, em sede de alínea D).
j) Pelo que também esta matéria factual deverá ser julgada provada pelo tribunal ad quem – provado que nunca foi comunicado à A., na data da contratação do seguro, nem posteriormente, as respectivas condições gerais.
k) Seguidamente e tendo em consideração a demais factualidade julgada assente pela primeira instância, a acção deveria ter sido julgada procedente, por estarem reunidos os pressupostos da responsabilidade da recorrida seguradora, a saber, o sinistro na coisa segura; a inexistência de qualquer limitação à responsabilidade; o dano; o nexo causal entre o sinistro e o dano.
l) A referência ao art.º 493.º CC, constante da douta sentença sob recurso, é totalmente descabida, porquanto tal preceito legal estabelece um dever do proprietário em manter uma coisa em certas circunstâncias, de forma a evitar que a mesma cause danos a terceiros; quando, no caso em apreço, estamos perante uma coisa que causou danos ao próprio proprietário, e não a terceiros.
m) O estado da canalização – velha ou nova – nunca foi circunstância
impeditiva, para a recorrida, em celebrar o contrato de seguro; contrato esse que já vem do ano de 1999!
n) O referido estado da canalização, porém, já é circunstância impeditiva para a recorrida assumir a sua responsabilidade… o que nos leva a questionar a função efectiva da actividade da recorrida, perdoe-se-nos a ironia.
o) Mas, independentemente do estado da canalização, o certo é que, mercê da inserção do facto D) como provado – como se pede no presente recurso – tal circunstância em caso algum pode ser impeditiva ou excludente da responsabilidade da recorrida.
p) Ou seja, não há nenhuma circunstância excludente da responsabilidade da recorrida, razão pela qual a mesma deve ser condenada a assumir a referida responsabilidade.
q) Ao decidir como decidiu, a douta sentença ora sob recurso violou os art.º 483.º e 493.º CC, e, bem assim, o art.º 102.º do DL 72/2008, de 16 de Abril,
r) Pelo que deverá ser revogada ou anulada, e substituída por outra, que julgue a acção procedente, ainda que com a limitação da indemnização para o valor de 5.000,00 €,
Porquanto só assim se fará a desejada JUSTIÇA!»
*
Pela Ré foram apresentadas contra-alegações tendo alinhado as conclusões que seguem:
«A) A Autora pretende a alteração da matéria de facto, no entanto verifica-se que não dá cumprimento ao ónus que lhe é imposto nos termos do disposto no artigo 640º. do Código de Processo Civil;
B) Verifica-se que a Autora, no recurso que apresenta, embora questione apenas a redacção dada ao facto indicado com o nº. 1 da base instrutória, dando assim cumprimento ao disposto na alínea a), do nº. 1, do artigo 640º., já não dá cumprimento às exigências previstas na alínea b), do nº 1 e no nº 2 do artigo mencionado, constituindo assim, essa omissão, um obstáculo à reapreciação da matéria de facto que levará, nos termos daquele normativo legal, à imediata rejeição do recurso, no que à alteração da matéria de facto se refere;
C) Ora, o nº 1, do artigo 640º. do Código de Processo Civil, ao impor a necessidade da Recorrente indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, bem como os concretos meios probatórios que determinam decisão diversa, traduz uma opção do legislador que não admite o recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto, mas apenas a possibilidade de revisão de factos individualizados, relativamente aos quais a parte manifesta e concretiza a sua discordância;
D) Ora, o que se verifica é que a Recorrente, pondo em causa a matéria de facto seleccionada como provada pelo Tribunal a quo, indica os pontos dados como Provados e Não Provados, que merecem reparo, mas depois não concretiza os meios probatórios constantes do processo que impõem decisão diversa, já que invoca de forma genérica os depoimentos testemunhais e a prova documental junta aos autos, não identificando, sequer, qual deles deverá ser considerado de per si;
E) Assim, resulta das alegações apresentadas, que a Recorrente não faz qualquer correspondência de elementos probatórios documentais ou testemunhais, que nem sequer são individualizados, de forma a fundamentar a conclusão por ele pretendida, em cumprimento do disposto na alínea b), nº. 1, do artigo 640º., do Código de Processo Civil, nem indicando, sequer, as passagens da gravação em que se funda, com referência a cada facto, com é previsto na alínea a), do nº 2, do supra mencionado artigo 640º. do Código de Processo Civil;
F) Conclui-se, então, que a Recorrente se limita a fazer um pedido de alteração da matéria de facto de forma não concretizada e fundamentada, nos termos legalmente exigidos, sendo que, só o cumprimento das regras permitem ao tribunal avaliar as discordâncias apresentadas em concreto e alterar a matéria de facto em conformidade, quando esteja em causa a impugnação da matéria de facto, pela Recorrente;
G) Pelo que, não tendo a Recorrente dado cumprimento ao disposto na alínea b), do nº 1,e alínea a), do nº 2, ambos daquele artigo 640º. do Código de Processo Cível, ao não referir os concretos meios probatórios que constam do processo e que impõem decisão diferente com referência ao facto que pretende ver reparado, não indicando com exactidão as passagens da gravação em que se funda, incumpriu as exigências expressamente referidas na Lei, o que determina a rejeição do recurso no que à impugnação da matéria de facto respeita;
H) Em face dos factos que o douto Tribunal a quo considerou que se encontrava em discussão, e a prova produzida, com determinação dos factos dados como Provados e Não Provados, entende a Ré, ora Recorrida, que perfeita se torna a decisão proferida;
I) Vem a Recorrente alicerçar o seu recurso no facto do montante despendido com a regularização dos trabalhos não ter sido considerado provado, para além de considerar não poder ser dado como provado o seu conhecimento das Condições Gerais da apólice e coberturas e exclusões ali previstas, atendo o depoimento das testemunhas CC e BB, no entanto, nenhum reparo merece a apreciação destes depoimentos feita pelo Tribunal a quo, sendo que os depoimentos prestados por estas testemunhas sempre terão de ser conjugados com a demais prova produzida;
J) Procedendo-se à leitura das condições particulares da apólice (documento 1 junto com a contestação da Ré e documento 3 junto com a petição inicial da Autora), é expressamente referido que “o valor dos objectos abrangidos pela presente apólice é automaticamente actualizado em cada renovação anual em termos das Condições Gerais da apólice”;
K) Encontra-se Provado que entre a Autora e a então Ocidental Companhia de Seguros, S.A., foi celebrado um contrato de seguros denominado “Riscos Múltiplos Habitação – PTL Plus”, Multirriscos Habitação, a que respeita a Apólice n.º MR 10831428, em que é tomadora do seguro a Autora e que respeita ao prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia de Algueirão – Mem Martins, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de ... e inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo 1773º, apólice junta aos autos, bem como as respectivas condições particulares, gerais e especiais;
L) Como bem refere a douta sentença proferida, “O contrato de seguro é a convenção pela qual uma das partes (a seguradora) se obriga, mediante retribuição (prémio) paga pela outra parte (o segurado), a assumir determinado risco e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado.
É à Autora que cabe o ónus de provar a existência e o conteúdo do contrato, na medida em que alegue um direito decorrente desse contrato (art.º 342º, n.º 1, do CC).
Em contrapartida, é à Ré (seguradora) que incumbe o ónus de provar factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito (n.º 2 do mesmo preceito).
Ora, invocou a Autora a existência de uma fuga de água proveniente de um tubo de águas limpas que serve o seu imóvel, pretendendo ser ressarcida ao abrigo da cobertura inundações e danos por água.
Por seu turno, a Ré defendeu-se alegando, em síntese, o mau estado de conservação/manutenção da tubagem de abastecimento de água ora em causa, pelo que não estamos perante um dano de caracter súbito e imprevisto.
Vejamos.
Aqui chegados, há que interpretar devidamente o teor do contrato. Assim, e no que ora releva, diz ele no seu artigo 5.º, ponto 8 sob a epígrafe “Danos por água”:
“Quando estes, com carácter súbito e imprevisto, provenham de:
- Rotura, defeito, entupimento ou transbordamento da rede interior de distribuição de água e esgotos do edifício (incluindo nestes sistemas de esgotos de águas pluviais) assim como dos aparelhos ou utensílios ligados à rede de distribuição de água e esgotos do mesmo edifício e respectivas ligações.
- As despesas em que o Segurado tiver de razoavelmente incorrer e danos resultantes da pesquisa e reparação das roturas, defeitos ou entupimento, exceptuando os danos sofridos pelas canalizações e condutas, aparelhos ou utensílios ligados à rede de distribuição de água”.
Já o artigo 8.º, sob a epígrafe “Exclusões da Cobertura Base”, estatui no seu ponto 5, alínea f) que: “Consideram-se excluídos desta cobertura os danos resultantes de: (…) Os danos por vicio próprio ou defeito de construção e montagem do imóvel ou da sua rede de canalização e esgotos, bem como os resultantes de deficiente manutenção”.
Provou-se que, no início de Agosto de 2022, a A. detectou, no seu imóvel, uma fuga de água proveniente de um tubo de águas limpas que serve aquele, tubo esse no interior de uma parede que serve 3 divisões da casa. Mais se apurou que essa fuga começou a assumir maiores proporções, ao ponto de começar a inundar algumas das divisões do imóvel (cozinha, despesa e sobretudo WC).
Porém, conforme jurisprudência maioritária, a manutenção em bom estado de funcionamento das canalizações de água de um imóvel, dos esgotos, torneiras e todos os demais componentes do respectivo sistema, constitui uma obrigação que decorre da qualidade de proprietário do mesmo (Acórdão R.L. de 18-05-2006; Acórdão R.P. de 07-02-2006; Acórdão S.T.J. de 07-12-2006). O cumprimento da mesma, exige vigilância adequada, de modo a poder providenciar eventuais obras de conservação, de forma atempada.
Tal obrigação decorre, conforme jurisprudência maioritária (cfr. Acórdão S.T.J. de 07- 12-2005) do disposto no artigo 493º, do Código Civil (“Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”).
Posto isto, o que importa é saber se, no âmbito do contrato de seguro, aqui em causa, socorrendo-se da interpretação das Condições Gerais e Particulares da Apólice de Seguro
- riscos cobertos e exclusões - se deve, ou não, ter por excluído o direito à indemnização peticionado pela Autora.
Ora, dúvidas inexistem de que efectivamente ocorreu uma fuga de água no imóvel seguro, estando tal factualidade assente, inclusive por acordo das partes.
Acresce que a apólice ora em causa, prevê uma cobertura por inundações e danos por água.
Aqui chegados, não podemos avançar sem ter em consideração que o imóvel dos autos foi construído há mais de 50 anos, sendo que, até à data do evento, nunca havia sido alvo de qualquer intervenção/manutenção.
Aliás, apurou-se ainda que a tubagem existente no aludido imóvel era a correspondente àquela que se usava na altura da sua construção, ou seja, de ferro galvanizado.
Mais acresce que os troços retirados estavam corroídos.
Conforme decorre da factualidade dada como provada a canalização deveria ser substituída todos os 20/30 anos, porque o ferro fundido perde as suas características de solidez, não tendo, por isso, suportado a pressão da água. Aliás, a própria A. no seu articulado admite (no artigo 26.º), que “(…) a substituição da tubagem se deveu ao facto de a rotura não permitir que fizesse apenas um remendo, pois, como a tubagem é de material já antigo, não se conseguiu fazer de outro modo”.
Face ao exposto, resulta demonstrado, à saciedade, que o rebentamento de um cano na fracção de que é proprietária a A., importou a violação do dever que sobre a mesma impedia de conservação da canalização da sua da fracção, dado que se tivesse observado esse dever, que não observou, não teria havido lugar ao rebentamento do cano.
Com a violação desse dever, através da conduta omissiva por parte da A. (inobservância do dever de conservar e manter a canalização de água em bom estado, por forma a evitar um rebentamento da canalização), veio a ocorrer do referido rebentamento.
Acresce que, nos termos do já citado artigo 493.º do C.C., se presume a culpa da A., nos termos do referido normativo legal presunção essa que a mesma não logrou ilidir, conforme se lhe impunha nos termos do artigo 344.º, n.º 1 do C. Civil.
Nesta sequência, temos ainda a própria apólice a estatuir que se consideravam excluídos da cobertura os danos resultantes de deficiente manutenção.”.
M) Resulta demonstrada a exclusão de garantia do seguro objecto dos autos, pelo que nenhuma responsabilidade poderá ser imputada à Ré/Recorrida de proceder ao ressarcimento de qualquer danos alegadamente sofrido pela Autora;
N) Por outro lado, e no que ao montante alegadamente dispendido pela Autora e peticionado nos presentes autos, relativamente aos danos verificados na fracção segura, resulta, pois, evidente que nenhuma prova foi feita quanto aos mesmos, para tanto remetendo também para a apreciação feita pelo Tribunal a quo;
O) Importa fazer referência que nenhuma factura e/ou recibo foi apresentada nos autos, que ateste qualquer montante despendido pela autora, não sendo junto aos autos qualquer documento comprovativo de qualquer pagamento realizado;
P) Quem pagou o montante alegado, atenta-se, a Autora, não fez prova do mesmo, e a quem alegadamente foi pago o valor referente aos trabalhos de reparação, não soube referir qual o montante recebido, acrescentando ainda que se encontrava com a actividade cessada junto do serviço de finanças;
Q) Resulta, pois, evidente que não poderá merecer provimento a pretensão da Autora de ver alterada a matéria dada como não provada;
R) Pelo que, nenhuma censura merece a sentença proferida pelo douto Tribunal a quo, devendo manter-se na íntegra.
TERMOS EM QUE, NOS MELHORES DE DIREITO E COM O SEMPRE MUI DOUTO SUPRIMENTO DE V.EXAS., DEVE O PRESENTE RECURSO SER CONSIDERADO IMPROCEDENTE E MANTIDA A DOUTA DECISÃO RECORRIDA, COM O QUE SE FARÁ BOA JUSTIÇA.»
*
O recurso foi admitido em 1ª instância, e mostrando-se cumpridos os vistos legais, cabe apreciar e decidir.
*
2. Objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts. 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
No caso, as questões que importa decidir são as seguintes:
- Alteração da matéria de facto;
- Procedendo a impugnação da matéria de facto, reapreciação do mérito da acção, com decisão da reclamada procedência da acção.
3. Fundamentação de Facto
3.1. Fundamentação de Facto em 1ª Instância
Factos Provados:
1. Na 1.ª Conservatória do Registo Predial de ... encontra-se descrito, sob o n.º 4782, o prédio urbano sito na Rua ... ..., freguesia de Algueirão – Mem Martins, com inscrição a favor da A., e inscrito na matriz predial urbana da referida Freguesia sob o artigo 1773.
2. A A. e o seu marido residem em Lisboa e utilizam o imóvel descrito em 1. como casa de fim de semana e de férias, ocupando-o, sobretudo, nos meses de Verão de cada ano.
3. O referido imóvel encontra-se equipado com o mobiliário de uso normal e com electrodomésticos.
4. Em 01.08.1999, entre a A. e a então Ocidental Companhia de Seguros, S.A. foi celebrado um contrato de Seguro do Ramo Riscos Múltiplos Habitação – PTL Plus, titulado pela apólice n.º MR 10831428, sendo identificado como local de risco o imóvel melhor descrito em 1, com as condições gerais constantes dos autos e que aqui se dão por reproduzidas atenta a sua extensão.
5. Em 01.08.2022, foi renovado o contrato de seguro referido em 4.
6. O seguro foi contratado tendo, como capitais seguros, o de € 75.906,42 (para o imóvel) e de € 43.809,06 (para os conteúdos).
7. Após a renovação referida em 5., do referido contrato consta, entre outras, as seguintes condições particulares:
8. Em 03.01.2022, a referida Ocidental Companhia de Seguros, S.A. fundiu-se, por incorporação (mediante transferência total do seu património), na agora Ré AGEAS.
9. No início de Agosto de 2022, a A. detectou, no imóvel descrito em 1., uma fuga de água proveniente de um tubo de águas limpas que serve o imóvel, tubo esse no interior de uma parede que serve 3 divisões da casa.
10. Tal fuga começou a assumir maiores proporções, ao ponto de começar a inundar algumas das divisões do imóvel (cozinha, despesa e sobretudo o WC).
11. Fuga essa que foi comunicada pela A. e pelo seu marido à R. em 11.08.2022.
12. Perante tal fuga de água, a A., através de técnico contratado, procedeu à respectiva reparação da tubagem em causa.
13. Para isso, o aludido técnico partiu previamente as paredes internas do imóvel, abrindo roças nas mesmas, ao nível da cozinha, das instalações sanitárias e da despensa do imóvel.
14. Tendo procedido à substituição de toda a canalização de águas limpas, aplicando a nova canalização nos locais respectivos.
15. Subsequentemente, procedeu ao reboco das paredes e à colocação de azulejo (na cozinha e nas instalações sanitárias) sobre as zonas de parede intervencionadas.
16. A A. também mandou pintar a zona da parede não intervencionada com azulejo, no caso da dispensa, após a substituição da canalização.
17. Entretanto, técnicos da R., a mando e em serviço desta, deslocaram-se ao local no dia 19.08.2022, por forma a confirmar as causas e circunstâncias do evento participado, bem como ao apuramento dos danos resultantes do mesmo,
18. Tendo sido elaborado um Relatório de Serviço, o qual se mostra junto aos autos e cujo teor se dá aqui como reproduzido atento a sua extensão.
19. A tubagem existente no imóvel descrito em 1., corresponde ao que era utilizado na altura da sua construção (há mais de 50 anos), ou seja, era de ferro galvanizado, nunca tendo sido alvo de qualquer intervenção/manutenção.
20. Em 29 de Setembro de 2022, a Ré deu por encerrado o processo, tendo recusado indemnizar a A.
21. Nesse seguimento a A. remeteu reclamação ao Provedor do Cliente da Ré, o qual lhe respondeu nos seguintes termos:
22. Nos meses seguintes a A., através do seu marido, trocou várias mensagens com o Millenium BCP, entidade que comercializa o seguro e directamente com a R..
23. Em 07.02.2023, a A., através do seu Mandatário, remeteu mensagem de correio electrónico à Ré com o seguinte teor:
24. Na data referida em 23., a A., através do seu Mandatário, remeteu ainda à R. carta registada com AR, com o seguinte teor:
25. Por mensagem de correio electrónico datada de 11.02.2023, a R. respondeu ao ilustre Mandatário da A., nos seguintes moldes:
26. Aquando da deslocação do perito averiguador ao imóvel, na data referida em 17., já havia sido substituída a tubagem de abastecimento de água, faltando apenas proceder aos trabalhos de tapagem dos roços abertos nas paredes do wc, cozinha e despensa.
27. Nesta deslocação, o perito averiguador foi acompanhado pelo marido da A., o senhor CC, que lhe transmitiu que em data que não foi possível apurar, mas anterior a 6 de Agosto de 2022, havia-se deparado com água no pavimento na zona do wc, despensa e cozinha.
28. A A. procedeu à substituição de toda a tubagem de abastecimento de água e não apenas naquela que se encontrava no wc, junto ao autoclismo, local de onde derivou a fuga.
29. A tubagem de água retirada do imóvel (de aço galvanizado), tem uma duração média de 20/30 anos,
30. Sendo que apresentava troços corroídos, apresentando uma camada avermelhada conhecida como ferrugem,
31. Permitindo a passagem de água da tubagem para o seu exterior,
32. Com consequente infiltrações de água nas paredes do imóvel.
*
Factos Não provados:
A. A A. conseguiu encontrar a maior parte dos azulejos idênticos aos que tinha de forma a não ficar com divisões aos retalhos ou a ser obrigada a colocar novo azulejo em toda a divisão.
B. Pelo referido serviço, e pela urgência na realização do mesmo, a A. pagou ao técnico, o senhor BB, o valor de € 6.444,00.
C. A substituição da tubagem deveu-se ao facto de a ruptura não permitir que se fizesse apenas um “remendo”.
D. Nunca foi comunicado à A., na data da contratação do seguro, nem posteriormente, as respectivas condições gerais.
*
3.2. Da Reapreciação da Matéria de Facto
Vem a apelante impugnar a decisão da matéria de facto.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo art.º 662º, nº 1, do CPCivil e o art.º 640º, nº 1 do mesmo diploma legal estabelece, a respeito, que o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Conforme decorre do disposto no art.º 607º, nº 5 do CPCivil, a prova é apreciada livremente; prevê este preceito que
o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto»
; tal resulta também do disposto nos arts. 389º, 391º e 396º do CCivil, respectivamente para a prova pericial, para a prova por inspecção e para a prova testemunhal, sendo que desta livre apreciação do juiz o legislador exclui os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou aqueles que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes (2ª parte do referido nº 5 do art.º 607º).
A prova há-de ser apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, com recurso às regras da experiência e critérios de lógica. Conforme o ensinamento de Manuel de Andrade
1
«segundo o princípio da livre apreciação da prova o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas.»
.
A prova idónea a alcançar um tal resultado, é assim a prova suficiente, que é aquela que conduz a um juízo de certeza; a prova
«não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (…) a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, (…) A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto»
2
.
Está por isso em causa uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta.
É claro que a
«livre apreciação da prova»
não se traduz numa
«arbitrária apreciação da prova»
, pelo que se impõe ao juiz que identifique os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção, bem como a
«menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto»
3
; o
«juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)»
É, por isso, comumente aceite que o juiz da 1ª Instância, perante o qual a prova é produzida, está em posição privilegiada para proceder à sua avaliação, e, designadamente, surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação.
Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando este conclua, com a necessária segurança, que a prova produzida aponta em sentido diverso e impõe uma decisão diferente da que foi proferida em 1ª instância ou seja quando tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto.
Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova.
O julgador procede ao exame crítico das provas e afere as mesmas recorrendo a critérios de razoabilidade.
É fundamental explicar o processo de decisão de modo a que se possa avaliar o processo lógico-formal que serviu de suporte ao seu conteúdo.
A livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância, pois como ensinava o Prof. Alberto do Reis
4
, citando Chiovenda
: «ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar.»
A questão que se coloca relativamente à prova, quer na 1ª instância quer no tribunal da Relação, é sempre a da valoração das provas produzidas em audiência ou em documentos de livre apreciação, pois que, em ambos os casos, vigoram para o julgador as mesmas normas e os mesmos princípios.
Tecidas as considerações teóricas que se impunham, vejamos o caso sob decisão.
Insurge-se a apelante contra a consideração da matéria não provada sob as als. B) e D).
Recordemos o seu teor.
Matéria de facto considerada não provada sob a al. B):
«B. Pelo referido serviço, e pela urgência na realização do mesmo, a A. pagou ao técnico, o senhor BB, o valor de € 6.444,00.»
Para considerar tal matéria como não provada, motivou a julgadora de 1ª instância:
« Já no que toca à factualidade inserta nos pontos B. e C. há que atender ao acima exposto, sendo que, quanto ao valor despendido, acrescenta-se ainda que o suposto orçamento é vago no que respeita à descriminação dos eventuais serviços e obras efectuadas e prestadas, sendo certo que não foi possível estabelecer um nexo de causalidade entre todos os eventuais prejuízos emergentes da inundação e todas as obras realizadas. Aliás, cumpre ainda referir que as supostas obras levadas no exterior do imóvel nem sequer foram transmitidas ao funcionário da R. que ali se deslocou, razão pela qual nem sequer se encontram mencionadas no relatório de serviço.»
Com efeito, quanto à factualidade a que se refere a al. B) explicou a Sra. Juiz, em termos que não nos merecem qualquer censura já que revelam ponderação e acuidade na aquisição da prova: « Acresce ainda o facto de, no orçamento datado de 14.09.2022 (sem prejuízo daquilo que abaixo se debaterá quanto ao mesmo), não só se fazer alusão à tubagem e acessórios, mas também indicar electricidade (reparação) e torneiras, não se compreendendo como é que tais itens dizem respeito à fuga dos autos. Aliás, quanto a esta matéria, a testemunha CC apresentou um discurso evasivo e pouco conciso, nada esclarecendo quanto a tal factualidade. Aliás, a testemunha BB, quando confrontada com tal factualidade, referiu achar não ter feito qualquer trabalho de electricidade neste imóvel. No entanto, quanto a torneiras, já referiu ter colocado dois ou três, por os casquilhos estarem desgastados, ou seja, nada tinha a ver com o evento dos autos. Por fim, até no que diz respeito ao tempo que demorou a obra a ser concluída, os depoimentos não foram coincidentes, referindo uma que terá durado cerca de 15 dias, quando a outra afirmou que teria sido cerca de quatro semanas.»
E mais se ponderou:
«Porém, mesmo que não se tivesse em consideração tais factores, não podemos deixar de aqui fazer algumas considerações quanto ao teor do documento junto com a petição inicial sob o n.º 5, conforme acima já havíamos alertado. Assim, e desde logo, temos o depoimento da testemunha BB, a qual confrontada com o denominado orçamento e que supostamente teria sido por si apresentado, foi peremptória ao referir não o reconhecer, afirmando inclusive que não era o seu orçamento.
Perante tal cenário, e aquando da inquirição da testemunha CC, também ficou patente que a mesma tentou mais uma vez se esquivar a tais questões. Porém, acabou por admitir a existência de um primeiro orçamento, o qual seria muito sumário e manuscrito, e como a R. lhe solicitou outro mais elaborado, fez o documento dos autos, em Excel, mas com a ajuda do senhor BB. Acontece que, nos presentes autos, não foi junto esse suposto documento manuscrito que consubstanciasse os itens que se mostram consignados no documento n.º 5. A ser assim, muitas dúvidas nos ficaram quanto ao teor de tal documento e a forma como o mesmo foi elaborado.
Nessa sequência, e por forma inclusive a tentar dissipar tais dúvidas, foi questionada a testemunha BB quanto ao paradeiro da factura respeitante ao pagamento efectuado pela A. relativo à obra em questão, tendo sido transmitido pela mesma que não o havia feito, pois naquela data tinha a actividade cessada junto dos serviços de Finanças, o que culminou com a emissão de certidão para dar conhecimento de tal factualidade aquela entidade.
E se tal não fosse suficiente, temos ainda que não foi possível apurar, com a certeza que se exige, qual o montante efectivamente pago pela A. à testemunha BB.
Assim, se temos um suposto orçamento no valor de € 6.444,00, o certo é que esta última afirmou ter recebido cerca de € 4.500,00/€5.000,00. Em que ficamos?
A ser assim, muitas dúvidas nos ficaram quanto a tal factualidade, nomeadamente que pagamentos foram efectuados pela A. à aludida testemunha e se os mesmos diziam respeito apenas e tão só ao evento dos autos.
Ora, estando a A. a reclamar o accionamento do seguro que havia contratado, não podemos deixar de estranhar que não só tenha contratado os serviços de um técnico sem cuidar que o mesmo emitisse a respectiva factura, como ainda tenha efectuado o(s) pagamento(s) em numerário, conforme referido pela testemunha CC.
Desta forma, quanto aos factos não provados, a convicção do Tribunal sedimentou-se na circunstância de não ter sido feita prova dos mesmos.»
Defende a apelante que o julgamento da matéria de facto no que diz respeito a esta matéria está em clara oposição com o depoimento testemunhal da testemunha BB (que se encontra, cfr. a acta da audiência de 08.05.2024, gravado de 14:31:30 a 15:10:25 no sistema integrado de gravação digital disponível no Tribunal a quo), que declarou ter realizado obras no imóvel da recorrente, no seguimento das infiltrações ocorridas no imóvel da recorrente, e que afirmou (ao minuto 11 do seu depoimento, sensivelmente) não se recordar do valor, mas que terá sido entre 4 e 5 mil euros.
Defende que
«A circunstância de se não ter provado, concretamente, o pagamento do valor de 6.444,00 €, não impediria a prova do facto de que havia sido pago um determinado valor, com o limite máximo de 5.000,00 €, cfr. declarou a testemunha. Isto, independentemente de a referida testemunha ter, ou não, reconhecido o orçamento dos autos, como sendo o “seu”.
O tribunal a quo até pode ter dúvidas quanto ao teor do orçamento que, de acordo com a douta sentença, não foi junto aos autos (dúvidas essas manifestadas em sede de motivação da matéria de facto); mas não pode haver dúvidas quanto à circunstância de, pelo serviço de reparação dos danos sofridos pela recorrente, esta ter pago um valor que, no máximo, foi de 5.000,00 €. E o tribunal a quo, não tendo dado como provado o pagamento de 6.444,00 €, não deveria deixar de dar como provado que houve um pagamento realizado pela recorrente, com o limite máximo de 5.000,00 €, com referência aos danos sofridos.»
Ora, nenhuma razão assiste à apelante.
Na verdade, e ponderada a prova produzida, entendem-se as dúvidas da 1ª instância. Na verdade, a testemunha BB, confrontada com o orçamento que teria apresentado, não o reconheceu tendo mesmo dito não o reconhecer e afirmado que não era o seu orçamento. Não foi junto o alegado documento
que consubstanciasse os itens que se mostram consignados no documento n.º 5.
Invoca a apelante o depoimento desta testemunha na parte em que esta disse ter recebido cerca de € 4.500,00/€5.000,00 pelas obras que efectuou. Porém, que obras? Veja-se que no orçamento datado de 14.09.2022 se indica trabalhos de electricidade (reparação) e torneiras, o que não está relacionado com a fuga de água objecto da presente acção.
Veja-se que o depoimento desta testemunha que, concatenado com o depoimento de CC mostra acentuadas divergências designadamente no que diz respeito ao tempo que de duração das obras referindo uma que terá durado cerca de 15 dias, quando a outra afirmou que teria sido cerca de quatro semanas.
É óbvio, pois, que a matéria reclamada não pode ser dada como provada, como bem se decidiu em 1ª instância.
Matéria de facto considerada não provada sob a al. D):
«D. Nunca foi comunicado à A., na data da contratação do seguro, nem posteriormente, as respectivas condições gerais.»
Ora, só é de reapreciar a matéria de facto se essa análise for susceptível de desembocar em resultado útil para a acção, podendo a reapreciação ser meramente parcial.
Conforme se decidiu em acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/5/2017
5
,
«o princípio da limitação dos actos, consagrado, no artigo 130.º do CPC, para os actos processuais em geral, proíbe, enquanto manifestação do princípio da economia processual, a prática de actos no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – que não se revelem úteis para alcançar o seu termo”, e bem ainda que “nada impede que tal princípio seja igualmente observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir».
Ou seja, só deverá reapreciar-se a matéria de facto quando esteja em causa matéria com efectivo interesse para a decisão do recurso.
In casu
, foi declarada improcedente a impugnação de facto da matéria dada como não provada sob a al. B), matéria essa que se revelava fulcral para a procedência do pedido indemnizatório.
Conforme se escreveu na sentença sob recurso,
«uma vez que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, (cfr. artigo 563.º do C. Civil), sendo que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (cfr. artigo 564.º n.º 1 do C. Civil) , neste âmbito considerado, importa ter em atenção que apesar de a A. ter alegado vários prejuízos, a verdade é que a mesma não logrou efectuar prova deles, conforme lhe incumbia, nos termos do artigo 342.º n.º 1 do C. Civil.»
Assim, e como se decidiu em Ac. TRL 7.7.2022
6
,
«Se a reapreciação da matéria de facto surge, não como um fim, mas como um meio de obter a alteração da sentença recorrida, e se à questão de direito por que passa a visada alteração se torna indiferente determinada factualidade dada como provada, não carece o tribunal de recurso de reapreciar a factualidade em questão, para efeitos de a dar como não provada, por se tratar de um acto sem qualquer utilidade.».
Não se conhece, pois, da impugnação.
3.3. Fundamentação de Facto em 2ª instância
Mantém-se factualidade fixada em 1ª instância.
*
4. Fundamentação de Direito
Com o presente recurso pretendia a apelante a revogação da sentença recorrida e a procedência da acção com a condenação da Ré/Apelada no pedido.
Para a procedência do recurso, necessário seria a reversão da matéria dada como não provada sob a al. B), o que não logrou obter.
Como se adiantou acima, em consonância com o decidido em 1ª instância, falhando a Autora no cumprimento do ónus que sobre si recaía da prova dos prejuízos sofridos, nos termos do disposto no art.342º, nº 1, do CCivil, já que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, nos termos do disposto no art.º 563.º do C. Civil), mais não resta do que julgar a acção improcedente, confirmando o decidido em 1ª instância.
Improcede o recurso
.
***
5. Decisão
Em face do exposto, acordam as juízes que compõem esta 8ª secção, julgar o presente recurso improcedente e, consequentemente, confirmar integralmente a decisão recorrida.
*
Custas a cargo da apelante.
Notifique e registe.
Lisboa, 30-04-2025
(Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária)
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
Maria Carlos Duarte do vale Calheiros
Carla Cristina Figueira Matos
_______________________________________________________
1. Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, p. 384
2. Cfr., neste sent. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Revista e Actualizada, p. 435 a 436
3. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, obra cit., p. 655
4. CPC. Anotado. vol. IV, págs. 566 e ss..
5. Ac. STJ, Rel.Fernanda Isabel Pereira in
www.dgsi.pt
6. Ac. TRL, Rel. António Moreira
|
TRL
|
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/287a658d173da3d980258c8a0053249c?OpenDocument
|
1,762,128,000,000
|
IMPROCEDENTE
|
3847/23.6T8VFX.L1-7
|
3847/23.6T8VFX.L1-7
|
LUÍS LAMEIRAS
|
I –
A disposição do artigo 1096º, nº 1, do Código Civil, na redacção da Lei nº 13/2019, de 12 de Fevereiro, tem, na sua íntegra, natureza supletiva.
II –
Se assim não for, e à excepção de quando as partes excluem a renovação do arrendamento (início do mesmo artigo), torna-se inútil celebrar contratos, com prazo certo, inferior a três anos (artigo 1097º, nº 3, do Código Civil), que a lei parece querer possibilitar (artigo 1095º, nº 2, do Código Civil).
III –
As partes não estão, portanto, inibidas, no exercício da autonomia da sua vontade privada, de poderem consensualizar um prazo sucessivo, para a renovação automática do arrendamento, que seja inferior a três anos.
IV –
Só esta interpretação é, também congruente com a admissibilidade expressa desse prazo de renovação, que se contempla nas alíneas b), c) e d), do artigo 1097º, nº 1, do Código Civil.
|
[
"CONTRATO DE ARRENDAMENTO",
"RENOVAÇÃO AUTOMÁTICA",
"PRAZO",
"NATUREZA SUPLETIVA"
] |
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1.
A instância da acção
.
1.1.
A
Associação do Hospital Civil e Misericórdia de ---
propôs acção declarativa, na forma comum, contra
F---
, solicitando (
1
) a extinção do contrato de arrendamento, para habitação, relativo à casa da Rua ---, em A---, com base na oposição à sua renovação, e a condenação da ré (
2
) na sua entrega imediata e (
3
) no pagamento das rendas vincendas até essa efectiva entrega.
Em síntese, invocou o contrato de arrendamento, entre ambas, de 3 de Julho de 2014, para habitação da ré, com início em 1 de Agosto e por cinco anos, renovável por sucessivos períodos de um ano. Que, por comunicação de 5 de Janeiro de 2023, transmitiu à ré a sua oposição à renovação do contrato, com efeitos a
31 de Julho de 2023
. E que a ré não abandonou a casa.
1.2.
A ré contestou; e concluiu dever ser absolvida dos pedidos.
Disse, em síntese, que o quadro normativo aplicável impõe que as renovações do contrato sejam iguais ao período da duração inicial ou, ao menos, de três anos. Por consequência, o arrendamento foi eficaz até
31 de Julho de 2024
(se a renovação for de cinco anos); ou, ao menos, até
31 de Julho de 2025
(se a renovação for de três). A oposição à renovação foi, pois, extemporânea.
1.3.
A senhora juíza “a quo” conheceu imediatamente do mérito da causa.
Julgou a acção procedente, (
1
) declarou cessado, por oposição à renovação, o contrato de arrendamento e condenou a ré (
2
) a restituir à autora o locado e (
2
) a pagar-lhe a quantia de uma renda mensal, por cada mês, até à entrega.
Para tanto, e essencialmente, enquadrou a hipótese nas disposições dos artigos 1096º, nº 1, e 1097º, nº 1, alínea b), do Código Civil, na redacção dada pela Lei nº 13/2019, de 12.2; e, tomando partido na polémica interpretativa que vem atravessando essas normas, julgou juridicamente válido o consensual prazo de renovação, circunscrito a um ano, e eficaz a oposição à renovação, em
1 de Agosto de 2023
.
2.
A instância da apelação
.
2.1.
A ré inconformou-se; e interpôs recurso.
Apresentou a alegação; onde
sumariamente
concluiu assim:
i.
Está em causa a interpretação do artigo 1096º, nº 1, do Código Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 13/2019, de 12 de Fevereiro.
ii.
O contrato de arrendamento, para habitação, com termo certo, entre recorrente e recorrida, foi celebrado em 3.7.2014, com a duração inicial de cinco anos, início a 1.8.2014 e fim a 31.7.2019, tendo as partes convencionado, à época, que o contrato poderia ser renovado por períodos iguais e sucessivos de um ano.
iii.
Surgiu, entretanto, a alteração legal referida; que o tribunal
a quo
considerou aplicável à relação contratual em crise.
iv.
Considerando, porém, supletivo o novo artigo 1096º, nº 1, com total autonomia das partes a convencionarem o período de renovação; e, portanto, que a oposição à renovação, de 5.1.2023, foi plenamente válida, cessando o contrato efeitos a 31.7.2023.
v.
A alteração normativa, contudo, enquadrou-se num clima de forte proteccionismo em favor dos arrendatários, teve por razão equilibrar posições com os senhorios, estabilizar o mercado do arrendamento e dar aos inquilinos a possibilidade de criarem laços com a comunidade do local da habitação, bem como ainda fazer cessar situações de abuso; quadro que apenas permite significar que a norma do artigo 1096º, nº 1, é imperativa.
vi.
Impondo-se, por consequência, que a sentença tivesse considerado que o contrato se renovou por cinco anos, em 1.8.2019, com termo em 31.7.2014, e que a comunicação da oposição à renovação, para efeitos a 31.7.2023, era inválida.
vii.
Ou, pelo menos, em parcial imperatividade, no que ao período mínimo de renovação respeita, que tivesse considerado o de três anos, em 1.8.2022, com termo em 31.7.2025, à mesma com a invalidade daquela comunicação.
Em síntese; a sentença deve ser alterada no sentido de considerar (
1
) que o arrendamento se renovou por cinco anos, com termo a 31.7.2024, e inválida a oposição à renovação, para 31.7.2023; ou, ao menos, (
2
) que se renovou em 1.8.2022, por três anos,
por conseguinte
, ainda estando em curso, só com termo em 31.7.2025 próximo, e com igual invalidade da mesma comunicação.
2.2.
A autora respondeu.
No essencial, para sinalizar o objecto da controvérsia na interpretação do artigo 1096º, nº 1, do CC, na versão actual, quanto à imperatividade ou supletividade da duração mínima dos períodos de renovação e, nessa medida, aos efeitos da oposição à renovação levada a cabo.
E, em suma, para concordar com a sentença apelada; no sentido de que a norma em análise tem cariz supletivo, quer quanto à questão da renovação (permitindo a celebração de contratos não renováveis), quer quanto à questão da duração dos períodos de renovação (permitindo renovações inferiores a três anos).
3.
Delimitação do objecto do recurso
.
3.1.
É entendimento pacífico o de que, olhado o perímetro do segmento dispositivo da sentença desfavorável ao recorrente, o
objecto do recurso
há-de aí ser circunscrito pelas conclusões da alegação (artigo 635º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Civil).
Assinalando-se, assim, as
questões decidendas
postas em equação (artigo 608º, nº 2, do Código de Processo Civil).
3.2.
No caso concreto, o tema suscitado é apenas um.
Polémico e objecto de divergência e fractura; ainda (muito) actual.
E que se pode, numa síntese simples, enunciar assim:
O artigo 1096º, nº 1, do Código Civil, na redacção que lhe deu a Lei nº 13/2019, de 12 de Fevereiro, aplicável ao contrato de arrendamento para habitação, celebrado com prazo certo (inicial), permite que as partes
validamente
convencionem, para esse contrato, um
tempo de renovação
(seguinte) inferior a três anos?
Ou o período dos três anos da renovação (seguinte) se lhes impõe
imperativamente
?
A resposta a estas questões decidirá a sorte do recurso de apelação.
II – Fundamentos
1.
Matéria de facto com relevo para a decisão de mérito
.
O saneador-sentença apelado fixou os seguintes factos (
plenamente
) provados:
i.
Em 3 de Julho de 2014, autora e ré subscreverem o escrito denominado “Contrato de arrendamento”.
ii.
Pelo escrito referido em
i.
, autora, enquanto primeira outorgante, e ré, enquanto segunda outorgante e arrendatária, declararam que:
«Estabelecem entre si o presente contrato de arrendamento para habitação, que tem por objecto a fracção autónoma ---, casa de r/c e sótão com a área total de 44,22 m2, sito na Rua ---, na freguesia de ---, concelho de V--- (…):
PRIMEIRA
O prazo de duração do arrendamento é de cinco anos, com início em 1 de Agosto de 2014, e com termo em 31 de Julho de 2019, considerando-se prorrogado por sucessivos períodos anuais caso não seja denunciado por qualquer das partes, nos termos da lei.
SEGUNDA
A denúncia do contrato de arrendamento nos termos do art.º 1055º do Código Civil deverá ser comunicada com antecedência mínima de sessenta dias.
TERCEIRA
A renda anual é de 1800,00€ (Mil e Oitocentos Euros) a pagar mensalmente em duodécimos de 150,00€ (Cento e cinquenta euros), ao senhorio, na respectiva sede, ou através de depósito ou transferência bancária (…).»
iii.
A renda indicada em
ii.
foi actualizada para o valor de € 159,34.
iv.
A autora remeteu à ré, por carta registada com AR, que esta recebeu em 19/01/2023, o escrito com o seguinte teor:
« Na qualidade de senhorio do prédio urbano sito na Rua ---, na freguesia de ---, concelho de V---, (…), da qual V.ª Ex.ª é arrendatária, venho desta forma comunicar a V. Ex.ª, nos termos e para os efeitos do art.º 1097º do Código Civil a minha intenção de não renovação do contrato de arrendamento em vigor, celebrado em 03 de Julho de 2014.
O contrato referido supra cessará os seus efeitos a partir de 31 de Julho de 2023, data em que deverá proceder à entrega do locado livre de pessoas e bens, no estado de conservação em que o mesmo se encontrava, quando o presente contrato se iniciou, bem como proceder à entrega das respectivas chaves. »
2.
O mérito do recurso
.
2.1. Enquadramento jurídico-normativo; comentários.
Não merece dúvida a possibilidade da celebração do contrato de arrendamento de prédio urbano, com destino a habitação, com prazo certo.
E era já assim ao tempo do ajuste entre os sujeitos, na presente hipótese (artigo 1094º, nº 1, do Código Civil; redacção da Lei nº 31/2012, de 14.8).
Importava era que o prazo constasse de cláusula, no contrato (artigo 1095º, nº 1); mas nem, então, se prevenia – ao menos, expressamente (nº 2), como
antes
acontecia (cinco anos), no quadro da redacção inicial da Lei nº 6/2006, de 27.2; e
depois
veio também a acontecer (um ano), no quadro da Lei nº 13/2019, de 12.2 – um
período mínimo
para esse prazo (“Código Civil anotado”, coord. Ana Prata, volume I, 2017, página 1342).
Mesmo que o contrato fosse omisso quanto à duração, era considerado de prazo certo, pelo período de dois anos (artigo 1094º, nº 3; redacção da Lei nº 31/2012)
Ao tempo da génese do arrendamento, em equação aqui, o artigo 1096º, nº 1, do Código Civil, conhecia, igualmente, a versão da Lei nº 31/2012; e estabelecia, salvo estipulação em contrário, a renovação automática no termo do contrato, celebrado com prazo certo, e por períodos sucessivos de
igual
duração.
Note-se que esta norma,
então em vigor
, não foi óbice a que fosse, no contrato entre apelada e apelante,
expressamente consensualizado
um prazo de renovação (um ano)
distinto
(no caso,
inferior
) ao aí (na lei) visado, e estabelecido como tempo inicial (cinco anos).
Com o significado inequívoco de que as partes terão entendido, com toda a certeza, dispor a lei de
modo
supletivo
; que não
imperativo
.
E, por isso, com uma cláusula contratual diversa (!).
Entretanto, publicada a versão da Lei nº 13/2019, de 12.2, com entrada em vigor em 13.2.2019 (artigo 16º), passou esta a cobrir o contrato em causa; como resulta, de modo claro, do artigo 12º, nº 2, segundo segmento, do Código Civil; e é, aliás, incontroverso na lide presente.
O renovado artigo 1096º, nº 1, manteve a regra da renovação automática; mas
agora
com o aditamento de que o período sucessivo da renovação, quando a duração inicial do contrato seja inferior, não será de menos de três anos.
O caso concreto faz-nos, aqui, reflectir sobre a seguinte perplexidade.
Os sujeitos, em Julho de 2014,
podiam
(até)
ter
ajustado o arrendamento habitacional com o prazo inicial de
apenas
um ano. E consensualizado as renovações sucessivas
ainda
(apenas) pelo mesmo prazo de um ano.
Fá-lo-iam no uso soberano da sua autonomia da vontade (artigo 405º, nº 1, do Código Civil).
Porém; por força agora da mutação legislativa,
imperativa
(?), ficavam na contingência de uma vinculação contratual
renovada
,
robustecida
, à margem daquela (sua) liberdade de contratar,
que
deliberadamente
haviam exercitado
; e, assim, (agora) se via
reconfigurada
e
comprimida
, por uma incursão pública (de discutível aceitabilidade); que lhes passava a impor –
repete-se
:
à margem
do que livremente
podiam ter
fixado – uma
injuntiva
renovação por (
sucessivos
) períodos de três anos.
O artigo 1096º, nº 3, do código, permite a qualquer das partes opor-se à renovação; faculdade que o artigo 1097º, para o estatuto do senhorio, regula; ao que aqui nos importa, na sua versão (que é, ainda, a actual) de 2019.
Estabelece esta disposição, nos segmentos com mais interesse, poder o senhorio exercer o seu direito de impedir a renovação automática do arrendamento habitacional se o comunicar ao arrendatário com a antecedência mínima de 120 dias, que contam do termo do prazo da renovação, nas hipóteses em que esta seja igual ou superior a um ano, mas inferior a seis (nº 1, alínea b), e nº 2).
Era já essa a disposição essencial precedente, na versão de 2012.
Inovando,
porém
, a versão de 2019 com a regra, agora criada, de que essa oposição, à primeira renovação, apenas é passível de ser eficaz decorridos três anos da celebração do contrato, mantendo-se o arrendamento em vigor até essa data (nº 3).
A consequência é clara; após 13 de Fevereiro de 2019, o arrendamento a que se fixe o prazo de um ano, ou outro inferior a três anos (artigo 1095º, nº 1), não pode ser extinto, por iniciativa o senhorio, nos três anos iniciais (artigo 1097º, nº 3); mantendo-se
imperativamente
durante esses três anos.
Donde, o prazo
consensualmente
estabelecido (inferior aos três anos) apenas poderá ter impacto no tempo seguinte (após esses três anos iniciais); e, por conseguinte, tão-só como o prazo fixado para a
sucessiva
,
subsequente
, renovação.
Dado que, se assim não for, será
inútil
prevenir (mesmo normativamente; no citado artigo 1095º, nº 1) a hipótese de contratos, por prazo certo, inferior a três anos.
Uma
inutilidade
que se arrasta, e
robustece
, se considerarmos como (?)
imperativa
a renovação mínima por três anos, em face do aditamento ao artigo 1096º, nº 1 (!).
Mas já
; se os sujeitos estipularem
excluir
a renovação automática
, e optarem por fixar um
termo fatal
– p. ex.; arrendamento por um ano (ou inferior a três anos) e sem renovação –, opção válida
por causa
do segmento normativo
inicial
do artigo 1096º, nº 1, e sobre que é incontroversa a
supletividade
(!), o arrendamento
finda aí irremediavelmente
, à margem dos três anos (artigo 1096º, nº 1, final; artigo 1097º, nº 3).
O que, então, torna o panorama jurídico envolvido
ainda
de maior estranheza (!).
2.2. Análise do caso concreto; polémica associada; posição propugnada.
2.2.1.
Na hipótese que aqui ocupa, os sujeitos ajustaram um contrato de arrendamento habitacional, no dia 3 de Julho de 2014, com o prazo certo de cinco anos, a partir de 1 de Agosto seguinte, e prevenindo a sua renovação sucessiva por um ano.
O arrendamento vigorou pelos cinco anos iniciais, até
31 de Julho de 2019
.
E renovou-se ([…]).
Em 19 de Janeiro de 2023, a senhoria comunicou à inquilina a sua oposição à renovação, a acontecer no dia
1 de Agosto de 2023
; e declarou-lhe o fim do contrato para o dia 31 de Julho de 2023.
2.2.2.
A inquilina discorda da cessação do contrato, nesta data.
E defende que, após os cinco anos iniciais, a renovação terá sido por mais cinco anos (igual ao da duração inicial), até
31 de Julho de 2024
; ou, pelo menos, por mais três anos, até 31 de Julho de 2022, e, a partir daqui, por mais outros três, até
31 de Julho de 2025
.
Em qualquer dos, envolvendo
extemporaneidade
da oposição à renovação.
2.2.3.
A hipótese tem por superado o
tempo inicial
, de cinco anos, da duração do contrato.
Centrando-se a problemática, tão-só, nas
renovações
a esse subsequentes.
Estas outras foram fixadas, na cláusula primeira do contrato, com duração anual.
E este é logo um ponto que impressiona.
No quadro normativo, então em vigor, as partes podiam ter estipulado o prazo certo que entendessem, quer para a duração inicial do arrendamento, quer para os períodos seguintes da renovação.
Podiam até ter excluído a renovação automática do contrato (!).
Tudo isso lhes era permitido, quer pelos artigos 1094º, nº 1, e 1095º, nº 2; quer sobretudo pelo artigo 1096º, nº 1, que, ademais da exclusão, lhes permitia fixar o período
que pretendiam
para a renovação, como lhes permitia, assumindo a renovação automática, não fixar prazo nenhum, caso em que era a norma que,
supletivamente
, o estabelecia em
igual duração
à do
prazo certo
inicial.
E tem de se sublinhar que esta norma, na versão da Lei nº 31/2012, de 14.8, não merecia,
então
, dúvida maior acerca da sua
real supletividade
; quer dizer, na redacção aí em causa era pacífica a natureza supletiva da disposição, notoriamente evidenciada pelo trecho inicial do texto, de salvaguarda de uma
estipulação em contrário
.
Ou seja; as partes, na sua liberdade contratual, quiseram uma determinada realidade. A sua mutação,
para existir
, terá de ser sustentada em razões consistentes (!).
Veja-se, na dogmática cível, a regra
forte
de que os contratos – quer dizer, as cláusulas livre e esclarecidamente consensualizadas; vinculativas, pois – só se podem modificar, por princípio, por mútuo consentimento dos contraentes (artigo 406º, nº 1, do Código Civil).
Devem, portanto, uma vez acordadas, serem honradas.
E, com isto, a estranheza (
de princípio
) de querer obter um efeito jurídico-substantivo diferente daquele que se preveniu, à volta do qual se formaram o ambiente e as expectativas legítimas, recíprocas.
E que não foi outro – foi aquele, específico e concreto, livremente assumido (!).
2.2.4.
O quadro jurídico-normativo mudou, em 13 de Fevereiro de 2019.
Com impacto na situação jurídica, estabilizada, e que aqui nos ocupa.
O artigo 1096º, nº 3, aditou ao período sucessivo da renovação automática, o
prazo de três anos
, para a hipótese de a duração inicial do contrato ser inferior.
A mutação normativa merece-nos dois comentários iniciais.
O 1.º; no confronto com a versão de 2012, mantendo-se o segmento inicial do texto, que aponta para a supletividade, com a única diferença de se lhe ter acrescentado o trecho dos três anos, só com
certa
artificialidade
se pode agora pugnar pela diferente natureza do preceito; isto é, que a regra, antes
supletiva
, passou agora (?) a ser
imperativa
(!).
Em 2.º; e, por outro lado, a estranheza de uma norma que, na sua redacção, inicia por inequivocamente deixar a margem à
estipulação do contrário
e que vem, depois, a ser interpretada, num dos seus segmentos, afinal, como impositiva e imperativa (!); ou seja, no mínimo, a perplexidade de um mesmo número de um artigo da lei ser,
ao mesmo tempo
, supletivo numa das suas partes integrantes, e imperativo, na outra remanescente (!).
E se; assim na forma; similarmente no conteúdo.
É que incongruente parece ser o que,
assim
, se pode retirar da estatuição normativa; e mais ainda num tema de tanto melindre como o do contrato de arrendamento com fins habitacionais.
O sentido útil da
estipulação em contrário
– que é expressa – tem de ser algum.
Se ele se cifra
unicamente
no segmento da possibilidade de os sujeitos poderem afastar a
renovação automática
, no seu termo, do arrendamento com prazo certo, arredando o
período
(inferior aos três anos) da renovação;
então
, temos a solução incoerente – designadamente com a (desejada) estabilização em contexto de arrendamento – de que os actores no mercado podem celebrar contratos inferiores a três anos (p. ex.; um ano),
sem
renovação
, mas
já não podem
celebrá-los,
para
renovar
(mesmo numa previsível sucessão de
várias
renovações [!]) aquém dos três anos (p. ex.; dois anos).
Ou vale aqui a regra do senso comum de que, quem pode
o mais
(não renovar o contrato [inicial], p. ex., de
um ano
) há-de poder, com toda a certeza,
o menos
(renovar o contrato [inicial], p. ex., de
dois anos
, por igual período)?
A (putativa)
imperatividade
da norma,
a existir
, tem de fundar-se em razões sólidas e consistentes.
Numa visão mais integrada, vemos que a existência de
normas imperativas
na ordem jurídica se sustenta – e assim tem de ser – em motivos de ordem pública, ou outros, que impelem o legislador a consagrar disposições de protecção,
que aos sujeitos não é possível afastar
, na configuração das suas situações jurídicas.
Nesse sentido, são regras de natureza excepcional ou, pelo menos, desviantes daquele que é o princípio basilar do direito privado, sustentado na básica autonomia da vontade das partes e que lhes permite, com a mais ampla liberdade, conformar os seus interesses e configurar os negócios jurídicos acomodados à sua situação e estatuto.
Por isso, se percebe a imperatividade associada a alguns princípios irreversíveis.
E por isso que, na dúvida, nos pareça dever sobressair a liberdade privada.
2.2.5.
A norma, em quadro de arrendamento urbano (habitacional), era
supletiva
quando as partes contrataram, em Julho de 2014.
Tornou-se
vinculística
(ao menos, parcialmente), em Fevereiro de 2019?
A controvérsia instalada, na resposta a esta questão, tem tido eco acentuado na doutrina e na jurisprudência.
A tese maioritária vem sendo a da defesa da
imperatividade
do artigo 1096º, nº 1, na sua redacção actual; no sentido de que, optando as partes contratantes por não arredarem a renovação automática do contrato, passam a estar vinculadas a um período mínimo de três anos, para cada renovação.
As razões centram-se, em muito, no contexto associado à publicação da Lei nº 13/2019, que assumidamente visou o reforço da segurança e estabilidade no arrendamento urbano, bem como na tutela acrescida aos inquilinos.
É a tese defendida na doutrina, entre outros autores, por Maria Olinda Garcia, no texto “Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei nº 12/2019 e pela Lei nº 13/2019”, publicado na revista Julgar
online
, Março de 2019, página 12, ou por Ana Isabel Afonso, no texto “Sobre as mais recentes alterações legislativas ao regime do Arrendamento Urbano” publicado nos “Estudos de Arrendamento Urbano”, 2020, páginas 26 a 27.
É, por outro lado, a jurisprudência corrente (ainda que não incontroversa) no Supremo Tribunal de Justiça; como ilustram, entre outros, os Acórdãos de 20 de Setembro de 2023 (proc.º nº 3966/21.3T8GDM.P1.S1) ou de 13 de Fevereiro de 2025 (proc.º nº 907/24.0YLPRT.L1.S1), ainda que,
um e outro
, contendo votos de vencido.
A tese alternativa, em confronto, é a que vê, no mesmo artigo, uma disposição meramente
supletiva
, e na sua íntegra; facultando aos contratantes, além do mais, a válida opção de consensualizarem um prazo de renovação aquém dos três anos, ficando o que a norma estatui, em tema de prazo, reservado para as situações em que, fixada a renovação, se omita, para ela, um qualquer.
Argumenta-se, no essencial, com a sistemática do código, que aponta para essa solução; particularmente quando, além do mais, torna injuntiva noutras normas a vigência inicial mínima de três anos nos contratos renováveis,
aqui sim
, como garante da estabilidade habitacional do arrendamento.
É a tese defendida na doutrina, entre outros autores, por Jorge Pinto Furtado, em “Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano”, 3.ª edição, 2021 (revista e actualizada), páginas 650 a 653, ou por Isabel Rocha e Paulo Estima, em “Novo Regime do Arrendamento Urbano – notas práticas e jurisprudência”, 2019, página 286.
Na jurisprudência, sobretudo dos tribunais de segunda instância, é a tese propugnada, entre outros, pelos Acórdãos das Relações do Porto de 23 de Março de 2023 (proc.º nº 3966/21.3T8GDM.P1), de Lisboa de 27 de Abril de 2023 (proc.º nº 1390/22.0YLPRT.L1-6) ou de Évora de 27 de Junho de 2024 (proc.º nº 7/24.2YLPRT.E1).
É também o entendimento propugnado na sentença, aqui, recorrida.
Que dizer, então?
A evolução do regime do arrendamento, particularmente habitacional, nas últimas décadas, habitualmente convulsa, teve como pano de fundo o afastamento de um regime vinculístico (quase) absoluto, e a passagem para um outro, mais liberalizado e melhor ajustado à modernidade.
Com essa marca de água, numa óptica mais conjuntural, condicionada por opções políticas oscilantes, as regras jurídicas foram sendo alteradas, ora acentuando a maior liberdade contratual, ora solidificando mais o estatuto do arrendatário, por modo assumido de influenciar o mercado da habitação, no sentido de garantir a maior durabilidade dos contratos.
É um quadro conflituante entre, por um lado, o programático direito constitucional à habitação, que ao Estado cumpre promover (artigo 65º da Constituição da República), com o, por outro lado, não menos relevante, direito de propriedade privada, igualmente estabelecido, como fundamental, na Constituição (artigo 62º), e a que também importa garantir consistência.
Com a alteração de 2019, foi assumida a intenção de corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e proteger arrendatários em situação de especial fragilidade.
Quadra estes objectivos uma
mutação
,
de
supletiva
para
imperativa
, do segmento da norma do artigo 1096º, nº 1, final?
A resposta aparenta-se-nos negativa.
Temos dificuldade em ver à (nova) compressão ao conteúdo do direito de propriedade, assim significada, por via da intervenção legislativa, uma razão consistente.
O equilíbrio,
nesse particular
, já estava garantido no quadro jurídico pretérito.
E era nesse que os sujeitos já podiam fazer espelhar a
estabilidade
que entendessem para as respectivas situações jurídicas, com a maior amplitude, e fixando as cláusulas que mais lhes aprouvesse quanto à durabilidade do seu contrato.
E a intervenção normativa, quando
aqui
se quis inovar, foi
inequívoca
.
P. ex.; quando se explicitou a duração mínima do arrendamento, para um ano (artigo 1095º, nº 2); quando se evidenciou a duração inicial mínima, se renovável, de três anos (artigo 1097º, nº 3); ou ainda quando,
para o que mais nos interessa
, se clarificou a duração
supletiva
da renovação subsequente, mínima, de três anos (o artigo 1096º, nº 1, final, em causa).
E nada permite acrescentar, supor,
neste último caso
, ainda, uma (outra) mutação para a imperatividade (!).
A razão substantiva, e sólida, consistente, para a (nova) injunção, não existe.
Não se sustenta, nesse particular, em instabilidade do mercado que se percebesse.
Choca com a sistemática do código (artigo 9º, nº 1, do Código Civil) quando, p. ex., este permite celebrar contratos com menos de três anos (artigo 1095º, nº 2), arredar a renovação (artigo 1096º, nº 1, início); mas
sobretudo
quando expressamente ainda previne, e supõe, em norma intervencionada, uma renovação que possa ser
inferior
aos três anos (artigo 1097º, nº 1, alíneas b), c) ou d) [!]).
E vai, mesmo, ao arrepio da agilização do mercado do arrendamento, sua segurança e estabilidade, ou da protecção maior dos inquilinos,
que se visou
; porque, a ser assim, os senhorios teriam uma natural propensão para reduzir os contratos renováveis ou, ao invés, investir (mais) em arrendamentos de prazo certo, que se não renovam, e tendencialmente (mais) curtos.
2.2.6.
Revertendo à hipótese concreta, desta apelação.
A apelante, como inquilina, e a apelada, como senhoria, em 2014, configuraram o seu estatuto jurídico e o compuseram os seus interesses substantivos, moldando um arrendamento habitacional pelo prazo (inicial) de cinco anos e subordinado (a seguir) a renovações de um ano.
Garantiram, desse jeito, a (sua) estabilidade contratual; assumiram uma situação material em inteira liberdade; e fixaram as suas expectativas associadas (e futuras).
A Lei nº 13/2019, de 12 de Fevereiro, não teve a virtualidade para alterar esse estado de coisas.
Para os objectivos que visou, veio
sobretudo
fixar a duração mínima para o prazo certo (de um ano); e, para os contratos renováveis, fixar a sua duração inicial mínima (de três anos).
Mas manteve
a opção
do contrato (
irredutivelmente
) não renovável.
Como (
a fortiori
) deixou também
a escolha
dos períodos subsequentes da renovação, a existir, para a autonomia das partes.
Clarificando, tão-só,
supletivamente
, este último prazo, para a hipótese do silêncio dos sujeitos contratantes, nesse particular respeito.
A política de arrendamento e habitação, subjacentes, não permite ir além disto.
É este, ainda, o ponto de vista que se nos afigura mais harmonioso com o estádio de evolução da sociedade, do mercado do arrendamento urbano habitacional e com o sistema normativo, para ele implantado e em vigor.
E que é, igualmente, o da sentença recorrida; cuja fundamentação é inatacável.
III – Decisão
Em face do exposto,
acordam os juízes deste tribunal da Relação em
não dar provimento
ao recurso de apelação interposto e
:
(
1.º
). considerar de
natureza supletiva
, na sua íntegra, as normas contidas no artigo 1096º, nº 1, do Código Civil, na redacção dada pela Lei nº 13/2019, de 12 de Fevereiro;
(
2.º
). julgar eficaz a comunicação, efectuada pela apelada à apelante, por esta recebida em 19 de Janeiro de 2023, de oposição à renovação do contrato de arrendamento, celebrado entre ambas no dia 3 de Julho de 2014, e com
efeitos extintivos
para o dia 31 de Julho de 2023;
(
3.º
).
confirmar
, na sua totalidade, o saneador-sentença recorrido.
As custas do recurso são encargo (total) da apelante, que decaiu (artigo 607º, nº 6, do Código de Processo Civil).
Lisboa, 11 de Março de 2025
Luís Filipe Brites Lameiras
Alexandra de Castro Rocha
Rute Alexandra da Silva Sabino Lopes
|
TRL
|
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/1b926e652bb36d8c80258c5a0042af85?OpenDocument
|
1,737,590,400,000
|
CONFIRMADA
|
9256/23.0T8PRT.P1
|
9256/23.0T8PRT.P1
|
ISABEL FERREIRA
|
I – É possível distinguir os danos sofridos por uma menor em consequência de acidente de viação decorrente do despiste do veículo em que seguia como passageira, do sofrimento que lhe adveio da morte do pai, ocorrida na sequência de doença súbita que o acometeu enquanto conduzia o veículo e originou o despiste deste.
II – O montante indemnizatório fixado com recurso a juízos de equidade apenas deve ser alterado quando evidencie desrespeito pelas normas que justificam o recurso à equidade ou se mostre em flagrante divergência com os padrões jurisprudenciais sedimentados e aplicados em casos similares.
|
[
"RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL",
"INDEMNIZAÇÃO",
"DANOS NÃO PATRIMONIAIS",
"EQUIDADE"
] |
Processo nº 9256/23.0T8PRT.P1
(Comarca do Porto – Juízo Local Cível do Porto – Juiz 8)
Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1º Adjunto: João Maria Venade
2º Adjunto: Carlos Portela
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I
–
AA
, menor, representada pela sua mãe, BB, intentou, no Juízo Local Cível do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto,
acção declarativa
,
com
processo comum
, contra
“A..., S.A.”
, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 24.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou para tal ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais na sequência de acidente de viação decorrente do despiste do veículo em que seguia como passageira, segurado na R., a qual suportou os montantes respeitantes aos danos patrimoniais (despesas com assistência hospitalar e fisioterapia), mas não indemnizou os danos não patrimoniais.
A R. contestou, aceitando os factos alegados na petição inicial atinentes à ocorrência do acidente e à assistência prestada à A. e impugnando os restantes factos alegados na petição inicial, e invocando que ao sinistro em causa se aplicam as exclusões previstas no art. 14º do D.L. 291/2007, de 21/08, e a jurisprudência fixada no A.U.J. nº 12/2014, de 05/07, publicado no D.R., 1ª série, n.º 129, de 08/07/2014, segundo a qual “no caso de morte do condutor de veículo em acidente de viação causado por culpa exclusiva do mesmo, as pessoas referidas no n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil não têm direito, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a qualquer compensação por danos não patrimoniais decorrentes daquela morte”.
Foi realizada audiência prévia, na qual a A. respondeu, defendendo não se verificar a excepção invocada pela R. na contestação, aduzindo que o que se reclama na acção são danos próprios da passageira e que o acidente não foi causado por culpa exclusiva do condutor, mas por doença súbita deste, sendo que a R. confessou expressamente o pagamento da assistência médica prestada à A..
Na audiência prévia foi proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio e elencados os temas da prova.
Procedeu-se seguidamente a julgamento.
Após, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar a acção procedente e, em consequência, condenar a R. a pagar à A. a quantia de € 24.000,00, acrescida de juros de mora, “contabilizados à taxa legal e vencidos desde a presente data até integral pagamento”.
De tal sentença veio a R. interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes
conclusões
, que se transcrevem:
«1. Da conjugação dos depoimentos das testemunhas CC, DD e EE, depoimentos transcritos no corpo das alegações do presente recurso, partes relevantes para a impugnação da matéria de facto constante dos factos 16 a 21 da douta sentença recorrida assinalados a
bold
, resulta que aqueles factos 16 a 21 não foram consequência do acidente de viação de que tratam os presentes autos, antes decorrendo em consequência da morte do pai da recorrida.
2. O acidente, de baixa cinética, não provocou qualquer dano ou lesão ao pai da recorrida que tivesse determinado ou mesmo concorrido para a sua morte.
3. O acidente não foi a causa da morte do pai da recorrida nem foi a causa dos episódios traumáticos, e outros, descritos na matéria de facto dada como provada em 16 a 21 dos factos provados.
4. O montante indemnizatório que veio a ser atribuído à recorrida contempla a variante dos danos que resultam da matéria de facto constante de 16 a 21 dos factos provados, o que vale por dizer que a recorrente vem condenada em montante indemnizatório calculado com base em danos não cobertos pelo seguro.
5. Ainda que a recorrida possa relacionar a morte do pai com o acidente, atribuindo a este a morte do pai, do erro em que a recorrida incorre não pode resultar a oneração da recorrente no pagamento de uma indemnização decorrente de danos que não encontram cobertura no seguro automóvel contratado, precisamente por não serem danos decorrentes de acidente de viação para efeitos daquela cobertura.
6. A matéria de facto dada como provada em 16 a 21 dos factos provados deve assim ser dada como não provada, sendo de referir e sublinhar, em particular, que os factos constantes de 17 não resultam de qualquer meio de prova.
7. Nos termos do disposto no art.º 662º do CPCivil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se a prova produzida impuser decisão inversa – é o que desde já respeitosamente se requer a este Venerando Tribunal, no sentido de os factos provados em 16 a 21 da douta sentença recorrida serem dados como não provados.
8. Tal como prescreve o art.º 128º da Lei nº 72/2008, de 16 de Abril (Lei do Contrato de Seguro), a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro.
9. Nos termos do disposto no art.º 563º do CCivil, a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
10. Os danos que para a recorrida resultaram em consequência do acidente são os que se extraem dos factos provados em 8, 9, 10, 11, 13, 14, 15, 22 e 23 da douta sentença recorrida.
11. Tais danos, de natureza não patrimonial, não devem ser compensados em quantia superior a € 10.000,00, atendendo à sua dimensão e natureza, danos que, como resulta da factualidade dada como provada, revestiram carácter limitado no tempo, deles não tendo resultado sequelas permanentes.
12. Na douta sentença recorrida fez-se menos acertada interpretação dos factos e menos correcta aplicação da Lei, designadamente do art.º 607º do CPCivil, dos art.ºs 562º e 563º, ambos do CCivil e do art.º 128º da Lei nº 72/2008, de 16 de Abril.
Pelo exposto,
Na procedência das conclusões do recurso da recorrente, deve a douta sentença ora recorrida ser revogada nos termos supra descritos, assim se fazendo
JUSTIÇA.».
A A. apresentou contra-alegações, aduzindo que a recorrente não indicou, como lhe competia, qual a prova produzida que impusesse decisão diversa, e defendendo que deve ser negado provimento ao recurso e confirmada a sentença recorrida.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II -
Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as
questões
a tratar:
a)
impugnação da matéria de facto;
b)
montante indemnizatório a título de danos não patrimoniais.
**
Vejamos a primeira questão.
O recurso pode ter como objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a reapreciação da prova gravada (cfr. art. 638º, nº 7, e 640º do C.P.C.).
Neste caso, o recorrente deve
obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição
(nº 1 do art. 640º):
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas
.
No que respeita à alínea b) do nº 1, e de acordo com o previsto na alínea a) do nº 2 da mesma norma,
quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes
.
No caso, a recorrida defende que não foi indicada qual a prova produzida que impusesse decisão diversa.
Vista a motivação do recurso, verifica-se que, no que concerne à prova testemunhal, gravada, a recorrente baseia a pretendida alteração da matéria de facto nos depoimentos das testemunhas CC, DD e EE, procedendo à transcrição dos seus depoimentos na alegação, assinalando a negrito várias partes desses depoimentos e aduzindo expressamente que realçou a negrito (usando a expressão inglesa “bold”) as partes que, na sua perspectiva, “são decisivamente determinantes para que a matéria de facto em causa seja julgada no sentido que a recorrente, em sede do presente recurso, considera ser o que resulta da conjugação daqueles meios de prova”.
Ora, vista a referida transcrição, percebe-se que as partes assinaladas a negrito correspondem precisamente aos excertos em que a recorrente baseia a sua pretensão de alteração da matéria de facto, como, aliás, a mesma diz expressamente.
Sendo assim, afigura-se que está cumprido o referido ónus por parte da recorrente.
Anote-se que há que ter em conta o princípio da proporcionalidade, não exacerbando os requisitos formais a tal ponto que tal se traduza numa denegação/recusa da reapreciação da matéria de facto, ao arrepio do que foi a intenção do legislador e do que consta claramente da letra da lei (neste sentido, cfr. Ac. do S.T.J. de uniformização de jurisprudência nº 12/2023, de 14/11, D.R. n.º 220/2023, Série I, págs. 44 a 65, e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, págs. 202 a 207).
Ademais, verifica-se que a recorrente deu cumprimento às demais exigências referidas, especificando os concretos factos que põe em causa e indicando as razões da sua discordância, bem como a alteração que pretende quanto a tal factualidade.
Assente, assim, que a recorrente cumpriu com as exigências respeitantes à impugnação da matéria de facto, apreciemos então da alteração pretendida.
A recorrente pretende que os factos 16 a 21 do elenco dos factos provados devem ser considerados não provados, invocando que os mesmos não são consequência do acidente de viação, mas da morte do pai da A., cuja causa não foi o acidente, para além de que os factos do ponto 17 não resultam de qualquer meio de prova.
São os seguintes os factos em questão (transcrição):
«16. Para além das significativas dores físicas sofreu enorme e indescritível susto que lhe causou grande sobressalto, pavor, intranquilidade e pânico.
17. Anteviu a morte como inevitável sem nada poder fazer para a evitar.
18. Também como consequência do acidente a menor AA é acometida de pânico quando circula em viatura automóvel pela constante omnipresença do ocorrido.
19. Não sente qualquer segurança quando circula em viatura automóvel.
20. E tudo faz para evitar viajar em viatura automóvel.
21. O trauma emocional e psicológico causado pelo acidente não foi dissipado, continuando a menor apoiada em consulta de psicologia.».
Na decisão recorrida, na motivação da resposta a estes pontos da matéria de facto, afirmou-se:
“
Quanto à matéria que resultava controvertida da posição manifestada pelas partes nos respectivos articulados e que respeita, essencialmente (…) aos concretos danos não patrimoniais que servem de fundamento (causa de pedir) ao pedido indemnizatório formulados nos autos, e que resultou apurada, sem margem para quaisquer dúvidas, e, por isso, levada aos pontos n.ºs 11 e 13 a 21, foi considerada e ponderada toda a prova produzida no seu conjunto e em confronto, analisada segundo as regras da experiência comum, com destaque para a p[
e
]rova testemunhal produzida na audiência final.
Assim, quanto a tais pontos da matéria de facto dada como provada, interessaram ainda os depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas na audiência final, a saber:
-
FF
, tio da autora menor, o qual afirmou os dois tipos de sequelas – físicas e psicológicas – que directamente decorreram para a mesma em resultado do acidente de que foi vítima. Ao nível das sequelas físicas, confirmou as escoriações no pescoço e a marca vermelha visível no peito. Mais atestou que, nos dias seguintes após o acidente, a menor ficou nitidamente com a mobilidade reduzida, evidenciando dores, quer nas costas, quer no pescoço. Confirmou a incapacidade que a impediu de frequentar as aulas pelas semanas que se seguiram, a necessidade de frequentar as sessões de fisioterapia, e, sobretudo, as sequelas psicológicas que ainda hoje se mantêm, consubstanciadas no pânico que claramente a menor evidenciava e ainda se manifesta quando tem a necessidade de andar de veículo automóvel. Quadro psicológico este que a testemunha atestou ainda se manter na actualidade, assim como a dor evidenciada pela menor (pela postura / reacção comportamental) quando ouve o som das sirenes de uma ambulância, som que associa ao acidente de que foi vítima e que ainda não ultrapassou psicologicamente, com um impacto directo no seu quotidiano. Referiu que, apesar de mais de três anos volvidos, estas sequelas ainda se evidenciam e estão presentes na vida diária da autora, recusando-se a menor a falar do acidente, “guarda-se”, na economia das palavras ilustrativas do depoente; logrando ainda a indicada testemunha destrinçar no comportamento da menor, que, sendo inegável que a morte do pai é “uma ferida aberta”, porém, a dor (maior) daí decorrente é claramente diferente das dores, limitações e sequelas que mencionou e que são decorrentes do próprio acidente que a vitimou (e que se configuram como os danos em discussão nestes autos e servem de fundamento ao pedido formulado);
-
CC
, avô da autora menor, corroborou a mesma matéria factual da anterior testemunha, explicitando as sequelas físicas e psicológicas directamente decorrentes para a menor do acidente que foi vítima, e que não se confundem com a dor da perda do pai, sendo certo que a causa da morte do malogrado condutor não decorreu do acidente, como resultou comprovado do teor do relatório de autópsia médico-legal e a certidão de óbito reproduzidas com a petição inicial como “documentos nºs 2 e 3”, antes de episódio de doença súbita acometido enquanto conduzia;
-
GG
, empregada doméstica da mãe da autora há cerca de 6 anos, em regime de trabalho doméstico diário, confirmou as dores manifestadas pela menor e por esta sofridas directamente em resultado do acidente, nas costas e no pescoço, onde a testemunha atestou evidência de hematomas (visíveis, portanto), que não passaram rapidamente. Corroborou ainda que, após o acidente, a autora ficou muito mal, inclusivamente ficou impedida de ir às aulas, o que se manteve durante algum tempo, e, em simultâneo, queixava-se muito de dores. Teve desse modo que permanecer em casa após o acidente, a recuperar das lesões e dores físicas decorrentes do acidente, e com necessidade ainda de ter que recorrer aos serviços de fisioterapia que acima se aludiram. Identificou de forma clara as mudanças no comportamento e personalidade da autora antes e após do acidente, o pânico evidenciado quando confrontada com a necessidade de andar de veículo automóvel, a atitude de se “fechar” no que respeita ao acidente, do qual nunca conseguiu falar-lhe, e a evidência de, caso não tivesse perdido o pai, sempre continuaria, como continua, a queixar-se das dores (no pescoço e nas costas) e das limitações físicas que evidencia e que decorreram do acidente;
-
DD
, professora de educação especial da menor, que conhece desde Novembro de 2019, altura em que os pais da autora menor recorreram aos seus serviços por dificuldades instrumentais desta última (dificuldades na aprendizagem, ao nível de matemática, por razões várias, nomeadamente por falta de bases), e cujo acompanhamento mantém até à actualidade dada a relação muito forte que a autora estabeleceu com a testemunha.
Explicitou que a menor, ainda hoje está a tentar reparar uma dor profunda e ainda permanece em luto pela perda do pai, logrando destrinçar claramente esta dor (que se manifesta quando refere, por exemplo, que o pai não a vai levar ao altar ...) das dores físicas horríveis que evidenciou em consequência do acidente de que foi vítima e que, de acordo com a testemunha, faz inclusivamente um esforço para minimizar pois tem a maior dor (paralela) daquela perda, perda essa irrecuperável e irremediável. Certo é ter a testemunha, a par de todas as demais acima identificadas, logrado destrinçar essa dor, das dores e sequelas físicas (no pescoço, por exemplo) e psicológicas que directamente decorreram para a menor do acidente, do que destaca o pânico quando tem que andar de carro. Esclarecedoramente, referiu que, se o pai da menor não tivesse partido, a autora menor teria se permitido / se autorizado a viver a sua própria dor, física e psicológica – ao perder o pai, faz um esforço por a minimizar, como repetiu, porém, inegavelmente ela está lá; e
–
EE
, avó da menor e com a qual a mesma mantém uma relação de especial proximidade, relevando o seu depoimento para confirmar toda esta materialidade atinente aos danos não patrimoniais em discussão nos presentes autos e que não se confundem com o outro dano maior da perda do pai. Ao nível das sequelas físicas, acrescentou que a autora ainda hoje deixou de poder fazer desporto e evidencia ainda ter algumas dores corporais (a par do sustentado pela anterior testemunha) decorrentes das lesões sofridas.
Assim, do cotejo de todos os depoimentos, prestados de forma isenta, circunstanciada e genuína, com o que mereceram inteira credibilidade do tribunal, resultou claro que, do acidente, que se deveu ao facto de o malogrado condutor ter sido acometido de doença súbita e não de qualquer comportamento estradal doloso ou negligente culposo da sua parte, pai da A., advieram danos para a autora menor, consubstanciados estes danos nas dores físicas e nas sequelas emocionais, que ainda se manifestam na actualidade - a sua insegurança, o trauma do acidente que vivenciou e o confronto com o medo da perda do direito à vida com que então a mesma foi confrontada e com que se deparou de forma impotente, o pânico de que é acometida quando tem que viajar de viatura automóvel, o sofrimento que evidencia quando ouve o barulho / as sirenes de uma ambulância a passar, as dores físicas e limitações que sente – e que não se confundem com a dor da perda do seu pai, sendo que esta não se configura como um dano que esteja peticionado nos presentes autos.
Em suma, face a toda a prova assim produzida, valorada criticamente e com apelo às regras da experiência comum e habitualidade, não soçobraram quaisquer dúvidas quanto à comprovação dos factos provados, alegados em sede de p.i. e que, por isso, mereceram resposta positiva e resultaram assim reflectidos (nos “factos provados” levados aos indicados pontos).
Sublinhe-se ainda que, quer a ansiedade e receio sentidos pela A. quando surpreendida, de modo impotente, pelo acidente de que foi vítima, quer durante os tratamentos a que sequentemente teve que ser submetida, quer o desgosto actual sentido por força do sofrimento psicológico que persiste do evento traumático e limitações de que ficou a padecer resultam, desde logo e também (a par do atestado de forma consentânea e concordante por todas as testemunhas inquiridas), das regras da normalidade do acontecer: tais sentimentos são o normalmente vivenciado pelas pessoas que passam por situações semelhantes à que a autora se viu envolvida, sendo que, à data do acidente, contava apenas doze anos. Além disso, tal matéria foi confirmada pelas mencionadas testemunhas, como mencionado.
”
E, vistos todos os depoimentos prestados em audiência de julgamento (e não só os três indicados pela recorrente), afigura-se que a motivação do tribunal
a quo
espelha fielmente a prova produzida e retira as conclusões correctas da análise crítica que faz da conjugação da mesma e da sua apreciação à luz das regras da experiência.
Como se vê, todas as testemunhas foram unânimes na descrição do estado da A. depois do acidente, referindo-se ao medo de andar de carro (inclusivamente as testemunhas GG e EE – parte não especificamente salientada na descrição dos seus depoimentos) e à mudança de comportamento de cada vez que alguma coisa a faz lembrar o acidente, do que evita falar (ao contrário do que sucede relativamente à morte do pai, que consegue verbalizar), dos seus depoimentos resultando sem dúvida os factos descritos nos pontos 16, 18, 19, 20 e 21.
Anote-se, aliás, que a recorrente verdadeiramente não põe em causa que tais factos ocorram/tenham ocorrido. O que põe em causa é a consideração dos mesmo como consequência do acidente, defendendo que são antes consequência da morte do pai da A..
E quanto ao facto do ponto 17, obviamente que, sendo um facto interno, vivenciado pela A. no momento do acidente, e em que não estava presente qualquer testemunha, nenhum depoimento o há-de referir expressamente. Simplesmente, tal circunstância não significa que o mesmo não seja passível de prova, com apelo às regras da experiência, do normal suceder, como, ademais, foi expressamente tido em conta na sentença recorrida.
No caso, considerando as circunstâncias do acidente e a idade da menor – tinha 12 anos de idade; apenas ela e o pai seguiam no veículo automóvel; a via por onde seguiam é de sentido único e tem três faixas de rodagem; quando conduzia, o pai teve um episódio de doença súbita que lhe alterou o estado de consciência, com o que deixou de controlar o veículo; este entrou em despiste e embateu nos rails de protecção, prosseguindo em marcha desgovernada, tendo deixado marcas de fricção no pavimento e ficando com a roda frontal esquerda imobilizada na berma; o sucedido deu-se na ..., com a configuração de auto-estrada; como decorre também da participação do acidente de viação elaborada pela P.S.P. junta como Doc. 1 da petição inicial, designadamente do croquis, a referida marcha desgovernada do veículo ocorreu durante 103 metros, batendo inicialmente no separador central, atravessando a estrada desde a faixa mais à esquerda até à faixa mais à direita, batendo nos rails de protecção do lado direito, junto à berma, e voltando a atravessar a estrada para a faixa mais à esquerda até embater de novo no separador central – é normal, de acordo com as referidas regras da experiência, que a mesma tenha sentido que iria morrer e que nada podia fazer para o evitar (até um adulto o poderia sentir, mais ainda uma pré-adolescente), sendo certo que, da descrição do seu comportamento por parte das testemunhas ouvidas, resulta que o “normal” efectivamente aconteceu no caso, que a menor “anteviu a morte (…)”, sentimento que se coaduna com as alterações comportamentais descritas.
Ademais, ainda que difícil, é possível dilucidar no caso as sequelas sofridas pela menor em decorrência do acidente do sofrimento que lhe adveio da morte do pai, como correctamente fez a decisão recorrida. Uma coisa é o sentimento de perda, outra coisa o trauma decorrente do acidente em que se viu envolvida (e o qual não causou aquela morte), tendo a menor consciência, como decorre dos citados depoimentos (designadamente os das testemunhas FF e DD), de que são situações diferentes, de que a morte do pai foi independente do acidente.
E precisamente por esta distinção dos eventos (embora temporalmente coincidentes e ligados entre si, posto que a doença do condutor do veículo foi a causa do despiste do veículo, que ficou sem condutor, e foi também o que veio a causar a morte do mesmo) é que é possível verificar a distinção dos danos sofridos pela menor: o medo de andar de carro, o não conseguir falar do acidente e a alteração de comportamento quando algo lhe lembra o acidente não existiriam acaso o pai tivesse falecido em consequência da mesma doença súbita quando não estivesse a conduzir e se encontrasse até num local resguardado, como a habitação; e poderiam existir igualmente acaso a menor tivesse passado pelo mesmo acidente mas tendo o pai sobrevivido à doença súbita (anote-se que não é a maior ou menor gravidade objectiva do acidente que determina necessariamente o trauma maior ou menor sentido pela vítima, mas a gravidade que foi sentida por esta perante as concretas circunstâncias que vivenciou ao sofrer o acidente).
Em suma, a prova produzida não permite a alteração pretendida pela recorrente, antes pelo contrário, dela se concluindo que a matéria impugnada foi correctamente julgada na primeira instância.
Não merece, pois, provimento a impugnação da matéria de facto.
*
Passemos à segunda questão.
Tendo em conta o resultado do tratamento da questão anterior, a factualidade a ter em conta para apreciação da pretensão da recorrente é a que consta dos factos dados como provados na sentença recorrida e que são os seguintes (transcrição):
«1. No dia 24 de Maio de 2020, pelas 23h40m, na ..., sentido .../..., junto ao km 1,6, na cidade do Porto, ocorreu um acidente de viação que envolveu o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula número ..-JH-.. (doravante designado por “JH”), propriedade de “B..., Lda.” e conduzido por HH.
2. Nas circunstâncias de tempo e lugar antes referidas, em 1., a viatura conduzida por HH entrou em despiste e embateu nos rails de protecção, prosseguindo em marcha desgovernada.
3. Após o embate nos rails eram visíveis marcas de fricção no pavimento ficando a roda frontal esquerda do veículo imobilizada na berma e destroços do veículo que se prolongavam até à posição final do veículo interveniente.
4. A via por onde circulava a viatura com o veículo “JH” é de sentido único e dotada de três faixas de rodagem.
5. O condutor HH enquanto conduzia a viatura “JH” sofreu episódio agudo de cervicalgia e cefaleia intensa que condicionou alteração súbita e progressiva do estado de consciência, com consequente acidente de viação de baixa cinética.
6. Tendo o malogrado condutor sido conduzido ao Centro Hospitalar ..., na cidade do Porto, onde lhe foi prestada prontamente toda a assistência, acabando por falecer no dia 25/05/2020, pelas 01h27m, vítima de paragem cardiocirculatória.
7. Para além do condutor circulava na viatura sua filha menor, AA.
8. A menor AA sofreu, como consequência directa e imediata do acidente, significativas escoriações no pescoço e tronco (queimadura de 1º grau) decorrentes do efeito chicote do cinto de segurança.
9. Sofreu também diversos hematomas na perna e braço esquerdos.
10. A menor foi assistida imediatamente após o acidente no Centro Hospitalar ....
11. As mazelas físicas de que ficou portadora tiveram repercussões imediatas no dia a dia da menor AA.
12. À data do acidente tinha doze anos.
13. Ficou impedida de frequentar as aulas por um período de cerca de três semanas, com retenção no leito.
14. As lesões provocadas pelo acidente causaram-lhe fortes, intensas e reiteradas dores na parte atingida do corpo, que se prolongaram para além do período referido no precedente ponto 13º.
15. Factualidade que muito a afectou pelas limitações a que ficou sujeita.
16. Para além das significativas dores físicas sofreu enorme e indescritível susto que lhe causou grande sobressalto, pavor, intranquilidade e pânico.
17. Anteviu a morte como inevitável sem nada poder fazer para a evitar.
18. Também como consequência do acidente a menor AA é acometida de pânico quando circula em viatura automóvel pela constante omnipresença do ocorrido.
19. Não sente qualquer segurança quando circula em viatura automóvel.
20. E tudo faz para evitar viajar em viatura automóvel.
21. O trauma emocional e psicológico causado pelo acidente não foi dissipado, continuando a menor apoiada em consulta de psicologia.
22. A menor AA em consequência do acidente teve necessidade de recorrer aos serviços de fisioterapia, prestados pelo Instituto ....
23. Serviços esses prestados no período compreendido entre 07/12/2020 e 08/04/2021, compreendendo 38 sessões.
24. A prestação destes serviços foi assumida e integralmente paga pela ré seguradora.
25. A ré também pagou a assistência prestada à menor no Centro Hospitalar ....
26. Porém, relativamente aos danos não patrimoniais sofridos a ré seguradora nada reparou à menor.
27. A proprietária do veículo automóvel “JH” tinha transferido para a Seguradora ré a responsabilidade civil emergente da circulação da viatura, através do contrato de seguro titulado pela apólice número ..., válida à data do acidente.».
Pretende a recorrente que o montante de € 24.000,00 fixado a título de compensação por danos não patrimoniais é excessivo, devendo antes fixar-se o montante de € 10.000,00.
Tal pretensão ancora-se na circunstância de considerar para o efeito apenas os factos constantes dos pontos 8, 9, 10, 11, 13, 14, 15, 22 e 23 da matéria de facto, por defender no recurso que os factos dos pontos 16 a 21 deveriam ser considerados como não provados, não havendo lugar a indemnização nesta parte por estes não decorrerem do acidente.
Como se viu, a sua pretensão quanto a esta matéria não obteve acolhimento, mantendo-se os referidos factos como provados, o que desde logo faz soçobrar a alegação da recorrente, na medida em que todos os factos considerados na sentença recorrida são de considerar na fixação da compensação pelos danos não patrimoniais decorrentes do acidente.
E de qualquer forma, tendo em conta a factualidade apurada, não se nos afigura excessivo o montante a que se chegou na sentença recorrida.
Com efeito, de acordo com o previsto no art. 496º do Código Civil devem ser ressarcidos os danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
O tribunal deve fixar ao lesado uma compensação em dinheiro em termos equitativos (arts. 496º e 566º, nº 3, do C.C.), atendendo ainda às circunstâncias referidas no art. 494º do Código Civil.
Nesta sede não está em causa uma verdadeira reparação, com a finalidade de reconstituir a anterior situação do lesado (como acontece, em regra, na obrigação de indemnizar - art. 562º do C.C.), não só porque a situação anterior não pode mais ser reposta, mas também porque os danos sofridos são insusceptíveis de tradução monetária.
Antes se trata de uma compensação ou satisfação que contrabalance os sofrimentos do lesado em virtude de toda a situação resultante do acidente.
Com esta indemnização pretende-se, enfim, proporcionar um quantitativo em dinheiro susceptível de propiciar situações de prazer e alegria que, de certa forma, compensem aquele sofrimento físico e moral (neste sentido, Rui de Alarcão, Direito das Obrigações, Coimbra, págs. 275 e 276).
Daqui se pode, desde logo, concluir que a quantificação da justa medida da compensação pelos danos não patrimoniais encontra dificuldades inerentes à própria natureza dos mesmos (atingem valores de carácter moral ou espiritual) e afigura-se de grande complexidade, atenta a sua não mensurabilidade.
No entanto, é óbvio que estas dificuldades práticas do cálculo do quantitativo da indemnização por tais danos não podem fazer com que eles fiquem sem indemnização, sendo imprescindível o recurso a juízos de equidade e ao prudente arbítrio do julgador, por forma até a que a compensação tenha um alcance significativo e não meramente simbólico.
Deve, então, o tribunal fixar ao lesado uma compensação em dinheiro em termos equitativos (arts. 496º e 566º, nº 3, do C.C.), atendendo ainda às circunstâncias referidas no art. 494º do C.C. e à gravidade do dano, e tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência e bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida (neste sentido, P. Lima - A. Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., em anotação ao art. 496º, e Ac. do S.T.J. de 10/2/98, C.J.S.T.J., tomo 1, pág. 65).
Considerando os factos apurados e já referidos, dos pontos 8 a 23 da matéria de facto, não esquecendo a idade da menor à data, encontrando-se na fase da pré-adolescência, e analisando o caso concreto à luz das considerações
supra
expostas, afigura-se-nos ser adequada a quantia de
€ 24.000,00
fixada na sentença recorrida a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela A..
Anote-se que o montante fixado com recurso a juízos de equidade, “porque assente na ponderação das circunstâncias apuradas e relevantes de cada caso concreto e não em razões estritamente normativas”, apenas deve ser alterado “quando evidencie desrespeito pelas normas que justificam o recurso à equidade ou se mostre em flagrante divergência com os padrões jurisprudenciais sedimentados e aplicados em casos similares” (cfr. Ac. da R.P. de 06/02/2023, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de processo 8402/12.3TBMTS.P1), o que não ocorre no caso, como se retira da análise da fundamentação de direito da sentença recorrida nesta parte.
Donde, perante a conclusão a que se chegou, nenhuma censura merece a decisão recorrida, não sendo de acolher a pretensão da R. de redução da indemnização fixada.
*
Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela não obtenção de provimento do recurso interposto pela R. e pela consequente confirmação da decisão recorrida.
***
III
- Por tudo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela recorrente (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário
(da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente
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Porto, 23/1/2025
Isabel Ferreira
João Venade
Carlos Portela
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/d93fdf4c8138e9b180258c27003ee908?OpenDocument
|
1,750,896,000,000
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CONFIRMADA A SENTENÇA
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331/23.1T8AMT.P1
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331/23.1T8AMT.P1
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JOSÉ MANUEL CORREIA
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I - A causa de pedir é constituída pelos factos de cuja verificação depende a procedência do pedido.
II - Proposta ação e citado o réu, a causa de pedir, enquanto elemento essencial da causa, torna-se, nos termos do art.º 260.º do CPC, estável, mas não necessariamente imutável.
III - Pode, com efeito, ser alterada ou ampliada por acordo das partes, em qualquer altura do processo, em 1.ª ou em 2.ª instância, salvo se tal perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento da causa (art.º 264.º do CPC).
IV - Também pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor; para o efeito, dispõe este do prazo de 10 dias contado da aceitação (art.º 265.º, n.º 1 do CPC).
V - Pode, ainda, ser modificada sempre que na origem da modificação estejam factos supervenientes, desde que introduzidos em juízo através de articulado superveniente (art.º 588.º, n.º 1 do CPC).
VI - Cabe exclusivamente às partes, sem que o tribunal possa substitui-las nessa tarefa, o ónus da alegação dos factos essenciais, isto é, daqueles que constituem a causa de pedir ou em que se baseiam as exceções invocadas, o mesmo é dizer os factos que servem de fundamento à ação e à defesa (art.º 5.º, n.º 1 do CPC).
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[
"CAUSA DE PEDIR",
"FACTOS ESSENCIAIS",
"ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA"
] |
Processo n.º 331/23.1T8AMT.P1 - Recurso de apelação
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo Local Cível de Amarante
Recorrente: AA
Recorrido: Condomínio do Edifício ...
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.- Sumário
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………………………………….
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.- Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto,
I.- Relatório
.-
AA
instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra
Condomínio do prédio constituído em propriedade horizontal, denominado ‘
Edifício ...
’
, sito na Rua ..., ..., da União de Freguesias ... (...), ..., ... e ..., ....
Pediu, pela procedência da ação, a condenação do Réu:
a.- a realizar, à sua custa, as obras de reparação e eliminação das causas dos problemas surgidos na fração do A., em prazo nunca superior a 30 dias, e a pagar ao A., a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do art.º 829.º-A do CC, o valor de € 100,00 por cada dia de atraso no cumprimento;
b.- a pagar ao A. a quantia de € 3.800,70, a título de indemnização referente ao custo das obras de reparação descritas de 36.º a 38.º supra, ou, caso assim se não entenda, condenar a Ré a proceder às obras de reparação descritas de 36.º a 38.º supra, em prazo nunca superior a 15 dias, e a pagar ao A., a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do art.º 829.º-A do CC, o valor de € 100,00 por cada dia de atraso no cumprimento;
c.- a pagar ao A. a quantia de € 1.200,00, a título de rendas que este deixou de auferir até à presente data, acrescida da quantia correspondente às rendas que se forem vencendo até ao pagamento da quantia referida na alínea precedente ou, caso assim se não entenda, até à conclusão das obras referidas na alínea precedente por parte da Ré;
d.- a pagar ao A. a quantia de € 300,00, a título de indemnização pelo dano referido no art.º 39.º do presente articulado.
e.- a pagar ao A. o montante correspondente aos juros moratórios sobre as quantias referidas nas alíneas precedentes, à taxa legal, desde os seus vencimentos e até integral e efetivo pagamento.
Para tanto, e em síntese, alegou, no que para este recurso importa, o seguinte.
É proprietário da fração autónoma designada pelas letras AJ, destinada a habitação, tipo t2, situada no 3.º e último andar, sob a cobertura, do ‘Edifício ...’, cujo condomínio é o Réu.
Em 31 de outubro de 2022, provindo do telhado e de fissuras do edifício, surgiram infiltrações de água, que causaram estragos no interior de um dos quartos e no teto da sua varanda.
A fração estava arrendada, mediante o pagamento de uma renda mensal de € 300,00, sendo que, com os estragos que sofreu, deixou de ter condições de habitabilidade em dezembro de 2022.
Por esse motivo, a arrendatária deixou, em dezembro de 2022, de pagar a renda, pelo que, à data da propositura da ação, não auferira a quantia de € 1.200,00 a título de rendas.
O condomínio Réu não diligenciou pela reparação, quer das causas das infiltrações, quer dos estragos causados no interior da fração; é, pois, responsável, quer por tal reparação, quer por indemnizá-lo dos danos causados, nomeadamente, do valor das rendas, vencidas e vincendas, não recebidas.
*
Citado, contestou o Réu, batendo-se pela improcedência da ação.
No que ao caso importa, alegou, em síntese, o seguinte.
Em assembleia realizada a 06-04-2021, na qual o Autor não compareceu nem se fez representar, os condóminos do Edifício Réu deliberaram iniciar as obras pela cobertura e só depois passar para a fachada; mais deliberaram que a obra só teria início quando houvesse disponibilidade para o efeito.
O Autor não impugnou esta deliberação, pelo que ficou vinculado à mesma, não podendo formular na ação os pedidos que formula, comportamento que, de resto, configura abuso de direito.
Os estragos descritos pelo Autor no interior da sua fração, se se verificaram, poderão ter tido como causa outros fatores que não o estado das partes comuns do edifício em que se insere.
A arrendatária continua a habitar a fração, o que revela que esta mantém condições de habitabilidade, sendo abusivo pedir o valor das rendas ao condomínio e, em contrapartida, continuar gratuitamente a habitar na fração.
*
Dispensada a audiência prévia, foi:
.- fixado em € 5.300,70 o valor da causa;
.- proferido despacho saneador tabelar;
.- identificado o objeto do litígio;
.- enunciados os temas da prova;
*
Foi realizada a
audiência de discussão e julgamento
.
*
Seguidamente, foi proferida
sentença
julgando:
1.- parcialmente procedente o primeiro pedido acima referido em b. e, consequentemente, condenando o Réu a pagar ao Autor a quantia de € 796,72, acrescida de IVA, bem como de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento;
2.- improcedentes os restantes pedidos, deles absolvendo o Réu.
*
Inconformado com esta decisão, dela veio o Autor interpor o presente
recurso
, batendo-se pela sua revogação no segmento que absolveu o Réu/Apelado dos pedidos das alíneas c) e e) e pela sua substituição por outra que o condene a pagar-lhe uma indemnização correspondente ao valor das rendas que o Autor/Apelante deixou de auferir desde outubro de 2023, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, formulou as seguintes
conclusões
:
A)
Tendo o Tribunal
a quo
dado como provado, no facto 19, que a inquilina continuou a habitar na fracção do autor, e dado como não provado o tema da prova n.º 15, a saber, que a fracção autónoma continua arrendada, quer isto dizer que o Tribunal
a quo
considerou que a fracção continua por arrendar. O Tribunal
a quo
deveria ter dado como provado, no facto 19, que a inquilina continuou a habitar na fração do autor até Setembro de 2023
inclusive,
continuando a fracção por arrendar. Resulta do texto da sentença que a inquilina referiu ter saído da fração em Setembro de 2023, e que a testemunha BB referiu a saída da inquilina naquela mesma data, bem como referiu que o quarto continua inabitável e ninguém o quer arrendar naquele estado. Como tudo consta das declarações da inquilina, constantes da faixa da gravação do seu depoimento de 10:07 a 10:34, cfr. acta de audiência de julgamento de 04/11/2024, de minutos 17:24 a 17:56, e ainda resulta das declarações da testemunha BB, constantes da faixa da gravação do seu depoimento de 10:57 a 11:22, de minutos 12:25 a 12:36.
B)
A matéria da alteração em apreço não foi alegada pelo A., porquanto tais factos ocorreram após a entrada da acção (em 03/03/2023).
C)
Tais factos não importam uma alteração da causa de pedir, pois o dano continua a ser o não recebimento de rendas, pese embora as circunstâncias tenham mudado. Pois, após a saída da inquilina, mantendo-se a fracção por arrendar, o A. continuou a não receber rendas.
G)
Tais factos também não importam uma alteração do pedido, que se mantém o pedido de indemnização correspondente ao valor das rendas não recebidas.
H)
Assim, não sendo tais factos supervenientes constitutivos, modificativos ou extintivos do direito do A., não tinham estes de ser alegados.
I)
São, na verdade, factos instrumentais que resultaram da instrução da causa e que o Tribunal
a quo
deveria ter tido em consideração e dá-los como provados, ao abrigo do disposto no art. 5.º n.º 2, al. a), do CPC.
J)
Na verdade, o pedido objecto do presente recurso consubstancia um pedido de indemnização em sede de responsabilidade civil extracontratual, cabendo ao A. alegar os factos que preencham os pressupostos atinentes a tal responsabilidade, nos termos do disposto no art. 483.º n.º 1 do CC, são eles o facto (acção ou omissão), a ilicitude (violação de um direito subjectivo ou de qualquer disposição legal dirigida à protecção de interesses alheios), a culpa (enquanto juízo de censura), o dano (não recebimento das rendas), e o nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano
–
o que fez.
K)
O Tribunal
a quo
absolveu o R. do pedido de pagamento das rendas que o A. deixou de auferir até ao pagamento da quantia correspondente ao custo das obras de reparação da fracção daquele.
L)
É verdade, como diz o Tribunal
a quo,
que a arrendatária não deixou de pagar as rendas, tão-só entrou em mora; porém esta saiu, não tendo a fracção voltado a ser arrendada, precisamente pelo estado que o quarto apresenta (facto provado n.º 10), pelo que o A., após a inquilina ter saído e até à presente data, se viu privado das rendas.
M)
Por outro lado, o Tribunal
a quo
assentou a sua decisão no facto de o não recebimento das rendas,
in casu,
após a saída da arrendatária do locado, se ter ficado a dever à recusa do A. em efectuar o conserto do quarto e do roupeiro, entendendo o Tribunal
a quo
que era sua obrigação de senhorio fazê-lo.
N)
Ora, não era obrigação do A. proceder à reparação dos danos existentes na sua fracção, advindos da existência de infiltrações de água nas partes comuns do edifício em causa constituído em propriedade horizontal.
O)
Como diz o Tribunal
a quo,
eram reparações indispensáveis e urgentes.
P)
Dispõe o art. 1427.º n.º 1 do CC que as reparações indispensáveis e urgentes nas partes comuns do edifício
podem
ser levadas a efeito, na falta ou impedimento do administrador, por iniciativa de qualquer condómino.
Q)
Este normativo que respeita às obras nas partes comuns do edifício tem de ser transposto para as obras na própria fracção quando os danos aí existentes advêm das patologias ou vícios das partes comuns, como ficou
in casu
demonstrado.
R)
Portanto, se a lei diz que o condómino
pode
, quer dizer que tem esse
direito ou
faculdade
, direito esse ou faculdade que depende da sua iniciativa e da sua vontade em tal sentido, não correspondendo pois a qualquer
dever ou obrigação
do condómino, que lhe possa ser imposta ou exigida pelo condomínio, mesmo quando o condómino assume o papel de senhorio.
S)
Aquele direito ou faculdade do condómino não escusa, nem exclui, os deveres que impendem sobre o condomínio, quer de reparação das partes comuns, quer de reparação das fracções afectadas pelos vícios ou patologias existentes nessas partes comuns.
T)
Portanto, ao A. não era exigível a realização das obras na sua fracção a expensas suas, ainda que as pudesse fazer, obras essas que eram da responsabilidade do R., como o Tribunal doutamente veio a decidir, condenando este ao pagamento do custo da reparação.
U)
Encontram-se
in casu
preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, plasmados no art. 483.º do CC: o facto (omissão do dever de reparação da fracção do A. que recaía sobre o R.), a ilicitude (violação do direito de propriedade do A. sobre a fracção, plasmado no art. 1305.º do CC), a culpa (enquanto juízo de censura), o dano (como veremos já de seguida) e o nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano.
V)
Quanto aos danos, são eles as rendas que o A. deixou de auferir desde a saída da arrendatária em Setembro de 2023 até à presente data, porquanto a fracção continua por arrendar, devido ao estado do quarto, que se mantém inalterado, a saber, a precisar das obras decretadas pelo Tribunal.
W)
Consideramos provada a inabitabilidade do quarto e, por conseguinte, a inviabilidade do arrendamento da fracção, atento o facto provado n.º 10 e o facto do tema de prova n.º 15 ter sido dado como não provado.
X)
O A. vê-se impedido de usar e fruir da fracção de sua propriedade, designadamente dando-a de arredamento, integrando-se os danos causados ao A. no denominado dano de privação do uso da fracção propriedade do A. e de que este vinha retirando proventos dando-a em arrendamento e recebendo a correspectiva renda.
Y)
Impendendo sobre o R. o dever de proceder à reparação dos danos existentes no interior da fracção e que punham em causa a utilização da fracção para o fim a que o A. o destinava, ou seja, o respetivo arrendamento, deve o R. responder pelos prejuízos decorrentes dessa sua omissão ilícita, verificando assim o sobredito nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Z)
A omissão do R., a saber, a não realização das obras de reparação do interior da fracção do A., acarretou para este a perda das rendas a partir de Outubro de 2023 até à data, a isto acrescendo os juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efectivo e integral pagamento, o que o Tribunal
a quo
deveria ter decretado.
AA)
Pelo exposto, ao decidir como decidiu o Tribunal
a quo
violou o disposto nos artigos 483.º n.º 1, 1305.º e 1427.º n.º 1, todos do CC, e bem assim o 5.º n.º 2 do CPC.
*
A Requerente
respondeu
ao recurso da Ré, batendo-se por que lhe fosse negado provimento e por que fosse mantida a sentença recorrida.
Para o efeito, formulou as seguintes
conclusões
:
I) O Recorrente não se conforma com a Douta Sentença proferida nos autos à margem referenciados e dela interpôs recurso de apelação pedindo a sua revogação parcial, por entender que a decisão proferida violou o disposto nos artigos 483.º, nº 1, 1305.º e 1427.º, nº 1 do Código Civil e artigo 5.º, nº 2 do CPC.
II) Não assiste razão à Recorrente, em qualquer dos pontos por si alegados.
III) O Tribunal a quo considerou como provado, no ponto 19, que a arrendatária continuou a habitar na fração autónoma que lhe foi locada pelo Autor.
IV) Por sua vez, considerou como não provado que a fração autónoma propriedade do Autor se encontra arrendada a CC pela quantia mensal de 300,00€ (trezentos euros).
V) Pretende o Recorrente, face ao teor dos depoimentos das testemunhas CC e BB, que o ponto 19 da matéria considerada como provada passe a ter a seguinte redacção: 19. A inquilina continuou a habitar na fracção do autor até Setembro de 2023 inclusive, continuando a fracção por arrendar.
VI) Conforme o próprio Recorrente reconhece, tais factos não foram por si alegados, na petição inicial, nem o poderiam ser, porquanto terão ocorrido após a entrada da petição inicial (Março de 2023).
VII) A alegada falta de recebimento de rendas pelo Recorrente a partir de Outubro de 2023, por abandono do locado por parte da inquilina motivada pela falta de realização de obras no interior do locado, bem como a impossibilidade de o arrendar a terceiros por esse motivo, consubstanciam factos essenciais ao direito indemnizatório que o Recorrido vem exercer nos autos contra o Recorrente.
VIII) A causa de pedir deixou de ser a falta de pagamento das rendas pela arrendatária e passou a ser o dano de privação do uso da fracção propriedade do Autor, atendendo a que, segundo o mesmo terá ficado privado de proceder ao arrendamento do imóvel após a saída da inquilina em Setembro de 2023.
IX) Não tendo tais factos sido oportunamente alegados pelo Recorrente, o Recorrido viu-se impossibilitado de se defender e produzir qualquer prova quantos aos mesmos.
X) O Recorrente não cuidou em alegar, como lhe era imposto que fizesse, todos os factos essenciais, nomeadamente os factos que pretende ver agora acrescentados na matéria de facto considerada como provada, pelo que em nenhum erro de julgamento incorreu o tribunal a quo ao não os considerar.
XI) Mantendo-se inalterada a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo, inexiste consequentemente, quaisquer razões para se alterar e/ou revogar a Douta Sentença proferida. Caso assim não se entenda, o que por mera hipótese de raciocínio se concebe,
XII) Caso se entenda que tais factos consubstanciam factos instrumentais, os mesmos nunca poderiam integrar a matéria de facto, nem, consequentemente, constituir o objeto da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
XIII) Trata-se de um poder e não de um dever da Meritíssima Juíza a quo.
XIV) Pelo que, não tendo sido alegados por nenhuma das partes tais factos e não tendo a Meritíssima Juíza a quo entendido, em resultado da instrução, optado por os acrescentar à matéria de facto provada e não provada, eles são insuscetíveis de constituir o objecto de impugnação da decisão de facto dirigida a aditá-los à factualidade provada.
Caso assim também não se entenda, o que por mera hipótese de raciocínio se concebe,
XV) Do depoimento da testemunha CC, decorre que as infiltrações ocorreram em Outubro de 2022 e a saída do locado apenas ocorreu em Setembro de 2023.
XVI) Resulta ainda do depoimento desta testemunha, que entre Outubro de 2022 e Setembro de 2023 dirigiu vários pedidos de reparação do quarto “do seu filho” à representante do seu senhorio, BB, sem que o mesma a tenha realizado.
XVII) No que concerne ao motivo de tal saída referiu que tal não se ficou a dever à existência de infiltrações, mas antes ao facto de, volvido quase um ano após a ocorrência das infiltrações, o senhorio não lhe ter (ainda) reparado o quarto que havia sofrido danos advenientes das mesmas.
XVIII) Nada soube dizer quanto ao destino do locado, após a sua saída. Cfr. depoimento da testemunha CC, gravado em suporte digital no dia 04/11/2024 com início às 10.07 e fim às 10.34 (minutos 15.06 a 18.40; minutos 15.06 a 22.20 e minutos 25.40 a 26.35)
XIX) Do depoimento da testemunha BB, decorre que a inquilina lhe solicitou, na qualidade de solicitadora do Recorrente, que este procedesse à reparação do imóvel.
XX) Assim como decorre que o Recorrente, pese embora tenha sido informado que poderia fazer a reparação diretamente, preferiu não a fazer.
XXI) No que concerne ao motivo da saída da arrendatária do locado referiu que um dos motivos, sem indicar os demais, foi a falta de reparação do quarto, afirmando que o mesmo estaria inabitável.
XXII) No que concerne ao arrendamento do locado após a saída da arrendatária, não esclareceu e/ou de algum modo demonstrou que o A. tentou colocá-lo no mercado de arrendamento e que este se viu impossibilitado de o arrendar em virtude do estado de um dos seus quartos.
XXIII) Ao referir que o quarto está inabitável, ninguém vai querer arrendar um apartamento que não pode usar um quarto, todo estragado e inevitavelmente cheira a mofo, entrou em completa contradição com o teor do relatório pericial, que atesta que a reparação a realizar no quarto é de baixa complexidade (pintura do tecto, paredes e envernizamento do pavimento) e de reduzido montante (796,72€ + IVA) e que no interior do imóvel inexiste qualquer cheiro a mofo. Cfr, depoimento da testemunha BB, gravado em suporte digital do dia 04/11/2024 com início às 10.57 e fim às 11.22 (minutos 07.48 a 09.43, minutos 11.57 a 12.35 e 22.12 a 23.37
XXIV) Os depoimentos das testemunhas acima indicados jamais se revelarão suficientes, para concluir pela alteração da matéria de facto pretendida pela Recorrente.
XXV) Não se tendo revertido tal matéria de facto, logicamente não há lugar à sua colocação nos factos provados.
XXVI) Inexiste qualquer erro na apreciação da prova quanto à presente matéria de facto, nem se verificam quaisquer razões que permitam alterar a factualidade considerada como provada pelo Tribunal a quo.
XXVII) Da matéria de facto considerada como provada, contrariamente ao invocado pelo Recorrente, não resulta que a fracção autónoma pertencente ao mesmo, se encontra por arrendar, desde Outubro de 2023, em virtude de padecer de danos que pela sua gravidade impossibilitam a utilização da mesma.
XXVIII) O Recorrente nada alegou e/ou provou quanto à existência de uma expectativa real e séria de efectuar novos contratos de arrendamento e quanto à real impossibilidade de celebração de novos contratos de arrendamento devido às condições do arrendado.
XXIX) O direito à indemnização pela privação do uso de uma coisa está dependente não apenas da prova dessa privação, mas também das consequências negativas e danosas daí decorrentes.
XXX) Nessa medida, não tendo o Recorrente demonstrado a privação do uso da fracção autónoma de que é proprietário e as consequências danosas daí decorrentes, esse direito não lhe pode ser reconhecido.
XXXI) Tal como decorre da Douta Sentença, de modo a evitar a saída da arrendatária do locado, o Recorrente poderia e deveria ter realizado as obras no interior do locado, uma vez que as infiltrações verificadas no final de Outubro de 2022 foram erradicadas pelo Recorrido num curto período de tempo.
XXXII) Não obstante tenha ficado provado que os danos verificados no quarto e varanda da fração autónoma de que o Recorrente é proprietário tiveram origem em parte comum do edifício, os senhorios não deixam de ser contratualmente responsáveis pelo cumprimento das obrigações decorrentes da lei e do contrato por si assumido, nomeadamente, pela obrigação de proporcionar o gozo da fracção locada, nos termos do disposto no artigo 1031º, alínea b) do Código Civil.
XXXIII) Ao Recorrente incumbia a obrigação de realizar todas e quaisquer reparações ou ainda suportar outras despesas consideradas como indispensáveis ou essenciais para o devido gozo da coisa locada.
XXXIV) Ao Recorrente, na qualidade de senhorio, recaía a obrigação da realização de obras de conservação da fração autónoma, uma vez que já se encontravam solucionadas/erradicadas as infiltrações e as humidades, por forma a assegurar que a sua arrendatária lograsse usufruir, em pleno, do locado, utilizando-o no exercício do fim para que ele fora locado.
XXXV) Tal como decorre da Douta Sentença, o Recorrente optou por “quedar-se na maior inércia para vir agora pedir as rendas, quando o lesado tem obrigação de fazer o controle dos danos, desde logo à luz do art. 570 n.º 1 do CC”.
XXXVI) Conforme decorre ainda da fundamentação da Douta Sentença, a saída do locado não se ficou a dever à “entrada de água, mas porque, durante 1 ano, o seu senhorio não reparou o estuque do tecto do quarto (e aqui chegados, cabe sublinhar que a reparação era fácil e barata, muito mal se percebendo a atitude recalcitrante do autor… a qual, obviamente não pode ser incensada ou premiada).”
XXXVII) Inexiste qualquer erro na subsunção dos factos ao direito. nem se encontram quaisquer razões para se alterar e/ou revogar a Douta Sentença proferida, devendo o recurso interposto pelo Recorrente ser considerado totalmente improcedente.
*
O recurso foi admitido como
apelação
, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
* *
*
II.- Das questões a decidir
O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Neste pressuposto, as
questões
que, neste recurso,
importa apreciar e decidir
são as seguintes:
i.- da alteração da redação do facto provado n.º 19;
ii.- da alteração do direito aplicado ao litígio dos autos, em face do sentido da decisão a proferir quanto ao ponto i.
* *
*
III.- Da Fundamentação
III.I.-
Na sentença proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso foram considerados
provados
os seguintes
factos
:
A.- O autor AA, solteiro, maior, é dono da fração autónoma, designada pelas letras AJ, destinada a habitação, correspondente ao apartamento T2 com varanda, no terceiro andar, Bloco ..., nas fachadas nascente e sul do edifício denominado “Edifício ...”, sito na Rua ..., freguesia ..., inscrito na matriz sob o art.º ...66 e descrito na Conservatória sob o n.º ...17.
B.- Teor declarado do escrito de 18 de Setembro de 2020, onde consta que o autor AA declarou dar de arrendamento a CC, a fração autónoma referida em A pela quantia mensal de € 300 euros.
C.- A fração autónoma AJ situa-se no último andar do edifício, sob a cobertura.
D.- Em Novembro de 2022, o réu “Condomínio do Edifício ...” procedeu ao tapamento das fissuras do Edifício ....
E.- Em 31 de Outubro de 2022, por email, o autor comunicou ao réu que pingava água do teto de um dos quartos.
F.- Na assembleia de condóminos de 3 de Novembro de 2022, a representante do autor limitou-se a comunicar uma “alegada entrada de água” e o réu é que se prontificou a verificar a situação e foi a condómina da fração “T” que exigiu o prosseguimento da obra de reabilitação, passando-se para as fachadas.
1.- Em 31 de Outubro de 2022, surgiram infiltrações de água no quarto com varanda, começando a pingar água do teto, na cama, no roupeiro e no chão;
2.- As infiltrações alastraram às paredes do quarto e ao teto da varanda do quarto;
3.- Em consequência das infiltrações de água o quarto e a varanda apresentaram escorrências de água nas paredes e tetos;
4.- Humidade nos tetos, paredes e chão;
5.- Empolamento das paredes e teto;
6.- Bolhas e manchas na pintura das paredes e tetos;
7.- Descascamento das paredes e tetos;
8.- As infiltrações de água provinham do telhado e já foram erradicadas;
9.- Em 3 de Novembro de 2022, na assembleia dos condóminos, o autor exigiu do réu a realização das obras de reparação das infiltrações;
10.- No quarto referido em 1 dormia o filho da inquilina, o qual, em consequência das infiltrações e do odor a mofo, passou a dormir na sala de estar; art.º 31.º 32.º pi
11.- A reparação dos estragos no teto e nas paredes do quarto, nos tacos do chão do quarto e no roupeiro embutido importa em € 796,72 euros, mais IVA;
12.- Nas últimas assembleias de condóminos, onde constava na ordem de trabalhos a realização das obras de reabilitação, o autor não compareceu, nem se fez representar;
13.- Na assembleia de condóminos de 6 de Abril de 2021 os condóminos deliberaram que a obra seria realizada por fases, primeiro a reparação da cobertura e só depois das fachadas e que a obra só seria iniciada quando o condomínio tivesse disponibilidade financeira para a custear, deliberação esta que o autor não impugnou;
14.- Devido a essa falta de meios financeiros, na assembleia de condóminos de 17 de Maio de 2018, a condómina da fração autónoma designada pela letra I, apesar de dispor de uma sentença a condenar o réu a reparar os estragos na sua fração, referiu que pretendia a resolução das infiltrações na fachada e que no interior de cada fração, cada condómino faria a reparação e concordou que, apesar de as infiltrações na sua fração terem origem na fachada, a obra se iniciasse pela cobertura e só depois se realizasse nas fachadas;
15.- O autor recebeu cópia da ata da assembleia de condóminos referida em 14 e não a impugnou nem manifestou discordância relativamente à intervenção da condómina da fração I;
16.- Para além da falta de meios financeiros do condomínio, algumas assembleias não se realizaram por falta de quórum para aprovação da realização das obras sendo que nelas o autor não compareceu, nem se fez representar o que retardou a aprovação e início das obras de reabilitação;
17.- Quando o autor efetuou a comunicação referida em E já a obra da cobertura estava concluída;
18.- E após o tapamento das fissuras referido em D, em Novembro de 2022, o réu ficou convencido que as infiltrações ficaram erradicadas até porque as comunicações posteriores ao autor se cingiram à questão do acionamento do seguro para reparação do interior da sua fração.
19- A inquilina continuou a habitar na fração do autor.
***
III.II.-
Na mesma sentença
não
foram considerados
provados
os seguintes
factos
:
a.- Fungos e bolores nas paredes e tetos.
b.- Odor a mofo, que alastra a toda o apartamento.
c.- Levantamento da alcatifa.
d.- Levantamento e descolamento dos tacos do chão.
e.- Manchas e descolamento, na cama, no roupeiro embutido e machas nas roupas lá guardadas.
f.- As infiltrações de água provêm do telhado.
g.- A fração autónoma continua arrendada nos termos referidos em B.
h.- Em consequências das infiltrações, a inquilina deixou de pagar a renda. Art.º 35.º da pi
i.- A reparação dos estragos no teto e nas paredes do quarto importa em € 1.365,30 euros.
j.- O valor total das obras de reparação no interior da fração importa em € 796,72 euros, mais IVA.
k.- A substituição da alcatifa importa em € 300 euros.
l.- O autor é dono da fração Z no mesmo edifício, onde poderia realojar a inquilina.
***
III.II.- Do objeto do recurso
1.- Da alteração da redação do facto provado n.º 19
.- O Apelante pede neste recurso a alteração do facto provado n.º 19. Este facto é do seguinte teor: “
19.- A inquilina continuou a habitar na fração do autor
”.
A pretensão do Apelante é no sentido de, do facto, passar a constar o seguinte: “
19.- A inquilina continuou a habitar na fração do autor até setembro de 2023, inclusive, continuando a fração por arrendar
”.
Segundo o Apelante, a realidade de facto subjacente ao período cujo aditamento propõe é determinante para a apreciação da pretensão constante da primeira parte da alínea c) do seu pedido. Resultou, por outro lado, da prova produzida em julgamento. Não foi por si alegada, mas também não precisava de o ser, visto que se trata de facto instrumental, passível de conhecimento oficioso pelo tribunal (art.º 5.º, n.º 2, al. a) do CPC). Assim, e porque a sua consideração também não envolve alteração da causa de pedir, nem do pedido, deve ser alterada a redação do facto nos termos que preconiza.
A pretensão do Apelante não pode, contudo, ser acolhida. E não pode ser acolhida, porque a consideração do segmento de facto cuja introdução propõe sempre constituiria uma alteração da causa de pedir não consentida legalmente.
Vejamos.
A realidade de facto que o Apelante pretende ver introduzida no elenco de factos provados não foi alegada pelo próprio na petição inicial. Verificou-se, por outro lado, em setembro de 2023, quando a petição inicial deu entrada em juízo em 03-03-2023. Trata-se, assim, de facto superveniente.
A sentença, nos termos do art.º 611.º, n.º 1 do CPC, deve tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão. Ressalva-se desta regra, contudo, as restrições previstas noutras disposições legais, nomeadamente, as que dizem respeito à possibilidade de alteração da causa de pedir.
A causa de pedir, segundo Miguel Teixeira de Sousa, “é composta pelos factos constitutivos da situação jurídica invocada pelas partes, isto é, pelos factos essenciais à procedência do pedido”. O mesmo é dizer, pelos factos “sem cuja verificação o pedido não pode ser julgado procedente”
[1]
.
Deve ser enunciada na petição inicial com que o autor propõe a ação. Tal como prescreve o art.º 552.º, n.º 1, al. d) do CPC, em tal articulado deve o autor expor
os factos essenciais que constituem a causa de pedir
.
Proposta a ação com uma determinada causa de pedir e citado o réu, a causa de pedir, enquanto elemento essencial da causa, torna-se, nos termos do art.º 260.º do CPC, estável. Esta estabilidade não é sinónimo, contudo, conforme resulta do próprio preceito, de imutabilidade.
A causa de pedir pode, com efeito, ser alterada havendo acordo das partes e, neste caso, em qualquer altura do processo, quer em 1.ª, quer em 2.ª instância. Isto, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento da causa (v. art.º 264.º do CPC).
Também pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor. Para o efeito, dispõe o autor do prazo de 10 dias contado da aceitação (art.º 265.º, n.º 1 do CPC).
A causa de pedir pode, ainda, ser modificada por uma outra via. Sempre que, na sua origem, estejam factos ocorridos, ou de que o autor tenha tido conhecimento, após o momento previsto no n.º 1 do referido art.º 265.º do CPC, pode o autor introduzi-los em juízo, nos termos do n.º 1 do art.º 588.º do CPC, através de um articulado superveniente. Este articulado destina-se, de acordo com o preceito, e quanto ao autor, à introdução em juízo de factos constitutivos do direito deste. Estes, contudo, podem destinar-se, não só “a completar a causa de pedir inicial, como podem implicar uma efetiva alteração ou modificação da causa de pedir”, sendo “a superveniência critério bastante para afastar as restrições fixadas no art.º 265.º”
[2]
. O articulado superveniente é, pois, mecanismo processualmente adequado à introduzir modificações da causa de pedir.
O articulado superveniente, nos termos do n.º 3 do art.º 588.º do CPC, é oferecido: (a) na audiência prévia, quando os factos hajam ocorrido ou sido conhecidos até ao respetivo encerramento; (b) nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, quando não se tenha realizado audiência prévia; (c) na audiência final, se os factos ocorreram ou a parte deles teve conhecimento em data posterior às referidas nas alíneas anteriores.
No caso dos autos, está em causa o pedido do Apelante de condenação do Apelado a pagar-lhe o valor das rendas que deixou de auferir até à instauração da ação, no valor global de € 1.200,00, acrescida das vincendas até ao pagamento, pelo Apelado, do valor da reparação dos danos sofridos no interior da sua fração autónoma ou então da reparação desses danos.
Os factos que o Apelante invocou para sustentar esse pedido, o mesmo é dizer os factos que constituíam a respetiva causa de pedir, constavam dos art.ºs 29.º a 35.º da petição inicial.
Nestes, aquilo que o Apelante alegou resume-se ao seguinte. A fração autónoma de que (ele Apelante) era proprietário estava arrendada a uma inquilina, mediante o pagamento de uma renda mensal de € 300,00. Com os estragos causados no seu interior pelas infiltrações provenientes das parte comuns do edifício em que se insere, a fração deixou de ter, em dezembro de 2022, condições de habitabilidade. Por esse motivo, e além do mais, a inquilina, naquela data de dezembro de 2022, deixou de pagar a renda, apesar de continuar a residir na fração.
Ou seja, na origem da pretensão do Apelante, está a circunstância de a sua arrendatária, continuando arrendatária, ter deixado, contudo, de pagar a renda, pelo facto de o apartamento em que residia ter deixado de reunir condições de habitabilidade. E porque, na perspetiva do Apelante, a recusa de pagamento das rendas seria legítima, forçoso seria que o Condomínio Apelado fosse responsabilizado pelo pagamento das rendas que o Apelante deveria ter recebido e não recebeu, em virtude da omissão deste.
Aquilo que o Apelante alega agora para sustentar o seu pedido é, contudo, algo diverso. Na verdade, segundo o mesmo, a arrendatária teria deixado a fração autónoma em setembro de 2023. Ao deixar a fração autónoma, cessou o contrato de arrendamento que com ela celebrara e tal cessação implicou um dano, consubstanciado, nas suas próprias palavras,
nas rendas que deixou de auferir desde a saída da arrendatária em setembro de 2023, pelo facto de continuar por arrendar a fração autónoma, devido ao estado do seu quarto
(v. conclusão BB do recurso).
Ou seja, se antes o Apelante formulara um pedido assente no
não pagamento das rendas
pela sua inquilina, apesar da
subsistência do contrato de arrendamento
, agora mantém o pedido mas assente num cenário de
inexistência de arrendamento
e em que o prejuízo já não consiste na falta de recebimento da renda, mas na
impossibilidade
de, mercê das condições de habitabilidade da fração,
não poder dá-la de arrendamento e daí retirar o rendimento correspondente
(sendo o valor da renda anteriormente recebida, não o dano efetivamente sofrido, mas apenas a sua medida ou o seu equivalente).
Ou seja, todo um quadro factual diverso do originariamente alegado e, portanto, uma diferente causa de pedir.
O próprio Apelante, apesar de partir do pressuposto (incorreto, como se vê) de que a sua pretensão não envolve modificação da causa de pedir, acaba por reconhecer expressamente que mantém a sua pretensão de recebimento de rendas,
pese embora as circunstâncias tenham mudado
(v. conclusão D do seu recurso), assim admitindo, ao menos implicitamente, ser outro, que não o inicialmente alegado, o quadro factual que suporta a sua pretensão.
Ora, Apelante e Apelado, em 1.ª instância, não manifestaram acordo no sentido de que tal modificação da causa de pedir pudesse ser feita. Também não o fazem aqui em 2.ª instância, como o revelam as peças recursórias de ambos.
A alteração da causa de pedir por que o Apelante aqui pugna também não foi introduzida em sede de réplica (que o processo, de resto, não comportava), nem muito menos através de articulado superveniente.
Admitir a alteração do facto provado n.º 19 nos termos preconizados pelo Apelante implicaria, por conseguinte, aceitar uma alteração da causa de pedir fora do quadro legal acima traçado e, como tal, uma alteração da causa de pedir ilegítima.
Tanto basta para que se conclua pela improcedência da sua pretensão.
Sem prejuízo do que acaba de ser exposto, é de referir, também, que a pretensão do Apelante não poderia ser admitida com o fundamento por si invocado, que era o da possibilidade de o tribunal conhecer do facto em apreço enquanto facto
instrumental
. E isto porque a realidade de facto em apreço sempre teria de ser considerada, não
instrumental
, mas
essencial
da causa de pedir que suportaria o seu pedido.
Com efeito,
a propósito do ónus de alegação das partes e da amplitude dos poderes de cognição do tribunal em matéria de facto, dispõe o art.º 5.º, n.º 1 do CPC que às partes cabe alegar os
factos essenciais
que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
Por seu turno, estabelece o n.º 2 do mesmo preceito que, além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: (a) os
factos instrumentais
que resultem da instrução da causa; (b) os factos que sejam
complemento
ou
concretização
dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; (c) os
factos notórios
e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude
do exercício das suas funções
.
Da leitura deste preceito resulta um sistema em que, tratando-se de
factos essenciais
, cabe exclusivamente às partes o ónus da sua alegação, sem que o tribunal possa substituí-las nessa tarefa. À margem destes, o tribunal só se pode socorrer oficiosamente dos factos que, resultando da instrução da causa, se assumam como
instrumentais
, ou então como
complemento
ou
concretização
dos alegados pelas partes - desde que, neste caso, as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre eles -, ou, finalmente, dos
factos notórios
e daqueles de que tenha conhecimento
oficioso
.
Subjacente a tal solução está a opção do legislador processual civil pela consagração da denominada “
teoria da substanciação
”, a qual “implica para o autor a necessidade de articular os factos dos quais deriva a sua pretensão, constituindo-se o objeto do processo e, por arrastamento, o caso julgado apenas sobre os factos integradores dessa concreta causa de pedir”
[3]
.
No nosso caso, atenta a posição do Apelante, importa a distinção entre os
factos essenciais
e os
factos instrumentais.
Os primeiros são, como resulta do n.º 1 do preceito em análise, aqueles que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas, o mesmo é dizer os factos que servem de fundamento à ação e à defesa.
Divergem dos segundos, que “são aqueles que permitem a afirmação, por indução, de outros factos de que depende o reconhecimento do direito ou da exceção”, tratando-se, por isso, “dos factos que possam servir para a formação da convicção sobre os demais factos (designadamente por via do uso de presunções judiciais)”
[4]
.
Saliente-se que os factos instrumentais não se confundem com os factos “que sirvam para integrar presunções legais (v.g. em matéria de responsabilidade civil extracontratual, da posse ou do regime da filiação)”, os quais “são de considerar essenciais, devendo ser alegados em conformidade (art.º 5.º, n.º 1) e ser objeto de pronúncia positiva ou negativa na sentença
[5]
.
No caso, está em causa, como se viu, a pretensão do Apelante de responsabilizar o Apelado pelo pagamento das “rendas” que, mercê do estado da sua fração autónoma, imputável ao segundo, deixou de auferir.
Neste pressuposto, o facto que o Apelante pretende introduzir na causa – que a fração autónoma de que é proprietário continua por arrendar após a saída da anterior inquilina em setembro de 2023 – só poder ser visto como
essencial
.
Na verdade, constitui, em si mesmo considerado, não um facto revelador ou indutor de outros factos, mas
o próprio fundamento do seu pedido
. Sem ele, não há, pura e simplesmente, suporte de facto para que se conheça do pedido que formula. O próprio Apelante, apesar de qualificar como instrumental a realidade de facto em apreço, funda nela e não noutra toda a pretensão que deduz no recurso.
O facto em apreço é, pois, fundamento do pedido e, por conseguinte,
essencial
. E sendo essencial, a sua consideração no processo pressupunha a sua alegação, pelo Apelante, através do mecanismo processual adequado, o que, como assumido pelo próprio, não ocorreu. E não tendo ocorrido, forçoso é concluir pela impossibilidade de dele tomar conhecimento.
Ou seja, também por aqui carece de fundamento a pretensão do Apelante, cuja improcedência, por conseguinte, se impõe.
Improcede, pois, a pretensão do Apelante no sentido da alteração do facto provado n.º 19, nos termos por si preconizados.
***
2.- Da definição do direito aplicável ao litígio dos autos
A pretensão do Apelante no sentido da alteração da decisão recorrida em matéria de direito estava integralmente dependente, como resulta das conclusões do seu recurso, da alteração do facto provado n.º 19 (o que, de resto, só reforça a
essencialidade
do facto).
Não suscitou o Apelante, com efeito, quaisquer outras questões relacionadas com a eventual incorreção da interpretação ou aplicação das regras de direito feitas pela 1.ª instância na sentença recorrida tendo por base os factos nele julgados provados.
Ora, como se viu, a pretensão do Apelante no sentido da alteração do referido facto n.º 19 não pode ser acolhida.
Outrossim, não se nos impõe tecer quaisquer considerações quanto à bondade e acerto da decisão proferida em 1.ª instância quanto à subsunção dos factos provados às normas legais aplicáveis.
Improcede, pois, a apelação, com a consequente confirmação da sentença recorrida.
*
Porque vencido no recurso, suportará o Apelante as custas da apelação (art.ºs 527.º e 529.º do CPC).
***
IV.- Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
Custas da apelação pelo Autor/Apelante.
Notifique.
***
Porto, 26 de junho de 2025
Relator:
José Manuel Correia
1.ª Adjunta:
Ana Luísa Gomes Loureiro
2.ª Adjunta:
Maria Manuela Barroco Esteves Machado
(assinado eletronicamente)
________________________________________
[1]
In As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa Lex, 1995, p. 122 a 124.
[2]
v., neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Artigos 1.º a 702.º, 3.ª edição, p. 723.
[3]
Neste sentido, v. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa,
ibidem
, p. 26).
[4]
Ibidem, p. 32 e 33)
[5]
Ibidem
, p. 33.
|
TRP
|
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/2a5f63db7efdda4e80258cc10049f6ce?OpenDocument
|
1,741,824,000,000
| null |
7367/23.0T8STB-E.E1
|
7367/23.0T8STB-E.E1
|
ANA MARGARIDA LEITE
|
V
erifica-se que o trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência da apelante impede a atendibilidade nestes autos de eventuais irregularidades ou nulidades anteriores, o que conduz à extinção do incidente deduzido pela apelante, por inutilidade superveniente, obstáculo que impede o conhecimento do objeto da apelação, impondo a respetiva rejeição.
|
[
"REJEIÇÃO DO RECURSO",
"DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA",
"TRÂNSITO EM JULGADO",
"IRREGULARIDADE"
] |
Processo n.º 7367/23.0T8STB-E.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal
Juízo de Comércio de Setúbal
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
1.
Relatório
Nos autos que constituem o processo principal, por sentença proferida a 11-04-2024, transitada em julgado a 29-04-2024, foi declarada a insolvência de (…), Unipessoal, Lda..
Por requerimento de 02-05-2024, veio a insolvente constituir mandatário e deduzir incidente de nulidade da citação, alegando, em síntese, que teve conhecimento de que havia sido declarada insolvente através de informação obtida noutro processo e que, até esse momento, desconhecia a existência dos presentes autos, arguindo a falta da respetiva citação.
Por despacho de 07-06-2024, foi indeferida a arguida nulidade.
Inconformada, a insolvente interpôs recurso deste despacho, pugnando para que seja revogado.
Por despacho da ora relatora, foi determinada a audição das partes, nos termos do artigo 655.º, n.º 1, do CPC, por se ter entendido que o trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência da apelante é suscetível de contender com a atendibilidade nestes autos de eventuais irregularidades ou nulidades anteriores, o que pode obstar ao conhecimento do objeto da apelação, conduzindo à extinção do incidente por inutilidade superveniente.
A apelada (…) – Instituição Financeira de Crédito, S.A. pronunciou-se no sentido de dever entender-se que o trânsito em julgado da sentença que decretou a insolvência da recorrente obsta ao conhecimento do objeto da apelação, pugnando se determine a extinção do incidente por inutilidade superveniente.
A apelante, por seu turno, pronunciou-se no sentido do conhecimento do objeto da apelação.
Foi proferida decisão singular, na qual, ao abrigo do disposto no artigo 652.º, n.º 1, alíneas b) e h), do CPC, se julgou extinto o incidente deduzido pela apelante e, em consequência, se rejeitou o recurso, não se conhecendo do seu objeto.
Novamente inconformada, a apelante requereu que recaísse acórdão sobre a decisão singular proferida, sustentando que a apelação deve ser admitida, pelos motivos que sintetizou nas conclusões seguintes:
«1. Não pode a recorrente deixar de pleitear e pugnar pela ulterior tramitação processual dos presentes atendendo ao contexto factual supra alegado.
2. A recorrida sabia que a interpor acção e determinar a citação naquela morada por si indicada, que é a morada do imóvel que já havia apreendido para si, jamais a recorrente iria ser notificada, jamais a recorrente iria ser citada, jamais a recorrente poderia opor-se à requerida insolvência e que nunca iria ter conhecimento.
3. Iria ser decretada, como foi, a insolvência da recorrente, sem qualquer conhecimento desta.
4. A actuação da recorrida é censurável, de má fé processual, e procurou aproveitar-se de uma realidade factual já alegada supra e ao qual o douto Tribunal de 1ª instância se encontra a dar abrigo legal, isto porquanto, a requerente da insolvência aqui recorrida tinha efectivo conhecimento de que nunca a insolvente viria a ser devidamente citada da acção que esta própria lhe movia e decidiu ocultar ao douto Tribunal de 1ª instância esta mesma realidade, por cinco vezes, conforme supra alegado.
5. Ademais, o recurso em causa versa sobre nulidades absolutas, uma vez que nulidade é invocável a todo o tempo, na estrita de medida de que a nulidade absoluta é determinada por motivos de interesse público, como aqui o caso, atendendo ao contexto supra fornecido.
6. O vício da nulidade absoluta, sendo que tal vício é aliás invocável a todo o tempo, e a todo o tempo pode (e atento o princípio da legalidade também constitucionalmente consagrado, no artigo 205.º, n.º 2, da C.R.P., deve) ser declarado pelos Tribunais, mesmo oficiosamente,
ex vi
do artigo 134.º, n.º 2, do Cód. Proc. Adm., pelo que nenhum sentido faz a argumentação a tal respeito de dele não conhecer, perante uma situação que foi ardilosamente criada pela recorrida.»
Não foi apresentada resposta.
Cumpre apreciar se é de admitir o recurso de apelação interposto pela insolvente.
2.
Fundamentos
2.1.
Tramitação processual
Os elementos com relevo para a apreciação da questão suscitada constam do relatório
supra
.
2.2.
Fundamentos jurídicos
Extrai-se dos autos que constituem o processo principal que a sentença que declarou a insolvência da apelante transitou em julgado.
É sabido que, transitada em julgado, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e foram dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo da possibilidade de vir a ser objeto de recurso de revisão, conforme estatuído no artigo 619.º, n.º 1, do citado Código.
Daqui decorre a inviabilidade da arguição de nulidades ou da interposição de recurso após o trânsito em julgado da decisão, dado que a eventual existência de irregularidades anteriores não contende com o caso julgado, assim não podendo ser atendidas ou produzir quaisquer efeitos no âmbito do processo, só através da interposição do recurso de revisão podendo ser suscitadas, desde que verificados os pressupostos de admissibilidade deste recurso extraordinário.
Neste sentido, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, podem citar-se, entre outros, os acórdãos seguintes:
- o acórdão de 11-10-2005 (relator: Azevedo Ramos), proferido no agravo n.º 2615/05 - 6.ª Secção (cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt), no qual se entendeu o seguinte
:
I - Com o trânsito em julgado da decisão final, qualquer nulidade ou vício formal anteriores perdem a possibilidade de ser considerados e atendidos no próprio processo e de aí produzirem quaisquer efeitos; II - Mesmo a nulidade de citação ou a sua falta não constitui fundamento para a anulação de uma sentença já transitada em julgado, a requerimento de qualquer das partes, pois só através do recurso extraordinário de revisão pode tal sentença ser posta em crise, nos termos do artigo 771.º, n.º 1, alínea f), do CPC;
- o acórdão de 02-10-2014 (relator: Abrantes Geraldes), proferido na revista n.º 1017/2001.L1.S1 - 2.ª Secção (cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt), no qual se entendeu que a invocação de nulidades processuais respeitantes a atos anteriores à data em que foi proferido o acórdão não invalida o caso julgado que, eventualmente, se tenha já formado, sendo que tais irregularidades apenas poderiam ser ultrapassadas através do recurso extraordinário de revisão – reservado para os casos excecionais previstos no artigo 671.º, n.º 1, do anterior CPC.
Nesta conformidade, verifica-se que o trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência da apelante impede a atendibilidade nestes autos de eventuais irregularidades ou nulidades anteriores, o que conduz à extinção do incidente deduzido pela apelante, por inutilidade superveniente, obstáculo que impede o conhecimento do objeto da apelação, impondo a respetiva rejeição.
3.
Decisão
Nestes termos, acorda-se em julgar extinto o incidente deduzido pela apelante e, em consequência, rejeitar o recurso, não se conhecendo do seu objeto.
Custas pela apelante.
Notifique.
Évora, 13-03-2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(Relatora)
Eduarda Branquinho
(1ª Adjunta)
Mário Branco Coelho
(2º Adjunto)
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/39ae3dbbba4740ca80258c5e00355836?OpenDocument
|
1,754,265,600,000
|
PROCEDENTE
|
1937/17.3T8CSC-B.L1-7
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1937/17.3T8CSC-B.L1-7
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CARLOS OLIVEIRA
|
(art.º 663º nº 7 do CPC) – Da responsabilidade exclusiva do relator)
1. O pedido de retificação de meros erros materiais de sentença, ou de acórdão, nos termos do Art.º 614.º n.ºs 1 e 3 do C.P.C., pode ser formulado a todo o tempo, mas quando requerido depois dessas decisões já terem transitado em julgado, não pode ter por efeito a extinção do caso julgado ou o retardamento no tempo desse trânsito em julgado.
2. Esse pedido de retificação de erros materiais, no quadro do Art.º 614.º n.º 1 do C.P.C., só pode afetar o decurso do prazo da recorribilidade da decisão e, consequentemente, do seu trânsito em julgado, se for formulado no prazo geral de 10 dias (cfr. Art.º 149.º n.º 1 do C.P.C.) a contar da notificação da sentença ou acórdão que alegadamente enferma desses lapsos manifestos.
3. O prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado para apresentação da nota discriminativa e justificativa de custas de parte (cfr. Art.º 25.º n.º 1 do R.C.P.), deve contar-se do trânsito em julgado da sentença, ou do acórdão, que pôs termo à causa e não do decurso do prazo geral de reclamação (v.g. Art.º 149.º n.º 1 do C.P.C.) do despacho judicial que decidiu um pedido de retificação incidente sobre acórdão já transitado em julgado.
|
[
"SENTENÇA",
"RETIFICAÇÃO DE ERROS MATERIAIS",
"CASO JULGADO",
"CUSTAS DE PARTE",
"CADUCIDADE"
] |
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I- RELATÓRIO
BA propôs ação de condenação, em processo declarativo comum, contra LP e PP, Lda., pedindo a condenação da 1.ª R. a pagar à A. a quantia de €54.166,67, respeitante à deixa testamentária de MM e SM, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde 20/10/2015, até efetivo pagamento; e de ambas as R.R. a pagar-lhe a quantia de €95.833,33, a título de indemnização, sendo a 1ª R. por incumprimento das suas atribuições de testamenteira, e ambas as R.R. por abuso de direito e violação dos princípios de boa-fé e da confiança, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a data da propositura da presente ação, até efetivo pagamento; e, subsidiariamente, caso o pedido anterior improceder contra a 2ª R. que esta fosse condenada a pagar à A. a quantia de €95.833,33, a título de enriquecimento sem causa, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, desde a data da propositura da presente ação, até efetivo pagamento.
No final, a A. atribuiu à ação o valor tributário de €150.000,00 (cfr. “Petição” de 08-06-2017 – Ref.ª n.º 10040762 - p.e.). O que veio a ser posteriormente confirmado no despacho saneador (cfr. “Despacho Saneador” de 21-02-2018 – Ref.ª n.º 111566373 - p.e.).
As R.R. contestaram separadamente essa ação, pugnando pela sua improcedência (cfr. “contestação” de 20-09-2017 e de 23-09-2017 – Ref.ª n.º 10691094 e n.º 10711651 - p.e.).
A ação, tal como configurada pela A., veio a ser julgada improcedente por não provada, pois as R.R. foram absolvidas de todos os pedidos contra si formulados, tendo sido a A. condenada a pagar a quantia de €24.691,02 respeitante a deixa testamentária (cfr. “Sentença” de 16-11-2020 – Ref.ª n.º 127723057 - p.e.).
A A. recorreu dessa sentença (cfr. “Alegações” de 19-04-2021 – Ref.ª n.º 18632589 - p.e.), mas a mesma veio a ser confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de março de 2022, que condenou a A., ali Recorrente, nas custas do processo relativas às duas instâncias (cfr. “Acórdão” de 08-03-2022 – Ref.ª n.º 18093283 - p.e.).
Notificada desse acórdão (cfr. “Not. do acórdão” de 09-03-2022 – Ref.ª n.º 18166717 – p.e.), veio a A., em 27 de abril de 2022 (cfr. “Requerimento” de 27-04-2022 – Ref.ª n.º 574668 – p.e.), requerer a retificação de erro materiais, nos termos dos Art.s 614.º, n.ºs 1 e 3
“ex vi”
Art.º 666.º do C.P.C., defendendo que o recurso obteve provimento e, por isso, deveria constar da parte dispositiva do acórdão que a apelação da A. foi julgada parcialmente procedente, posto que a 1ª R. foi condenada a pagar os juros de mora, calculados à taxa legal, sobre a quantia de €47.816,03, desde 20/10/2015 até 18/02/2020.
A 1.ª R. deduziu oposição ao assim requerido pela A. (cfr. “Requerimento” de 13-05-2022 – Ref.ª n.º 578367 - p.e.), tendo o pedido de retificação sido indeferido por despacho de 17 de maio de 2022, com a consequente condenação da reclamante nas custas do incidente (cfr. “Despacho” de 17-05-2022 – Ref.ª n.º 18474281 - p.e.), o que foi notificado às partes a 17 de maio de 2022 (cfr. “Not Mandatário do Despacho Anexo” de 17-05-2022 – Ref.ª n.º 18476942 - p.e.).
A 1.ª R., LP, apresentou nota discriminativa de custas de parte, interpelando a A. para pagar o valor de €3.989,00 (cfr. “Requerimento” de 09-06-2022 – Ref.ª n.º 21239145 - p.e.), e a 2.ª R., PP, Lda., procedeu de igual modo, reclamando o pagamento de €3.060,00 (cfr. “Requerimento” de 09-06-2022 – Ref.ª n.º 21241760 - p.e. – ambos juntos no apenso “A”).
A A. reclamou dessas notas discriminativas e justificativas das custas de parte em conjunto, ao abrigo do Art.º 26.º-A do RCP, indicando como valor do incidente de €7.049,00 (valor que depositou), sustentando que ambas as notas eram extemporâneas, que não cumpriram formalidades legais relativas à interpelação da Reclamante e que existiam valores reclamados em excesso pela 1.ª R. (cfr. “Requerimento” de 23-06-2022 – Ref.ª n.º 21321975 - p.e. – constante do apenso “A”).
Depois de cumprido o contraditório, sem que as R.R. tenham deduzido oposição, veio a ser proferido, no processo principal, o despacho de 18 de abril de 2024 (Ref.ª n.º 150318861 - p.e.), nos termos do qual se decidiu o seguinte:
«Da reclamação da nota discriminativa de custas de parte:
«No seguimento da apresentação pelas rés LP e PP, Lda. das suas notas discriminativas de custas de parte, nos termos do art.º 25.º do RCP, veio a autora BA apresentar reclamação destas, procedendo ao depósito conjunto do respetivo valor, nos termos do art.º 26.º-A do RCP.
«Fundou a sua reclamação na: (i) intempestividade da apresentação das notas discriminativas, atenta a data do trânsito em julgado da decisão final; (ii) ausência de comunicação da nota diretamente à parte responsável, não sendo bastante a sua notificação ao mandatário; e (iii) indevida inclusão na nota apresentada pela 1.ª ré do encargo havido com a perícia, no valor de €204,00, erroneamente contabilizado como se de uma taxa de justiça se tratasse.
«Notificadas as reclamadas para exercerem o contraditório quanto à matéria da reclamação, nada vieram dizer.
«Determinado o cumprimento do disposto nos arts 26.º-A, n.º 4, e 31.º, n.º 4, do RCP, veio a senhora escrivã informar ter: (a) a 2.ª ré reclamado um valor de taxa de justiça inferior ao apresentado pela interposição do recurso, e (b) a 1.ª ré apresentado a sua nota com diversas desconformidades.
«As mencionadas desconformidades consistiram, nomeadamente, na indevida inclusão nas taxas de justiça dos encargos, por deverem ser apresentados separadamente nos termos do art.º 26.º, n.º 3, al. b) do RCP, e por indicar a totalidade das taxas de justiça pagas por si e pela autora, quando deveria apenas ter inserido 50% das mesmas, conforme dispõe o art.º 26.º, n.º 3, al. c), do RCP, para além dos montantes inseridos não corresponderem aos valores efetivamente pagos por cada uma das partes (cfr. informação da contadora).
«A Digna Procuradora da República esclareceu nada haver que justifique a sua pronúncia por a remissão para o art.º 31.º, n.º 4, do CPC, dever ser interpretada como não incluindo a sua intervenção no caso de reclamação da nota discriminativa de custas de parte.
«*
«Decidindo.
«O objeto da presente reclamação decompõe-se em cada um dos três mencionados fundamentos para a inadmissibilidade ou correção das notas discriminativas de custas de parte, podendo o conhecimento das questões inicialmente indicadas prejudicar a apreciação das subsequentes.
«Assim, quanto à tempestividade das notas justificativas das custas de parte apresentadas por parte de cada uma das rés, tendo presente que o acórdão proferido pela Relação que decidiu definitivamente a ação condenou a autora nas custas de ambas as instâncias, importa decidir se a sua apresentação em 09-06-2022, foi extemporânea.
«Ora, tal depende do que deve ser entendido como tendo correspondido à data do trânsito em julgado da decisão final proferida nos autos.
«Nos termos do art.º 628.º do CPC, «A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação».
«De acordo com o disposto no art.º 25.º, n.º 1, do CPC, «Até 10 dias após o trânsito em julgado (…), as partes que tenham direito a custas de parte remetem para o tribunal, para a parte vencida e para o agente de execução, quando aplicável, a respetiva nota discriminativa e justificativa (…)».
«No caso presente, nos termos da consulta dos elementos que constam do processo eletrónico, resulta o seguinte:
«- em 08-03-2022 foi proferido o acórdão da Relação que conheceu os recursos de apelação;
«- em 09-03-2022 foram expedidas às partes as notificações do acórdão;
«- em 27-04-2022 a autora requereu a retificação do acórdão;
«- em 13-05-2022 a 1.ª ré veio exercer o contraditório relativamente ao requerimento de retificação;
«- em 17-05-2022 foi proferida decisão pela Desembargadora-Relatora a indeferir a retificação, e o que se entendeu ser a arguição de uma nulidade por parte da autora;
«- em 17-05-2022 foram expedidas às partes as notificações desta decisão;
«- em 09-06-2022 cada uma das rés apresentou a sua nota discriminativa de custas de parte.
«Ora, considerando que, ao contrário do que alegou a ora reclamante na sua reclamação, após a prolação do acórdão que conheceu dos recursos de apelação, foi apresentado um pedido de retificação desse acórdão, apenas após a notificação dessa decisão, e da contagem do novo prazo geral previsto no art.º 149.º do CPC, é que pode entender-se que ocorreu o trânsito em julgado.
«Com efeito, conforme se extrai, a contrario sensu, nomeadamente, da faculdade concedida aos tribunais superiores de obstarem a demoras abusivas quando as partes apresentem requerimentos que visem apenas evitar o trânsito e julgado da decisão, (cfr. art.º 670.º do CPC), a regra é a de que o trânsito em julgado apenas se verifica após o decurso do último prazo disponível às partes para reagirem à decisão de que sejam notificadas, mesmo que referente ao conhecimento de um incidente suscitado posteriormente ao acórdão que conheceu do mérito.
«No caso presente, tal determina que o trânsito em julgado da decisão tenha ocorrido em 30-06-2022 (e não em 22-04-2022, conforme alegava a reclamante), sendo certo que, considerando o prazo de 10 dias a que se refere o art.º 25.º, n.º 1, do RCP – e ponderando que na respetiva contagem deve ser considerada a dilação decorrente da notificação a que se refere o art.º 248.º, n.º 3, do CPC, forçoso é concluir que no dia 09-06-2022, por coincidirem com o último dia do prazo, ainda foram as notas discriminativas ora reclamadas apresentadas tempestivamente.
«Com efeito, tendo o último despacho proferido pela Relação e a sua expedição ocorrido em 17-05-2022, considera-se esta decisão notificada as partes, por via da presunção legal, em 20-05-2022, o que acrescido do prazo geral de 10 dias, faz com que o trânsito em julgado apenas tenha ocorrido em 30-06-2022, fazendo com que a apresentação das notas discriminativas de parte no prazo de 10 dias a que se refere o art.º 25.º, n.º 1, do RCP, no caso em 09-06-2022, seja tempestiva.
«No que se refere à questão da necessidade da apresentação da nota discriminativa de custas de parte à própria parte devedora, e não apenas ao respetivo mandatário, trata-se de temática que tem sido controvertida na jurisprudência dos tribunais da Relação.
«Com efeito, a este respeito da interpretação do art.º 25.º, n.º 1, do CPC, no segmento em que dispõe que as partes que tenham direito a custas de parte “remetem para o tribunal, para a parte vencida” a respetiva nota discriminativa e justificativa, podem encontrar-se nas bases de dados públicas referentes à jurisprudência da 2.ª instância decisões que interpretam, pelo menos, de forma aparentemente contraditória, este preceito, em particular, quanto à exigência de comunicação à própria parte e aos efeitos dessa omissão.
«Uma síntese dessas posições e dos argumentos que vêm sendo apresentados, para uma ou outra posição, podem ser encontrada no acórdão da Relação de Lisboa de 22-06-2023, Proc. n.º 23320/19.6T8LSB-A.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, para o qual se remete e cujos argumentos aqui se acompanham.
«Nesse sentido, pelo menos para efeitos de apuramento da respetiva tempestividade (e ainda que tal possa não coincidir com a temática também debatida de se formar um título executivo), entendemos, na esteira do sumário do mencionado aresto, que “A nota justificativa e discriminativa das custas de parte a que se refere o artigo 25 do RCP só tem de ser notificada ao advogado da parte vencida.”.
«Tal decorrerá, desde logo, do disposto nos arts. 247.º e 250.º do CPC, porquanto sendo a regra a de que as partes que constituíram mandatário apenas carecerem de ser notificadas nas pessoas destes, não é pela circunstância dessa notificação provir de notificações entre mandatários, nos termos do art.º 255.º do CPC, que passará a ter de ser remetida diretamente à parte que se encontra representada por advogado nos autos, não decorrendo do art.º 25.º, n.º 1, do CPC, essa exigência.
«Como tal, e conforme também se decidiu (parecendo ser essa a mais recente tendência da jurisprudência dos tribunais superiores) no acórdão da Relação de Lisboa de 07-12-2023, Proc. n.º 558/23.6T8OER-A.L1-8, disponível em
www.dgsi.pt
:
“Inexistindo norma especial que determine que a notificação da nota de custas de parte tenha de ser feita diretamente, de forma pessoal, à parte devedora, é suficiente que a referida notificação se faça na pessoa do seu mandatário, em conformidade com as regras da notificação constantes dos artºs 221º e 247º do CPC e das regras gerais do mandato forense (art.º 1157º do CC e 44º do CPC). Esta é a interpretação que se nos afigura de acordo com os ditames do art.º 9º do CC.”
«Termos em que, sem prejuízo de resultar dos autos não terem a rés, reclamantes de custas de parte, comprovado ter procedido à comunicação da nota discriminativa e justificativa à própria autora, mas tendo-o feito junto do respetivo mandatário constituído nos autos, do que deram conta ao tribunal, se entende terem sido as mesmas regular e tempestivamente apresentadas.
«Finalmente, no que se refere às desconformidades apontadas às notas discriminativas de custas de parte, e sem prejuízo de em relação à 2.ª ré se entender que, não tendo sido reclamado o valor total liquidado a título de taxa de justiça, não poderá o mesmo ser agora reclamado, em relação à nota apresentada pela 1.ª ré, verificam-se, efetivamente, as desconformidades apontadas na informação elaborada pela contadora, incluindo a indevida inclusão dos encargos que, nos termos do art.º 26.º, n.º 3, al. b), do RCP, não deveriam ter incluídos na reclamação.
«Por conseguinte, deverá a reclamação ser julgada parcialmente procedente, no que se refere às mencionadas desconformidades na elaboração da nota discriminativa de custas de parte apresentada pela 2.ª ré, apenas sendo devido o valor reclamado com exclusão da desconformidade apontada pela reclamante no que se refere à inclusão dos encargos.
«Termos em que se julga parcialmente procedente a reclamação da nota discriminativa de custas de parte, decidindo-se:
«- indeferir o pedido de desentranhamento das notas em causa por extemporaneidade;
«- indeferir o pedido de rejeição das notas em causa por não comunicação à própria parte;
«- deferir a reclamação no que se refere ao excesso reclamado pela 1.ª Ré, determinado a exclusão do valor dos encargos objeto de contabilização na taxa de justiça.
«Notifique».
É dessa decisão que a A. vem interpor recurso de apelação, apresentando no final as seguintes conclusões:
A) O douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que decidiu a causa foi proferido no dia 08 de Março de 2022, pelo que, de acordo com o disposto no art.º 628º do CPC, o mesmo transitou em julgado no dia 22/04/2022 (30 dias após a sua prolação), data em que terminou o prazo de interposição do respetivo recurso.
B) Face do disposto no art.º 25º, nº 1 do RCP, o prazo para as Rés apresentarem as respetivas notas discriminativas e justificativas das custas de parte terminou no dia 02/05/2022.
C) O prazo para apresentação da nota discriminativa e justificativa de custas de parte é um prazo de caducidade – art.º 298.º, n.º 2 do Código Civil.
D) À data em que as Rés vieram apresentar as notas discriminativas e justificativas de custas de parte (09/06/2022), os respetivos direitos já se encontravam caducados, motivo pelo qual não podem as mesmas ser consideradas, não assistindo às Rés o direito ao reembolso dos valores reclamados.
E) Para o caso de se considerarem válidas as notas discriminativas e justificativas de custas de parte apresentadas pelas Rés, deve ser levado em conta o disposto no art.º 26º, nº 3, al. c) do RCP e no art.º 32.º, nº 2 da Portaria nº 419-A/2009 de 17/04, pela aplicação dos quais cada uma das Rés tem direito a título da compensação aí prevista ao valor de €1.132,50 (mil cento e trinta e dois euros e cinquenta cêntimos), nada obstando a que se proceda nesta sede à respetiva retificação.
F) Sendo, todavia, mui douta, a decisão recorrida violou por erradas interpretação e aplicação as disposições legais anteriormente citadas, e as mais ao caso aplicáveis.
Pediu assim fosse dado provimento ao recurso e, em consequência, ser alterada a decisão recorrida, nos termos pugnados, com as legais consequências.
Não houve contra-alegações.
O Tribunal
a quo
depois de convidar a Recorrente a pronunciar-se sobre a questão da rejeição do recurso, com fundamento na circunstância de o valor de cada uma das notas discriminativas de custas de partes não exceder o montante de 50 UC’s, o que constituiria condição de admissibilidade do recurso nos termos do Art.º 26.º-A, n.º 3 do R.C.P. (cfr. “Despacho” de 28-06-2024 – Ref.ª n.º 151819593 - p.e.), veio a decidir pela rejeição do recurso, precisamente nesses termos (cfr. “Não Admissão de Recurso” de 29-09-2024 – Ref.ª n.º 153096430 - p.e.).
No entanto, na sequência de reclamação apresentada pela A., aqui Recorrente, ao abrigo do Art.º 643.º do C.P.C. (cfr. “Requerimento” de 14-10-2024 – Ref.ª n.º 26516665 - p.e. – do apenso “A”), o Relator julgou admitir o recurso por despacho de 19 de novembro de 2024 (Ref.ª n.º 22360555 - p.e.), considerando que havia uma coligação legal de réus (cfr. Art.º 36.º n.º 2 do C.P.C.), o valor do incidente assim deduzido era superior à alçada da 1.ª instância e o decaimento superior a metade dessa alçada, julgando que estavam reunidos os requisitos de recorribilidade previstos no Art.º 629.º n.º 1 do C.P.C., que prevalece sobre a regra do Art.º 26.º-A n.º 3 do R.C.P., cujo propósito é apenas alargar os casos de recorribilidade previstos naquele primeiro preceito do Código de Processo Civil.
*
II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal
ad quem
, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Dito isto, em termos sucintos as questões a decidir são as seguintes:
a) A caducidade do direito de reclamação das custas de parte, atendendo ao disposto no Art.º 25.º do R.C.P..; e
b) O direito de compensação de custas de parte, atendendo ao disposto no Art.º 26.º n.º 3 al. c) do R.C.P. e no Art.º 32.º n.º 2 da Portaria n.º 419-A/2009 de 17/04.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
*
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A decisão recorrida não discriminou de forma autónoma a matéria de facto que relevou, mas dela resulta claro que assentou na sequência de atos processuais que foram descrito no relatório do presente acórdão e que se mostram documentados nos autos.
Tudo visto, cumpre apreciar.
*
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1.
Da caducidade da reclamação das custas de parte.
A primeira questão suscitada pela Recorrente prende-se com o reconhecimento da caducidade do direito das R.R., aqui Recorridas.
Nos termos do Art.º 25.º n.º 1 do R.C.P., com a redação dada pelo Dec.Lei n.º 86/2028 de 29/10, as partes que tenham direito a custas de parte devem remeter ao tribunal, para a parte vencida e para o agente de execução, quando aplicável, a respetiva nota discriminativa e justificativa
«até 10 dias após o trânsito em julgado»
da decisão que ponha termo ao processo.
Em complemento desse normativo, importa ainda ter em consideração que, por força do Art.º 628.º do C.P.C., as decisões judiciais consideram-se transitadas em julgado logo que não sejam suscetíveis de recurso ordinário ou de reclamação.
Conforme refere Ferreira de Almeida (in “Direito Processual Civil”, Vol. II, 2.ª Ed., pág. 447) a preclusão do recurso ordinário pode resultar: «a) da inadmissibilidade do recurso em razão da natureza da decisão (art.º 630.º); b) do valor da causa e/ou da sucumbência (art.º 629.º); c) do decurso do prazo para arguição dos vícios ou para o requerimento de reforma da sentença previstos nos art.ºs 615.º e 616.º; d) da perda do direito de recorrer por renúncia ao recurso ou por aceitação expressa ou tácita da decisão nos termos do art.º 632.º n.ºs 1 a 5; e) da caducidade do direito de interposição do recurso (art.º 638.º); f) da exaustão (esgotamento) dos recursos admissíveis».
Miguel Teixeira de Sousa (in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 2.ª Ed., 1997, págs. 567 a 568) explicita ainda, a este propósito, que: «o trânsito em julgado da decisão decorre da insusceptibilidade de interposição de recurso ordinário ou de reclamação (art.º 677.º [correspondente ao atual Art.º 628.º supra transcrito]). Esse trânsito pode resultar, por isso, de duas ordens de fatores: - da inadmissibilidade de recurso ordinário, atento, nomeadamente, ao valor da causa ou ao montante da sucumbência da parte (art.º 678.º, n.º 1 [correspondente ao atual Art.º 629.º]), ao decurso do prazo de interposição (art.º 685.º [correspondente ao atual Art.º 638.º n.º 1 do C.P.C.]) e à renúncia ao recurso pelas partes da ação ou pela parte vencida (art.º 681.º n.ºs 1, 2 e 3 [correspondente ao atual Art.º 632.º]); - da insusceptibilidade de reclamação da decisão com fundamento na sua nulidade (Art.º 667.º e 668.º [correspondentes aos Art.s 614.º e 615.º])
ou para retificação de erros materiais, esclarecimentos ou reforma quanto a custas ou lapsos manifestos
(art.ºs 677.º, 666.º, 667.º, n.º 3 e 669.º [
idem
Art.s 628.º, 613.º, 614.º, 615.º e 616.º do C.P.C. vigente]).
«Essa reclamação também pode ser formulada quanto a acórdãos proferidos pelos tribunais superiores (art.ºs 716.º, n.º 1, 732.º, 752.º, n.º 3 e 762.º, n.º 1) e
a preclusão ocorre, em qualquer caso, com o decurso do prazo geral de 10 dias durante o qual a parte pode reclamar
(art.º 153.º [correspondente ao Art.º 149.º n.º 1 do C.P.C. vigente]). Note-se que, mesmo que a decisão não seja recorrível, ela pode ser suscetível de reclamação, pelo que, nesse caso, o trânsito em julgado não se verifica antes do esgotamento do respetivo prazo».
No caso, o que se passou foi que a A. recorreu da sentença proferida na 1.ª instância, tendo vindo a recair sobre esse recurso o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de março de 2022, que confirmou a sentença recorrida (Ref.ª n.º 18093283 - p.e.). Esse acórdão foi notificado em 9 de março de 2022 (cfr. “Not. do acórdão” de 09-03-2022 – Ref.ª n.º 18166717 – p.e.), mas a A., apenas em 27 de abril de 2022 (cfr. “Requerimento” de 27-04-2022 – Ref.ª n.º 574668 - p.e.), veio requerer a retificação de erro materiais ao abrigo dos Art.s 614.º, n.ºs 1 e 3
“ex vi”
Art.º 666.º do C.P.C..
Na verdade, o prazo para recorrer do referido acórdão do Tribunal da Relação havia terminado a 21 de abril de 2022 (cfr. Art.º 638.º n.º 1 do C.P.C.). Logo, quando foi formulado o requerimento de retificação de alegados erros materiais, em 27 de abril de 2022 (cfr. “Requerimento” de 27-04-2022 – Ref.ª n.º 574668 - p.e.), poderia dizer-se que a decisão já estava consolidada, com o respetivo trânsito em julgado.
É certo que o Art.º 614.º n.ºs 1 e 3 do C.P.C. permite que, a todo o tempo e mesmo independentemente de requerimento das partes, possam ser corrigidos lapsos manifestos da decisão, mesmo que esta já tenha transitado em julgado. Mas, na verdade, tratam-se de situações de tal forma clarividentes que a retificação promovida, oficiosamente ou a requerimento, não pode afetar em circunstância alguma o sentido material da decisão proferida e já consolidada. Por outro lado, essa possibilidade de retificação, com essas limitações objetivas, e mesmo que admissível fazer a todo o tempo, não pode afetar em caso algum a conclusão sobre o trânsito em julgado da decisão.
Um pedido de retificação de sentença, ou de acórdão, formulado depois dessas decisões terem transitado em julgado, não pode ter por efeito a extinção do caso julgado ou o retardamento no tempo desse trânsito em julgado, sob pena de se ter de entender que todas as decisões não transitam em julgado enquanto seja possível, teoricamente e em abstrato, pedir retificações de erros materiais. Ora, isso não faz sentido nenhum, porque violaria o princípio da segurança jurídica subjacente a todo o regime legal do instituto do caso julgado.
O pedido de retificação de erros materiais, no quadro do Art.º 614.º n.º 1 do C.P.C., só pode afetar o decurso do prazo da recorribilidade da decisão e, consequentemente, do seu trânsito em julgado, se for formulado no prazo geral de 10 dias (cfr. Art.º 149.º n.º 1 do C.P.C.) a contar da notificação da sentença ou acórdão em que alegadamente se verificaram os lapsos manifestos. Doutro modo, esse pedido, mesmo que admissível fazer a todo o tempo (cfr. Art.º 614.º n.º 3 do C.P.C.), não pode afetar a conclusão sobre o trânsito em julgado da decisão.
Dito isto, as R.R. somente vieram a apresentar a nota discriminativa e justificativa de custas de parte, interpelando assim a A. para o seu pagamento, em 9 de junho de 2022 (cfr. “Nota discriminativa - Nota Disc. e Just. de Custas de Parte” de 09-06-2022 – Ref.ª n.º 21239145 - pe.; e “Outro” de 09-06-2022 – Ref.ª n.º 21241760 - p.e.). Isto quando, como já referido, o prazo para recorrer do acórdão do Tribunal da Relação, que havia julgado definitivamente a causa, já havia terminado a 21 de abril de 2022 (cfr. Art.º 638.º n.º 1 do C.P.C.) e o prazo de 10 dias previsto no Art.º 25.º n.º 1 do R.C.P. para as R.R. apresentarem as respetivas notas discriminativas e justificativas de custas de parte já havia terminado no dia 2 de maio de 2022.
É inquestionável que o prazo previsto no Art.º 25.º n.º 1 do R.C.P. é um prazo perentório que, nos termos do Art.º 139.º n.º 3 do C.P.C., determina a extinção do direito pretendido fazer valer (neste sentido: Salvador da Costa in “As Custas Processuais”, 6.ª Ed., pág. 214).
Assim sendo, só podemos concordar com as conclusões que sustentam a caducidade do direito pretendido fazer valer pelas R.R. com a apresentação extemporânea das notas discriminativas e justificativas de custas de parte, devendo a apelação proceder nesta parte.
2.
Da compensação de custas de parte.
A Recorrente ainda suscitou a questão do direito de compensação de custas de parte, atendendo ao disposto no Art.º 26.º n.º 3 al. c) do R.C.P. e no Art.º 32.º n.º 2 da Portaria n.º 419-A/2009 de 17/04, mas a apreciação da mesma fica prejudicada pela procedência da exceção anteriormente apreciada (cfr. Art.º 608.º n.º 2
“ex vi”
Art.º 663.º n.º 2 do C.P.C.).
Em face do que assim ficou dito procede a apelação e o despacho recorrido deverá ser revogado.
3.
Das custas.
Resta referir, no que se refere à responsabilidade por custas, que foram as R.R. que deram causa ao incidente de oposição à nota discriminativa e justificativa das custas de parte.
Foram as R.R. que apresentaram as notas discriminativas e justificativas de custas de parte fora de prazo e, assim, motivaram a oposição da A., devendo nessa parte aplicar-se a regra geral da causalidade, prevista no Art.º 527.º n.º 1 do C.P.C..
A taxa de justiça devida pelo incidente anómalo assim suscitado na 1.ª instância, deve ser fixada em 1 U.C. (cfr. Art.º 7.º n.º 4 do R.C.P. e tabela II a ele anexa), a cargo das R.R. (cfr. Art.º 527.º n.º 1 do C.P.C.).
Quanto às custas do recurso, é certo que não houve contra-alegações das Recorridas, mas, ainda assim, a responsabilidade pelas custas não pode ficar limitada à consideração do proveito do recurso pela apelante, porque efetivamente foram as R.R. que deram causa ao incidente resultante da apresentação das notas discriminativas e justificativas das custas de parte, que motivaram a decisão aqui recorrida e a necessidade de ser interposto o presente recurso, que foi julgado procedente. Por esse motivo, ao recurso deve igualmente aplicar-se a regra geral da causalidade e do vencimento (cfr. Art.º 527.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C.). Consequentemente, as custas do recurso são igualmente pelas Recorridas.
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente por provada, revogando o despacho recorrido, datado de 18 de abril de 2024 (Ref.ª n.º 150318861 - p.e.)
,
na parte em que decidiu indeferir o pedido de desentranhamento das notas discriminativas e justificativas das custas de parte por extemporaneidade, a qual é substituída pela decisão de julgar extinto o direito pretendido fazer valer pelas R.R., por ser extemporânea a apresentação das notas discriminativas e justificativas de custas de parte nos termos do Art.º 25.º n.º 1 do R.C.P., condenando assim as mesmas nas custas do incidente, cuja taxa de justiça se fixa em 1 U.C. (cfr. Art.º 7.º n.º 4 do R.C.P. e tabela II a ele anexa).
- Custas do recurso pelas Apeladas (Art.º 527º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C.).
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Lisboa, 8 de abril de 2025
Carlos Oliveira
Paulo Ramos de Faria
Alexandra de Castro Rocha
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/fd500ffe6ca3bd1f80258c7e004a5386?OpenDocument
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1,762,128,000,000
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REVOGADA A SENTENÇA
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19674/21.2T8PRT.P1
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19674/21.2T8PRT.P1
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MÁRCIA PORTELA
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I - Ao aludir ao carácter transitório da incapacidade no artigo 2199.º CC, pretende a lei significar que a deficiência da vontade do testador deve verificar-se no momento em que a disposição testamentária é feita, abrangendo tanto situações esporádicas, transitórias, como situações permanentes, que justifiquem a instauração de uma acção de maior acompanhado.
II - Saber se o o testador se encontrava ou não incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou de formar livremente a sua vontade é uma conclusão jurídica a extrair
dos factos apurados.
III - Constitui entendimento pacífico que o ónus da prova acerca da incapacidade do testador impende sobre aquele que pretende invalidar o testamento.
IV - Provado o estado de demência em período que abrange o ato anulando, é de presumir, sem necessidade de mais, que na data do mesmo acto aquele estado se mantinha sem interrupção.
V - Corresponde ao
id quod plerum accidit
; está em conformidade com as regras da experiência.
VI - À outra parte caberá ilidir a presunção demonstrando (se puder fazê-lo) que o acto recaiu num momento excepcional e intermitente de lucidez.
VII - O artigo 2199.º CC, ao prever a anulação do testamento por incapacidade acidental, estabelece um regime especial relativamente ao regime da incapacidade acidental no âmbito do negócio jurídico, previsto no artigo 257.º CC, pois, contrariamente ao que aqui sucede, não é ali exigida a notoriedade da incapacidade ou o seu conhecimento pelo declaratário.
VIII - A diferença de regimes assenta na diversa natureza dos actos que se destinam a regular: o artigo 257.º CC regula a incapacidade acidental no âmbito do negócio jurídico em geral, destinando-se a exigência de notoriedade da incapacidade ou conhecimento pelo declaratário a tutelar as expectativas deste; o artigo 2199.º CC reporta-se ao testamento, um negócio jurídico unilateral não receptício.
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[
"TESTAMENTO",
"ANULAÇÃO",
"INCAPACIDADE DO TESTADOR",
"ÓNUS DA PROVA"
] |
Apelação n.º 19674/21.2T8PRT.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
Relatora: Marcia Portela
1.º Adjunto: Anabela Dias da Silva
2.º Adjunto: João Diogo Rodrigues
1. Relatório
AA, NIF ...; BB, NIF ...; CC, NIF ..., intentaram acção declarativa contra DD, NIF ..., a qual, entretanto falecida, tem como habilitados EE; FF; GG e HH, pedindo que:
─ seja anulado o testamento outorgado no dia 12.11.2019, por II;
─ seja a R. condenada a restituir à herança todos os bens do testador à data de Novembro de 2019, data em que foi fixada a incapacidade definitiva do II, devendo ser decretado o cancelamento de todos os registos que tenham sido feitos em momento posterior ao internamento; ou subsidiariamente:
─ a entrega do valor correspondente aos bens dissipados, concretamente o espólio de
moedas e objectos em ouro/diamantes/pratas/pérolas, relógios, melhor identificados em 91.º da petição inicial, dinheiro depósitos bancários referidos nos artigos 99.º a 102.º da petição inicial, veículo da marca Wolkswagen com a matrícula ..-..-IR, imóveis e time sharing referidos nos artigos 112.º e 113.º da petição inicial.
Alegaram para tanto, e em síntese:
─ No dia 11 de Junho de 2021, no estado civil de viúvo, faleceu II;
─ O falecido II não tinha descendentes, não tinha ascendentes vivos nem irmãos;
─ Os AA. são, respectivamente, primo direito e primas em segundo grau do falecido;
─ No dia 12 de Novembro de 2019, no Cartório Notarial do Dr. JJ, o falecido outorgou testamento a favor de DD, ora R., e de KK, tendo este vindo a renunciar à herança;
─ O falecido II encontrava-se incapaz de outorgar o testamento.
Na contestação a R. sustentou que o falecido II se encontrava capaz para outorgar o testamento.
Proferiu-se despacho saneador.
Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu dos pedidos os habilitados EE, FF, GG e HH, todos de apelido ..., atento o falecimento da R. DD,
Inconformados, apelaram os AA., apresentado as seguintes conclusões:
Objeto
1. O presente recurso tem por objeto a totalidade da decisão que julgou improcedente, por não
2. provada, a ação proposta pelos Autores.
2.
Os Recorrentes arguirão a nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC. Posteriormente, impugnarão a decisão da matéria de facto, com recurso a prova gravada (declarações de parte e prova testemunhal) e a prova documental, pelo que se especificarão os concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados, a resposta que, no seu entender, lhes deveria ser dada e as concretas passagens em que se funda o seu entendimento. Por fim, o recurso versará, ainda, matéria de direito. Nulidade da sentença – artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC
3.
Não obstante o Tribunal ter começado por referir que teve em conta a “prova documental junta aos autos” e os “elementos clínicos juntos” e de, no elenco das testemunhas valoradas, ter identificado os médicos que contactaram com II – como é o caso do psiquiatra, LL, ou a médica especialista em medicina interna, MM –, na fundamentação da decisão recorrida, toda a informação plasmada nos relatórios médicos e explicada pelos profissionais que a elaboraram, foi, simplesmente, ignorada.
4.
A sentença recorrida parece sustentada no depoimento do Notário JJ e das testemunhas que assistiram ao testamento (NN e OO) sem, contudo, revelar por que razão atribuiu valor probatório aos depoimentos destas testemunhas e nada explica quanto à oposição existente por confronto com os elementos clínicos que, alegadamente, também foram valorados (relatórios médicos e exame pericial, cuja informação clínica neles vertida foi levada ao ponto 31. dos factos provados).
5.
Especialmente, num contexto em que a testemunha JJ começou por expressamente admitir que não se recordava do testamento em causa, apenas assegurando que o testador teria de estar em condições porque, caso contrário, ele próprio não o teria celebrado; que a testemunha NN era advogada da falecida Ré (cfr. ponto 17. dos factos provados) e a testemunha OO é funcionária do escritório da advogada da falecida Ré.
6.
Não se explica, ainda que sumariamente, porque é que os depoimentos se mostraram credíveis, ao ponto de se sobreporem à prova documental pasmada nos relatórios médicos e, ao invés, qual a razão para os depoimentos das testemunhas arroladas pelos Autores não se terem mostrado credíveis.
7.
Não há qualquer referência às testemunhas dos Autores – designadamente aos médicos que prestaram um depoimento de natureza eminentemente técnica e que contactaram diretamente com II no âmbito da sua atividade profissional e que, sem qualquer hesitação, atestaram que este teria as suas capacidades cognitivas e volitivas prejudicadas.
8.
Na pendência da ação de maior acompanhado instaurada em benefício de II, foi realizado um exame pericial, pelo Perito Dr. LL, que dá nota do quadro demencial severo do mesmo, concluindo, assim, pela verificação de um quadro clínico de perturbação neurocognitiva-major – cfr. relatório junto com a petição inicial como documento n.º 13 e integralmente confirmado pela testemunha, Dr. LL. Estes factos constam do ponto 31. dos factos provados, mas deles o Tribunal a quo não retirou qualquer consequência.
9.
Lê-se no aludido relatório pericial que, no Centro Hospitalar ..., existem registos de consultas de neurologia do falecido, desde, pelo menos, 2017, entrando-se transcritas no relatório pericial várias informações clínicas referentes às consultas de neurologia.
10.
Em sede de audiência de julgamento, procedeu-se à audição do médico psiquiatra no Hospital 1... e diretor de psiquiatria forense desse mesmo hospital, Dr. LL, que para além de confirmar o teor do relatório elaborado, atestou ser impossível admitir que, no ano de 2019, II tivesse condições para fazer um testamento.
11.
A médica Dra. MM, que acompanhou o doente II durante o seu internamento hospitalar, confirmou que a avaliação neuropsicológica, realizada em contexto de estabilidade clínica, viria confirmar que o doente não tinha capacidade cognitiva.
12.
No entanto, a decisão recorrida nenhuma alusão fez aos depoimentos prestados pelo médico psiquiatra responsável pela elaboração do relatório pericial e pela médica especialista em medicina interna, Dra. MM, bem como aos documentos por estes emitidos (relatório pericial e declarações médicas juntas aos autos), não obstante o Tribunal, contraditoriamente, ter começado por frisar que valorou os documentos juntos, bem como os relatórios clínicos.
13.
Nesta conformidade, entendem os Recorrentes que a decisão padece do vício de nulidade, que radica na falta de fundamentação ou na sua ambiguidade ou obscuridade que tornam ininteligível a respetiva decisão.
14.
Com efeito, esta nulidade abrange não só a falta de discriminação dos factos provados e não provados, mas também a falta do exame crítico das provas.
15.
Quando os depoimentos contrariam o conteúdo dos documentos (como é o caso) também aí se torna incontornável uma maior exigência na análise crítica da prova, uma vez que é imprescindível perceber as razões pelas quais o juiz deu prevalência a um em detrimento de outro, pesando os diversos graus de falibilidade, a credibilidade contextual, a lógica e até mesmo a experiência da vida, o que não sucedeu no presente caso – e isto apesar de ter sido levada aos factos provados, no ponto 31., a informação clínica de II.
16.
Ora, a decisão recorrida não contempla o exame crítico das provas, limitando a referir que os factos provados se basearam na análise de “toda a prova documental e elementos clínicos juntos aos autos”, bem como que se “considerou a prova testemunhal”, sem realizar a imprescindível apreciação crítica da prova documental e testemunhal.
17.
Na verdade, estando em causa meios de prova suscetíveis de avaliação subjetiva (como sucede com a prova testemunhal) seria indispensável que fosse efetuada uma apreciação crítica da prova – designadamente que se explicasse a razão para se atribuir credibilidade ao depoimento do Notário JJ (que expressamente reconheceu não se recordar do testamento em causa) ou ao depoimento da Dra. NN (advogada da Ré) em detrimento dos depoimentos isentos, credíveis, circunstanciados e de natureza eminentemente técnica dos médicos que assistiram II., com respaldo nos elementos clínicos juntos aos autos.
18.
O Tribunal a quo não atendeu, nem sequer fez uma análise crítica dos registos documentais das consultas de neurologia (que o falecido II frequentava desde 2017) e que a Ré acompanhou.
19.
A motivação da decisão vertida na sentença não cumpre com os requisitos legalmente estabelecidos, nem permite saber que testemunhas contribuíram com o seu depoimento para que os factos fossem dados como provados ou não provados, nem revela minimamente o percurso da convicção formada, as razões por que se deu valor probatório a determinados depoimentos, a isenção das testemunhas, sem esquecer a credibilidade dos depoimentos no contexto de toda a prova produzida.
20.
Como facilmente se compreenderá, num processo em que foram ouvidas várias testemunhas (incluindo as de natureza técnica), não basta para se considerar preenchida, por qualquer forma, a exigência legal da explicitação mínima do exame crítico das provas uma mera remissão genérica para a “prova testemunhal” pois que dessa forma resulta de todo inviabilizada a perceção dos motivos da decisão ou, dito de outra forma, das razões que levaram o tribunal a decidir como decidiu.
21.
Assim, verifica-se a nulidade da sentença prevista nos artigos 615º, n.º 1, alínea b) do CPC e derivada da falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a implicar a procedência do presente recurso com a consequente remessa dos autos ao Juízo Central Cível do Porto para prolação de nova sentença que se mostre despojada daquele vício invalidante.
22.
Tudo isto: conclui-se que o Mmo. Juiz preteriu o dever de examinar criticamente a prova documental e testemunhal, omitindo o dever de fundamentação, pelo que a sentença enferma de nulidade nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea b) do CPC.
23.
Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 154.º, 607.º, n.º 4, 615.º, n.º 1, alínea b), todos do Código de Processo Civil, bem como o artigo 205º/1 da Constituição.
Da matéria de facto. Impugnação da matéria de facto: concretos pontos incorretamente dados como provados e não provados.
A.1. – Os concretos pontos de facto incorretamente julgados – artigo 640.º, n.º 1, al. a) do CPC
24.
Para efeitos de reapreciação da prova produzida, os Recorrentes consideram incorretamente julgados (por erro, incompletude ou imprecisão) os factos constantes dos artigos 63.º, 64.º, 66.º, 67.º, 68.º, 70.º, 71.º, 72.º, 77.º, 79.º, 80.º, 81.º, 82.º, 83.º, 84.º, 85.º, 86.º, 87.º, 88.º, 89.º, 91.º, 92.º, 96.º, 104.º, 105.º, 106.º dos FACTOS PROVADOS e os factos constantes das alíneas a), b), c), h), p), q), r), s), t) e u) dos FACTOS NÃO PROVADOS, cuja reapreciação se requer a este Venerando Tribunal, à luz dos concretos meios probatórios que serão elencados.
25.
Deveria, ainda, ser aditado aos factos provados o seguinte ponto: «II frequentava consultas de Neurologia desde, pelo menos 2017, tendo por base o problema demencial (PERTURBAÇÃO NEUROCOGNITIVA-MAJOR) de que padecia».
A.2. – Da decisão que deve ser proferida sobre as questões impugnadas – artigo 640.º, n.º 1, alínea c) do CPC – e dos concretos meios probatórios que impõem diversa decisão da recorrida e dos fundamentos da impugnação da matéria de facto
26.
A sentença recorrida deu como provados os pontos 63.º, 64.º e 66.º dos factos provados, quando, na verdade, tais factos deveriam ter sido dados como não provados. O depoimento da testemunha PP (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, início a 16:36 e fim a 17:03, com duração de 00:26:48, e no dia 22 de janeiro de 2024, início a 10:28 e fim a 10:49, com duração de 00:20:40) não se mostrou minimamente credível, porquanto, na sessão do dia 10 de maio de 2023, esta testemunha começou por referir que conhecia a Ré DD “de Portugal e de Moçambique” e que também conhecia II (concreta passagem 01min11seg a 02min2seg) e, na audiência do dia 22 de janeiro de 2024 (início a 10:28 e fim a 10:49, com duração de 00:20:40), depois de confrontado com o teor de um auto policial em que se identificou como unido de facto da Ré DD, acabou por assumir que mantinha um relacionamento amoroso com a falecida Ré, facto que, deliberadamente, optou por omitir ao Tribunal. A concreta passagem é de 01min39 seg a 5min10seg. 27. Como esta testemunha expressamente admitiu, apenas esteve duas ou três vezes com II, situando tais contactos presenciais no ano de 2017/2018 (ou seja, já depois do diagnóstico da doença de demência a II que o relatório pericial fixou no ano de 2015), pelo que não se afigura sustentada e convincente a informação veiculada.
28.
Por outro lado, várias testemunhas próximas do falecido II expressamente assumiram que não conheciam a Ré DD. A testemunha QQ (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 15h00 e fim às 15h22, com duração de 00:22:35) explicou que era muito próxima de II e referiu que, apenas, esteve com a Ré DD uma ou duas vezes. As concretas passagens são as seguintes: 00:01:06 a 00:01:55 e 00:07:47 a 00:09:51.
29.
A testemunha RR (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 15:32 e fim às 15:40, com duração de 00:07:48) também explicou ser uma pessoa próxima de II e confirmou que o aparecimento da Ré DD remonta a um passado muito recente. A concreta passagem é de 00:00:38 a 00:02:12.
30.
A testemunha SS (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 14:38 e fim às 14:59, com duração de 00:20:56), explicou que tinha contacto regular com II e que também conheceu a falecida Ré DD nos últimos dois anos, ou no último ano antes do internamento, altura em que lhe fora apresentada por II como “sobrinha”. A concreta passagem é de 00:05:22 a 00:08:21.
31
. Resultou da prova produzida que a Ré DD tomava conta de uma tia, DD, esta sim das relações de amizade de II. Basta atentar no teor do auto policial do Comando Metropolitano do Porto, de 30 de novembro de 2022 (NPP ...), junto aos autos na sequência do pedido de ofício dos Autores, que atesta que, em 14 maio de 2019 (uns meses antes da outorga deste testamento), a Ré DD “cuidava” de TT (que os Autores e várias testemunhas confirmaram que se tratava de uma amiga de II), pessoa idosa, acamada e com diversos problemas de demência. Para além do auto policial, esta informação foi confirmada pelo depoimento da testemunha PP, unido de facto da Ré, que confirmou que a Ré foi cuidadora de TT até à morte deste (depoimento prestado no dia 22 de janeiro de 2024, início a 10:28 e fim a 10:49, com duração de 00:20:40). A concreta passagem é de 07min08 seg a 11min00 seg).
32.
A informação social junta como documento n.º 10 com a petição inicial, elaborada pela assistente social do Hospital ..., Dra. UU, refere expressamente que a falecida Ré DD dizia ser “afilhada”, mas que “está em Portugal apenas há cerca de 6 anos”. Também a sentença proferida no processo de maior acompanhado, junta como documento n.º 16 com a petição inicial, após diligências instrutórias direcionadas à concretização do superior interesse do beneficiário II, conclui que os Autores AA, BB e CC constituem efetivamente a sua rede de suporte, e não a Ré DD.
33.
Estes são os concretos meios probatórios que impõem diversa decisão da recorrida e que levariam a que os pontos 63.º, 64.º e 66.º dos factos provados não pudessem ter sido dados como provados, mas sim como não provados.
34.
A sentença recorrida deu como provados os pontos 67.º, 68.º, 70.º e 72.º dos factos provados, quando, na verdade, tais factos deveriam ter sido dados como não provados. Os concretos meios probatórios que impõem diversa decisão da recorrida são os já elencados em 26) a 32) das presentes conclusões, que se dão por reproduzidos, que permitem concluir que a Ré DD surgiu na vida de II nos últimos anos da sua vida, já após o diagnóstico da sua demência, prestando-lhe algum apoio nas compras e idas às consultas médicas, a par dos que de seguida se enumeram: (i) as declarações da Autora BB (declarações de parte prestadas no dia 22 de janeiro de 2024, com início às 12:11 e fim às 12:49, com duração de 00:38:10min), sendo que a concreta passagem é de 08min24seg a 10min a 20seg; (ii) o assento de nascimento da Ré DD, junto como documento n.º 8 com a petição inicial de acompanhamento de maior que atesta que, em 16 de novembro de 2012, a Ré casou em Moçambique, pelo que nem vivia em Portugal; (iii) o auto policial do Comando Metropolitano do Porto, de 30 de novembro de 2022 (NPP ...), na sequência do pedido de ofício dos Autores, que atesta que, em 14 maio de 2019 (uns meses antes da outorga deste testamento), a Ré DD tomava conta de uma tia, DD, que necessitava de cuidados permanentes, pelo que não podia cuidar de II.
35.
Assim: a prova produzida apenas permite concluir que a Ré desempenhou algumas tarefas domésticas para o falecido II, nunca tendo sido considerada como “pessoa de família” ou de “confidente”. Estes são os concretos meios probatórios que impõem diversa decisão da recorrida e que levariam a que os tais factos fossem dados como não provados.
36.
A sentença recorrida deu como provado o ponto 71.º dos factos provados, quando, na verdade, tal facto deveria ter sido dado como não provado. O depoimento da testemunha PP (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023 (início a 16:36 e fim a 17:03, com duração de 00:26:48 e no dia 22 de janeiro de 2024 (início a 10:28 e fim a 10:49, com duração de 00:20:40) não deveria ter sido valorado, porquanto não se mostrou minimamente credível, nos termos já expostos (em especial, 01 min 39 seg a 5 min 10 seg do depoimento prestado no dia 22 de janeiro de 2024).
37.
Apesar da suposta intenção de II em beneficiar, como forma de gratidão, a afilhada, por ser a pessoa mais próxima do padrinho, o que lhe tinha sido veiculado, pelo menos, desde 2017 não se percebe a razão pela qual apenas o fez em novembro de 2019, em véspera do seu internamento hospitalar.
38.
As declarações da Autora BB (declarações de parte prestadas no dia 22 de janeiro de 2024, com início às 12:11 e fim às 12:49, com duração de 00:38:10min) apontam nesse sentido. A concreta passagem é de 10min27seg a 12min a 10seg, em que a Autora explicou que mantinha com II uma relação de proximidade, sem que tivesse existido qualquer “desavença familiar”.
39.
Idêntica informação foi transmitida pela Autora CC (declarações de parte prestadas no dia 22 de janeiro de 2024, com início às 12:11 e fim às 12:49, com duração de 00:38:10min). A concreta passagem em que explica a relação de proximidade é de 25min30 a 26min45seg. Explicou, ainda, que não existiu qualquer “desavença familiar” (concreta passagem é de 33min24 a 33min57seg).
40.
Existia efetivamente entre Autores e II uma relação de afeto e proximidade que justificou, no âmbito de uma ação de maior acompanhado, e após a realização de diversas diligências instrutórias pela Segurança Social, que os Autores fossem considerados a rede familiar de suporte e o Autor AA nomeado seu acompanhante e as Autoras BB e CC vogais do Conselho de Família – cfr. documento n.º 10 e 16 juntos com a petição inicial.
41
. A situação que consta da informação clínica subscrita pela Dra. MM (cfr. documento n.º 9 junto com a petição inicial) de, no momento em que II foi admitido no serviço de urgência do Centro Hospitalar ..., se apresentar sem acompanhante, tendo sido sinalizado como caso social, foi claramente esclarecida em sede de julgamento, seja do depoimento da Dra. MM, seja do depoimento da Dra. UU, assistente Social, seja do depoimento da técnica VV que, conjugadamente, explicaram que as pessoas contactadas inicialmente foram KK, WW, QQ, SS; que tal se tratou de um lapso do Hospital na identificação dos familiares, que entretanto viria a ser corrigida pelo hospital - cfr. documento n.º 12 junto com a petição inicial.
42.
Caso tivesse existido efetivamente alguma “desavença familiar”, certamente que os Autores não teriam sido nomeados como foram, pelo Tribunal (Juízo Local Cível do Porto), como acompanhante e membros do Conselho de Família, sob proposta da Segurança Social e do Ministério Público, validada pela Mma. Juiz titular do processo de maior acompanhado, em que foram tomadas todas as diligências no sentido de proteger o Beneficiário II, inclusive através da promoção de um inquérito de natureza criminal para averiguação da prática de vários ilícitos criminais perpetrados pela Ré (cfr. documento n.º 16 junto com a petição inicial.). Assim, também tal facto não poderia ter sido dado como provado, devendo antes ser dado como não provado, com base nos concretos meios probatórios que aqui se elencaram.
43.
A sentença recorrida deu como provado o ponto 77.º dos factos provados, quando, na verdade, tais factos deveriam ter sido dados como não provados. Deveria, ainda, ser aditado aos factos provados o seguinte ponto: «II frequentava consultas de Neurologia desde, pelo menos 2017, tendo por base o problema demencial (PERTURBAÇÃO NEUROCOGNITIVA-MAJOR) de que padecia».
44.
A frequência das consultas de neurologia devia-se ao facto de II padecer de
PERTURBAÇÃO NEUROCOGNITIVA-MAJOR, ou, na terminologia da Classificação Internacional de Doenças-10, DEMÊNCIA INESPECÍFICA, que lhe havia sido diagnosticada em 2015. Os concretos meios probatórios que impõem essa conclusão são: (i) o exame pericial ao falecido, pelo Perito Dr. LL, junto a estes autos com a petição inicial como documento n.º 13 e integralmente confirmado pela testemunha, Dr. LL (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 15:41 e fim às 15:49, com duração de 00:08:03).
45.
Lê-se no aludido relatório pericial que, no Centro Hospitalar ..., existem registos de consultas de neurologia do falecido, desde, pelo menos, 2017, cujas informações clínicas se encontram transcritos no relatório pericial.
46.
De igual modo, a médica Dra. MM (depoimento prestado no dia 22 de janeiro de 2024; início à 10:50 e fim às 11:09, com duração de 00:19:05), que acompanhou o doente II durante o seu internamento hospitalar, confirmou que II já evidenciava anteriormente ao internamento deterioração cognitiva, sendo seguido em neurologia desde 2017, pelo quadro demencial de que padecia e não pelos consumos de álcool. A concreta passagem é a seguinte: 00:07:45 a 00:08:51.
47.
Esta médica em causa elaborou a informação clínica junta aos autos como documento n.º 9 com a petição inicial em que, claramente, refere que o falecido II era seguido em neurologia no Centro Hospitalar ... por síndrome demencial de predomínio mnésico e polineuropatia periférica.
48.
Portanto, neste ponto, não se pode deixar de salientar a importância do depoimento prestado pelo médico psiquiatra e pela médica especialista em medicina interna, Dra. MM, e dos documentos, por estes, emitidos (relatório pericial e declarações médicas juntas aos autos).
49.
Nesta medida, este facto deveria ter sido dado como não provado, dando-se, por conseguinte, como provado que: «II frequentava consultas de Neurologia desde, pelo menos 2017, tendo por base o problema demencial (PERTURBAÇÃO NEUROCOGNITIVA-MAJOR) de que padecia», com base nos concretos meios probatórios que aqui se identificaram.
50.
A sentença recorrida deu como provado o ponto 79.º dos factos provados, quando, na verdade, tal facto deveria ter sido dado como não provado. Com efeito, os presentes autos encontram-se instruídos com abundantes elementos clínicos que impunham decisão diversa: exame pericial ao falecido elaborado no âmbito do processo de maior acompanhado, pelo Perito Dr. LL, que dá nota do quadro demencial do mesmo – cfr. relatório junto a estes autos com a petição inicial como documento n.º 13 e integralmente confirmado pela testemunha, Dr. LL (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 15:41 e fim às 15:49, com duração de 00:08:03); registos de neurologia existentes no Centro Hospitalar ... desde, pelo menos, 2017 transcritos no relatório pericial; a declaração médica subscrita pela médica especialista em medicina interna, Dra. MM, integralmente confirmado pelo seu depoimento (depoimento prestado no dia 22 de janeiro de 2024; início à 10:50 e fim às 11:09, com duração de 00:19:05) – cfr. documento n.º 9 junto com a petição inicial. Mereciam, ainda, relevância os elementos clínicos juntos como documento n.º 14 com a petição inicial referente aos episódios de urgência durante o internamento hospitalar de II, porquanto todos estes elementos clínicos dão nota da existência de uma patologia de síndrome demencial que se encontrava em curso há vários anos (pelo menos, desde 2015).
51.
Não se percebe como é que, perante os elementos concretos da situação clínica de II, o Tribunal a quo os ignorou e, apenas, se ateve à presunção de que a revalidação de carta de condução de um cidadão obedece a vários critérios de exames feitos na presença do seu médico de família e que atestam a boa capacidade física e mental da pessoa.
52.
Na verdade, esse exame não tem a finalidade e a especificidade analítica e de diagnóstico que permita detetar e despistar com segurança um caso de quadro demencial a não ser que no momento o estado do examinado seja de tal forma ausente que se torne evidente e flagrante a sua incapacidade (neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-06-2023, no processo 5142/21.6T8CBR.C1.S1).
53.
E tudo iSto sem prejuízo de que a renovação da carta de condução ter sido em 2018, mas o ano de maior perda de capacidades cognitivas ter sido em 2019 (ano em que foi outorgado o testamento), como resulta expressamente do relatório pericial. Assim, tal facto deveria ter sido dado como não provado com base nestes concretos meios probatórios.
54.
A sentença recorrida deu como provado o ponto 80.º dos factos provados, quando, na verdade, tal facto deveria ter sido dado como não provado. Os concretos elementos probatórios que impõem decisão diversa são: (i) a declaração médica subscrita pela médica especialista em medicina interna, Dra. MM, integralmente confirmado pelo seu depoimento (depoimento prestado no dia 22 de janeiro de 2024; início à 10:50 e fim às 11:09, com duração de 00:19:05) – cfr. documento n.º 9 junto com a petição inicial que descreve que o doente II se encontrava “incapaz de deambular de forma autónoma” e com total dependência nas atividades da vida diária, com apoio para a marcha, na alimentação, na higiene e na gestão/administração de medicação; (ii) a informação social elaborada pela assistente social do Hospital ..., Dra. UU, que confirmou o teor da declaração por si subscrita (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 14:20 e fim às 14:37, com duração de 00:16:39), declaração esta que atesta que II não tinha capacidade intelectual para se autogerir e se encontrava incapaz de residir sozinho; (iii) o depoimento da testemunha SS (depoimento prestado no dia 10-05-2023, com início às 14:38 e fim às 14:59, com duração de 00:20:56). A concreta passagem consta de 00:16:06 a 00:17:00. Assim, tal facto deveria ter sido dado como não provado, com base nos concretos meios probatórios que aqui se identificaram.
55.
A sentença recorrida deu como provado o ponto 81.º dos factos provados, quando, na verdade, tal facto deveria ter sido dado como não provado.
56.
Note-se que o Tribunal deu como provado os pontos 27 e 28 dos factos provados. Desde logo,
não se afigura credível que II – que padecia de demência – tivesse ficado subitamente sem as suas faculdades mentais e totalmente dependente de auxílio de terceiros.
57.
Os presentes autos encontram-se instruídos com abundantes elementos clínicos que constituem meios probatórios que impunham conclusão diversa: exame pericial ao falecido elaborado no âmbito do processo de maior acompanhado, pelo Perito Dr. LL, que dá nota do quadro demencial do mesmo – cfr. relatório junto a estes autos com a petição inicial como documento n.º 13 e integralmente confirmado pela testemunha, Dr. LL (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 15:41 e fim às 15:49, com duração de 00:08:03); registos de neurologia existentes no Centro Hospitalar ... desde, pelo menos, 2017 – os quais se encontram transcritos no relatório pericial; declaração médica subscrita pela médica especialista em medicina interna, Dra. MM, integralmente confirmado pelo seu depoimento (depoimento prestado no dia 22 de janeiro de 2024; início à 10:50 e fim às 11:09, com duração de 00:19:05) junta como documento n.º 9 com a petição inicial que atesta que o doente II já vinha sendo seguido em neurologia por síndrome demencial de predomínio mnésico antes do internamento, bem como os elementos clínicos juntos como documento n.º 14 com a petição inicial referente aos episódios de urgência durante o internamento hospitalar de II.
58.
Ainda com relevância, importa atentar na prova testemunhal produzida que também constitui elemento probatório que impunha decisão diversa: depoimento da médica especialista em medicina interna, Dra. MM (depoimento prestado no dia 22 de janeiro de 2024; início à 10:50 e fim às 11:09, com duração de 00:19:05). As concretas passagens são as seguintes: 00:06:05 a 00:10:29 e 00:12:20 a 00:18:10; depoimento do médico psiquiatra e diretor de psiquiatria forense do Hospital 1..., Dr. LL (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 15:41 e fim às 15:49, com duração de 00:08:03). A concreta passagem é de 00:01:23 a 00:08:03; depoimento da testemunha, QQ (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 15h00 e fim às 15h22, com duração de 00:22:35), professora universitária na escola superior de enfermagem do Porto. As concretas passagens são as seguintes: 00:04:16 a 00:07:47, 00:16:32 a 00:17:46 e 00:18:47 a 00:21:02. Também o depoimento da testemunha SS (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 14:38 e fim às 14:59, com duração de 00:20:56) que explicou que tinha contacto regular com II (00:01:13 a 00:01:46). As concretas passagens são as seguintes 00:03:03 a 00:05:22 e 00:09:49 a 00:13:50. Releva, ainda, o depoimento da testemunha UU, assistente social no Centro Hospitalar ... (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 14:20 e fim às 14:37, com duração de 00:16:39). As concretas passagens são as seguintes: 00:02:55 a 00:04:31; 00:05:07 a 00:12:24.
59.
Além disso, como aliás dita as regras da experiência comum neste tipo de doença, este quadro claramente sugestivo de uma patologia demencial foi-se agravando com o passar dos anos, na medida em que tais comportamentos passaram a ser de verificação reiterada, razão pela qual II passou a ser seguido em consultas de neurologia (pelo menos a partir de 2017), tendo-lhe sido diagnosticada a patologia demencial que se achava em curso e se exteriorizava através de vários sintomas (confusão, esquecimento, discurso incoerente e comportamentos inapropriados).
60.
Ao ponto de II ter ficado impossibilitado de, por si só, prover pelo seu sustento e cuidado, perdendo em absoluto a competência para, autonomamente, se vestir, alimentar ou higienizar (o que explica o aspeto descuidado e o cheiro a urina que as testemunhas descreveram); executar as tarefas e as lides inerentes ao sustento e governo da sua pessoa e da sua casa (era um acumulador de lixo); de estabelecer e dar continuidade a uma conversa lógica, coerente, ligada e com conteúdo, sem qualquer capacidade para gerir, v.g., as contas bancárias ou de contar ou reconhecer o valor facial do dinheiro, como o relatório pericial veio a concluir, como ressalta da informação social e
relatório pericial acima identificados.
61.
E isso não aconteceu, como é por demais evidente, com o seu internamento, facto que, de resto, era do conhecimento da falecida Ré DD, que inclusivamente o acompanhava às consultas de neurologia – sendo, por isso, manifesto que a mesma tinha conhecimento do real estado clínico do mesmo. Assim, tal facto deveria ter sido dado como não provado com base nos concretos meios probatórios identificados.
62.
A sentença recorrida deu como provado o ponto 82.º dos factos provados, quando, na verdade, tal facto deveria ter sido dado como não provado. O estado de saúde de II em nada foi influenciado pela situação pandémica de Covid-19. Por outro lado, não corresponde à verdade que II, no hospital, sempre tenha reconhecido DD como sua afilhada. Ainda com relevância, importa atentar na prova testemunhal produzida que constitui elemento probatório que impunha decisão diversa: o depoimento da médica especialista em medicina interna, Dra. MM (depoimento prestado no dia 22 de janeiro de 2024; início à 10:50 e fim às 11:09, com duração de 00:19:05).
A concreta passagem é a seguintes: 00:12:20 a 00:17:31; depoimento da testemunha UU, assistente social no Centro Hospitalar ... (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 14:20 e fim às 14:37, com duração de 00:16:39). A concreta passagem é a seguinte: 00:05:07 a 00:10:34. Portanto, tal facto deveria ter sido dado como não provado com base nos concretos meios probatórios identificados.
63.
A sentença recorrida deu como provados os pontos 83.º, 84.º, 85.º, 86.º, 87.º, 88.º e 89.º dos factos provados, quando, na verdade, tais factos deveriam ter sido dados como não provados. Os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa são os seguintes: exame pericial ao falecido elaborado no âmbito do processo de maior acompanhado, pelo Perito Dr. LL, que dá nota do quadro demencial do mesmo – cfr. relatório junto a estes autos com a petição inicial como documento n.º 13 e integralmente confirmado pela testemunha, Dr. LL (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 15:41 e fim às 15:49, com duração de 00:08:03). Registos de neurologia existentes no Centro Hospitalar ... desde, pelo menos, 2017 que integram o relatório pericial. Ainda, a declaração médica subscrita pela médica especialista em medicina interna, Dra. MM, integralmente confirmado pelo seu depoimento (depoimento prestado no dia 22 de janeiro de 2024; início à 10:50 e fim às 11:09, com duração de 00:19:05) – cfr. documento n.º 9 junto com a petição inicial que atesta que o doente II já vinha sendo seguido em neurologia por síndrome demencial de predomínio mnésico antes do internamento. Ainda, os elementos clínicos juntos como documento n.º 14 com a petição inicial referente aos episódios de urgência durante o internamento hospitalar de II também são um elemento probatório que impunha que tal facto fosse dado como não provado, bem como a sentença proferida no âmbito do processo de maior acompanhado, junta como documento n.º 16 com a petição inicial que aplica a II as medidas de acompanhamento de representação geral e administração total dos seus bens, dando como provado que o beneficiário padece de uma perturbação neurocognitiva major, de evolução insidiosa e progressiva, em estado severo e irreversível, que limita o seu desempenho volitivo (cfr. pontos 12 e 13 dos factos provados da aludida sentença) e o documento n.º 11 junto com a petição inicial, referente a um requerimento, apresentado pela Ré DD e subscrito pela sua advogada, Dra. NN, que interveio no testamento na qualidade de testemunha.
64.
Ainda com relevância, importa atentar na prova testemunhal produzida que também constitui elemento probatório que impunha decisão diversa: depoimento da médica especialista em medicina interna, Dra. MM (depoimento prestado no dia 22 de janeiro de 2024; início à 10:50 e fim às 11:09, com duração de 00:19:05). As concretas passagens são as seguintes: 00:06:05 a 00:10:29; 00:12:20 a 00:18:10; o depoimento do médico psiquiatra e diretor de psiquiatria forense do Hospital 1..., Dr. LL (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 15:41 e fim às 15:49, com duração de 00:08:03). A concreta passagem é a seguinte: 00:01:23 a 00:08:03; o depoimento da testemunha, QQ (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 15h00 e fim às 15h22, com duração de 00:22:35). As concretas passagens são as seguintes: 00:04:16 a 00:07:47; 00:16:32 a 00:17:46 e 00:18:47 a 00:21:02; o depoimento da testemunha SS (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 14:38 e fim às 14:59, com duração de 00:20:56) que, explicando que tinha contacto regular com II (00:01:13 a 00:01:46), confirmou o estado demencial de II. As concretas passagens são as seguintes: 00:03:03 a 00:05:22; 00:09:49 a 00:13:50 e 00:14:47 a 00:16:06; o depoimento da testemunha UU (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 14:20 e fim às 14:37, com duração de 00:16:39). As concretas passagens são as seguintes: 00:02:55 a 00:04:31; 00:05:07 a 00:12:24; o depoimento da testemunha Dr. JJ, Notário (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 15:53 e fim às 16:00, com duração de 00:07:51).As concretas passagens são as seguintes: 00:00:37 a 00:04:03 e 00:05:05 a 00:07:32; depoimento da testemunha Dr.ª NN, advogada (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 16:01 e fim às 16:12, com duração de 00:11:08). As concretas passagens são as seguintes: 00:00:38 a 00:05:16, 00:05:43 a 00:09:21 e 00:10:18 a 00:11:10,
65.
Tudo isto não aconteceu, como é por demais evidente, com o internamento de II, facto que, de resto, era do conhecimento da falecida Ré DD, que inclusivamente o acompanhava às consultas de neurologia – sendo, por isso, manifesto que a mesma tinha conhecimento do real estado clínico do mesmo.
66.
Daí que, face a este acervo probatório demostraram-se, desde logo, inverosímeis os depoimentos das testemunhas da Ré, na parte em que afirmaram, em absoluto, a existência de qualquer doença neurológica de II, quando, na realidade, tudo isto foi amplamente contrariado pelos citados depoimentos, inclusivamente, os de natureza eminentemente técnica.
67
. Com efeito, conforme decorre da análise conjugada dos concretos meios probatórios identificados supra, fica claro que II padecia de doença suscetível de afetação das faculdades mentais (demência) que no plano clínico, é comprovada e cientificamente suscetível de afetar a sua capacidade de perceção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer ato de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente.
68.
Em sede de audiência de julgamento procedeu-se à audição do médico psiquiatra no Hospital 1... e diretor de psiquiatria forense desse mesmo hospital, Dr. LL (passagem já identificada) que, quando questionado se II teria condições para outorgar o testamento em novembro de 2019 – à luz dos seus conhecimentos médicos – começou por explicar que «vi-o no dia 11/12/2020 e, portanto, neste dia, nesta observação, claramente não estava e não estaria há muito tempo, desde o internamento no Hospital ...».
69.
Referiu, ainda, o seguinte: «Nós temos consultas, consultas de neurologia desde 2017, primeira consulta, neurologia do Centro Hospitalar ... Doutora XX, portanto, uma instituição pública. Não é que se fosse privada, também puséssemos em causa, mas acho que é um neurologista a trabalhar para um hospital Público e temos observações desde 2017.
70.
Pronto e melhor do que isso temos observações muito bem feitas graças à Doutora XX,
em que fez sempre o mini mental state examination que é assim exame mais ou menos sumário, mas muito bom para irmos vendo uma evolução dita objetiva, dita objetiva e não baseada em narrativas de familiares do que quer que seja aquilo que está ali à frente. Então quando se quer objetivar o psíquico este instrumento é muito utilizado.
71.
Ele tem 26 em 30 pontos possíveis em 2017, o que é bom resultado, tendo em conta que o valor mínimo que se esperava seria 27, portanto abaixo de 27 é normal. Portanto, está abaixo da média esperada, mas 26 é um valor muito próximo, portanto, não podemos dizer que o homem estivesse muito mal, mas em 2019, em maio, já tem um mini mental state de 25, ou seja, perde 4 pontos em relação à anterior avaliação e em novembro de 2019 já tem 23. Portanto o ano de 2019 é um ano claramente de perda a pique»
72.
Portanto, conclui, sem qualquer reserva, que, «no ano 2019 é difícil admitir que este homem esteja capaz de fazer qualquer a testamento ou passar procuração. No ano de 2019, eu como perito ponho as mãos no fogo, para trás não sei».
73.
Quando questionado sobre a possibilidade de ter existido um intervalo lúcido, o médico psiquiatra respondeu com a mesma assertividade: «os humanos não são feitos de intervalos lúcidos, os seres humanos têm uma história biográfica. O intervalo lúcido diz pouco sobre uma pessoa. O intervalo lúcido, num internamento, ou seja, “vamos aproveitar um intervalo lúcido, agora, e vamos fazê-lo assinar qualquer coisa, porque daqui a 2 horas ele pode estar em estado confusional. Este intervalo lúcido não tem validade, os seres humanos não são feitos de presentificações, os seres humanos são feitos uma continuidade biográfica».
7
4
.
A médica Dra. MM, que acompanhou o doente II durante o seu internamento hospitalar, prestou igualmente um depoimento credível e, circunstanciando o diagnóstico que exarou na declaração médica, atestou o quadro neuro-degenerativo do paciente, confirmando que II não se encontrava capaz nem conservava o juízo crítico, em função das consultas pessoais que realizou, mas também com auxílio de meios complementares de diagnóstico porque pediram uma avaliação neuropsicológica, realizada em contexto de estabilidade clínica, e que essa avaliação viria confirmar que o doente não tinha capacidade cognitiva, razão pela qual se promoveu um processo de acompanhamento de maior.
75
. Portanto, neste ponto, não se pode deixar de salientar a importância do depoimento prestado pelo médico psiquiatra e pela médica especialista em medicina interna, Dra. MM (que acompanhou o doente durante o período de internamento hospitalar) e dos documentos, por estes, emitidos (relatório pericial e declarações médicas juntas aos autos).
76.
Todas estas testemunhas deveriam ter sido dignas de crédito do tribunal, sendo certo que estes depoimentos encontram respaldo nos restantes elementos probatórios junto aos autos (designadamente os elementos clínicos).
77.
E tudo iSto, apesar de, pelo menos desde 2009, o falecido II evidenciar problemas neurocognitivos, cfr. auto policial remetido a estes autos pelo Comando Metropolitano do Porto que confirma que, em 10 de dezembro ano de 2009, a polícia já tinha sido chamada a sua casa por vizinhos pelo facto de II manifestar comportamentos estranhos, designadamente gritar no hall de entrada do prédio, dizendo que estava sequestrado dentro do seu apartamento e que queria a porta da entrada do prédio aberta – “eu quero essa porta aberta, estou aqui sequestrado”.
78.
Por outro lado, resulta evidente a falta de credibilidade das testemunhas arroladas pela Ré. Veja-se a situação da testemunha PP que omitiu ao Tribunal que vivia em união de facto com a Ré DD, nos termos já expostos e melhor densificados no corpo das alegações.
79.
O mesmo em relação ao depoimento da Dra. NN, advogada da Ré que, num discurso muito comprometido, simplesmente, alegou que se não estivesse em condições que não o teria assessorado para a prática deste ato.
80.
O facto de várias testemunhas da Ré, como YY ou ZZ, terem negado a existência de qualquer patologia do foro mental em relação a II tais depoimentos jamais poderão ser sobreponíveis aos registos clínicos e hospitalares de II e apenas confirmam a falta de credibilidade dos depoimentos prestados quando ponderados de uma forma conjugada entre si e/ou com os demais elementos probatórios produzidos no processo.
81.
Nenhuma relevância merece, ainda, a testemunha JJ (notário que interveio no Testamento), já que, conforme decorre do seu depoimento, o mesmo, como, aliás, é compreensível, não se recordando, em concreto, do ato notarial aqui posto em causa, limitou-se a explicitar, em geral, os procedimentos gerais e habituais que usualmente efetua quando tem de formalizar um testamento como aquele que aqui se mostra questionado.
82.
Não se lembrando minimamente da pessoa que esteve à sua frente, disse que “todos os outorgantes têm de estar num estado mental que permitia fazer um testamento, seja ele, seja quem for. Terei lido, terei verificado, a assinatura é equilibrada e vê-se que o outorgante estava perfeitamente orientado; se não tiver em condições não faço, seja quem for”.
83.
Referiu, de uma forma muito vaga, que antes de realizar o ato notarial, estabelece conversação com o testador, tendo em vista apurar das suas faculdades mentais e da autenticidade da vontade manifestada, mais acrescentado que dispensa sempre os peritos médicos para abonarem da sanidade mental do mesmo.
84.
Para esta testemunha, é irrelevante a presença dos médicos porque “o que conta é a minha convicção porque eu sei perfeitamente se uma pessoa tem ou não condições de praticar um ato notarial”. Não foi, portanto, uma testemunha credível, desde logo sendo contrariado pelos elementos clínicos.
85.
Devem, por outro lado, ser valoradas as declarações de parte das Autoras BB e CC que, de forma isenta e entre si concordante, descreveram, circunstanciadamente, o modo como as capacidades intelectuais, de entendimento, discernimento e juízo crítico de II foram definhando, nos termos melhor densificados no corpo das alegações.
86.
Daí que, face a este acervo probatório demostraram-se, desde logo, inverosímeis os depoimentos das testemunhas da Ré, na parte em que afirmaram, em absoluto, a existência de qualquer doença neurológica de II, quando, na realidade, tudo isto foi amplamente contrariado pelos citados depoimentos, inclusivamente, os de natureza eminentemente técnica.
87.
Não se ignora, por outro lado, que a circunstância do testamento ter sido exarado perante um notário, aliada à intervenção obrigatória de duas testemunhas que devem presenciar o ato [no caso, a advogada da Ré DD e a funcionária do seu escritório] e à imperatividade do ato notarial ter de ser lido e explicado ao testador, pode constituir uma presunção de que o testador se encontra intelectualmente capaz de querer e entender aquilo que declarou.
88.
A circunstância do notário alegadamente não ter tido quaisquer razões para suspeitar da ausência da capacidade volitiva do testador, por si só, não faz prova plena da ausência da qualquer perturbação volitiva.
89.
É, pois, precisamente neste ponto que entronca o depoimento da testemunha Dr. LL, médico psiquiatra e diretor de psiquiatria forense do Hospital 1..., que, fazendo apelo ao conhecimento circunstanciado que detinha do quadro mental/intelectual do testador e, bem assim, dando predomínio aos conhecimentos técnicos especializados que detém, concluiu, de forma absolutamente categórica, que, à data da elaboração do testamento, o falecido não detinha capacidades cognitivas e volitivas para efetuar um testamento, perceber e entender o alcance do ato em questão, uma vez que o estado da doença do testador já havia comprometido os centros de perceção, intelecção e compreensão necessários à emissão de uma vontade consciente e esclarecida.
90.
Portanto, ainda que o falecido pudesse emitir declarações verbais e mesmo assinar o testamento perante um notário, a verdade é que, a montante dessas declarações, as condições de perceção, compreensão e raciocínio estão comprometidas e obstam à formação e consequente formulação de uma vontade consciente e lúcida.
91.
Razão pela qual, no dia 25 de março de 2021, foi proferida sentença nos autos de acompanhamento de maior que decidiu aplicar ao beneficiário II as medidas de acompanhamento de representação geral e de administração total dos seus bens.
92.
Em suma, atendendo, como já referido, ao conhecimento circunstanciado que os médicos ouvidos detêm do estado da doença do testador e à qualificação técnica que evolou destes depoimentos, terá forçosamente de concluir-se por um quadro de incapacidade de II, no momento da outorga do testamento.
93.
Conforme resulta do relatório pericial junto, o quadro clínico demencial de II terá sido notado progressivamente desde 2015, inicialmente como défice cognitivo ligeiro, tendo a incapacidade definitiva surgido em novembro de 2019,
94.
Precisamente na altura em que o falecido foi conduzido ao Notário JJ para outorga de testamento para instituir a Ré como única e universal herdeira de todos os seus bens.
95.
Ora, está plenamente demonstrado o quadro clínico demencial do falecido II progressivamente agravado desde 2015, não só por ser esse o curso normal da doença como, ademais, pela circunstância de tal patologia ser agravada por um fator exógeno prejudicial que era o consumo de álcool, com incapacidade definitiva em novembro de 2019, que culminou com o seu internamento em dezembro de 2019.
96.
Acresce que a Ré, com a argumentação que apresentou, e com os meios de prova produzidos, não conseguiu pôr em causa esta conclusão, já que não logrou, de uma forma convincente e corroborada, demonstrar que o testador, apesar da doença que inequivocamente padecia, quando outorgou o testamento, “atravessou” um momento de lucidez que lhe permitia compreender e entender o ato que praticou.
97.
A única prova que atesta a “capacidade” de II foi o facto de ter renovado a carta de condução, o que não constitui meio idóneo para comprometer a abundância da prova junta aos autos. Assim, tais factos deveriam ter sido dados como não provados, com base nos concretos meios probatórios aqui elencados.
98.
A sentença recorrida deu como provado o ponto 91.º dos factos provados, quando, na verdade, tal facto deveria ter sido dado como não provado. Os concretos meios probatórios que impõem diversa decisão da recorrida são os seguintes: depoimento da testemunha QQ (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 15h00 e fim às 15h22, com duração de 00:22:35). A concreta passagem é a seguinte: 00:01:06 a 00:01:55 e 00:07:47 a 00:09:51; o depoimento da testemunha RR (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 15:32 e fim às 15:40, com duração de 00:07:48). A concreta passagem é a seguinte: 00:00:38 a 00:02:12; o depoimento da testemunha SS (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 14:38 e fim às 14:59, com duração de 00:20:56), explicou que tinha contacto regular com II (00:01:13 a 00:01:46), sendo a concreta passagem é de 00:05:22 a 00:08:21. Na verdade, a Ré DD tomava conta de uma tia, DD, esta sim das relações de amizade de II. Basta atentar no teor do auto policial do Comando Metropolitano do Porto, de 30 de novembro de 2022 (NPP ...), que atesta que, em 14 maio de 2019 (uns meses antes da outorga deste testamento), a Ré DD comunicou à PSP que residia com uma idosa, acamada e com vários problemas de demência, pelo que também este auto policial configura um meio probatório que impunha decisão diversa. Esta informação foi confirmada pelo depoimento da testemunha PP, unido de facto da Ré, que confirmou que a Ré era cuidadora de TT até à sua morte (depoimento prestado no dia 22 de janeiro de 2024, início a 10:28 e fim a 10:49, com duração de 00:20:40). A concreta passagem é de 07min08 seg a 11min00 seg). A informação social junta como documento n.º 10 com a petição inicial, elaborada pela assistente social do Hospital ..., Dra. UU, refere expressamente que a falecida Ré DD dizia ser “afilhada”, mas que “está em Portugal apenas há cerca de 6 anos”. Também a sentença proferida no processo de maior acompanhado, junta como documento n.º 16 com a petição inicial, após diligências instrutórias direcionadas à concretização do superior interesse do beneficiário II, concluiu que os Autores AA, BB e CC constituem efetivamente a sua rede de suporte. As declarações da Autora BB (declarações de parte prestadas no dia 22 de janeiro de 2024, com início às 12:11 e fim às 12:49, com duração de 00:38:10min) são esclarecedoras quanto a esta conclusão, sendo a concreta passagem é de 08min24seg a 10min a 20seg. O assento de nascimento da Ré DD, junto aos autos com a petição inicial de acompanhamento de maior como documento n.º 8 da petição inicial, atesta que em 16 de novembro de 2012 a Ré casou em Moçambique, pelo que nem vivia em Portugal. Tal facto deve, pois, ser dado como não provado, com base nestes concretos meios probatórios que se identificam.
99.
A sentença recorrida deu como provados os pontos 92.º e 96.º dos factos provados, quando, na verdade, tais factos deveriam ter sido dado como não provados. Desde logo, os factos 27. e 28. dos factos provados são contraditórios com os pontos 92.º e 96.º em análise, porquanto, se o Tribunal dá como provado que, aquando da outorga da procuração, já após o internamento ocorrido em 26/12/2019, o falecido já não se encontrava no gozo das suas faculdades mentais, estando totalmente dependente de auxílio de terceiros, facto que era conhecido da Ré e de todas as pessoas que contactavam com II (cfr. factos provados 27 e 28), não pode considerar que a venda do veículo Volkswagen de matrícula ..-..-IR, que a Ré vendeu com o suposto intuito de pagar a dívida do time-sharing e que motivou a sua ida ao Algarve em janeiro de 2020, foi concretizada com conhecimento e autorização de II.
100.
Assim, dá-se por integralmente reproduzido o alegado em 55 a 61 das presentes conclusões quanto aos concretos meios probatórios que impunham a conclusão de não ser possível que II autorizasse os atos praticados pela Ré, dada a conexão evidente que existe entre tais factos que impunham que estes factos fossem dados como não provados.
101.
A sentença recorrida deu como provado o ponto 104.º dos factos provados, quando, na verdade, tal facto deveria ter sido dado como não provado. Desde logo, mostra-se contrariado por diversos elementos probatórios (concretamente, prova documental e prova testemunhal produzida). Os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa são os seguintes: exame pericial ao falecido elaborado no âmbito do processo de maior acompanhado, pelo Perito Dr. LL, que dá nota do quadro demencial do mesmo – cfr. relatório junto com a petição inicial como documento n.º 13 e integralmente confirmado pela testemunha, Dr. LL (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 15:41 e fim às 15:49, com duração de 00:08:03). Registos de neurologia existentes no Centro Hospitalar ... desde, pelo menos, 2017, integrantes do relatório pericial também mereciam valoração diferente da efetuada pelo tribunal recorrido; assim como a declaração médica subscrita pela médica especialista em medicina interna, Dra. MM, integralmente confirmado pelo seu depoimento (depoimento prestado no dia 22 de janeiro de 2024; início à 10:50 e fim às 11:09, com duração de 00:19:05) junta como documento n.º 9 com a petição inicial que atesta que o doente II já vinha sendo seguido em neurologia por síndrome demencial de predomínio mnésico antes do internamento; os elementos clínicos juntos como documento n.º 14 com a petição inicial referente aos episódios de urgência durante o internamento hospitalar de II também constituem um elemento probatório relevante que impunha decisão diversa. Quanto à prova testemunhal: o depoimento da referida médica especialista em medicina interna, Dra. MM (depoimento prestado no dia 22 de janeiro de 2024; início à 10:50 e fim às 11:09, com duração de 00:19:05), sendo as concretas passagens são as seguintes: 00:06:05 a 00:10:29; 00:12:20 a 00:18:10; o depoimento do médico psiquiatra e diretor de psiquiatria forense do Hospital 1..., Dr. LL (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 15:41 e fim às 15:49, com duração de 00:08:03). A concreta passagem é a seguinte: 00:01:23 a 00:08:03; o depoimento da testemunha QQ (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 15h00 e fim às 15h22, com duração de 00:22:35), sendo as concretas passagens as seguintes: 00:04:16 a 00:07:47; 00:16:32 a 00:17:46 e 00:18:47 a 00:21:02; o depoimento da testemunha SS (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 14:38 e fim às 14:59, com duração de 00:20:56) que explicou que tinha contacto regular com II (00:01:13 a 00:01:46), sendo as concretas passagens as seguintes: 00:03:03 a 00:05:22; 00:09:49 a 00:13:50; o depoimento da testemunha UU, assistente social no Centro Hospitalar ... (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 14:20 e fim às 14:37, com duração de 00:16:39). As concretas passagens são as seguintes: 00:02:55 a 00:04:31; 00:05:07 a 00:12:24; depoimento da testemunha Dr. JJ, Notário (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 15:53 e fim às 16:00, com duração de 00:07:51). As concretas passagens são as seguintes: 00:00:37 a 00:04:03 e 00:05:05 a 00:07:32; o depoimento da testemunha Dr.ª NN, advogada (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 16:01 e fim às 16:12, com duração de 00:11:08). As concretas passagens são as seguintes: 00:00:38 a 00:05:16, 00:05:43 a 00:09:21 e 00:10:18 a 00:11. E, ainda, a sentença proferida no âmbito do processo de maior acompanhado, junta como documento n.º 16 com a petição inicial que aplica a II as medidas de acompanhamento de representação geral e administração total dos seus bens, dando como provado que o beneficiário padece de uma perturbação neurocognitiva major, de evolução insidiosa e progressiva, em estado severo e irreversível, que limita o seu desempenho volitivo; bem como o documento n.º 11 junto com a petição inicial, referente a um requerimento subscrito pela sua advogada, Dra. NN, que interveio no testamento na qualidade de testemunha.
102.
Uma vez mais, como aliás dita as regras da experiência comum neste tipo de doença, este quadro de patologia demencial, diagnosticado em 2015, foi-se agravando com o passar dos anos, na medida em que tais comportamentos passaram a ser de verificação reiterada, razão pela qual II passou a ser seguido em consultas de neurologia (pelo menos a partir de 2017).
103
. Com efeito, conforme decorre da análise conjugada dos concretos meios probatórios identificados supra, fica claro que II padecia de doença suscetível de afetação das faculdades mentais (demência) que no plano clínico, é comprovada e cientificamente suscetível de afetar a sua capacidade de perceção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer ato de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente..
104.
Em sede de audiência de julgamento procedeu-se à audição do médico psiquiatra no Hospital 1... e diretor de psiquiatria forense desse mesmo hospital, Dr. LL (passagem já identificada) que conclui, sem qualquer reserva, que, «no ano 2019 é difícil admitir que este homem esteja capaz de fazer qualquer a testamento ou passar procuração. No ano de 2019, eu como perito ponho as mãos no fogo, para trás não sei».
105.
A médica Dra. MM igualmente atestou o quadro neuro-degenerativo do paciente, confirmando que a sua impressão clínica foi clara no sentido de II não se encontrar capaz nem conservar o juízo crítico – isto em função das consultas pessoais que realizou, mas também com auxílio de uma avaliação neuropsicológica, realizada em contexto de estabilidade clínica, que viria confirmar que o doente não tinha capacidade cognitiva.
106.
Portanto, neste ponto, não se pode deixar de salientar a importância do depoimento prestado pelo médico psiquiatra e pela médica MM e dos documentos, por estes, emitidos (relatório pericial e declarações médicas juntas aos autos) que impunham que tal facto fosse dado como não provado, com base nos concretos meios probatórios identificados, cuja análise crítica se procede com maior detalhe no corpo das alegações.
107.
A sentença recorrida deu como provado o ponto 105.º dos factos provados, quando, na verdade, tal facto deveria ter sido dado como não provado. Com efeito, não corresponde à verdade que II, no hospital, sempre tenha reconhecido DD como sua afilhada, conforme já alegado quanto ao ponto 82.º dos factos provados, ponto para o qual se remete, dando-se por integralmente reproduzido o artigo 62.º das conclusões no que respeita aos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa.
108.
Ainda, com relevância, importa atentar na prova testemunhal produzida que também constitui elemento probatório que impunha decisão diversa, concretamente o depoimento da testemunha UU (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 14:20 e fim às 14:37, com duração de 00:16:39). A concreta passagem é a seguinte: 00:05:07 a 00:10:34. Portanto, tal facto deveria ter sido dado como não provado, com base nos concretos meios probatórios aqui identificados.
109.
A sentença recorrida deu como provado o ponto 106.º dos factos provados, quando, na verdade, tal facto deveria ter sido dado como não provado. Uma vez mais, importa referir que este facto foi confirmado pelo depoimento da testemunha PP (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, início a 16:36 e fim a 17:03, com duração de 00:26:48 e no dia 22 de janeiro de 2024, início a 10:28 e fim a 10:49, com duração de 00:20:40). No entanto, o depoimento de PP não se revelou minimamente credível, pelas razões já expostas. A concreta passagem é a seguinte: 01 min 39 seg a 5 min 10 seg.
110.
A testemunha, que omitiu que com a Ré residia em condições análogas às dos cônjuges, confirmou expressamente que apenas esteve com II duas ou três vezes e situou este acontecimento em 2017/2018 (portanto, já depois do diagnóstico de demência de II).
111.
As declarações da Autora BB (declarações de parte prestadas no dia 22 de janeiro de 2024, com início às 12:11 e fim às 12:49, com duração de 00:38:10min) também impunham conclusão diversa, sendo a concreta passagem a de 10min27seg a 12min a 10seg, Idêntica informação foi transmitida pela Autora CC (declarações de parte prestadas no dia 22 de janeiro de 2024, com início às 12:11 e fim às 12:49, com duração de 00:38:10min), explicando que passavam as férias sempre juntos, iam à praia, passavam o Natal juntos (a concreta passagem é de 25min30 a 26min45seg). Explicou, ainda, que não existiu qualquer “desavença familiar” (a concreta passagem é de 33min24 a 33min57seg). Existia, efetivamente, uma relação de afeto e proximidade que justificou, no âmbito de uma ação de maior acompanhado, e após a realização de diversas diligências instrutórias pela Segurança Social, que os Autores fossem considerados a rede familiar de suporte e o Autor AA nomeado seu acompanhante e as Autoras BB e CC vogais do Conselho de Família. Assim, também o documento n.º 10 junto com a petição inicial constitui um elemento probatório que impunha decisão diversa.
112.
Caso tivesse existido efetivamente alguma “desavença familiar”, certamente que os Autores não teriam sido nomeados como foram, pelo Tribunal (Juízo Local Cível do Porto), como acompanhante e membros do Conselho de Família, sob proposta da Segurança Social e do Ministério Público, validada pela Mma. Juiz titular do processo de maior acompanhado, em que foram tomadas todas as diligências no sentido de proteger o Beneficiário II, inclusive através da promoção de um inquérito de natureza criminal para averiguação da prática de vários ilícitos criminais perpetrados pela Ré. Assim, também a sentença proferida no processo de maior acompanhado, junta como documento n.º 16 com a petição inicial, também constitui um relevante meio probatório.
113.
Note-se que o cargo de acompanhamento e de membros do Conselho de Família devem ser deferidos às pessoas cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário. No caso, o Tribunal não teve dúvidas em atribuir tal tarefa aos Autores e excluir expressamente a Ré DD.
114.
Ainda que a escolha recaia sobre alguém do círculo familiar do acompanhado, a nomeação do acompanhante deverá ser sempre precedida da realização de diligências que permitam perceber se os mesmos reúnem condições para exercerem o cargo de acompanhante e qual reúne as melhores condições, considerando que no exercício da sua função (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 12-11-2020, no processo 58/19.9T8VPA-A.G1).
115.
A sentença recorrida deu como não provado o ponto a) dos factos não provados, quando, na verdade, tal facto deveria ter sido dado como provado. Os pontos 13.º, 14.º, 15.º, 16.º e 31.º dos factos provados reforçam o entendimento de que tal facto deveria ter sido dado como provado.
116.
Dúvidas inexistem de que o Tribunal a quo deu como provado que II padecia de PERTURBAÇÃO NEUROCOGNITIVA-MAJOR (DEMÊNCIA INESPECÍFICA) que surgiu nos últimos anos de vida do doente, desde 2015, tendo uma evolução insidiosa, progressiva e com agravamento em 2019, sendo à luz do conhecimento médico, irreversível, limitando significativamente o seu desempenho em termos volitivos e cognitivos e resulta num prejuízo relevante do seu funcionamento adaptativo, de forma que este não conseguia atingir padrões de independência pessoal e responsabilidade social em vários aspetos da sua vida diária, ao ponto de II não ter capacidade para sequer escolher o seu acompanhante. Em novembro de 2019 (mês em que foi outorgado o testamento), foi registado síndrome demencial de predomínio mnésico com impacto funcional e com alterações de comportamento.
117.
Os presentes autos encontram-se instruídos com abundantes elementos clínicos que constituem meios probatórios que impunham que este facto fosse dado como provado. De igual modo, a prova testemunhal produzida foi inequívoca no sentido da existência de um quadro demencial que no plano clínico, é comprovada e cientificamente suscetível de comprometer qualquer ato de vontade que pretenda levar a cabo.
118.
Os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa são os seguintes: exame pericial ao falecido elaborado no âmbito do processo de maior acompanhado, pelo Perito Dr. LL, que dá nota do quadro demencial do mesmo – cfr. relatório junto a estes autos com a petição inicial como documento n.º 13 e integralmente confirmado pela testemunha, Dr. LL (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 15:41 e fim às 15:49, com duração de 00:08:03); os registos de neurologia existentes no Centro Hospitalar ... desde, pelo menos, 2017 que integram o relatório pericial. Também a declaração médica subscrita pela médica especialista em medicina interna, Dra. MM, integralmente confirmado pelo seu depoimento (depoimento prestado no dia 22 de janeiro de 2024; início à 10:50 e fim às 11:09, com duração de 00:19:05) – junta como documento n.º 9 com a petição inicial. Os elementos clínicos juntos como documento n.º 14 com a petição inicial referentes aos episódios de urgência durante o internamento hospitalar de II também deveriam ter sido valorados, bem como o auto policial remetido a estes autos pelo Comando Metropolitano do Porto que confirma que, em 10 de dezembro ano de 2009, a polícia já tinha sido chamada a casa de II por vizinhos pelo facto de II manifestar comportamentos estranhos sugestivos de problemas do foro mental.
119.
Ainda, com relevância, importa atentar na prova testemunhal produzida que também constitui elemento probatório que impunha decisão diversa: o depoimento da médica especialista em medicina interna, Dra. MM (depoimento prestado no dia 22 de janeiro de 2024; início à 10:50 e fim às 11:09, com duração de 00:19:05), sendo as concretas passagens as seguintes: 00:06:05 a 00:10:29; 00:12:20 a 00:18:10; o depoimento do médico psiquiatra e diretor de psiquiatria forense do Hospital 1..., Dr. LL (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 15:41 e fim às 15:49, com duração de 00:08:03), sendo a concreta passagem a seguinte: 00:01:23 a 00:08:03. O depoimento da testemunha, QQ (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 15h00 e fim às 15h22, com duração de 00:22:35), sendo as concretas passagens as seguintes: 00:04:16 a 00:07:47; 00:16:32 a 00:17:46 e 00:18:47 a 00:21:02; o depoimento da testemunha SS (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 14:38 e fim às 14:59, com duração de 00:20:56), sendo as concretas passagens as seguintes: 00:03:03 a 00:05:22; 00:09:49 a 00:13:50; o depoimento da testemunha UU (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 14:20 e fim às 14:37, com duração de 00:16:39), sendo as concretas passagens as seguintes: 00:02:55 a 00:04:31 e 00:05:07 a 00:12:24. O depoimento da testemunha e notário Dr. JJ (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 15:53 e fim às 16:00, com duração de 00:07:51), sendo as concretas passagens as seguintes: 00:00:37 a 00:04:03 e 00:05:05 a 00:07:32. O depoimento da testemunha e advogada Dr.ª NN (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023; início às 16:01 e fim às 16:12, com duração de 00:11:08), sendo as concretas passagens são as seguintes: 00:00:38 a 00:05:16; 00:05:43 a 00:09:21 e 00:10:18 a 00:11.
120.
Também a sentença proferida no âmbito do processo de maior acompanhado, junta como documento n.º 16 com a petição inicial prova que II padecia de uma perturbação neurocognitiva major, de evolução insidiosa e progressiva, em estado severo e irreversível, que limita o seu desempenho volitivo, bem como documento n.º 11 junto com a petição inicial, referente a um requerimento, apresentado pela Ré DD e subscrito pela sua advogada, Dra. NN, que interveio no testamento na qualidade de testemunha constituem meios probatórios relevantes.
121.
Com efeito, conforme decorre da análise conjugada dos concretos meios probatórios identificados supra, fica claro que II padecia de demência que, no plano clínico, é comprovada e cientificamente suscetível de afetar a sua capacidade de perceção, compreensão, discernimento e entendimento.
122
. Isso mesmo registou o perito forense no relatório pericial realizado no âmbito do processo de maior acompanhado, registando o perito responsável pela elaboração do relatório pericial que o examinado é incapaz, pelos seus défices cognitivos, de conhecer o valor dos produtos a adquirir ou do dinheiro; não sabe informar sobre o montante da sua reforma (pensão de velhice) ou a extensão do seu património e o seu valor relativo (pág. 6 do relatório pericial),
123.
Concluindo, assim, pela verificação de um quadro clínico de perturbação neurocognitiva-major, encontrando-se totalmente dependente de terceiros para as atividades instrumentais da vida diária.
124.
Em sede de audiência de julgamento procedeu-se à audição do médico psiquiatra no Hospital 1... e diretor de psiquiatria forense desse mesmo hospital, Dr. LL (passagem já identificada) que, para além de confirmar o teor do relatório elaborado, foi perentório em concluir, sem qualquer reserva, que, «no ano 2019 é difícil admitir que este homem esteja capaz de fazer qualquer a testamento ou passar procuração. No ano de 2019, eu como perito ponho as mãos no fogo, para trás não sei».
125.
A médica Dra. MM prestou igualmente um depoimento credível e, circunstanciando o diagnóstico que exarou na declaração médica, confirmou que II não se encontrava capaz nem conservava o juízo crítico, aludindo à confirmação que adveio da avaliação neuropsicológica, realizada em contexto de estabilidade clínica.
126.
Portanto, uma vez mais, não se pode deixar de salientar a importância do depoimento prestado pelo médico psiquiatra e pela médica Dra. MM e dos documentos, por estes, emitidos (relatório pericial e declarações médicas juntas aos autos).
127.
A testemunha UU, assistente no Hospital, confirmou que contactou diretamente com o corpo clínico que seguiu o doente e que aquele entendia que II não tinha capacidade; aliás, explicou que, se não fosse assim, não teria desencadeado um processo de maior acompanhado – procedimento que a testemunha confirmou que era excecional.
128.
Todas estas testemunhas deveriam ter sido dignas de crédito do tribunal, sendo certo que estes depoimentos encontram respaldo nos restantes elementos probatórios junto aos autos (designadamente os elementos clínicos).
129.
E tudo isto, apesar de, pelo menos desde 2009, o falecido II evidenciar problemas neurocognitivos. Isso mesmo viria a confirmar o auto policial remetido a estes autos pelo Comando Metropolitano do Porto já identificado que também constitui um elemento probatório que deveria ter sido valorado.
130.
As testemunhas da Ré, como YY ou ZZ, que negaram a existência de qualquer patologia do foro mental de II, jamais poderão ser sobreponíveis aos registos clínicos e hospitalares de II e apenas confirmam a falta de credibilidade dos depoimentos prestados quando ponderados de uma forma conjugada entre si e/ou com os demais elementos probatórios produzidos no processo.
131.
Não pode ser atribuída relevância probatória à testemunha JJ (notário que interveio no testamento), já que, conforme decorre do seu depoimento, o mesmo, como, aliás, é compreensível, não se recordando, em concreto, do ato notarial aqui posto em causa, limitou-se a explicitar, em geral, os procedimentos gerais e habituais que usualmente efetua quando tem de formalizar um testamento como aquele que aqui se mostra questionado.
132.
É, pois, precisamente neste ponto que entronca o depoimento da testemunha Dr. LL que, fazendo apelo ao conhecimento circunstanciado que detinha do quadro mental/intelectual do testador e, bem assim, dando predomínio aos conhecimentos técnicos especializados que detém, concluiu, de forma absolutamente categórica, que, à data da elaboração do testamento, o falecido não detinha capacidades cognitivas e volitivas para efetuar um testamento.
133.
Razão pela qual, no dia 25 de março de 2021, foi proferida sentença nos autos de acompanhamento de maior que decidiu aplicar ao beneficiário II as medidas de acompanhamento de representação geral e de administração total dos seus bens.
134.
Assim, nesse contexto afigura-se-nos seguro concluir que o testador se encontrava já num estado de saúde mental em que o impedia de compreender o sentido das suas declarações e de as querer efetivamente em resultado de uma vontade forma de modo livre e são.
135.
Acresce que não podemos desvalorizar que o relatório pericial é de uma data próxima à da celebração do testamento e que o início da doença é fixado em 2015, o que impõe a conclusão de o estado mais severo da doença, de caráter, progressivo e irreversível, é de grande proximidade ao do testamento – outorgado precisamente no mês em que foi fixada a incapacidade DEFINITIVA.
136.
Na nossa leitura, estes documentos médicos são suficientes para o tribunal poder julgar provado que, no momento em que celebrou o testamento, o testador não estava na posse das capacidades mentais necessárias e suficientes para reger a sua vida ou celebrar a disposição de última vontade.
137.
Acresce que a Ré, com a argumentação que apresentou, e com os meios de prova produzidos, não
conseguiu pôr em causa esta conclusão, já que não logrou, de uma forma convincente e corroborada, demonstrar que o testador, apesar da doença que inequivocamente padecia, quando outorgou o testamento “atravessou” um momento de lucidez que lhe permitia compreender e entender o ato que praticou. Assim, tal facto deveria ter sido dado como provado, o que levaria à procedência total da presente ação.
138.
A sentença recorrida deu como não provado o ponto b) dos factos não provados, quando, na verdade, tal facto deveria ter sido dado como provado. Vários são os elementos probatórios que impunham decisão diversa: as declarações da Autora BB (declarações de parte prestadas no dia 22 de janeiro de 2024, com início às 12:11 e fim às 12:49, com duração de 00:38:10min), sendo a concreta passagem a de 10min27seg a 12min a 10seg; as declarações de parte da Autora CC (declarações de parte prestadas no dia 22 de janeiro de 2024, com início às 12:11 e fim às 12:49, com duração de 00:38:10min), sendo a concreta passagem a de 25min30 a 26min45seg.
139.
Assim, as Autoras confirmaram que mantinham uma relação de proximidade com o falecido II que justificou, no âmbito de uma ação de maior acompanhado, e após a realização de diversas diligências instrutórias pela Segurança Social, que os Autores fossem considerados a rede familiar de suporte. Assim, também o documento n.º 10 junto com a petição inicial constitui um elemento probatório que impunha decisão diversa.
140.
Caso tivesse existido efetivamente alguma “desavença familiar”, certamente que os Autores não teriam sido nomeados acompanhante e membros do Conselho de Família, sob proposta da Segurança Social e do Ministério Público, validada pela Mma. Juiz titular do processo de maior acompanhado, em que foram tomadas todas as diligências no sentido de proteger o Beneficiário II. Assim, também a sentença proferida no processo de maior acompanhado, junta como documento n.º 16 com a petição inicial, constitui um relevante meio probatório. Assim, tal facto deveria ter sido dado como provado.
141.
A sentença recorrida deu como não provado o ponto c) dos factos não provados, quando, na verdade, tal facto deveria ter sido dado como provado. Vários são os elementos probatórios que impunham decisão diversa: as declarações da Autora BB (declarações de parte prestadas no dia 22 de janeiro de 2024, com início às 12:11 e fim às 12:49, com duração de 00:38:10min), sendo a concreta passagem é de 10min27seg a 12min a 10seg, em que a Autora explicou que a partir de 2019 passaram a ter limitações no contacto, altura em que a Ré DD se tornou presença mais assídua na vida de II.
A testemunha QQ (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 15h00 e fim às 15h22, com duração de 00:22:35), explicou que, a dada altura, começou a ter mais dificuldades em contactar II. As concretas passagens são as seguintes: 00:02:39 a 00:04:07 e 00:11:22 a 00:12:21. A testemunha RR (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 15:32 e fim às 15:40, com duração de 00:07:48) confirmou também este facto, sendo a concreta passagem a de 00:01:07 a 00:02:12; o depoimento da testemunha SS (depoimento prestado no dia 10 de maio de 2023, com início às 14:38 e fim às 14:59, com duração de 00:20:56) vai no mesmo sentido, sendo as concretas passagens as seguintes: 00:09:07 a 00:09:49. Assim, tal facto deveria ter sido dado como provado.
142.
A sentença recorrida deu como não provado o ponto h) dos factos não provados, quando, na verdade, tal facto deveria ter sido dado como provado. Com efeito, na sequência do pedido de ofício junto do Comando Metropolitano do Porto, tal informação veio a ser carreada para os autos, sendo este auto policial o concreto meio probatório em que se alicerça a convicção dos Recorrentes, o qual parece ter sido ignorado pelo Tribunal a quo – cfr. NPP ... junto aos autos.
143.
A sentença recorrida deu como não provado o ponto p), q), r), s), t) e u) dos factos não provados, quando, na verdade, tal facto deveria ter sido dado como provado. Na sequência do pedido de ofício junto do Comando Metropolitano do Porto, tal informação veio a ser carreada para os autos, sendo este auto policial o concreto meio probatório em que se alicerça a convicção dos Recorrentes, o qual parece ter sido também ignorado pelo Tribunal a quo – cfr. auto policial do Comando Metropolitano do Porto, de 30 de novembro de 2022 (NPP ...) Assim, tais factos deveriam ter sido dados como provados, com base nos concretos meios probatórios identificados.
Da matéria de direito.
A incapacidade acidental de II. Capacidade testamentária.
144.
Está em causa a outorga de um testamento outorgado no Cartório Notarial do Dr. JJ, no dia 12 de novembro de 2019, por II que, como resulta evidente dos autos, não dispunha de capacidade para a prática de tal ato, atento o seu quadro clínico de PERTURBAÇÃO NEUROCOGNITIVA-MAJOR, ou, na terminologia da Classificação Internacional de Doenças-10, DEMÊNCIA INESPECÍFICA, correspondendo a uma perturbação de etiologia complexa e multifactorial, que foi diagnosticada nos últimos anos de vida do doente, desde 2015, com uma evolução insidiosa, progressiva e com agravamento em 2019 (cfr. relatório pericial junto aos autos).
145.
Lê-se no aludido relatório pericial que, no Centro Hospitalar ..., existem registos de consultas de neurologia do falecido, desde, pelo menos, 2017, encontrando-se transcritas nesse relatório várias informações clínicas referentes às consultas de neurologia.
146.
Assim, em face dos elementos carreados para os autos e da prova produzida já criticamente analisada, mostra-se evidente que II se encontrava-se incapacitado de entender o sentido da sua declaração e não tinha o livre exercício da sua vontade, por força da doença de que padecia.
147.
Ora, estando plenamente demonstrado o quadro clínico demencial do falecido II progressivamente agravado desde 2015, não só por ser esse o curso normal da doença como, ademais, pela circunstância de tal patologia ser agravada por um fator exógeno prejudicial que era o consumo de álcool, com incapacidade definitiva em novembro de 2019, que culminou com o seu internamento em dezembro de 2019,
148.
É forçoso concluir, sem necessidade de mais, que na data da outorga do testamento aquele estado se mantinha sem interrupção, o que determina a anulação deste ato de disposição nos termos do artigo 2199.º do Código Civil.
149.
Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 362.º, 363.º, n.º 2, 369.º e 371.º, n.º 1 e artigo 2199.º do Código Civil.
O ónus da prova da incapacidade acidental.
150.
Determina o artigo 2199.º do Código Civil que «[é] anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória» (realce nosso).
151.
No caso, os ora Recorrentes lograram, efetivamente, demonstrar o estado demencial grave do falecido II e, por conseguinte, o estado de incapacidade incidental em que se encontrava o de cujus, à data da outorga da outorga do testamento,
152.
Observando, assim, na íntegra o ónus da prova que sobre si impendia nos termos do n.º 1 do
artigo 342.º do Código Civil.
153.
Impendia sobre a contraparte, ou seja, sobre a Ré, instituída única e universal herdeira testamentária do testador, fazer prova de que, no momento da feitura do mesmo, apesar da referida doença de que sofria, o testador não foi influenciado pelo concreto estado demencial em que se encontrava, o que não foi cumprido.
154.
No mesmo sentido, decidiu, também, o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão datado de 24 de maio de 2011, proferido no âmbito do processo n.º 4936/04.1TCLRS.L1.S1, o qual entendeu que «(…) provado o estado demência em período que abrange o ato anulando, é de presumir, sem necessidade de mais, que na data do mesmo ato aquele estado se mantinha sem interrupção. Corresponde ao id quod plerum accidit; está em conformidade com as regras da experiência. À outra parte caberá ilidir a presunção demonstrando (se puder fazê-lo) que o ato recaiu num momento excecional e intermitente de lucidez» (realce nosso).
155.
O que, no caso concreto, passaria esta lograr demonstrar que testamento foi outorgado em seu benefício num intervalo de lucidez do falecido II, o que não sucedeu, sendo que a prova da renovação da carta de condução não é elemento relevante para efeitos de cumprimento do ónus da prova.
156.
Pela pertinência e similitude com o caso em análise, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-06-2023, no processo n.º 5142/21.6T8CBR.C1.S1.
157.
Acresce, ainda, a propósito dos elementos de prova documental já junta aos autos, a eventual referência à força probatória do próprio testamento como documento autêntico, lavrado na presença de notário, não poderá, nunca, relevar para efeitos da prova da própria incapacidade acidental em que se encontrava o testador,
158.
Dado que a força probatória deste documento autêntico exarado, com as devidas formalidades legais nos termos do n.º 1 do artigo 371.º do Código Civil, não faz fé pública da vontade real do testador subjacente às disposições testamentárias por si manifestadas e plasmadas no testamento cuja tutela é transversal a todo o ramo de direito sucessório.
159. Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 342.º e 2199 do CC.
NESTES TERMOS:
JULGANDO TOTALMENTE PROCEDENTE O PRESENTE RECURSO, NOS TERMOS DAS CONCLUSÕES APRESENTADAS, E REVOGANDO A DECISÃO RECORRIDA, SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE DETERMINE A ANULAÇÃO DO TESTAMENTO OUTORGADO POR II NO DIA NO DIA 12 DE NOVEMBRO DE 2019, NO CARTÓRIO NOTARIAL DO DR. JJ, E, EM CONSEQUÊNCIA, SEJAM OS HERDEIROS HABILITADOS DE DD CONDENADOS A RESTITUIR À HERANÇA TODOS OS BENS IMÓVEIS E TIME-SHARING, IDENTIFICADOS NOS ARTIGOS 112.º E 113.º DA P.I. DE PROPRIEDADE DO TESTADOR À DATA DE NOVEMBRO DE 2019, DATA EM QUE FOI FIXADA A INCAPACIDADE DEFINITIVA DE II, DECRETANDO-SE O CANCELAMENTO DE TODOS OS REGISTOS QUE TENHAM SIDO FEITOS EM MOMENTO POSTERIOR AO INTERNAMENTO, SERÁ FEITA
UMA VERDADEIRA E SÃ JUSTIÇA.
Contra-alegaram os RR., assim concluindo:
1-O presente recurso não pode proceder.
2- Os Apelantes recorrem da decisão da matéria de facto e de direito.
3- Para tal, transcrevem na íntegra o depoimento das testemunhas.
4- O registo da prova produzida em audiência de julgamento visa assegurar um “verdadeiro e efetivo 2º. grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto”.
5- Contudo essa garantia - “ nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a deteção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento (…), incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de alegar de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
6- A garantia do duplo grau de jurisdição, não pode subverter, o principio da livre apreciação das provas e não se pode perder de vista que na formação da convicção do julgador, concorrem necessariamente elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova.
7- Factores que, não são “racionalmente demonstráveis”, de tal modo que a função do Tribunal de recurso deverá circunscrever-se a “apurar da razoabilidade da convicção probatória do primeiro grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos.
8- O Tribunal de segunda instância não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “ a quo “ tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si,” – Acórdão nº 122/2002, de 15 de Março (processo n. 447/2001) do Tribunal Constitucional. 9-A Relação visa mais corrigir um julgamento errado do que proferir um novo julgamento sobre a matéria de facto controvertida e a ela cabe a última palavra não como Tribunal de segunda ou de nova primeira instância, mas como Tribunal corretor ou fiscalizador dos juízos proferidos pelo Tribunal recorrido, - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 2002, recurso de revista nº997/02.
10- A alteração da decisão sobre a matéria de facto deve ser restringida, aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados - Acórdão da Relação do Porto de 9 de Janeiro de 2003.
11- O Juiz de 1ª. Instância que julga de facto, goza de ampla liberdade de movimentos ao erigir os meios de que se serve na fixação dos factos provados, de harmonia com o “princípio da livre convicção e apreciação da prova”.
12- O Tribunal de recurso só em casos excepcionais de manifesto erro de apreciação da prova, poderá alterar o decidido em 1ª. Instância; será o caso de o depoimento de uma testemunha se credível, ter um sentido diametralmente oposto ao que foi considerado na sentença, omissão de apreciação de prova e pouco mais – Acórdão da Relação de Coimbra de 25 de Março de 2003.
13- Assim, em virtude dos princípios da imediação, da oralidade e da concentração consagrados no nosso ordenamento jurídico, em matéria de prova, a regra é a da inalterabilidade pela Relação, da decisão sobre a matéria de facto operada pelo Tribunal de 1ª instância.
14- Estabelece o nº. 5 do art. 607º do Código de Processo Civil que o juiz aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
15- De acordo com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo citado, a prova é apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a qualquer regra ou princípios pré-estabelecidos.
16- Com efeito, citando Lebre de Freitas – in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, pág.634, o princípio da Livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração (…): é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
17- Também Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, pág. 470, defende que a regra consagrada no direito processual vigente (…), relativamente à apreciação e graduação (do valor) dos diferentes meios de prova, é a da prova livre. As provas são apreciadas livremente, sem nenhuma escala de hierarquização, de acordo com a convicção que geram realmente no espírito do julgador acerca da existência do facto. (sublinhados nossos).
18- Assim, o julgador responde em conformidade com a convicção que tenha formado sobre cada facto quesitado, excepto se a lei exigir, para a respectiva prova, alguma formalidade especial.
19- É a jurisprudência uniforme no entendimento de que a utilização da gravação dos depoimentos em audiência de discussão e julgamento não modela de forma diversa o princípio da prova livre ínsito no direito adjectivo, nem dispensa as operações de caracter racional ou psicológico que gerem a convicção do julgador, nem subsituem esta convicção por uma fita gravada.
20- Só existindo um erro evidente na apreciação da matéria de facto é que devem ser modificadas as respostas dadas aos factos dados como provados.
21- Em virtude dos princípios supra citados da oralidade, imediação, concentração e livre apreciação das provas e orientando-se o julgamento humano por padrões de probalidade, o uso pelo Tribunal de 2ª. Instancia dos poderes de alterar a decisão do Tribunal recorrido sobre a matéria de facto é excepcional, devendo restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponível e aquela decisão.
22- O que não sucede no caso em apreço.
23- Não se verificam, os fundamentos para que seja alterada a decisão da matéria de facto e muito menos nos pontos e com os argumentos pretendidos pelos Recorrentes.
24- Bastará a leitura atenta da douta Sentença, na parte em que são explanados os fundamentos
elativos à decisão da matéria de facto, para se perceber quão linear e clara foi a resposta dada pelo Tribunal a todos os pontos com relevo para a decisão da causa e em que depoimentos e/ou demais elementos de prova se estribou o tribunal para o efeito.
25- Os recorrentes pretendem escorar a alteração da decisão da matéria de facto no depoimento de todas as testemunhas.
26- Transcrevendo o depoimento de todas as testemunhas.
27- Na verdade, os Apelantes vêm no presente recurso com teses inquinadas de erros de interpretação em todas as suas abrangências e, consequentes tentativas de alterar o que é inalterável, de censurar o que não é censurável.
28- O elemento essencial, para os AA, com relevo para a decisão da causa em apreço, é o de saber se o falecido II no momento da outorga do testamento em 12.11.2019, padecia de incapacidade para tal ato,
29- Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito invocado.
30- O ónus da prova dos factos demonstrativos da incapacidade acidental do testador, no momento da outorga do testamento- cfr.art. 2199º do CC, recai sobre o interessado na anulação do testamento, nos termos do art. 342, nº. 1 do CC.
31- Pretendem os AA, com o presente recurso, que seja declarada a nulidade do testamento outorgado por II, a favor de R., DD sua Afilhada, baseando a sua pretensão na falta de capacidade de querer e entender o ato.
31- Cabia aos AA., fazer a prova da pretensa incapacidade do falecido II no momento da outorga do testamento, (artº 342º nº. 1do CC) o que, manifestamente, não lograram provar.
32- A este respeito rege o disposto no artº. 2199 CC de acordo com o qual “é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória”
33- Ora, inexiste qualquer prova dos AA, credível que tenha sustentado que, na altura da outorga do testamento o falecido II se encontrava incapacitado para a prática de tal ato.
34- Com efeito, os AA, interessados na anulação do testamento, não lograram provar como lhes competia, que o testador naquele dia, padecia de doença incapacitante tal, que lhe retirasse a capacidade natural de entender e de querer o sentido da declaração que prestou perante o Sr. Notário e testemunhas.
35- E, compulsada a matéria de facto, constata-se que não se provou, como alegam os AA, que II à data da outorga do testamento em 12.11.2019, não estava na posse das suas plenas faculdades mentais, para entender e ter consciência.
36- Reitera-se, a prova da R. produzida, em audiência de Julgamento, nomeadamente testemunhal, foi no sentido de que o falecido II no momento da outorga da escritura, se encontrava com consciência livre e esclarecida, sabedor do ato que se encontrava a praticar e que queria praticar.
37 – Cabia assim, aos AA, fazerem a prova da pretensa incapacidade do falecido II no momento da outorga do testamento, o que manifestamente não lograram provar.
38- Não está assim, preenchida a hipótese do artº. 2199º, pelo que, não tendo os AA provado os factos constitutivos do seu direito, o presente recurso terá de improceder.
39- E, mantendo-se válido o testamento, não ocorre nenhuma invalidade da procuração, outorgada em data posterior à da entrada no Hospital ....
40- De acordo com o artigo 2191º do CC, a capacidade do testador, determina-se pela data do testamento, sendo certo que o testamento dos autos foi feito em data anterior à da fixação das medidas de acompanhamento de maior, a partir de 26.12.2019.
41- ENFATIZA-SE, SEM SER EXÍGIVEL, A RÉ PROVOU DE FORMA CLARA E EVIDENTE QUE O FALECIDO II NO MOMENTO DA OUTORGA DO TESTAMENTO TINHA A CAPACIDADE PARA BEM ENTENDER E PERCEBER O ATO QUE ESTAVA A PRATICAR.
42- No dia 12.11.2919, dia da outorga do testamento, o falecido II, entendeu o conteúdo do mesmo, correspondendo este à sua livre e esclarecida vontade, designadamente, a de querer beneficiar a Ré DD, a quem reconhecia como sua afilhada e em quem sempre depositou confiança.
43- No dia 12 de Novembro de 2019, estava lúcido de entender e querer o que transmitiu, não sofria de qualquer perturbação.
44- Nada, nem ninguém, lhe provocou ou enfraqueceu a sua vontade.
45- O ato que os AA., pretendem anular, foi praticado pelo testador, sem margem para dúvidas
em estado de sanidade mental normal, que transmitiu ao Sr. Notário, de forma inequívoca o que queria fazer; qual a sua vontade, que entendia o alcance do que ia fazer, que queria fazer testamento a favor da sua afilhada, deixando-lhe os seus bens à sua morte.
46- O Notário Dr. JJ, que lavrou o testamento em discussão a 12 .11.2019, referiu de forma categórica que nos testamentos em que intervém tem uma conversa prévia com as pessoas, faz algumas perguntas para aferir da sua capacidade no momento, pede que expliquem por palavras suas, o que pretendem com tal ato. E, referiu que todos os outorgantes que intervêm nos seus atos têm que estar cognitivamente bem, num estado de absoluta sanidade mental, com discernimento para praticar o ato.
“Senão, recusa-se a fazer “ …
47- Afirmou, sem margem para dúvidas que o falecido estava em estado de sanidade mental normal, que lhe transmitiu de forma inequívoca o que queria fazer; qual a sua vontade, que entendia o alcance do que ia fazer, que queria fazer testamento a favor da sua afilhada, deixando-lhe os seus bens à sua morte.
48- O testador II, expressou a sua vontade por palavras suas, manifestou claramente a sua vontade, revelando a vontade de deixar os seus bens à R. sua afilhada.
49- O Sr. Notário, leu e explicou o testamento na presença das testemunhas, e o testador II, entendeu e assinou.
50- Mais afirmou ainda, que da análise da assinatura aposta pelo punho de II, esta não apresentava qualquer indício ou sinal de perturbação, que era uma assinatura equilibrada, sem qualquer trémulo, de alguém que apresenta estar bem.
51- E, se fez o testamento, é porque o senhor testador, II, reunia todos os pressupostos para fazer o testamento.
52- As testemunhas Dra. NN e OO, presentes no ato, vieram confirmar sem margem para dúvidas, que assim foi, que II se encontrava bem, lúcido, com um
discurso coerente, nada delirante ou incoerente que pudesse pôr em causa a realização do ato pelo notário, que entendeu o alcance do que estava a fazer e bem-disposto sem dúvida nenhuma.
53- Não levantou quaisquer dúvidas acerca das suas capacidades cognitivas.
54- Nenhuma dúvida restou sobre a sua vontade em fazer o testamento a favor da sua afilhada, que os AA vêm pôr em causa.
55- Já algum tempo, que II, vinha a manifestar a vontade em fazer um testamento a favor da R., AAA, a sua afilhada, como forma de gratidão pela sua dedicação para com ele.
56- E disso, alardeava junto dos amigos e conhecidos que o conheciam no dia-a-dia.
57- As testemunhas YY, PP e ZZ, confirmaram nos seus depoimentos, isso mesmo:
- “ II reconhecia a DD como sua afilhada desde criança e, por eles era assim reconhecida; era ela quem o ajudava; ia às consultas com ele; confiava nela ao ponto de lhe dar autorização para movimentar as contas bancárias; queria beneficiar a R., por esta cuidar dele; pela sua dedicação, amizade demonstrada ao longo dos anos; ia deixar os seus bens à R.; era a única pessoa que tinha com ele “ .
58- Nunca se aperceberam que estivesse confuso ou incapaz de entender.
59- O ato de fazer o testamento a favor da sua afilhada, não foi inesperado para os Amigos e conhecidos de II.
60- II, foi manifestando essa sua vontade em deixar os seus bens à sua afilhada, ao longo dos tempos.
61- E, sempre que manifestou essa sua vontade, fê-lo de forma consciente, daquilo que queria.
62- Os pais de II eram amigos dos pais da Ré.
63- II apenas confiava na Ré, a quem considerava como uma pessoa de família.
64- Sabia da existência dos primos do Algarve, mas não mantinha qualquer relacionamento com os mesmos, tendo em tempos cerca de 2014, tido uma desavença, que originou o afastamento de II daqueles, por os mesmos terem pedido emprestado um andar temporariamente e após isso vieram a possuir outro prédio sem terem entregue o emprestado, a II.
65- O qual, não fazia questão de ter qualquer relacionamento com os AA./Apelantes.
66- Até à data de entrada no Hospital ... a 26.12.2019, por motivo de uma queda, II sempre se mostrara lúcido, informado, dentro das condições e limitações para a sua idade.
67- A única TAC, que consta do relatório médico, que serviu para instruir o processo de Maior Acompanhado, realizado pelo Dr. LL – menciona que no Registo da 2ª. Consulta de Neurologia em 22.11.2017, II devido ao consumo de bebidas alcoólicas, sofreu uma queda sob o efeito do álcool e, fez traumatismo craniano e cervical.
68- Até 12.11.2019, o testador, manteve a lucidez mínima de entender o que queria, reconhecia a M. Manuel, como a sua afilhada desde criança.
69- Após o seu internamento, a ora Ré, enquanto lhe foi possível, ia visitar o seu padrinho, era quem lhe levava a roupa lavada e, trazia a suja e durante esse período, sempre reconheceu a Ré como a sua afilhada.
70- Os AA não eram familiares próximos, e viviam no Sul, não mantinham laços de relacionamento com II, nem ele o desejava.
71- A testemunha YY, conhecia II há 20 anos, confirmou que o relacionamento entre o II e os, primos daquele, não existia, devido a uma zanga.
72- A outorga do testamento, mais não foi do que a concretização da intenção que o falecido II tinha em fazer à sua afilhada DD a quem estava grato pelos seus cuidados para com ele e, que dizia a amigos e conhecidos.
73- No que concerne ao elemento essencial com relevo para a decisão da causa, de saber se o falecido II no momento da outorga do testamento em 12.11.2019, padecia de incapacidade para tal ato, não foi provado pelos AA - (facto não provado em a).
74- Àquele que invocar um direito cabe fazer aprova dos factos constitutivos do direito alegado – art.342º nº. 1 do Código Civil.
75- Cabia aos AA., fazer a prova da pretensa incapacidade do falecido II no momento da outorga do testamento, o que, manifestamente, não lograram provar.
76- Inexiste qualquer prova dos AA, credível que tenha sustentado que na altura da outorga do testamento o falecido II se encontrava incapacitado para a prática de tal ato,
77- II, encontrava-se em -12.11.2019 - com as capacidades mentais necessárias e suficientes no momento do ato da outorga do testamento.
78- A prova testemunhal produzida, em audiência de Julgamento, foi no sentido de que o falecido II no momento da outorga da escritura se encontrava com consciência livre e esclarecida, sabedor do ato que se encontrava a praticar e que queria praticar.
79- Acresce que, o relatório médico elaborado no âmbito do processo de Maior Acompanhado, teve apenas uma observação efectuada ao II em 11/12/2020, tendo sido o restante elaborado com base em elementos referidos nos relatório, designadamente, as consultas de acompanhamento de neurologia efetuadas pelo falecido II.
80- A Sentença de Maior Acompanhado fixou as medidas de acompanhamento em 26.12.2019, data do internamento hospitalar.
81- Datas posteriores à data da outorga do testamento em 12.11.2019.
82- Esses elementos são manifestamente insuficientes para deles se poder alguma vez concluir que à data da outorga do testamento, o falecido II estivesse incapaz de compreender o ato que se encontrava a realizar.
83. Pelo contrário, fê-lo eivado de uma vontade livre e capaz, com o objectivo sempre manifestado de fazer a R., sua herdeira.
84- A questão do falecido ter acompanhamento neurológico, a própria R. reconheceu tal facto, dado o consumo de bebidas alcoólicas pelo falecido, sendo a própria R. a acompanhar o falecido às várias consultas, como resulta do relatório pericial.
85- Concluir e tentar retirar a ilação que o falecido estava num estado mental de incapacidade para a prática do ato de outorga do testamento é completamente desproporcionada e despida de fundamento tal asserção, como decorreu da prova testemunhal produzida pela R.
86- Enfatiza-se que, a sentença de Maior Acompanhado fixou as medidas de acompanhamento de maior a partir de 26.12.2020, ou seja, em data posterior à da outorga do testamento 12.11.2019.
87- É entendimento pacífico na jurisprudência que, nesta sede, o que releva para fins anulatórios não é a data da condição de interdito ou inabilitado, pois esta só se constituiu com a sentença, mas antes de averiguar a data de começo da incapacidade natural ou de facto e, mais concretamente, quando é que o requerido no processo passou a estar afetado por anomalia psíquica, que o tornou incapaz de reger a sua pessoa e bens, vide entre outros, Ac.TRE, de 13/12/2020, Processo 193/16.0T8STR.E1, relator Tomé de Carvalho, in www.dgsi.pt.
88- É Jurisprudência Uniforme: “A declaração Judicial, na sentença que decreta a interdição, sobre a data do começo da incapacidade, constitui mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência, da incapacidade, à qual pode ser oposta contraprova, nos termos do artigo 346º do CC.”
89- Na vigência do Código Civil de 1966, a doutrina e a jurisprudência têm atribuído a tal declaração judicial um valor de meramente indiciário: não de uma presunção legal (iuris et iure ou iuris tantum), mas o valor de mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência a que, embora constitua um começo de prova, não inverte o ónus da provada existência da incapacidade no momento da prática do ato – ónus que impende sobre quem pede a anulação, vide entre outros, Ac. STJ de 06Abril 2021, processo 2541/19.7T8STB.E1, Relator Fernando Simões, in www.dgsi.pt.
90- Só serão inválidos se, acidentalmente, na altura em que são praticados, o declarante está incapacitado, nos termos do artigo 257º do Código Civil.
91- Nestes casos, a capacidade é a regra e a incapacidade é a excepção, pelo que quem invocar esta, tem o ónus de a provar, ou seja, compete a quem invoca uma incapacidade fundada no artigo 257º do Código Civil alegar e provar que o declarante se encontrava na altura da prática do ato, incapacitado nos termos e para o efeito do disposto neste artigo.
92- A incapacidade acidental, prevista e regulada no artigo 257º do CC exige, para a anulabilidade do ato, como já acima foi referido que, no momento da prática do ato, haja uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade; e que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário (passível de apreensão por uma pessoa média, colocada na posição do declaratário).
93- Ora no presente caso, é manifesto que a outorga do testamento é anterior à fixação do Acompanhamento de Maior acompanhado.
94- Sendo certo que, os AA não lograram provar que o falecido II estivesse incapacitado no momento da outorga do testamento em 12.11.2019.
95- A alegação e pretensão dos recorrentes serem o suporte de apoio familiar de II não passa de mera fantasia, atento o facto não provado em b) e os provados em 64) a 67), 72) e 106) da matéria assente.
96- O falecido II, como já referido anteriormente praticamente, não tinha quaisquer contactos com os AA., e os que havia eram esporádicos, em especial desde 2014, quando se incompatibilizou com os primos por estes estarem a ocupar o andar por empréstimo e entretanto, terem outro sem que tivessem comunicado tal facto ao II.
97- A R. era a pessoa que cuidava do II, que o levava às consultas, em quem ele depositava toda a confiança, inclusive para movimentar as contas bancárias.
98- Em boa verdade, quase que não é necessário recorrer à prova testemunhal para se inferir e constatar que era a R., que prestava apoio e cuidava do II, atente-se no relatório pericial, donde se extrai, com clareza, nas consultas de neurologia, desde 09.07.2017, foi sempre a R., que acompanhou o II às consultas.
99- O que corresponde e está de acordo com o expresso pelas testemunhas PP e YY.
100- A Incapacidade Acidental prevista e regulada no art 257.º do Cód. Civil exige, para a anulabilidade do ato, que no momento da prática do ato, haja uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade, e que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário (passível de apreensão por uma pessoa média, colocada na posição do declaratário), assim se tutelando a boa-fé deste último e a segurança jurídica – Acordão do Supremo Tribunal da Justiça de 30/10/1990, www.dgsi.pt..
101- No que ao presente caso contende, face aos factos provados e não provados é manifestamente evidente que os pedidos formulados pelos AA terão de soçobrar.
102- Reitera-se, aos AA cabia fazer a prova da pretensa incapacidade do falecido II no momento da outorga do testamento.
103- Não lograram provar que o falecido II, no momento da outorga do testamento - 12.11.2019 - se encontrasse incapacitado mentalmente para celebrar e compreender tal ato.
104- Inexiste qualquer prova credível que tenha sustentado que na altura da outorga do testamento o falecido se encontrava incapacitado para a prática de tal ato.
105- A prova testemunhal produzida foi no sentido de que o falecido no momento da outorga do testamento se encontrava com consciência livre e esclarecida, sabedor do ato que se encontrava a praticar e que queria praticar. (Sobre tal asserção veja-se os depoimentos das testemunhas JJ- notário, Dra. NN, OO, YY (testemunha referenciada pelo tribunal como credível, clara), ZZ, PP).
106- O relatório pericial elaborado no âmbito de maior acompanhado, teve apenas uma observação efectuada a II em 11.12.2020, tendo sido o restante elaborado com base nos elementos referidos em relatórios das consultas de acompanhamento de neurologia.
107- A sentença de maior acompanhado fixou as medidas de acompanhamento em 26.12.2019.
108- De relevo e sem ser exigível, a R. provou de forma clara e evidente que o falecido II, no momento da outorga do testamento tinha a capacidade para bem entender e perceber o ato que estava a praticar.
109- Em relação ao ato de outorga da procuração, a mesma deixa de ser relevante, atento o facto de a R., ser herdeira do falecido II e aquela ser posterior ao ato de outorga de testamento.
110- Tais atos, praticados pelo falecido II, foram a concretização da sua vontade, que foi manifestada perante terceiros.
111- Foram por si pretendidos e idealizados, aos quais estiveram subjacentes razões atendíveis, perfeitamente lógicas e justificáveis.
112- O Tribunal “ a quo “ não teve dúvida alguma, que aquando da outorga do testamento- 12.11.2019-, o falecido II tinha as suas capacidades mentais necessária e capazes, para saber o ato que estava a praticar, o qual mais não foi que um corolário lógico daquilo que pretendia fazer e que alardeava junto dos amigos e conhecidos que o conheciam no dia- a-dia, ou seja, outorgar o testamento a favor da R.
113- É ao juiz que compete apreciar livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.\
114- Ao Tribunal é legítimo retirar os argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar
determinada informação ou, deixar de lhe atribuir qualquer relevo. Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percecionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador.
115- Ao Tribunal de 2ª. Instância, não cabe realizar novo julgamento nem procurar uma nova convicção, mas apenas indagar se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si.
116- Ao Tribunal da Relação compete apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
117- A douta decisão recorrida fez uma correta interpretação e aplicação das normas aplicáveis ao caso “ sub judice “, consubstanciada nos factos provados e não provados e sua motivação.
118- Não merece, pois, qualquer censura ou reparo.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a sentença recorrida, com todas as consequências legais.
Assim decidindo, farão Vossas Excelências,
JUSTIÇA!
2. Fundamentos de facto
A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:
1) No dia 11 de Junho de 2021, no estado civil de viúvo de BBB, com última residência habitual na Rua ..., n.º ..., 2.º, da União de Freguesias ..., ..., ..., ..., ..., ..., concelho do Porto, faleceu II, – cfr. certidão de óbito n.º 313 do ano de 2021 junto como documento n.º 1.
2) O falecido II não tinha descendentes, não tinha ascendentes vivos nem irmãos.
3) Os AA. são, respectivamente, primo direito e primas em segundo grau do falecido – cfr. certidões de nascimento que se juntam como documentos n.ºs 2, 3 e 4.
4) No dia 12 de Novembro de 2019, no Cartório Notarial do Dr. JJ, o falecido outorgou testamento a favor de DD, aqui R., e de KK – cfr. testamento que se junta como documento n.º 5.
5) De acordo com o referido testamento, KK foi instituído legatário do usufruto vitalício do primeiro andar do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia ... (... e ...), concelho de Faro, inscrito na matriz sob o artigo ....
6) E, por sua vez, a R. foi instituída como única e universal herdeira do remanescente de toda a herança do falecido.
7) Os AA. instauraram, no dia 21 de Julho de 2021, contra DD e KK, um procedimento cautelar especificado de arrolamento, nos termos do nos artigos 403.º, 404.º, n.º 1 e 405.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, como preliminar da presente acção de anulação de testamento.
8) Tendo em vista, justamente, assegurar a conservação do acervo patrimonial da herança aberta por óbito de II, impedindo, assim, o seu extravio, ocultação ou dissipação continuados durante a decorrência da acção principal, no âmbito da qual se pretende levar a efeito a discussão da titularidade dos direitos dos AA..
9) No entanto, já depois da propositura da providência cautelar de arrolamento, o referido KK veio a repudiar ao legado – cfr. documento n.º 6.
10) Verificados os requisitos para o seu decretamento, foi o procedimento cautelar instaurado julgado procedente e, concomitantemente, determinado o arrolamento dos bens indicados pelos AA., sem audição dos Requeridos – cfr. sentença junta como documento n.º 7.
11) Foi ainda o aqui A. AA nomeado depositário dos bens da herança – cfr. documento n.º 7.
12) No dia 14 de Agosto de 2020, foi intentada pelo Ministério Público uma Acção Especial de Acompanhamento de Maior a favor de II, na altura internado no Hospital ..., que correu termos sob o n.º 13282/20.2T8PRT, no Juiz 9, do Juízo Local Cível do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – cfr. cópia da Petição Inicial junta como documento n.º 8.
13) Foi alegado pelo Ministério Público naquela acção, o então beneficiário II foi admitido naquele Hospital, sem acompanhante, no dia 26 de Dezembro de 2019.
14) Apresentava-se desorientado e sem saber por que ali tinha sido trazido.
15) Estava totalmente dependente nas actividades da vida diária e incapaz de regressar ao domicílio sem apoio permanente – cfr. documento n.º 9,
16) E encontrava-se impossibilitado de exercer plena e conscientemente os seus direitos e de cumprir os seus deveres.
17) No dia 17 de Fevereiro de 2020 foi junto ao Processo Administrativo n.º 92/20.6Y2PRT que correu termos no Ministério Público e precedeu a referida Acção Especial de Acompanhamento, um requerimento apresentado pela R., DD e subscrito pela sua advogada, Senhora Dr.ª NN – cfr. requerimento da R. que se junta como documento n.º 11.
- Onde a mesma informa aqueles autos que sempre teve com o seu Padrinho II um relacionamento muito próximo e, nos últimos anos, lhe limpava a casa, fazia as compras, acompanhava-o em consultas médicas e passava as tardes em casa dele, fazendo companhia um ao outro – cfr. documento n.º 11.
- Informa que teria sido autorizada pelo seu padrinho a movimentar as contas e a levantar-lhe a reforma em caso de doença daquele, por mostrar confiança em si – cfr. documento n.º 11.
- Refere, ainda, que até ao dia 26 de Dezembro, data em que II foi internado, este se mostrava autónomo e completamente lúcido, ia sozinho a pé tomar o pequeno-almoço e almoçar a uma confeitaria na Rua ... – cfr. documento n.º 11.
18) Os AA. após serem notificados da sentença de Maior Acompanhado procederam à troca de fechaduras.
19) Consta da informação social junta aos autos aludidos em 12) pela Segurança Social, doc. 10, que a aqui R., DD, dizia ser afilhada de II;
20) Que vivia em Portugal há apenas 6 anos;
- Terá em seu poder uma procuração outorgada, a seu favor, pelo Beneficiário já durante o período de internamento, sem que algum profissional do serviço tenha presenciado, elaborada com a colaboração profissional da Advogada NN.
21) Consta ainda da informação social disponibilizada a advertência de que tal procuração poderia já ter sido usada para alguns actos de representação do doente - cfr. documento n.º 10.
22) Consta ainda na mencionada informação da Segurança Social, «há referências ao facto de já antes deste internamento não teria capacidade para organizar a sua vida, teria a casa “entupida” de objetos desnecessários, sem higiene habitacional, corporal ou da sua roupa» e que, durante o internamento hospital (iniciado em 26 de dezembro de 2019), evidenciou «não ter capacidade intelectual para se autogerir» - cfr. documento n.º 10.
23) Os AA., por lapso da Assistente Social em funções do Hospital ..., Dr.ª UU, foram incorrectamente identificados, informação que, posteriormente, foi rectificada através de um e-mail remetido ao processo, no dia 21 de Maio de 2020 – cfr. informação da Divisão de Intervenção Social que se junta como documento n.º 12.
24) Por este motivo, os aqui AA. apenas lograram ter intervenção no processo de acompanhamento no momento em que constituíram mandatária judicial.
25) Somente em Janeiro de 2020 os AA. vieram a descobrir que II se encontrava hospitalizado no Hospital ...,
26) Tendo-lhes sido transmitido pela da Assistente Social, Senhora Dr.ª UU, que a R. se tinha apresentado como sua «afilhada» e se teria deslocado ao Hospital ... com uma advogada a fim de lhe ser passada uma procuração para poder levar a efeito a gestão dos bens daquele.
27) Aquando da outorga da procuração, já após o internamento ocorrido em 26.12.2019, o falecido já não se encontrava no gozo das suas faculdades mentais, estando totalmente dependente de auxílio de terceiros.
28) Facto que, aliás, era perfeitamente conhecido pela R. e de todas as pessoas que contactavam com II.
29) Cerca de Outubro de 2019, a prima da esposa de II, QQ
, foi almoçar com o falecido e com outros familiares ao restaurante “A...”, no Porto, restaurante esse onde II ia com frequência.
30) Nesse almoço, II sentiu-se mal e desmaiou.
31) Na pendência da acção de maior acompanhado, referida em 12), foi realizado um exame pericial ao falecido, pelo Perito Dr. LL, por observação efectuada ao II em 11.12.2020, cfr. relatório se junta como documento n.º 13.
Consta desse exame pericial, para além do mais, o seguinte:
“1. O examinando, II, padece de PERTURBAÇÃO
NEUROCOGNITIVA-MAJOR, ou, na terminologia da Classificação Internacional de Doenças-10, DEMÊNCIA INESPECÍFICA.
2. Esta perturbação tem uma etiologia complexa e multifactorial, surgiu nos últimos anos de vida do doente, desde 2015, tem uma evolução insidiosa, progressiva e com agravamento em 2019, sendo à luz do conhecimento médico actual, irreversível.
3. Este quadro clínico limita significativamente o desempenho do examinando em termos volitivos e cognitivos e resulta num prejuízo relevante do seu funcionamento adaptativo, de forma que este não consegue atingir padrões de independência pessoal e responsabilidade social em vários aspectos da sua vida diária.
4. Esta perturbação caracteriza-se por défices em vários domínios cognitivos, como o raciocínio, resolução de problemas e por alterações do comportamento.
5. Em termos concretos, o examinando encontra-se totalmente dependente de terceiros para as actividades instrumentais da vida diária: gestão de dinheiro, pagamento de contas, compra e gestão de despensa, compromissos financeiros, bancários e tributários,
sob pena de delitos. (…)
9. O examinando não tem capacidade plena para determinar quem pretende que seja nomeado para o cargo de seu acompanhante”».
Consta do aludido relatório na parte de “Exame Indirecto” que, no Centro Hospitalar ..., existem registos de consultas de neurologia do falecido, desde, pelo menos, 2017, nomeadamente:
-Em 09 de Agosto de 2017, “a afilhada refere alguns esquecimentos (não sabe em que dia está, quer pagar as contas 2 vezes porque não se recorda em que dia está) e discurso repetitivo desde há pelo menos 2 anos que tem vindo a progredir. Esquece-se das combinações e das conversas; confunde-se muito – cfr. documento n.º 13.
- Consulta de neurologia em 22 de Novembro de 2017, onde se refere que se mantêm os consumos alcoólicos excessivos – cfr. documento n.º 13;
- Nova consulta de neurologia em 03 de Maio de 2019, onde se lê “O doente acha que está bem, mas a afilhada acha que está mais esquecido. Continua a viver sozinho, mas com a ajuda desta afilhada – apoia na alimentação da parte da tarde. Também é a afilhada que trata das coisas do banco e multibanco e as contas. Gere a própria medicação, mas às vezes esquece-se. Toma banho sozinho, mas com dificuldade. Está sempre a perguntar em que dia está…”.
- Foi novamente a consulta de neurologia no dia 20 de Novembro de 2019, tendo sido transmitido pela sua afilhada, aqui R., que o Beneficiário deixara de tomar toda a medicação e «tem ideias na cabeça delirantes».
- Foi registado, nesse dia 20 de Novembro de 2019, síndrome demencial de predomínio mnésico com impacto funcional e com alterações de comportamento.
- Consta do ainda do relatório pericial “Exame Directo” “Não consegue nem está familiarizado com o uso de meios electrónicos de pagamento e não sabe informar sobre o montante da sua reforma (pensão de velhice) ou a extensão do seu património e o seu valor relativo.”
- Nos Antecedentes Psiquiátricos consta “o quadro clínico terá sido notado progressivamente desde 2015, inicialmente como défice cognitivo ligeiro, tendo a incapacidade definitiva surgido em Novembro de 2019 (pág. 8).
- Na observação psicopatológica “O pensamento apresenta um curso lento com dificuldade em atingir ideia-alvo.
- Quanto ao conteúdo apresenta ideação paranóide pouco estruturada centrada nos técnicos que lhe prestam cuidados» (págs. 8 e 9) .
Nas conclusões diz-se “padece de perturbação neurocognitiva-major…”
Encontra-se totalmente dependente de terceiros para as atividades instrumentais da vida diária; gestão do dinheiro; pagamento de contas; compras e gestão de despensa; compromissos financeiros, bancários e tributários, sob pena de delitos…”
“Justifica-se uma medida formal de tutela, em particular representação geral e administração total de bens” – pág. 15.
32) No âmbito do processo de maior acompanhado, no dia 26 de Fevereiro de 2021 procedeu-se à audição do beneficiário II e foi solicitado ao Hospital ... o envio do relatório de admissão da urgência do dia 26 de Dezembro de 2019 e relatório sobre o estado em que o mesmo se encontrou durante todo o tempo de internamento até ser transferido para a Unidade de Valongo, os quais vieram a ser, oportunamente, remetidos por aquele Hospital – cfr. Doc.s 12, 13, 14.
33) Na sequência da apresentação de dois requerimentos, por parte dos AA., nos autos de acompanhamento de maior, através dos quais se deu conhecimento da movimentação das contas por parte da R., do levantamento de avultadas quantias, do desaparecimento de todo o recheio de valor das habitações do Beneficiário, o Ministério Público promoveu:
i. A rectificação da Petição Inicial, corrigindo a identificação dos familiares do beneficiário que constituiriam a sua rede familiar (os aqui AA.), porquanto na altura da elaboração da Petição Inicial considerou-se a informação do Hospital ... de 06 de fevereiro de 2020 e não a de 21 de Maio de 2020, onde foi reportado o lapso na identificação destes familiares;
ii. Considerando que, decorrente do quadro clínico de que padece, o Beneficiário manifesta patentes dificuldades em reconhecer o dinheiro e/ou atribuir-lhe o seu valor real (notas e moedas do BCE) e já não apresenta discernimento para compreender o teor de documentos (procurações, extratos bancários, contratos) nem para efectuar negócios correntes, o que o coloca numa situação de vulnerabilidade perante terceiros que se aproveitem desse estado de fragilidade, promoveu o Ministério Público que para salvaguarda da sua pessoa fosse urgentemente nomeado alguém que possa suprir a limitação de que padece para gerir os seus bens e a sua própria pessoa, sob pena de se encontrar em risco a sua saúde e integridade física e cabal preservação e administração do seu património;
iii. Nessa medida, promoveu-se a nomeação do aqui A. AA para o exercício do cargo de acompanhante, e das AA. BB e CC para integrar o Conselho de Família;
iv. Foi promovida a determinação de medida de acompanhamento provisória e urgente de
nomeação de acompanhamento provisório, na vertente pessoal e patrimonial, designadamente poderes exclusivos de gestão e movimentação das contas bancárias e aplicações financeiras; poderes para cancelar contas e cartões de crédito e débito e proibir movimentos a débito que não sejam efectuados pelo próprio acompanhante; poderes para gestão do património imobiliário; poderes para instauração de acções judiciais de anulação de actos que hajam sido praticados pelo beneficiário e/ou contratos e /ou documentos em que o beneficiário tenha aposto a sua assinatura desde a data de diagnóstico do quadro clínico de que o mesmo padece, bem como para em seu nome apresentar queixas-crime e constituir-se assistente em inquéritos criminais em que o beneficiário seja ofendido/lesado/vítima;
v. Mais foi promovida a extração de certidão do Requerimento Inicial, PI e documentos anexos, da certidão negativa de citação, dos elementos clínicos remetidos pelo Hospital ... e Hospital 3..., do relatório do Exame Pericial, do Auto de Audição do Beneficiário (com suporte áudio), dos dois requerimentos que antecedem apresentados pelos primos do Beneficiário, da presente promoção e do despacho que sobre a mesma recair e seja remetida, a título confidencial, ao Exmº Sr. Director do DIAP do Porto para instauração de procedimento criminal, por se indiciar, em abstrato, a prática de ilícitos criminais em que é vítima/ofendido idoso (nascido em ...) e que padece de Perturbação Neurocognitiva-Major (Demência) – cfr. Promoção junta como documento n.º 14.
34) No dia 25 de Março de 2021 foi proferida sentença nos autos de acompanhamento de maior que decidiu:
a) aplicar ao beneficiário II as medidas de acompanhamento de representação geral e de administração total dos seus bens.
b) Fixar a data de conveniência de decretamento das medidas de acompanhamento em
26.12.2019 (data do internamento hospitalar).
c) Nomear como acompanhante do beneficiário AA, ao qual competirá a representação geral do beneficiário e a administração total dos seus bens, incluindo contas bancárias.
d) Nomear como membros do conselho de família BB e CC.
e) Nomear como protutora BB. – cfr. certidão da sentença se junta como documento n.º 15.
35) Já depois do internamento e na pendência da ação de maior acompanhado a R. dirigiu-se a Faro, onde o falecido II possuía um prédio com três andares.
36) Uma vez que a R. não dispunha das chaves dos imóveis, dirigiu-se à residência de CCC, pessoa que habitualmente fazia a limpeza dessas casas, com o objetivo de obter as respectivas chaves.
37) No entanto, a referida CCC havia sofrido, recentemente, um AVC, encontrando-se, naquela altura, acamada, pelo que a R. foi recebida pelo seu filho, KK.
38) A R. ter-se-á apresentado como afilhada de II, exibindo uma procuração e identificando-se como sua representante legal e exigindo as chaves dos imóveis.
Nesta sequência as chaves dos apartamentos foram entregues à R. por KK.
39) De seguida, a R. dirigiu-se ao prédio em questão e permaneceu por lá alguns dias.
40) A casa do falecido sita na cidade do Porto foi totalmente despojada de toda a mobília e objectos de valor – cfr. fotografias que se juntam como documento n.º 17.
41) Tendo sido encontrado pelos AA. um documento, espécie de inventário dos objectos em ouro pretensamente pertença do falecido – cfr. documento n.º 18.
Constando do aludido documento o seguinte:
OURO
Cercadura 50 pesos mexicanos......... 7,50
Pulseira de Relógio fina...................34,50
Lapiseira de Ouro.............................10,00
Porta-chaves de sant.........................14,00___________ 134,00
Passa gravatas ouro branco..............10,25
Berloque bola c/pedras Vermelhas.. 8,00
Alfinetes e brincos flor de lis.......... 8,00
Libra c/cercadura trabalhada...........17,30
Medalhão Alfinete........................... 6,00____________ 49,55
Crucifixo antigo (II)........................ 3,80
Brinco de rainha.............................. 4,20
Alfinete pedras brancas (II)............. 4,20
Lacinho pedra azul......................... 5,70
Alfinete cestinho.............................16,20
Fio malha de friso.......................... 10,20______ 44,4_____ 227,95
Pulseira de Pérolas......................... 14,50
Pulseira cadeado oca...................... 12,90
½ Trancelim ................................... 10,00
Fio de Barbela grosso..................... 30,00
Fio pai............................................ 7,00
Fio mãe.......................................... 8,00__________ 82,40
Medalha........................................ 9,90
Brincos ........................................ 13,50
Medalhão de Abrir....................... 6,00
Berloque lápis lazuli ................... 13,00__________ 42,40
Anéis........................................... 42,00
Cordão de Ouro.......................... 18,00
Pulseira malha de friso............... 7,30
Fio 2+1....................................... 7,70
Pulseira malha gargantilha......... 6,50____________81,50
Pulseira antiga............................ 20,60
Anel c/ametista......................... 11,25
“ c/brazão........................... 12,25
“ Mesa quadrado................ 23,00
“ c/brasão de ferro............. 22,00
“ pedra vermelha.............. 9,00__________ 98,10
Botões de punho ...................... 98,15
Pulseira de cadeado.................. 13,25
Fios .......................................... 67,05
Correntes de chaves ................ 71,25
Corrente de relógio de bolso..... 15,00
Pulseira de chapa de homem..... 29,10____293,80__598,20 826,15
OURO 826,15
Medalhas de abrir.................. 8,90
Ouro para derreter.................. 14,00
Estrela de David..................... 7,00
Medalhas e Crucifixos............ 42,00________71,90
Pulseiras .............................. 100,00
2 trancelins........................... 80,00
Cordões de Ouro –maciço.... 35,00__250,00__321,90___1148,05
1 148gr x 6000$00 = € 35000
Ouro amoedado ............. € 14000
Prata amoedada.............. € 3000
Pratas ornamentais........ € 3000
Diamantes ...................... € 11000
Pérolas .......................... € 10000........ € 76000
Ouro amoedado 800gr...........14000
Prata amoedada 2000gr........ 3000
Diamantes:
Alfinete de gravata c/brilhante grande ..1,5 .....€ 1000,00
Ouro Branco c/brilhante grande ........... 8 ....... € 1000,00
Anel c/Rubi...........................................12 ...... € 1000,00
Anel c/Brilhante ouro branco ...............13 .......€ 1000,00
Anel D. João V c/Brilhante e rosas.......10,4.... € 300,00
Anel trabalhado c/brilhante pequeno... 13 ..... € 300,00
Anel c/brilhante gemeo grande e + pequenos. € 3000,00
Brinco de Brilhantes....................................... € 3000,00
Pulseira de Brilhantes..................................... € 500,00___11100,00
Pratas
Ornamentais.......................15.000.................. € .......3000,00
Relógios e cronómetros ..........................................€ 7500,00
2 Omegas de pulso Constellation
1 cronómetro Omega
Outros relógios de boa marca
OUROS................ € 75000
Restante Recheio.. € 45000 120000
PÉROLAS
3 COLARES DE PÉROLAS
UM DE CULTURA.........................€ 5000,00
2 DE Pérolas degrade c/fecho de Bull...€ 10000,00 ..... € 15000,00
42) Já após o internamento do falecido no Hospital ..., em 26 de Dezembro de 2019, foram efetuados diversos levantamentos das suas contas bancárias – cfr. Doc. n.º 19.
43) Algumas contas foram, entretanto, encerradas e uma outra (conta da Banco 1... nº. ...) encontra-se, actualmente, um saldo negativo de - € 748,4.
44) O falecido II recebia três pensões (de velhice e de sobrevivência) no montante de € 211,79, € 309,07 e € 372,16, valores que foram sendo levantados das contas bancárias já após o internamento do mesmo.
45) Na sequência da extração de certidão requerida pelo Ministério Público, encontra-se, neste momento, em curso um processo-crime em que é denunciada a aqui R. – inquérito n.º 3957/21.4T9PRT, a correr termos na 1.ª Secção do Porto da Comarca do Porto.
46) Já durante o internamento do II, o veículo automóvel da marca Volkswagen, com a matrícula ..-..-IR, que era propriedade daquele –, foi vendido à sociedade B..., LDA., NIPC ..., com sede na Rua ..., n.º .. R/C ... Mangualde, sendo a data do registo de venda de 04.02.2020, – cfr. título de registo de propriedade junto como documento n.º 21 e 22.
47) O único veículo que ainda se encontra registado em nome do falecido é um veículo da marca Ford ..., de matrícula UD-..-.., de Dezembro de 1989, cfr. registo de propriedade junto como documento n.º 23.
48) Para além do veículo, o falecido II era proprietário dos seguintes bens imóveis atualmente arrolados:
Freguesia Artigo Fração Espécie
... ... D Habitação
... ... EP Estacionamento
... ... R/C Habitação
... ... 1.º Habitação
... ... 2.º Habitação
... ... F Estacionamento
- cfr. cadernetas prediais e respectivas certidões prediais permanentes como documentos n.ºs 24 e 25.
49) O falecido II tinha ainda um Time-Sharing (direito real de habitação periódica) em ..., na titularidade do falecido, correspondentes às frações AX e AZ do prédio ..., também arrolado - cfr. certidões prediais juntas.
50) Conforme resulta das certidões prediais juntas, já se encontra registada a aquisição de alguns imóveis arrolados, por sucessão hereditária, a favor da R..
51) Porém, no dia 25 de Agosto, já depois de ser decretado o arrolamento dos imóveis da herança de II, o A. AA recebeu um telefonema de uma
vizinha dos imóveis de Faro, alertando-o para o facto de estar alguém no prédio.
52) Considerando que apenas os AA. se encontravam na posse das (novas) chaves de acesso aos imóveis, o Autor AA dirigiu-se de imediato à Rua ..., em Faro, constatando que os imóveis tinham sido, efetivamente, ocupados.
53) Os AA. dirigiram-se à PSP, pelas 21H30, para fazer a participação da ocupação ilegítima dos imóveis.
54) Apresentaram cópia da decisão judicial que decretou o arrolamento e nomeia o A. AA como depositário dos bens, bem como as certidões prediais permanentes que comprovam o registo do arrolamento à ordem dos presentes autos.)
55) A PSP dirigiu-se ao local e identificou a R., DD, e o seu companheiro, PP, no interior do imóvel.
56) Contudo, a R. apresentou à PSP cópia do testamento e da transmissão gratuita da autoridade tributária para legitimar a ocupação, comunicando aos agentes de autoridade que “isto é tudo meu porque tenho testamento” (referindo-se aos imóveis).
57) A R. e o seu companheiro comunicaram, ainda, à PSP que a sua advogada, Drª. NN, se encontrava a par de tudo e que poderia ser contactada através dos contactos que forneceram à PSP e que constam do auto de participação (NPP ...).
58) Mais referiu a R. que teve acesso aos imóveis porque solicitou a um serralheiro a alteração do canhão da porta do prédio, a quem apresentara a documentação que alegadamente comprovava a sua legítima propriedade.
Esta informação consta da participação n.º ..., datada de 25 de Agosto de 2021.
59) Não obstante os AA. se terem deslocado à PSP para pedir uma cópia do auto de participação para sua junção aos presentes autos, foi-lhes transmitido que apenas poderia ser emitida uma declaração, pelo facto de o auto conter a identificação dos intervenientes, pelo que teria de ser o Tribunal a solicitar o envio do auto de participação – cfr. Doc. n.º 26.
60) A R. permaneceu na posse dos imóveis de Faro.
61) Tomou igualmente posse do imóvel do Porto, até aos dias de hoje, como aliás o demonstra a carta datada de 10 de Setembro de 2021, remetida pela R. aos AA., nos termos da qual informa, na qualidade de «(atual) única e universal herdeira testamentária de II» que havia mudado a sua residência para o imóvel da Rua ..., n.º ..., 2.º direito e tinha fixado a sua segunda residência no imóvel de Faro (ambos arrolados), assistindo-lhe a posse de todos os bens da herança que, até prova em contrário, seriam de sua exclusiva propriedade, pelo que seria de bom senso não serem praticados atos de mudanças de fechaduras que possam configurar condutas criminais graves.
Mais comunica que, por força da relação que tinha com o falecido, cuja casa frequentaria desde criança, tinha nos imóveis do falecido II muitos móveis de sua propriedade que, entretanto, teriam sido levados pelos AA., vide documento n.º 27.
62) Os pais de II eram amigos dos pais da R. e a R. por sua vez, desde criança, conhecia BBB, esposa de II, sua mãe e outros familiares;
63) Desde criança que a R. e seus pais conviviam com II e sua esposa, BBB, aliás, foram Padrinhos de Crisma da R..
64) Razão pela qual a R. chamava II de padrinho e, aquele de sua afilhada e
assim era reconhecida pelos próprios e por terceiros.
65) Posteriormente, foram padrinhos de baptismo da filha da R..
66) A R. DD emigrou para África do Sul e Moçambique, contudo manteve sempre ligação à família de II, pois quando vinham de férias a Portugal, visitavam-nos.
67) Há cerca de 10 anos, aquando do regresso da R. de África do Sul, mesma começou a ajudar o Sr. II.
68) Auxiliava-o na casa, nas compras, idas às consultas médicas, fazia-lhe companhia e passeava com ele.
69) A R. frequentou um curso de Formação de Cuidadores, conforme Declaração de Participação no Programa de Formação de Cuidadores junto como doc.1.
70) II apenas confiava na R., a quem considerava como uma pessoa de família.
71) Sabia da existência dos primos do Algarve, mas não mantinha qualquer relacionamento com os mesmos, tendo em tempos, cerca de 2014, tido uma desavença, que originou o afastamento do Sr. II daqueles, por os mesmos terem pedido emprestado um andar temporariamente e após isso vieram apossuir outro prédio sem ter entregue o emprestado ao II, o qual não fazia questão de ter qualquer relacionamento com os ora AA..
72) Era a R., sua afilhada, a pessoa mais próxima sua e em quem confiava para o auxiliar na casa, ser seu confidente, ir às consultas médicas com ele, etc..
73) O II era uma pessoa esclarecida, informado, atento, interessado no que o rodeava, era um leitor assíduo de jornais e revistas estrangeiras,
nomeadamente em Alemão e Francês.
74) Sabia bem o que queria, era ele quem geria os pagamentos, no entanto, com o avançar da idade e principalmente devido à adição de consumo de bebidas alcoólicas e, problemas crónicos de doença próprios da idade, algumas capacidades de se autogerir, foram diminuindo.
75) Era a R. que levantava a reforma do seu padrinho, fazia pagamentos de água, luz, IMI, medicação, alimentação e outros.
76) O II, desde muito cedo teve problemas com bebidas alcoólicas, que ingeria juntamente com a medicação que tomava, para os seus problemas, o que lhe provocava vários distúrbios;
77) As consultas de Neurologia tiveram por base esse mesmo problema, o consumo em excesso de bebidas alcoólicas.
78) O II revalidou a sua carta de condução em 2018, com a idade de 84 anos;
79) A revalidação de carta de condução de um cidadão obedece a vários critérios de exames feitos na presença do seu médico de família e que atestam a boa capacidade física e mental da pessoa, o que se verificou com o Sr. II nessa ocasião, tenho-lhe sido passado o atestado, aferindo da sua capacidade para conduzir, e poder revalidar a sua carta de condução sem qualquer tipo de problema;
80) O II pouco tempos antes de ser internado ainda conduzia.
81) Até à data de entrada no Hospital ..., a 26.12.2019, II sempre se mostrara lúcido, informado, dentro das condições e limitações para a sua idade.
82) Após o seu internamento, II vivencia uma conjectura nada favorável, à
estabilização do seu estado psíquico e físico, o COVID-19, ficando privado das visitas, de sua afilhada, com que mantinha um relacionamento afectivo desde sempre e, que no hospital, sempre a reconheceu como tal.
83) O II queria beneficiar a R., pela sua dedicação, amizade demonstrada ao longo dos anos e, foi transmitindo essa sua vontade quer à própria, quer junto de terceiros, em conversas que mantinha.
84) Estava consciente dessa sua tomada de posição, daquilo que queria e de como pretendia dispor dos seus bens para além da sua morte.
85) No acto de testamento, entendeu o conteúdo do mesmo, correspondendo este à sua livre e esclarecida vontade, designadamente a de querer beneficiar a R. DD, a quem reconhecia como sua afilhada e em quem sempre depositou confiança.
86) No momento da outorga do testamento, a 12 de Novembro de 2019, estava lúcido.
87) A sua assinatura aposta no acto testamentário, pelo seu punho, é perfeitamente legível, com traço preciso, equilíbrio e sem indícios de qualquer perturbação, logo uma assinatura, própria de quem se encontra capacitado.
88) Acresce que quando foi lido e explicado o conteúdo do testamento a II, o mesmo estava capaz de entender o respectivo conteúdo, estava esclarecido de que ele correspondia à sua vontade, bem como as suas consequências.
89) O Sr. Notário JJ, nenhuma dúvida teve, aquando da outorga do testamento pelo II, que entendeu e percebeu o que disse nesse momento e que tal era a sua vontade.
90) A outorga do testamento obedeceu a todas as formalidades legais, no qual estiveram duas testemunhas, nele melhor identificadas.
91) O II viveu com a sua esposa e, quando ocorreu o seu falecimento, foi sozinho que ficou e com o avançar da idade, necessitou de ajuda e, foi à ora R., a sua afilhada, a quem recorreu e, a alguns amigos, esta sim, a sua rede de suporte familiar.
92) A R. deslocou em Janeiro de 2020 a Faro, de comboio Alfa, já depois do internamento de II, para tratar de assuntos do Sr. II, que estavam pendentes de resolução e, de que ele tinha conhecimento, designadamente, tratar de assuntos relacionados com o time-sharing, direito real de habitação periódica em ..., cujo titular era II.
93) Foi passada uma Procuração à ora R., por II, para poder resolver tais assuntos relacionados com uma dívida acumulada em relação ao time-sharing.
94) Após o internamento de II, no dia 26 de Dezembro de 2019, havia contas para pagar, tais como água, luz, Nos, seguros, Time-Sharing, IMI, as quais foram liquidadas, conforme extractos juntos.
95) A R. movimentou a conta autorizada por II nos precisos termos, para os quais foi concedida, isto é, em caso de doença impeditiva de o II o fazer.
96) A venda do veículo de marca Volkswagen matrícula ..-..-IR, propriedade de II, o mesmo foi vendido com Autorização do Sr. II e, o produto da venda, cerca de € 900,00, foi aplicado no abatimento da dívida do Time-Sharing, conforme talão que se junta e se dá aqui por reproduzido, cfr doc.2.
97) A R. em Agosto de 2021, deslocou-se ao locado em Faro e, viu-se impedida de aceder ao mesmo, uma vez que a fechadura tinha sido alterada pelos AA., à revelia da R..
98) Tendo procedido também, a nova alteração de fechadura, uma vez que aquela casa, lhe tinha sido atribuída por testamento de II.
99) Já no seu interior, constatou a falta de vários bens, tais como: objetos de valor, roupas de cama, recheio da cozinha, sala, palamenta, relógios de pé e de parede.
100) Também em relação à casa do Porto, que fora casa morada de família do falecido II, sita na Rua ..., n.º ..., 2º dt.º, a R. que tinha sido beneficiada por acto testamentário daquele, viu-se impedida de aceder ao seu interior, porque à sua revelia a fechadura tinha sido alterada, pelos AA. após a morte de II.
101) De imediato, procedeu à troca de fechadura e, logo que teve acesso ao seu interior, deu também, pela falta de vários bens.
102) E face à intervenção das autoridades policiais, apresentou-se como sendo a proprietária, do locado, exibindo cópia do Testamento e da Transmissão Gratuita da Autoridade Tributária;
103) A única TAC, que consta do relatório médico, que serviu para instruir o processo de Maior Acompanhado, realizado pelo Dr. LL – perito, menciona que no Registo da 2.ª Consulta de Neurologia em 22.11.2017, II devido ao consumo de bebidas alcoólicas, sofreu uma queda sob o efeito do álcool e, fez traumatismo craniano e cervical;
104) Até 12.11.2019, o testador manteve a lucidez mínima de entender o que queria, reconhecia a M. Manuel, como a sua afilhada desde criança;
105) Após o seu internamento, a ora R., enquanto lhe foi possível, ia visitar o seu padrinho, era quem lhe levava a roupa lavada e, trazia a suja e durante esse período, sempre reconheceu a R. como a sua afilhada;
106) Os AA. não eram familiares próximos, e viviam no Sul, não mantinham laços de relacionamento com II, nem ele o desejava.
FACTOS NÃO PROVADOS
a) Aquando da outorga do testamento em 12.11.2019 o II se encontrasse incapacitado de incapacitado de entender o sentido exacto da declaração, encontrando-se num estado demencial que o impedisse de compreender o sentido e alcance da declaração prestada no testamento;
b) Os aqui AA. fossem considerados como rede de suporte familiar pelo falecido II e mantivessem contacto próximo com o mesmo;
c) A R. nos últimos anos procurou isolar o falecido dos seus amigos e familiares e dificultar o contacto com as pessoas mais próximas;
d) A R. chegou mesmo a transmitir aos familiares e amigos que o contactavam que II «não atendia o telefone por estar muito esquecido», tendo, inclusive, procedido ao bloqueio do número de telefone de familiares e amigos para evitar os contactos;
e) Mesmo durante o internamento hospitalar, a R. impedia a aproximação de amigos e familiares, mantendo os cartões de visita em seu poder para assim dificultar o contacto e visitas a II;
f) Alguma informação sobre o seu estado clínico ia sendo obtida através de uma prima da falecida esposa de II, QQ, por intermédio de sua filha, médica daquele hospital;
g) Aquando do almoço referido em 29) os funcionários do restaurante, que já conheciam II, tranquilizaram QQ e os seus familiares, transmitindo-lhe que seria frequente II sentir-se mal quando lá ia almoçar;
h) Em data não concretamente apurada do ano de 2009, a polícia já tinha sido chamada a sua casa por vizinhos pelo facto de II manifestar comportamentos estranhos, designadamente gritar no hall de entrada do prédio, dizendo que estava sequestrado dentro do seu apartamento e que queria a porta da entrada do prédio aberta;
i) A R. foi vista por um vizinho, de nome SS, a carregar móveis e vários caixotes do prédio para o seu próprio carro;
j) O escrito aludido em 41) tenha sido escrito próprio punho do falecido II;
k) O falecido possuísse os objetos referidos em 41) e era proprietário de um espólio de moedas e objectos em ouro de valor muito significativo que herdou;
l) Quem frequentava a casa de II sabia da existência dos referidos bens, assim como da existência de um cofre onde o falecido guardava os objetos mais valiosos;
m) As casas do falecido II, no Porto e em Faro, foram, totalmente despojadas pela R, tendo sido levados pela R. todo o ouro (anéis, fios, moedas em ouro), relógios, pratas, bem como outros objectos de valor;
n) Toda a mobília e objectos de valor foram retirados do imóvel do Porto, apesar de os amigos mais próximos do falecido conseguirem atestar que, enquanto frequentaram a sua casa (isto é, até a R. começar a impedir o acesso e o contacto por parte dos seus amigos e familiares), esta se encontrava repleta de móveis, adornos e demais objetos de valor pertença do falecido;
o) O cofre foi aberto e esvaziado do seu conteúdo pela R.;
p) Segundo informação transmitida aos AA., em meados de 2019, uma vizinha da R., de
nome DDD, teria chamado a polícia a casa da R. por se encontrar lá alguém a precisar de ajuda;
q) Chegada a polícia ao local, foi pela referida DDD transmitido que a sua vizinha da frente, que seria uma pessoa idosa, AAA, e que residia na casa onde atualmente reside a R., estava constantemente a pedir ajuda e seria audível para o exterior os seus gritos a pedir socorro;
r) Quando a polícia chegou ao local, tentaram que abrissem a porta, já que existia outra pessoa (a R.) a residir com a senhora idosa;
s) A polícia conseguiu aceder ao imóvel através da varanda e conseguiu, assim, falar com a R;
t) A R. comunicou que sofria de problemas de audição, pelo que não teria respondido à tentativa de auxílio;
u) Confirmou que a idosa, TT, com aquela residente, estava acamada, informando que se tratava de uma pessoa idosa que sofre de diversos problemas de demência que a levaria a ter este tipo de comportamento;
v) A R., em Junho de 2013, dirigiu-se ao Banco 1..., com o seu padrinho, (uma vez que este tinha conhecimentos no banco), para abrir uma conta própria, para receber a sua reforma;
x) E, o Padrinho da ora R. ficou também titular na sua conta e, ele por sua própria iniciativa, também a colocou como pessoa autorizada a movimentar a conta que possuía na Banco 1..., agência da ..., no caso de alguma situação de doença surgir que o impedisse de cumprir com as suas obrigações;
z) O II tenha entregue um envelope à Sra. Dr.ª NN a manifestar a sua vontade de fazer herdeira a R.;
aa) Era o II quem no Verão conduzia para o Algarve;
bb) A R., por sua vez, ainda teve de pôr dinheiro seu, para saldar a divida do Time Sharing na totalidade;
cc) O II, por várias vezes confidenciou à R., ser seu desejo, ser sepultado junto à sua esposa e, que queria levar o fato de casamento, quando o “seu dia” chegasse;
dd) A ora R. sempre o descansou nesse sentido, de que estivesse certo que a sua última vontade seria cumprida;
ee) Contudo por razões alheias à sua vontade, foi sepultado numa campa rasa e, foi com um fato cedido pela funerária;
ff) A R. teve conhecimento do falecimento de Sr. II, seu padrinho, passado 25 dias sobre o óbito do mesmo;
gg) Um vizinho que vive defronte, de nome EEE, referiu à R., ter presenciado os AA. a retirarem da casa várias gavetas com moedas, roupas e outros objectos a serem deitados ao lixo, e vários carros a saírem do local com bens.
3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigos 608.º, n.º 2,
in fine
, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se nas seguintes questões:
─ nulidade da sentença;
─ impugnação da matéria de facto;
─ ónus da prova.
3.1. Da nulidade da sentença
Suscitaram os apelantes a nulidade da sentença por falta de fundamentação, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), CPC, sustentando que a sentença recorrida é nula, por falta de falta de fundamentação, pelo facto de, na análise crítica da prova, se limitar a referir que os factos provados se basearam na análise de “toda a prova documental e elementos clínicos juntos aos autos”, bem como que se “considerou a prova testemunhal”, sem realizar a imprescindível apreciação crítica da prova documental e testemunhal.
Apreciando:
Em consequência da abolição do despacho autónomo de apreciação da matéria de facto, a que aludia o artigo 653.º, n.º 2, do Código pregresso, deixou também de existir o momento processual da reclamação contra o despacho que decidia a matéria de facto (artigo 653.º, n.º 4, do mesmo diploma).
A fixação da matéria de facto provada e não provada e sua motivação passaram a estar integradas na sentença, suscitando-se a questão de saber qual a reacção adequada contra a fixação da matéria de facto e sua fundamentação, quando ocorra algum dos vícios que anteriormente constituíam fundamento de reacção contra o despacho que apreciava a matéria de facto — deficiência, obscuridade ou contradição da decisão ou falta de motivação.
O alcance deste segmento não é uniforme na doutrina e jurisprudência, no que concerne aos vícios da matéria de facto.
Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, vol. I, sustentam que, não havendo despacho autónomo a decidir a matéria de facto e com o desaparecimento da possibilidade de reclamação contra o despacho que decide a matéria de facto, o regime de impugnação passa a ser o da sentença em que se insere (artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), CPC).
Não se afigura, porém, que o legislador tenha querido alterar o entendimento corrente acerca do conceito de «questões».
Como se lê no ponto III do sumário do acórdão do STJ, de 2015.01.08, João Trindade, www.dgsi.pt.jstj, proc. 129/11.0TCGMR.G1.S1,
Como as questões em sentido técnico não podem ser confundidas com factos, a falta de consideração de um facto tido pela recorrente como demonstrado ou um suposto erro na apreciação da prova, não integra a nulidade prevista na primeira parte da alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do NCPC (2013), o mesmo se podendo afirmar relativamente a argumentos ou invocações que não integram os fundamentos da causa de pedir (da acção ou da reconvenção) ou de excepções.
O acórdão da Relação de Lisboa, de 2014.12.09, Cristina Coelho, www.dgsi.pt.jtrl, proc. 8601/12.8TBOER.L1, entendeu igualmente que o disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. c), CPC, não se aplica aos vícios da matéria de facto.
Lê-se no sumário deste acórdão:
1. Não obstante a profunda alteração que foi introduzida pela L. 41/2013 de 26.06 no que respeita à decisão sobre a matéria de facto e respectiva fundamentação, que deixaram de ter lugar em sede de audiência de julgamento para passarem a constar da sentença, a disciplina das nulidades da sentença não sofreu alterações na sua essência, devendo o art. 615º ser interpretado tal como já vinha acontecendo.
2. Eventual contradição entre a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e a mesma decisão não integra a nulidade da sentença prevista na 1ª parte da al. c) do art. 615º do CPC, podendo, eventualmente, consistir em erro de julgamento na apreciação da matéria de facto provada.
No mesmo sentido, veja-se ainda o acórdão da Relação de Guimarães, de 2014.11.23,
Filipe Caroço, www.dgsi.pt.jtrg, proc. 29/13.9TBPCR.G1.
A sanção para a falta de motivação de pontos da matéria de facto não é a nulidade da decisão. Com efeito, dispõe o artigo 662.º, n.º 2, alínea d), CPC, que
A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente, determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
Improcede, pois, a arguida nulidade da sentença recorrida.
3.1. Da impugnação da matéria de facto
Cumpridos que se mostram os ónus estabelecidos no artigo 640.º CPC, importa conhecer da impugnação da matéria de facto.
São os seguintes os pontos da matéria de facto impugnados:
Dos factos provados
63) Desde criança que a R. e seus pais conviviam com II e sua esposa, BBB, aliás, foram Padrinhos de Crisma da R..
64) Razão pela qual, a R. chamava II de padrinho e, aquele de sua afilhada e assim era reconhecida pelos próprios e por terceiros.
(…)
66) A R. DD emigrou para África do Sul e Moçambique, contudo manteve sempre ligação à família de II, pois quando vinham de férias a Portugal, visitavam-nos.
67) Há cerca de 10 anos, aquando do regresso da R. de África do Sul, mesma começou a
ajudar o Sr. II.
68) Auxiliava-o na casa, nas compras, idas às consultas médicas, fazia-lhe companhia e passeava com ele.
(…)
70) II apenas confiava na R., a quem considerava como uma pessoa de família.
71) Sabia da existência dos primos do Algarve, mas não mantinha qualquer relacionamento com os mesmos, tendo em tempos, cerca de 2014, tido uma desavença, que originou o afastamento do Sr. II daqueles, por os mesmos terem pedido emprestado um andar temporariamente e após isso vieram a possuir outro prédio sem ter entregue o emprestado ao II, o qual não fazia questão de ter qualquer relacionamento com os ora AA..
72) Era a R., sua afilhada, a pessoa mais próxima sua e em quem confiava para o auxiliar na casa, ser seu confidente, ir às consultas médicas com ele, etc..
(…)
77) As consultas de Neurologia tiveram por base esse mesmo problema, o consumo em excesso de bebidas alcoólicas.
(…)
79) A revalidação de carta de condução de um cidadão obedece a vários critérios de exames feitos na presença do seu médico de família e que atestam a boa capacidade física e mental da pessoa, o que se verificou com o Sr. II nessa ocasião, tenho-lhe sido passado o atestado, aferindo da sua capacidade para conduzir, e poder revalidar a sua carta de condução sem qualquer tipo de problema;
(…)
81) Até à data de entrada no Hospital ..., a 26.12.2019, II sempre se mostrara lúcido, informado, dentro das condições e limitações para a sua idade.
82) Após o seu internamento, II vivencia uma conjectura nada favorável, à estabilização do seu estado psíquico e físico, o COVID-19, ficando privado das visitas, de sua afilhada, com que mantinha um relacionamento afectivo desde sempre e, que no hospital, sempre a reconheceu como tal.
84) Estava consciente dessa sua tomada de posição, daquilo que queria e de como pretendia dispor dos seus bens para além da sua morte.
85) No acto de testamento, entendeu o conteúdo do mesmo, correspondendo este à sua livre e esclarecida vontade, designadamente a de querer beneficiar a R. DD, a quem reconhecia como sua afilhada e em quem sempre depositou confiança.
86) No momento da outorga do testamento, a 12 de Novembro de 2019, estava lúcido.
87) A sua assinatura aposta no acto testamentário, pelo seu punho, é perfeitamente legível, com traço preciso, equilíbrio e sem indícios de qualquer perturbação, logo uma assinatura, própria de quem se encontra capacitado.
88) Acresce que quando foi lido e explicado o conteúdo do testamento a II
II, o mesmo estava capaz de entender o respectivo conteúdo, estava esclarecido de que ele correspondia à sua vontade, bem como as suas consequências.
89) O Sr. Notário JJ, nenhuma dúvida teve, aquando da outorga do testamento pelo II, que entendeu e percebeu o que disse nesse momento e que tal era a sua vontade.
(…)
91) O II viveu com a sua esposa e, quando ocorreu o seu falecimento, foi sozinho que ficou e com o avançar da idade, necessitou de ajuda e, foi à ora R., a sua afilhada, a quem recorreu e, a alguns amigos, esta sim, a sua rede de suporte familiar.
92) A R. deslocou em Janeiro de 2020 a Faro, de comboio Alfa, já depois do internamento de II, para tratar de assuntos do Sr. II, que estavam pendentes de resolução e, de que ele tinha conhecimento, designadamente, tratar de assuntos relacionados com o time-sharing, direito real de habitação periódica em ..., cujo titular era II.
(…)
96) A venda do veículo de marca Volkswagen matrícula ..-..-IR, propriedade de II, o mesmo foi vendido com Autorização do Sr. II e, o produto da venda, cerca de € 900,00, foi aplicado no abatimento da dívida do Time-Sharing, conforme talão que se junta e se dá aqui por reproduzido, cfr doc.2.
(…)
104) Até 12.11.2019, o testador manteve a lucidez mínima de entender o que queria, reconhecia a M. Manuel, como a sua afilhada desde criança;
105) Após o seu internamento, a ora R., enquanto lhe foi possível, ia visitar o seu padrinho, era quem lhe levava a roupa lavada e, trazia a suja e durante esse período, sempre reconheceu a R. como a sua afilhada;
106) Os AA. não eram familiares próximos, e viviam no Sul, não mantinham laços de relacionamento com II, nem ele o desejava.
Dos factos não provados
a) Aquando da outorga do testamento em 12.11.2019 o II se encontrasse
incapacitado de incapacitado de entender o sentido exacto da declaração, encontrando-se num estado demencial que o impedisse de compreender o sentido e alcance da declaração prestada no testamento;
b) Os aqui AA. fossem considerados como rede de suporte familiar pelo falecido II e mantivessem contacto próximo com o mesmo;
c) A R. nos últimos anos procurou isolar o falecido dos seus amigos e familiares e dificultar o contacto com as pessoas mais próximas;
(…)
h) Em data não concretamente apurada do ano de 2009, a polícia já tinha sido chamada a sua casa por vizinhos pelo facto de II manifestar comportamentos estranhos, designadamente gritar no hall de entrada do prédio, dizendo que estava sequestrado dentro do seu apartamento e que queria a porta da entrada do prédio aberta;
(…)
p) Segundo informação transmitida aos AA., em meados de 2019, uma vizinha da R., de nome DDD, teria chamado a polícia a casa da R. por se encontrar lá alguém a precisar de ajuda;
q) Chegada a polícia ao local, foi pela referida DDD transmitido que a sua vizinha da frente, que seria uma pessoa idosa, AAA, e que residia na casa onde atualmente reside a R., estava constantemente a pedir ajuda e seria audível para o exterior os seus gritos a pedir socorro;
r) Quando a polícia chegou ao local, tentaram que abrissem a porta, já que existia outra pessoa (a R.) a residir com a senhora idosa;
s) A polícia conseguiu aceder ao imóvel através da varanda e conseguiu, assim, falar com a R;
t) A R. comunicou que sofria de problemas de audição, pelo que não teria respondido à tentativa de auxílio;
u) Confirmou que a idosa, TT, com aquela residente, estava acamada, informando que se tratava de uma pessoa idosa que sofre de diversos problemas de demência que a levaria a ter este tipo de comportamento;
Facto a aditar
II frequentava consultas de Neurologia desde, pelo menos 2017, tendo por base o problema demencial (PERTURBAÇÃO NEUROCOGNITIVA-MAJOR) de que padecia.
A 1.ª instância motivou assim a sua convicção:
Considerou-se toda a prova documental junta aos autos, designadamente, a referida em cada um dos factos provados, bem como elementos clínicos juntos aos autos.
Considerou-se a prova testemunhal.
UU, assistente social do Hospital ....
Contactou com o II desde os primeiros tempos de internamento.
Confrontada com o doc. 10 com informação social diz que foi elaborado pela própria.
Na altura o II não se bastava a si próprio.
Os AA. não foram identificados na altura como familiares.
Desconhece o contexto em que foi elaborada a procuração.
A R. disse que o falecido assinou a procuração no hospital.
O grupo clínico entendia que o falecido não possuía capacidade.
A R, dizia que era afilhada do falecido II, o que está referido no relatório social SS
O falecido era casado com uma prima da testemunha.
Enquanto a prima foi viva tinha muito contacto com o falecido II.
O falecido II consumia muito álcool.
Em 2019 o II já não foi para o Algarve às vezes tinha comportamentos inapropriados na rua, mandando piropos.
Quando foi vê-lo ao hospital, em Dezembro de 2019, antes do COVID, ele já não o reconhecia.
O falecido dizia que a R. tomava conta dele.
A testemunha costumava falar com o II telefonicamente duas vezes por mês.
Cerca de 2 meses antes do internamento o II apareceu no restaurante a cheirar a xixi e levaram-nos para o Hospital 4..., tendo a R. aparecido no hospital.
Foi 2 vezes a casa do II no Porto, o qual mostrou fotografias de relógios e fios de ouro.
O II acumulava paletes de água com gás no Algarve e outros objectos.
A casa no Porto estava suja e cheirava mal.
O falecido tinha um carro no Algarve.
Antes da celebração do testamento a R. terá estado 2 anos com falecido.
QQ, irmã da anterior testemunha, prima do falecido por afinidade da esposa.
Teve uma relação próxima com o falecido, porque a esposa deste tomava conta da filha da testemunha até aos 3 anos, após a relação foi-se esmorecendo.
Em 2019 ainda realizaram um almoço por volta de Outubro/Novembro, tendo o falecido II se sentido mal e a testemunha levou-o ao Hospital 4..., apresentando problemas demenciais, estava todo sujo e urinou, notava-se um discurso pouco consistente, perdido no discurso, pensando que a testemunha era a mãe dele.
Quando foi a casa do II no Porto a casa estava toda imunda.
Visitou o falecido no Porto por 2 vezes quando este se encontrava internado.
Instada sobre o doc. 18 da p.i desconhece se a letra é do falecido II.
Tinham peças de ouro e salvas de prata.
O falecido foi internado em Janeiro de 2020 no Hospital ... no Porto.
FFF.
Amigo do falecido II desde 1980, encontrava-se todas as semanas com este.
O falecido bebia num fim de semana uma garrafa de uísque.
O falecido ultimamente tinha dificuldade em se movimentar, mas falava com a testemunha.
RR, esposa da anterior testemunha.
Os contactos que tinha com o falecido eram telefónicos, o qual tinha um discurso estranho.
RR, esposa da anterior testemunha.
Os contactos que tinha com o falecido II eram telefónicos, o qual ligava à noite e dizia que dava dinheiro à R. para lhe trazer as refeições.
Tinha problemas de alcoolismo, sendo capaz de beber uma garrafa de uísque num dia.
O falecido tinha muito ouro e peças em prata.
Confrontada com o doc. 18 da p.i. diz que nunca tinha visto o documento e que é a letra do falecido.
LL, médico-psiquiatra no Hospital 1....
Diz que em 2017 o falecido tinha 26 pontos abaixo do normal.
Confrontado com doc. 13 da p.i. de 11/12/2020, elaborado no âmbito do processo de maior acompanhado.
Foi ver o falecido onde estava internado e este estava desorganizado e totalmente dependente para a marcha.
O ano de 2019 é um ano de perda de capacidades.
VV, assistente social em Faro.
No âmbito do processo de maior acompanhado articulou-se com a colega BB do Hospital 5... no Porto para envio de informação do hospital.
JJ, notário há 21 anos.
Outorgou o testamento em causa nos autos, só tendo outorgado o mesmo porque o testador estava em estado normal, caso contrário, não realizava o testamento.
Leu e explicou o testamento e o testador estava normal e compreendia bem o acto, a assinatura do testador era equilibrada e em condições de sanidade mentais normais.
Quem agendou o testamento foi a Drª NN.
NN, advogada,
O falecido procurou ajuda profissional e queria realizar um testamento a favor de alguém que
dizia ser sua afilhada.
O falecido não manifestava qualquer desequilíbrio e por isso diligenciou pela realização do testamento.
No dia do testamento o falecido estava em estado normal, lúcido e bem disposto, sem qualquer discurso delirante ou incoerente.
OO, funcionária da Drª NN.
Assistiu como testemunha à realização do testamento.
EEE
Vivia em frente ao prédio do falecido II em Faro.
O falecido ultimamente ia sozinho ao Algarve.
Ultimamente estava lá uma moça que dizia que o prédio era dela e depois vieram outras pessoas do Porto a dizerem que era deles, tendo mudado as fechaduras, tendo pedido à testemunha se visse lá alguém para lhe ligarem.
PP
Conhecia o falecido II.
A R. tinha uma relação com o II desde criança, tratando este por padrinho.
O II e a R. disseram à testemunha que aquele tinha cortado relações com os primos, cerca de 2014, porque estes tinham casa e continuaram a utilizar a casa emprestada do II sem lhe dizer nada.
O falecido renovou a carta de condução aos 84 anos de idade.
A R. era tratada pelo II como filha.
Após o internamento do II a R. deslocou-se ao Algarve, a pedido do II, tendo a testemunha acompanhado a R., com vista a ver o estado do prédio.
Foi necessário vender o carro Volkswagen, tendo o falecido passado uma procuração à R. para vender o veículo e assim pagar as despesas, tais como o Time sharing.
O KK era primo do II.
Namorava com a DD tendo chegado a viver em união de facto.
Esteve 3 vezes com o II em 2017/18.
A DD em 2016 já estava em Portugal, desempenhado as funções de contabilista na África do Sul, em Portugal era doméstica.
A DD disse que era titular das contas do II.
O II no início do internamento estava lúcido, começando depois a piorar, pelo que a DD contava.
O II disse que queria beneficiar a DD por esta cuidar dele, o que esta também referia.
MM, médica especialista de medicina interna no Hospital ..., exercendo as funções há 5 anos.
Conheceu o II no início de 2020, quando ele foi internado, o qual se encontrava
desorientado no tempo e no espaço.
Foi sinalizado como caso social, chegou a regressar a casa, mas como não tinha ninguém em casa trouxeram-no de volta para o hospital, desconhecendo se ligaram para a filhada, aqui R., a dizer que ele ia ter alta.
Só teve conhecimento da procuração (passada no hospital) à posteriori.
O II teve visitas da R. no hospital.
É possível estar mais confuso por estar no Hospital.
O II precisava de apoio permanente.
YY.
Conhecia o II há 20 anos, o qual dizia que a testemunha era o irmão mais novo.
O II era amigo dos pais da testemunha, conviviam muito, tendo os pais da testemunha chegado a ir para a casa do II.
Só com a GGG, prima e mãe do KK, é que havia uma relação mais próxima do II.
O II chateou-se com os primos.
O II em 2018 conduzia, tendo a testemunha chegado a ir com ele encher os pneus em Faro.
O II era uma pessoa muito culta, nunca se tendo apercebido que estivesse confuso ou incapaz de saber o que fazia.
O II apresentou a DD como afilhada por crisma e também foi padrinho de baptismo da filha da R. EE.
O II confiava muito na R., ao ponto de dar autorização de movimentar as contas, tendo falado nisto com a testemunha.
O II tinha muita alegria em ter a DD a cuidar dele.
A DD esteve emigrada e quando vinha a Portugal visitava o II.
Os primos no Algarve tinham a chave da casa e aquilo estava abandonado. A testemunha chegou a limpar o quintal várias vezes quando ia ao Algarve passar férias.
Enquanto a GGG esteve viva o abandono do prédio nunca se verificou.
Nunca viu ou presenciou alguma coisa no II que pudesse dizer que estava incapaz intelectualmente.
O II falou com uma advogada para fazer o testamento.
Umas semanas antes do testamento (12.11.2019) o II dizia que ia reformular o testamento
anterior, e estava intelectualmente plenamente capaz.
A R. DD teve problemas para visitar o II.
A testemunha tentou visitar o II no Hospital e disseram-lhe telefonicamente que não podia visitá-lo e que devia tentar saber do estado de saúde do mesmo pelo tutor.
A R. deslocou-se ao Algarve com o Sr. PP quando o II estava internado, não levava chaves e falou com o KK, filho da GGG, o qual ligou à testemunha a perguntar se podia dar a chave à DD.
Após a morte do II a R. foi ao Algarve outra vez e tinham sido retiradas muitas coisas da casa, tendo sido trocada a fechadura.
No Porto também trocaram a fechadura da casa.
Desde 2008 ia todos os anos para o Algarve para a casa do II.
A testemunha tratava tudo do II, como IMI, IRS e falava com ele com frequência, cerca de 10 vezes por ano.
O último que esteve com o II no Algarve foi em 2018.
Sabia que o II estava a ser seguido em neurologia, por beber muito, tendo chegado a passar uma procuração a favor da testemunha.
O II quando estava no Algarve morava no último andar e a testemunha ficava no rés-do-chão.
HHH
Amigo da R.
Conhecia a DD, a qual lhe pediu várias vezes para a levar ao Hospital 6... visitar o padrinho (falecido II).
A R. foi hospitalizada e pediu-lhe para a casa do II buscar umas coisas e quando chegou lá verificou que tinham sido mudadas as fechaduras.
ZZ.
Antiquário, conhecia o falecido II porque almoçava quase todos os dias no mesmo restaurante.
O II andava muitas vezes acompanhado pela afilhada, aqui R.
Ele confidenciava que ia deixar os bens à R por ser a única pessoa que tinha com ele e que ia ser a sua herdeira.
Ponderaram-se ainda as declarações de parte das AA. BB e CC.
Referiram que só souberam que o falecido estava doente em Janeiro de 2020, através de uma amiga e de um contacto da assistente social,
A última vez que estiveram fisicamente com o falecido II foi em 2017 e a partir desta data também deixaram e ter contacto telefónico com o mesmo.
Sabiam que havia uma pessoa que cuidava da casa, mas desconheciam que era a R.
O II nunca ia a conduzir para o Algarve, porquanto utilizava o comboio.
Soube da procuração através da assistente social.
O tio AA foi nomeado acompanhante do II.
Quando foram ao Porto o imóvel estava vazio e em Faro um vizinho disse que a R. carregou coisa do apartamento.
A R. continuou a movimentar a conta após ter sido decretado o acompanhamento do II.
***
Análise crítica da prova.
Algumas considerações cabem ser feitas sobre a prova produzida e consequentes facto provados e não provados.
Relativamente aos pontos 1) a 18) os mesmos já se encontravam assentes no despacho saneador.
Sobre o restante:
No que concerne ao elemento essencial de saber se o falecido II no momento da outorga do testamento (12.11.2019) padecia de incapacidade para tal acto (facto não provado em a) e provados 81) a 90), foi evidente que o mesmo se encontrava com as capacidades mentais necessárias e suficientes no momento do acto de outorga do testamento, conforme se verá.
Prevê o art. 342°, n° 1 do Código Civil que:
Àquele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
Sob a epígrafe Princípio a observar em casos de dúvida mais prevê o art. 414° do Código de Processo Civil que A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
É doutrinária e jurisprudencialmente consensual que o princípio do ónus da prova. e as regras da sua distribuição não interferem na atividade de apreciação crítica da prova nem correspondem a critério de decisão de facto. No dizer do professor Alberto dos Reis, (in Código de Processo Civil anotado, Vol. III, p. 272), o ónus da prova (...) conduz-nos a averiguar que factos hão-de ser provados para que a decisão apresente determinado conteúdo (modalidade do ónus objetivo, em contraposição com o ónus subjetivo), correspondendo assim a questão e critério de decisão de direito, inerente ou inseparável da previsão ou dos elementos integrantes da norma jurídica a aplicar para resolução da lide - cada uma das partes tem o ónus de alegar e provar os factos correspondentes à fattispecie geral e abstrata da norma que é favorável à sua pretensão ou à sua exceção, atendendo à posição das partes na relação material e independentemente da sua posição no processo. No mesmo sentido Anselmo de Castro: No processo não se provam direitos mas apenas factos, pois a existência do direito é simples consequência dos elementos fácticos típicos da norma fundamentadora do direito; (...). Em caso de dúvida terão, pois, esses factos de haver-se por inexistentes, tal qual como quanto aos factos que constituem os elementos da norma fundamentadora (...) O problema da distribuição do ónus da prova entre as partes, reconduz-se, assim, a um problema de aplicação da lei. (Direito Processual Civil Declaratório, vol. III p. 351 e 352).
Assim, a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se em sede de apreciação jurídica da causa e contra a parte a quem o facto aproveita, de acordo com a previsão das normas que o litígio convoca para a sua resolução, sendo a determinação destas de acordo com a fundamentação da pretensão de cada uma das partes em face dos elementos abstratos da lei, da qual se extrai quais os factos constitutivos da pretensão concreta deduzida no processo, vide Ac. do STJ, de 25/03/2021, processo 1437/16.9T8OER.L2.S1, Relator Bernardo Domingues, in www.dgsi.pt.
No presente caso cabia aos AA. fazer prova da pretensa incapacidade do falecido II no momento da outorga do testamento, o que, manifestamente, não lograram provar, como veremos.
Com efeito, inexiste qualquer prova testemunhal credível que tenha sustentado que na altura da outorga do testamento o falecido se encontrava incapacitado para a prática de tal acto, pelo contrário, a prova testemunhal produzida foi no sentido de que o falecido no momento da outorga da escritura se encontrava com consciência livre e esclarecida, sabedor do acto que se encontrava a praticar e que queria praticar.
Sobre tal asserção, vejam-se o depoimento da testemunha JJ, notário há 21 anos, o qual foi claro em referir que o falecido estava em estado de sanidade mental normal, leu, explicou o testamento, após a assinatura com equilíbrio, e não se apercebeu que o falecido padecesse de qualquer incapacidade, o que levaria a recusar a prática do acto.
Temos ainda o depoimento da testemunha NN, advogada que diligenciou pelo agendamento do testamento, a qual foi clara em referir que o falecido não manifestava qualquer desequilíbrio quando a contactou para o agendamento do testamento e que no dia da outorga do mesmo estava normal, lúcido, bem disposto, sem qualquer discurso delirante ou incoerente que pudesse pôr em causa a realização do acto pelo notário,
No mesmo sentido veja-se o depoimento da testemunha OO que assistiu à realização do testamento.
Acresce que era vontade manifesta do falecido outorgar o testamento a favor da R., sentindo uma grande alegria por ter esta a tratar dele, veja-se o depoimento credível da testemunha YY, o qual foi, ainda, claro em referir que nunca se apercebeu que o II estivesse confuso ou incapaz
de saber os actos que praticava.
No mesmo sentido foi o depoimento da testemunha ZZ, o qual referiu que o falecido dizia que ia deixar os bens à R e fazê-la sua herdeira, por ser a única pessoa que cuidava dele, depoimentos que se encontram coincidentes com o da testemunha PP.
Diga-se, ainda, que o relatório pericial elaborado no âmbito do processo de maior acompanhado, teve apenas uma observação efectuada ao II em 11/12/2020, tendo sido o restante elaborado com base nos elementos referidos no relatório, designadamente, as consultas de acompanhamento de neurologia efectuadas pelo falecido II.
A sentença de maior acompanhado fixou as medidas de acompanhamento em 26/12/19 (data do internamento hospitalar).
Compulsados todos estes elementos de prova, o Tribunal não teve dúvida alguma que aquando da outorga do testamento, 12/11/19, o falecido II tinha as suas faculdades mentais necessárias e capazes para saber o acto que estava a praticar, o qual mais não foi que um corolário lógico daquilo que pretendia fazer e que alardeava junto dos amigos e conhecidos que o conheciam no dia a dia, ou seja, outorgar o testamento a favor da R.
Atente-se que a R. era a pessoa que cuidava do II, que o levava às consultas, em quem ele depositava toda a confiança, inclusive para movimentar as contas bancárias, contrariamente ao que sucedia com os AA. em quem ele não confiava, nem tinha quase contactos, em especial, após 2014, quando descobriu que os primos tinham casa e continuavam a viver no apartamento que lhes tinha emprestado, tendo cortado relações com os mesmos.
Acresce ainda que o relatório pericial apenas teve uma observação (11/12/2020) e a sentença de maior acompanhado fixou as medidas de acompanhamento em 26/12/2019, tudo datas posteriores posteriores à data da outorga do testamento (12/11/2019), pelo que estes elementos são manifestamente insuficientes para deles se poder alguma vez concluir que à data da outorga do testamento o falecido II estivesse incapaz de compreender o acto que se encontrava a realizar, pelo contrário, fê-lo eivado de uma vontade livre e capaz, com o objectivo sempre manifestado de fazer a R. sua herdeira.
Sobre a questão do falecido ter acompanhamento neurológico, a própria R. reconheceu tal facto, dado o consumo de bebidas alcoólicas pelo falecido, sendo a própria R. a acompanhar o falecido às várias consultas, como resulta do relatório pericial, mas, daqui concluir e tentar retirar a ilação que o falecido estava num estado mental de incapacidade para a prática do acto de outorga do testamento, é completamente desproporcionada e despida de fundamento tal asserção, como decorreu da prova testemunhal produzida e já acima referida.
Cabe ainda realçar que a sentença de Maior acompanhado fixou a incapacidade em 26/12/2019, ou seja, em data posterior à da outorga do testamento (12.11.2019, cabendo sempre dizer que tal acabaria por não ser decisivo e conclusivo, porquanto na presente situação encontramo-nos no âmbito da aferição da incapacidade acidental, aquando da outorga do testamento.
É entendimento pacífico na jurisprudência que, nesta sede, o que releva para efeitos anulatórios não é a data da condição de interdito ou inabilitado, pois esta só se constituiu com a sentença, mas antes de averiguar a data de começo da incapacidade natural ou de facto e, mais concretamente, quando é que o requerido no processo passou a estar afectado por anomalia psíquica que o tornou incapaz de reger a sua pessoa e bens, vide, entre outros, ac TRE, de 13/12/2020, Processo 193/16.0T8STR.E1, relator Tomé de Carvalho, in www.dgsi.pt.
É jurisprudência uniforme, “A declaração judicial, na sentença que decreta a interdição, sobre a data do começo da incapacidade, constitui mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência, da incapacidade, à qual pode ser oposta contraprova, nos termos do artigo 346º do CC.
Em todo o caso, na vigência do Código Civil de 1966, a doutrina e a jurisprudência têm atribuído a tal declaração judicial um valor meramente indiciário: não de uma presunção legal (iuris et iure ou iuris tantum), mas o valor de mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência que, embora constitua um começo de prova, não inverte o ónus da prova da existência da incapacidade no momento da prática do acto – ónus que impende sobre quem pede a anulação, vide, entre outros, Ac. STJ de 06 Abril 2021, processo 2541/19.7T8STB.E1.S1, Relator Fernando Samões, in www.dgsi.pt.
Só serão inválidos se, acidentalmente, na altura em que são praticados, o declarante está incapacitado, nos termos do artigo 257.º do Código Civil. Temos, pois, que, nestes casos, a capacidade é a regra e a incapacidade é a excepção, pelo que quem invocar esta tem o ónus de a provar, ou seja, compete a quem invoca uma incapacidade fundada no artigo 257º do Código Civil alegar e provar que o declarante se encontrava, na altura da prática do acto, incapacitado nos termos e para o feito do disposto neste artigo.
A incapacidade acidental, prevista e regulada no artigo 257º do C. Civil, exige, para a anulabilidade do acto, como já acima foi referido que, no momento da prática do acto, haja uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade; e que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário (passível de apreensão por uma pessoa média, colocada na posição do declaratário).
No presente caso a questão nem sequer se coloca, porquanto é manifesto que a outorga do testamento é anterior à fixação do acompanhamento de maior acompanhado, sendo certo que os AA. não lograram provar que o falecido II estivesse incapacitado no momento da outorga do testamento em 12.11.2019.
Relativamente à questão dos AA. serem o suporte de apoio familiar (factos não provados em a) e b) e provados 64) a 67), 72), 106), tal não passa de uma quimera.
Com efeito, como já atrás foi referido, o falecido II, praticamente, não tinha quaisquer contactos com os AA., os que haviam eram esporádicos, em especial desde 2014, quando se incompatibilizou com os primos por estes estarem a ocupar o andar por empréstimo e entretanto, terem outro sem que tivessem comunicado tal facto ao II.
Aliás, quase nem é necessário recorrer a prova testemunhal para se inferir e constatar que era a R. que prestava apoio e cuidava do II, atente-se no relatório pericial, donde se extrai, com clareza, nas consultas de neurologia, desde 09/08/2017, foi sempre a R. que acompanhou o II às consultas, o que corresponde e está de acordo com o expresso pelas testemunhas PP e YY.
Em suma, dizer-se que os AA. constituíam o suporte familiar do falecido II não corresponde minimamente à realidade dos factos, porque esse apoio era prestado pela R. que era considerada como afilhada pelo falecido II.
No que concerne à questão da procuração outorgada a favor da R, pelo II, não temos a mesma, mas temos o depoimento da testemunha PP, com uma grande proximidade com a R., a referir que o II outorgou uma procuração a favor da R. para esta poder vender o veículo automóvel Volkswagen e, assim, poderem pagar as despesas, entre as quais, do Time- sharing.
Como no relatório clínico social se diz que o falecido estava confuso, pese tal ser natural dado se estar num meio ambiente estranho, o tribunal ateve-se à sentença que decretou o acompanhamento, considerando que nessa data, após o internamento, o falecido estaria incapaz para outorgar a procuração.
Sobre a questão da R. ter retirado objectos da casa em Faro e no Porto, não foi produzida qualquer prova nesse sentido, sendo certo que na casa de Faro a R. não possuía as chaves e quando aí se deslocou, após o internamento do II, teve de pedir as chaves, desconhecendo-se quem retirou os objectos..
Ainda sobre a questão dos objectos aludidos em 41) nenhuma prova credível foi produzida a referir a existência de tais objectos.
***
Apreciando:
Da matéria de facto relevante
A reapreciação da matéria de facto constitui uma garantia das partes no sentido de ver reapreciado o julgamento por uma instância de recurso, assumindo natureza
instrumental da decisão, e não um exercício académico.
Por isso, apenas há que conhecer da matéria de facto que seja relevante para a apreciação do mérito da causa, não se podendo desperdiçar recursos escassos em actividades inúteis. Assim o impõe o princípio da economia processual, com ganhos evidentes em matéria de celeridade (cfr., a título meramente exemplificativo, os acórdãos do STJ, de 09.02.2021, Maria João Vaz Tomé,
www.dgsi.pt.jstj
, proc. n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1, de 28.01.2020, Pinto de Almeida,
www.dgsi.pt.jstj
,
proc. n.º 287/11.3TYVNG-G.P1.S1
,
de 05.02.2020, Nuno Pinto Oliveira,
www.dgsi.pt.jstj
, proc. n.º 4821/16.4T8LSB.L1.S2).
Isso mesmo reconheceram os próprios impugnantes na motivação, assinalando que admitem que dando como não provado os pontos 81.º, 83.º, 84.º, 85.º, 86.º, 88.º e 104.º dos factos provados e dando como provado ponto a) dos factos não provados, já poderia ser suficiente para julgar totalmente procedente o presente recurso.
Atendendo que está em causa em causa no recurso saber se está preenchido o fundamento legal de anulação do testamento previsto no artigo 2199.º CC [é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória], apenas relevam os factos susceptíveis de demonstrar a (in)capacidade do testador. Irrelevantes os factos relativos ao relacionamento da beneficiária do testamento com o testador, ou a relação deste com os ora apelantes, seus familiares, detentores da qualidade de sucessíveis (não está em causa a interpretação do testamento, mas a (in)capacidade do testador). Igualmente despiciendos os factos relativos a actos de conteúdo patrimonial relativamente ao património do testador praticados pela beneficiária do testamento.
Neste contexto, serão reapreciados os seguintes pontos da matéria de facto:
Ponto 77 da matéria de facto provada e ponto a aditar
77) As consultas de Neurologia tiveram por base esse mesmo problema, o consumo em excesso de bebidas alcoólicas.
Ponto 79 da matéria de facto provada
79) A revalidação de carta de condução de um cidadão obedece a vários critérios de exames feitos na presença do seu médico de família e que atestam a boa capacidade física e mental da pessoa, o que se verificou com o Sr. II nessa ocasião, tenho-lhe sido passado o atestado, aferindo da sua capacidade para conduzir, e poder revalidar a sua carta de condução sem qualquer tipo de problema;
Ponto 81 da matéria de facto provada
81) Até à data de entrada no Hospital ..., a 26.12.2019, II sempre se
mostrara lúcido, informado, dentro das condições e limitações para a sua idade.
Pontos 84 a 88 da matéria de facto provada
84) Estava consciente dessa sua tomada de posição, daquilo que queria e de como pretendia dispor dos seus bens para além da sua morte.
85) No acto de testamento, entendeu o conteúdo do mesmo, correspondendo este à sua livre e esclarecida vontade, designadamente a de querer beneficiar a R. DD, a quem reconhecia como sua afilhada e em quem sempre depositou confiança.
86) No momento da outorga do testamento, a 12 de Novembro de 2019, estava lúcido.
87) A sua assinatura aposta no acto testamentário, pelo seu punho, é perfeitamente legível, com traço preciso, equilíbrio e sem indícios de qualquer perturbação, logo uma assinatura, própria de quem se encontra capacitado.
88) Acresce que quando foi lido e explicado o conteúdo do testamento a II, o mesmo estava capaz de entender o respectivo conteúdo, estava esclarecido de que ele correspondia à sua vontade, bem como as suas consequências.
Ponto 104 da matéria de facto provada
104) Até 12.11.2019, o testador manteve a lucidez mínima de entender o que queria, reconhecia a M. Manuel, como a sua afilhada desde criança;
Alínea a) da matéria de facto não provada
a) Aquando da outorga do testamento em 12.11.2019 o II se encontrasse incapacitado de entender o sentido exacto da declaração, encontrando-se num estado demencial que o impedisse de compreender o sentido e alcance da declaração prestada no testamento;
Facto a aditar
II frequentava consultas de Neurologia desde, pelo menos 2017, tendo por base o problema demencial (PERTURBAÇÃO NEUROCOGNITIVA-MAJOR) de que padecia.
***
Conhecendo da impugnação da matéria de facto
Ponto 77 da matéria de facto provada e facto a aditar
77) As consultas de Neurologia tiveram por base esse mesmo problema, o consumo
em excesso de bebidas alcoólicas.
Facto a aditar
II frequentava consultas de Neurologia desde, pelo menos 2017, tendo por base o problema demencial (PERTURBAÇÃO NEUROCOGNITIVA-MAJOR) de que padecia.
A redacção do ponto 77 da matéria de facto provada é demasiado redutora, pois sugere que as consultas de neurologia foram motivadas por um problema de alcoolismo, que efectivamente existia, mas não foi determinante para o recurso
àquela especialidade.
O registo da 1.ª consulta de neurologia, que infra se transcreverá, nem sequer faz
alusão expressa ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas, mas sim aos esquecimentos, discurso repetitivo, confusões.
Assim,
o ponto 77 da matéria de facto provada passa a ater a seguinte redacção
:
II frequentava consultas de Neurologia desde, pelo menos 2017, tendo por base o problema demencial (PERTURBAÇÃO NEUROCOGNITIVA-MAJOR) de que padecia.
*
Ponto 79 da matéria de facto provada
79) A revalidação de carta de condução de um cidadão obedece a vários critérios de exames feitos na presença do seu médico de família e que atestam a boa capacidade física e mental da pessoa, o que se verificou com o Sr. II nessa ocasião, tenho-lhe sido passado o atestado, aferindo da sua capacidade para conduzir, e poder revalidar a sua carta de condução sem qualquer tipo de problema;
Deste ponto da matéria de facto provada o único segmento isento de crítica é o relativo a circunstância de o Sr. II ter sido submetido a um exame médico para revalidação da sua carta de condução e lhe ter sido passado atestado médico para o efeito.
Não sabemos em que percentagem, mas podemos afirmar que elevado número de exames médicos para revalidação da carta de condução não são feitos pelos médicos de família ─ recorde-se o elevado número de cidadãos que não beneficiam de médico de família ─, mas sim através de médicos contratados pelas escolas de condução, de muito fácil acesso em termos de marcação, sem espera significativa. São exames normalmente sumários, que se limitam a duas ou três questões de carácter geral,
à
leitura de algumas letras exibidas num painel, e pouco mais. Não são exames vocacionados para apurar, com rigor, a capacidade mental do candidato a revalidação da carta de condução.
Assim,
o ponto 79 da matéria de facto provada passa a ter a seguinte redacção:
O Sr. II foi submetido a um exame médico para revalidação da sua carta de
condução, tendo-lhe sido passado atestado médico para o efeito.
*
Ponto 81 da matéria de facto provada
81) Até à data de entrada no Hospital ..., a 26.12.2019, II sempre se mostrara lúcido, informado, dentro das condições e limitações para a sua idade.
Pretendem os apelantes que este ponto da matéria de facto provada seja considerado não provado, quer com base nos elementos clínicos do testador, quer no depoimento das testemunhas MM, LL, QQ, SS e UU.
Foi na sequência do internamento do testador, em 26.12.2019, que lhe foi instaurado pelo M.P. um processo de acompanhamento de maior, por se encontrar completamente dependente de terceiros, e não apresentar capacidade para gerir sua pessoa e bens, não estando sequer em condições de indicar pessoa para exercer funções de acompanhante legal.
Ora, o declínio mental ocorre normalmente de forma insidiosa, num espaço de tempo mais ou menos alargado, não sendo, por isso, verosímil que o testador entrasse no hospital em boas condições mentais e, logo no serviço de urgência, a sua situação clínica tenha sido enquadrada na evolução da síndrome demencial do doente (cfr. a informação clínica do Dr. VV, datada de 12.03.2021, que constitui o doc. n.º 14 junto com a petição inicial).
A Dr.ª MM, que acompanhou o doente no Hospital ..., onde esteve internado, confirmou que o doente já tinha um diagnóstico de demência, era portador de privação cognitiva prévia ao internamento, na expressão da testemunha. Reiterou que desde que o doente entrou no hospital estava sinalizado como sendo um doente com demência, já com deterioração cognitiva conhecida.
O depoimento do Dr. LL, a que voltaremos em breve corroborou este entendimento.
O mesmo se diga relativamente a vasta documentação clínica relativa ao doente, que será apreciada na análise dos pontos seguintes da matéria de facto impugnada.
A clareza destes elementos, de natureza técnica, dispensa a apreciação dos restantes depoimentos, de pessoas conhecidas do testador, para se concluir que
o ponto 81 da matéria de facto provada deve ser considerado não provado.
*
Pontos 84 a 88 da matéria de facto provada
84) Estava consciente dessa sua tomada de posição, daquilo que queria e de como pretendia dispor dos seus bens para além da sua morte.
85) No acto de testamento, entendeu o conteúdo do mesmo, correspondendo este à sua livre e esclarecida vontade, designadamente a de querer beneficiar a R. DD, a quem reconhecia como sua afilhada e em quem sempre depositou confiança.
86) No momento da outorga do testamento, a 12 de Novembro de 2019, estava lúcido.
87) A sua assinatura aposta no acto testamentário, pelo seu punho, é perfeitamente legível, com traço preciso, equilíbrio e sem indícios de qualquer perturbação, logo uma assinatura, própria de quem se encontra capacitado.
88) Acresce que quando foi lido e explicado o conteúdo do testamento a II, o mesmo estava capaz de entender o respectivo conteúdo, estava esclarecido de que ele correspondia à sua vontade, bem como as suas consequências.
Ponto 104 da matéria de facto provada
104) Até 12.11.2019, o testador manteve a lucidez mínima de entender o que queria, reconhecia a M. Manuel, como a sua afilhada desde criança;
Alínea a) da matéria de facto não provada
a) Aquando da outorga do testamento em 12.11.2019 o II se encontrasse incapacitado de incapacitado de entender o sentido exacto da declaração, encontrando-se num estado demencial que o impedisse de compreender o sentido e alcance da declaração prestada no testamento;
Apreciando:
Estes pontos da matéria de facto provada prendem-se com a questão de saber se, em 12.11.2019, aquando da outorga do testamento cuja anulação foi peticionada, o testador estava capaz de entender o alcance das suas declarações, de manifestar livremente a sua vontade de dispor do património nos termos em que o fez.
A primeira questão que importa abordar prende-se com a circunstância de o testamento em causa ter sido elaborado nos termos do artigo 2205.º CC [
É público o testamento escrito por notário no seu livro de notas.
]: foi lavrado por um notário, órgão que goza de fé pública, na presença de duas testemunhas, nos termos do artigo 67.º, n.ºs 1, alínea a) e 3, Código de Notariado.
Trata-se de questão recorrentemente abordada pela jurisprudência dos Tribunais superiores.
Assim:
─ acórdão da Relação de Lisboa, de 26.05.2009, Roque Nogueira,
www.dgsi.jtrl.pt
.,
proc. n.º 100/2001.L1-7:
I - A incapacidade relevante, nos termos do disposto no art.2199º, do C.Civil, é apenas a que existe ao tempo da feitura do testamento, não tendo de atender-se a outro momento, posterior ou anterior.
II - A simples presença do notário, que é um funcionário especializado que goza de fé pública, aditada à das duas testemunhas que, segundo o art.67º, nºs 1, al.a) e 3, do Código do Notariado, devem presenciar o acto, é uma primeira e qualificada garantia de que o testador gozava ainda, no momento em que foi revelando a sua vontade, de um mínimo bastante de capacidade anímica para querer e para entender o que afirmou ser sua vontade.
III - Por conseguinte, não pode deixar de se entender que, tendo o testamento sido exarado perante notário, existe uma forte presunção de que o testador tem aptidão para entender o que declara.
IV - Não se trata, pois, da circunstância de o testamento ser um documento autêntico, pois que este só tem força probatória plena quanto às acções ou percepções do respectivo Notário no mesmo mencionadas, únicas que, por isso, só podem ser elididas com base na sua falsidade, nada impedindo que, não obstante o testador tenha sido admitido a testar, se faça a prova, pelos meios comuns, da sua insanidade mental.
V - Do que se trata, no fim e ao cabo, no caso dos autos, é do funcionamento do ónus da prova dos factos integradores do vício invocado, ónus esse que racaía sobre a autora. Logo, será ela a suportar as consequências da falta de prova, que se traduzem em ver desatendida a sua pretensão.
─ acórdão da Relação de Coimbra, de 29.05.2012, Beça Pereira,
www.dgsi.jtrc.pt
., proc. n.º 37/11.4TBMDR.C1:
Sempre se dirá, no entanto, que o facto de o testamento posto em crise ser público mitiga as dúvidas do autor pois que a própria notária que o redigiu não verificou qualquer incapacidade que impedisse a testadora de conhecer o alcance do seu acto, tendo a mesma procedido à sua leitura e à explicação do seu conteúdo, como é de lei e consta do respectivo documento (cfr. artigos 46.º, n.º 1, al. l), e 50.º do Código do Notariado). Aliás, se tivesse tido dúvidas sobre a capacidade da testadora de querer e de entender, não teria lavrado o testamento ou poderia fazer intervir no acto um perito médico que abonasse a sanidade mental da outorgante (cfr. art. 67º, n.º 4, do mesmo código).
Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. VI, pág. 336, a simples presença do notário, que é um funcionário especializado que goza de fé pública, aditada à das duas testemunhas que, segundo o art. 67.º, n.º 1, al. a), e 3, do Código do Notariado, devem presenciar o acto, é uma primeira e qualificada garantia de que o testador gozava ainda, no momento em que foi revelando a sua vontade, de um mínimo bastante de capacidade anímica para querer e para entender o que afirmou ser sua vontade (cfr., no mesmo sentido, Capelo de Sousa, in “Lições de Direito das Sucessões”, vol. I, 4.ª ed., pág. 188, e Guilherme de Oliveira, in “O Testamento”, págs. 33 e 34). Por conseguinte, não pode deixar de se entender que, tendo o testamento sido exarado perante notário, existe uma forte presunção de que o testador tem aptidão para entender o que declara. Sendo certo, ademais, que não foi invocada qualquer conivência com o notário e que não foi posta em causa a autenticidade do testamento, designadamente, da parte final que dele consta a respeito da sua leitura e da explicação do seu conteúdo. Acresce que não existe, como vimos, apesar das dúvidas manifestadas pelo autor, qualquer irregularidade formal no testamento em causa, não se observando nele qualquer anormalidade das condições em que a testadora se encontrava.
Incumbe a quem impugna o testamento a prova de que o testador, no acto da outorga do testamento, estava impossibilitado de entender e querer o sentido e alcance da declaração. Ou seja, o ónus de prova dos factos integradores da incapacidade, no momento da realização do testamento, para avaliar o sentido da declaração de disposição de bens, com vista à anulação do mesmo, recai sobre o autor (vide, neste sentido, entre outros, do Supremo Tribunal de Justiça de 31.01.1991, AJ, 15.º/16.º, pág. 23, e da Relação do Porto, de 08.05.2000, BMJ, 497.º, pág. 444).
─ acórdão da Relação do Porto, de 10.07.2024, Miguel Baldaia de Morais,
www.dgsi.jtrp.pt
, proc. n.º 136/23.0T8BAO.P1:
II - A incapacidade relevante, para os efeitos do disposto no artigo 2199º do Código Civil, é apenas a que existe ao tempo da feitura do testamento, não tendo de atender-se a outro momento, posterior ou anterior.
III - A presença do notário, que é um funcionário especializado que goza de fé pública, aditada à das duas testemunhas que, segundo o artigo 67º, nºs 1, al. a) e 3, do Código do Notariado, devem presenciar o ato, é uma primeira e qualificada garantia de que o testador gozava ainda, no momento em que foi revelando a sua vontade, de um mínimo bastante de capacidade anímica para querer e para entender o que afirmou ser sua vontade.
─ acórdão da Relação do Porto, de 19.12.2012, Luís Lameiras,
www.dgsi.jtrp.pt
, proc. n.º 1267/06.6TBAMT.P2:
VI – Sem embargo de uma concludente prova contrária, devem em regra ser considerados como provados os factos que sejam percepcionados pelo notário e, como tal, atestados no acto público notarial (artigos 371º, nº 1, 372º, nºs 1 e 2, e 347º, do Código Civil);
Para enfrentar a questão que nos ocupa, é preciso ter em conta o alcance da força probatória plena de que goza o testamento público enquanto documento autêntico
que é (artigos 369.º e 370.º CC).
Nos termos do artigo 371.º, n.º 1, CC,
Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.
O artigo 372.º CC estabelece no n.º 1 que A
força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade
, acrescentando o n.º 2 que
O
documento é falso, quando nele se atesta como tendo sido objecto da percepção da autoridade ou oficial público qualquer facto que na realidade se não verificou, ou como tendo sido praticado pela entidade responsável qualquer acto que na realidade o não foi.
Analisado o testamento, que constitui o doc. n.º 5 junto com a petição inicial, o Sr. otário declarou ter verificado a identidade do testador pela exibição do cartão de cidadão do testador, fez constar a sua declaração quanto ao destino dos seus bens, identificou as testemunhas declarou que o testamento foi lido e explicado o seu conteúdo.
A força probatória deste testamento circunscreve-se a estes factos.
O facto constante do ponto 89 da matéria de facto provada, de que
O Sr. Notário JJ, nenhuma dúvida teve, aquando da outorga do testamento pelo II, que entendeu e percebeu o que disse nesse momento e que tal era a sua vontade
, é absolutamente inócuo, pois não goza de qualquer força probatória plena.
A circunstância de o Sr. Notário JJ não ter tido qualquer dúvida, aquando da outorga do testamento, que o testador entendeu e percebeu o que disse nesse momento e que tal era a sua vontade não tem a virtualidade de provar que o testador efectivamente estava em condições de entender o sentido da sua declaração. Trata-se apenas da percepção do Sr. Notário, que, como vimos, não está dotada de força probatória plena, e pode ser contrariada por qualquer meio de prova, sem passar pela arguição de falsidade do testamento.
Acresce que o depoimento do Sr. Notário foi pouco esclarecedor, pois, logo no início declarou não se recordar do caso concreto, afirmando que todos os outorgantes têm de estar orientados e bem cognitivamente; se fez o testamento é porque o testador reunia condições para tal. Declarou considerar er condições para avaliar as condições mentais dos testadores.
Afirmou igualmente que a assinatura do testador era equilibrada.
Este depoimento justificou a resposta ao ponto 87 da matéria de facto provada, objecto de impugnação.
Ora, não se afigura razoável deduzir o estado mental de uma pessoa a partir da aposição de uma assinatura. Não foi ouvido nenhuma pessoa com conhecimentos técnicos que permita validar esse juízo. Há pessoas com capacidades mentais intactas que têm dificuldades motoras que afectam a caligrafia.
Por outro lado, e fruto da circunstância de o Sr. Notário não se recordar do caso concreto, o seu depoimento carece de consistência. Segundo afirmou, quem agendou o testamento foi a Dr.ª NN, que, aliás, aí figurou como testemunha, não sabendo quem remeteu os termos do testamento.
Naturalmente que o desconhecimento da concreta actividade desenvolvida pelo Sr. Notário na elaboração do testamento, se o testador explicou os termos em que pretendia dispor dos bens ou se foram utilizados os elementos previamente enviados, em que termos exprimiu a sua compreensão da leitura e explicação que lhe foi feita, tudo isso fragiliza o contributo do Sr. Notário para a aferição da capacidade do testador para exprimir a sua vontade.
A testemunha NN, que depôs com grande assertividade acerca da capacidade mental do testador, que foi testemunha no testamento, como já se referiu, quem tratou do testamento na qualidade de advogada do testador, tando sido sua advogada noutro processo, que se recusou identificar a coberto do sigilo profissional. Mas foi também advogada da primitiva beneficiária do testamento, tendo subscrito um requerimento em representação desta no âmbito do processo de maior acompanhado instaurado em benefício do testador.
A outra testemunha que interveio no testamento, OO, era funcionária da Dr.ª NN e nada se recordava deste assunto, concluindo que não lhe competia avaliar.
Em contraponto, temos vários relatórios médicos que atestam um processo demencial com início em 2015, como se dá conta no
ponto 31 da matéria de facto provada.
Procederemos a transcrição do relatório na parte relativa ao “Exame Indirecto”, por se ter verificado que aquele segmento do ponto da matéria de facto provada omite alguns elementos relevantes para a avaliação da (in)capacidade.
É o seguinte o teor do referido segmento do exame pericial, com sublinhado nosso:
Registo da 1.ª consulta de neurologia no Centro Hospitalar ... (09-08- 2017) – Dr.ª XX: "A afilhada refere alguns esquecimentos (não sabe em que dia está, quer pagar as contas 2 vezes porque não se recorda que já tinha pago) e discurso repetitivo desde há pelo menos 2 anos, que tem vindo a progredir. Esquece-se das combinações e das conversas; recorda-
se muito bem das coisas antigas. Confunde-se muito. Deixou de
se sentir capaz de conduzir. Nunca se perdeu; não sai de casa por dificuldades em se mobilizar. Queixa-se de falta de força nas pernas, sem alterações do comportamento nem alucinações visuais. Dorme bem. Necessita de apoio para tomar banho pelas dificuldades motoras.
MMSE: 26/30 (1 erro na orientação temporal, 1 na espacial, 1 na evocação, 1 na linguagem"
;
-Registo da 2ª consulta de neurologia no Centro Hospitalar ... (22-11- 2017) - Dra. XX: "Mantém os consumos alcoólicos excessivos. No dia 10-11 teve queda sob efeito de álcool (etanol> 1,50) com traumatismo craniano e cervical. Fez TAC-CE e cervical que descartou alterações traumáticas. As mesmas queixas. Mais confuso desde a queda."
-Consulta Neurologia (3-5-2019), Ora. III: "O doente acha que está bem mas a afilhada acha que está mais esquecido. Continua a viver sozinho, mas com muita ajuda desta afilhada - apoia na alimentação, da parte da tarde. Também é a afilhada que trata das coisas do banco e multibanco e as contas. Gere a própria medicação - mas às vezes esquece-se. Toma banho sozinho mas com dificuldade. Está sempre a perguntar o dia em que está. Já sai pouco de casa. Não se perde. Sem quedas ...
MMSE 25/30
(perde .4 na orientação e 1 na evocação). Portanto, parece haver deterioração cognitiva de predomínio mnésico, possivelmente degenerativa."
-Consulta Neurologia (20-11-2019) ─ Dra. JJJ: "A afilhada que lhe dá apoio traz um papel a dizer que voltou a beber, deixou de tomar toda a medicação, está cognitivamente cada vez pior e tem ideias na cabeça delirantes. Vive sozinho a afilhada dá apoio de tarde. Come sempre fora. Toma banho sozinho, mas desleixo na higiene. Bebe vinho tinto todos os dias, diz que é só um copo mas a afilhada diz que é bem mais. Toma conta dos pagamentos das contas mas a afilhada tem que o lembrar ...
MMS (23/30). Portanto síndrome demencial de predomínio mnésico, com impacto funcional e com alterações do comportamento descritas pela afilhada
. Existe o problema social, o senhor não tem aceite ajuda na gestão da medicação e nem aceita outro tipo de apoios ou centro de dia". Prescrita neste Consulta antidemencial- rivastigmina.
No capítulo da “Discussão” consta o seguinte:
O exame direto e indireto concordam, que o examinando apresenta um compromisso global muito significativo das suas funções cognitivas, nomeadamente das funções mnésicas
. Paralelamente apresenta incapacidade funcional significativa.
Este quadro clínico neurodegenerativo deve ser integrado numa PERTURBAÇÃO NEUROCOGNITIVA-MAJOR (pela Classificação DSM-5), ou, na terminologia da Classificação Internacional de Doenças-1 O, DEMÊNCIA INESPECÍFICA (F03). Em termos de gravidade,
a demência neste caso deverá ser estratificada de severa
.
A demência é uma síndrome clínica evolutiva caracterizada por um conjunto de sintomas e sinais manifestados por dificuldades cognitivas {na memória, funções executivas, compreensão, cálculo, julgamento), dificuldades na linguagem e alterações psicológicas e psiquiátricas (quadros ansiosos, depressivos,psicóticos), com diminuição do funcionamento psicossocial. Este impacto funcional faz-se sentir em atividades de vida diárias, como seja a higiene pessoal, a alimentação, a capacidade de controlo de esfíncteres, etc. No seu estado atual encontra-se já no estadio grave da doença. A sua doença não tem cura ou reversibilidade. Pelo contrário, evoluirá para níveis progressivos maiores de incapacidade.
Em termos etiológicos, a etiologia mais provável é de uma demência mista (Alzheimer e Vascular), valorizando os fatores de risco (hipertensão Em termos etiológicos, a etiologia mais provável é de uma demência mista (Alzheimer e Vascular), valorizando os fatores de risco (hipertensão, dislipidemia, alcoolismo) e a semiologia clínica (défices mnésicos marcados e ideação paranóide), bem como a evolução da doença.
De acordo com a informação disponível a instalação deu-se de forma insidiosa, com registo na consulta de Neurologia em 2017, que as alterações da memória (défice cognitivo ligeiro) se vinham a desenvolver desde 2015. Em novembro de 2019, dada a incapacidade funcional e alterações do comportamento, é diagnosticada uma síndrome demencial
. Efetivamente, por ano,8-15% dos casos de défice cognitivo ligeiro evoluem para demência.
Mercê da doença neuropsiquiátrica de que padece o requerido está privado da sua autonomia para cuidar da higiene pessoal, alimentação, tomar a medicação que necessita, bem como para governar os seus bens e o seu dinheiro. A sua doença, que é permanente e irreversível, torna-a assim inapto para a prática de todos os negócios relacionados com a organização da sua vida e com a gestão dos seus bens e interesses. Carece, pois, de supervisão para as atividades básicas sob pena de graves negligências, estando totalmente dependente de terceiros para o exercício das atividades instrumentais da vida diária. Parece-nos adequada a medida de Representação geral e administração total de bens.
O depoimento do Dr. LL, médico psiquiatra e director de psiquiatria forense do Hospital 1..., autor do relatório supra referido, foi decisivo para a convicção deste Tribunal.
Atribuiu particular relevo
à
s consultas de neurologia do Centro Hospitalar ..., entidade pública em que a Dr.ª XX, devido ao
Mini Mental State Examination
(MMSE), que consiste num exame mais ou menos sumário, vocacionado
para se analisar a evolução objectiva, e não baseada no relato de familiares, do doente. Trata-se, por isso, de um instrumento muito utilizado quando se pretende objectivar o psíquico.
Assim, em 2017, o doente apresentava 26 pontos em 30, o que não era muito mau, tendo em consta que o valor mínimo esperado era 27, mas em Maio de 2019 ele apresenta um MMSE de 25 e, em Novembro de 2019, mês da elaboração do testamento, um MMSE de 23. Conclui, por isso, a testemunha que o ano de 2019 é um ano claramente de perda a pique.
Afirmou, de forma muito assertiva, que no ano de 2019 é difícil admitir que em 2019 o doente estivesse capaz de fazer qualquer testamento ou passar procuração, afirmando
que “No ano de 2019, eu como perito ponho as mãos no fogo, para trás não sei”.
Interrogado se, tendo em conta o quadro da doença, seria possível um intervalo lúcido, num dia específico, respondeu, manifestando uma certa indignação: os humanos não são feitos de intervalos lúcidos, os seres humanos têm uma história biográfica. O intervalo lúcido diz pouco sobre uma pessoa. O intervalo lúcido, tipo
“vamos aproveitar um intervalo lúcido, agora, e vamos fazê-lo assinar qualquer coisa, porque daqui a 2 horas ele pode estar em estado confusional”
, não tem validade, os seres humanos não são feitos de presentificações, os seres humanos são feitos uma continuidade biográfica.
Por todo o exposto, entendemos dar prevalência a prova pericial corroborada pela prova testemunhal, em detrimento do depoimento do Sr. Notário, que mereceu acolhimento e, nessa conformidade:
─ A matéria constante dos
pontos 84 e 85 da matéria de facto provada
considera-se
não provada;
─ A matéria do
ponto 86 da matéria de facto provada reveste natureza conclusiva;
─ Relativamente ao
ponto 87 da matéria de facto provada
considera-se provado que a assinatura do testador aposta no testamento é legível;
─ A matéria constante dos
pontos 88 e 104 da matéria de facto provada
considera-se
não provada;
─
A alínea a) da matéria de facto não provada
reveste natureza conclusiva.
3.2. Da anulação do testamento
O recurso versa a questão da (in)capacidade do testador no momento da elaboração do testamento, convocando o disposto no artigo 2199.º CC, sob a epígrafe “Incapacidade acidental”, nos termos do qual
É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. VI, pg. 323,
A primeira destas regras específicas, constante do artigo 2199.º, refere-se à
incapacidade
(tomada a expressão no sentido rigoroso próprio da
falta de aptidão natural para entender
o sentido da declaração ou da falta do livre exercício do poder de dispor
mortis causa
dos próprios bens, por qualquer causa
verificada
no momento em que a disposição é
lavrada.
A disposição legal refere-se expressamente ao carácter
transitório
que pode ter a falta de
discernimento
ou de
livre exercício
da vontade de dispor, por parte do testador, para significar que o
vício
contemplado nesta norma é a deficiência psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada.
E por conseguinte o mesmo tipo de deficiência psicológica que o artigo 257º considera em relação aos actos entre vivos em geral.
Na área das disposições testamentárias, trata-se de uma
situação de crise
essencialmente distinta da abrangida na alínea b) do artigo 2189º (incapacidade de testar baseada na interdição por anomalia psíquica).
A nulidade do testamento feito pelo interdito baseia-se na
presunção
do
estado
ou
situação
de incapacidade,
juris et de jure
, criada pela sentença, desde que é proferida até ao momento em que a interdição é levantada.
A
anulação
decretada, a requerimento do interessado, com base no artigo 2199º, assenta pelo contrário na falta alegada e comprovada de
capacidade
do testador, no preciso momento em que lavrou o testamento, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.
A anulação do testamento depende, pois, da demonstração de que, quando manifestou a
sua vontade de dispor dos seus bens, o testador não estava consciente do acto que estava a praticar, do seu alcance, que tinha capacidade de discernimento.
Na sugestiva definição destes autores, Noções Fundamentais de Direito Civil, 5.ª edição, volume II, pg. 384,
apud
acórdão do STJ, de 11.04.2013, Gabriel Catarino,
www.dgsi.pt.jstj
, proc. n.º 1565/10.4TJVNF.P1.S1,
”[se] devem considerar como não estando em seu perfeito juízo aqueles que, em virtude de qualquer perturbação ou desarranjo mental, quer de natureza permanente, quer passageira, careçam de vontade própria ou da percepção necessária para compreenderem o alcance e o sentido do negocio da ultima vontade". "Não se exige, para se poder afirmar que o testador não está em seu perfeito juízo, que ele seja demente ou mentecapto; basta que ele tenha juízo não perfeito ou seja fraco de espírito"
Refira-se que ao aludir ao carácter transitório da incapacidade, pretende a lei significar que a deficiência da vontade do testador deve verificar-se no momento em que a disposição testamentária é feita, abrangendo tanto situações esporádicas, transitórias, como situações permanentes, que justifiquem a instauração de uma acção de maior acompanhado (cfr. acórdão da Relação do Porto, de 10.07.2024, Miguel Baldaia de Moraes,
www.dgsi.jtrp.pt
, proc. n.º 136/23.0T8BAO.P1).
Importa, pois, apurar se II, o testador, quando lavrou o testamento estava incapacitado de entender o sentido da sua declaração.
Como se sublinha no acórdão do STJ, de 02.05.2012, Marques Pereira,
www.dgsi.pt.jstj
, proc. n.º 2712/05.3TBPVZ.P1.S1,
Estamos perante uma questão de direito: que o testador se encontrava ou não incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou de formar livremente a sua vontade é uma conclusão jurídica a extrair dos factos apurados.
Este acórdão inspira-se em Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, volume I, 4.ª ed., pg. 184, nota 412, onde se afirma que as hipóteses do artigo 2199.º CC são proposições de direito, a concluir de factos alegados e provados pelas partes.
No mesmo sentido, o acórdão do STJ, de de 11.04.2013, Gabriel Catarino, www.dgsi.pt.jstj, proc. n.º 1565/10.4TJVNF.P1.S1:
Não se constituirá controversa a asserção de que a verificação ou validação de um estado de incapacidade impeditiva de perceber e entender o alcance de um acto jurídico, em que se expressa e pretende dispor de valores e bens do respectivo património, conleva uma questão de direito a ser extraída e dessumida dos factos que vierem a ser dados como provados.
E ainda o acórdão da Relação do Porto, de 04.05.2015, Ana Paula Amorim,
www.dgsi.jtrp.pt
, proc. n.º 1267/12.7TVPRT.P1:
A demonstração dos fundamentos de anulação assenta na descrição de factos que traduzam manifestações de que o testador não tinha o discernimento nem a vontade suficiente para testar, denunciando como se comportava e que falhas acusava, de maneira a permitir que o julgador, perante os factos apurados fique apto a valorar tais circunstâncias à luz dos pressupostos do art. 2199º CC.
Constitui entendimento pacífico que o ónus da prova acerca da incapacidade do testador impende sobre aquele que pretende invalidar o testamento. Ou, por outras palavras, compete
à
quele que pretende obter a anulação do testamento a prova dos factos que permitem concluir pela incapacidade do testador.
Neste sentido, e a título meramente exemplificativo, acórdão do STJ, de 14.10.2021, Vieira e Cunha,
www.dgsi.pt.jstj
, proc. n.º 152/19.6T8VRL.G1.S1; de 11.04.2013, Gabriel Catarino,
www.dgsi.pt.jstj
, proc. n.º 1565/10.4TJVNF.P1.S1; acórdão da Relação do Porto, de 10.07.2024, Fernanda Almeida,
www.dgsi.jtrp.pt
, proc. n.º 4492/18.3T8AVR.P1 ; de 10.07.2024, João Venade,
www.dgsi.jtrp.pt
, proc. n.º 8868/20.8T8PRT.P1; de 26.09.2022, Jorge Seabra,
www.dgsi.jtrp.pt
, proc. n.º 1235/18.5T8VFR.P1; de 04.05.2015, Ana Paula Amorim,
www.dgsi.jtrp.pt
, proc. n.º 1267/12.7TVPRT.P1.
A questão que se suscita em primeira linha é a de saber se é exigível àquele que impugna a validade do testamento que demonstre a situação de incapacidade do testador no exacto momento em que o testamento foi outorgado. O acórdão do STJ, de 11.04.2013, Gabriel Catarino,
www.dgsi.pt.jstj
, proc. n.º 1565/10.4TJVNF.P1.S1, responde assim:
Em nosso, juízo, ao peticionante da anulabilidade do acto jurídico testamentário, por incapacidade acidental, compete provar que o testador sofria de doença, que no plano clínico, é comprovada e cientificamente susceptível de afectar a sua capacidade de percepção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer acto de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente. Tratando-se de uma doença que no plano clínico e cientifico está comprovada a degenerescência evolutiva e paulatina das condições de percepção, compreensão, raciocínio, gestão dos actos quotidianos e da sua vivência existencial, aptidões de pensamento abstracto e concreto, discernimento das opções comportamentais básicas e factores de funcionamento das relações interpessoais e sociais, o peticionante da anulabilidade de um acto jurídico praticado por uma pessoa portador deste quadro patológico apenas estará compelido a provar o estado de morbidez de que o declarante é padecente, por ser previsível, à luz da ciência e da experiência comum, que este tipo de situações não se compatibilizam com períodos de lucidez ou compreensão (normal) das situações vivenciais.
Nesta matéria é recorrentemente invocado um estudo de Galvão Teles, Revista dos Tribunais, 72.º, pg. 268:
Provado o estado de demência em período que abrange o ato anulando, é de presumir, sem necessidade de mais, que na data do mesmo acto aquele estado se mantinha sem interrupção. Corresponde ao
id quod plerum accidit
; está em conformidade com as regras da experiência. À outra parte caberá ilidir a presunção demonstrando (se puder fazê-lo) que o acto recaiu num momento excepcional e intermitente de lucidez.
Este estudo influenciou decisivamente a jurisprudência dos Tribunais superiores nesta matéria. Assim, e a título meramente exemplificativo:
─ acórdão do STJ, de 24.05.2011, Marques Pereira,
www.dgsi.pt.jstj
, proc. n.º 4936/04.1TCLRS.L1.S1:
IV- Se, à data do testamento, o testador sofria de esquizofrenia paranóide, em contínua actividade e progressão, tendo entrado numa fase crónica e irreversível, encontrando-se num verdadeiro estado de demência paranóide, é de concluir que, no momento da feitura do testamento, aquele se encontrava numa situação de incapacidade natural de entender e de querer o sentido da declaração
testamentária;
V-Naquela hipótese, incumbia à beneficiária do testamento fazer a prova de que, no momento da feitura do testamento, apesar da esquizofrenia paranóide de que sofria, o testador não foi influenciado pelo concreto estado demencial em que se encontrava.”
─ acórdão do STJ, de 14.01.2021, Vieira e Cunha,
www.dgsi.pt.jstj
, proc. n.º 152/19.6T8VRL.G1.S1:
II – Corresponde ao id quod plerumque accidit que, provado o estado de demência em período que abrange o acto anulando, seja de presumir que, na data do mesmo acto, aquele estado se mantinha sem interrupção.
─ acórdão da Relação do Porto, de 10.07.2024, Fernanda Almeida,
www.dgsi.jtrp.pt
, proc. n.º 4492/18.3T8AVR.P1:
I - Provado o estado de demência em período que abrange o ato anulando (art. 2199.º do CC), é de presumir que na data do mesmo ato aquele estado se mantinha sem interrupção.
II - À parte interessa na validade do ato caberá ilidir a presunção, demonstrando que este ocorreu num momento excecional e intermitente de lucidez.
─ acórdão da Relação do Porto, de 19.11.2020, Aristides Rodrigues de Almeida,
www.dgsi.jtrp.pt
, proc. n.º 271/18.3T8MTS.P1:
III - Recai sobre o interessado na anulação do testamento o ónus da prova da situação de incapacidade de facto do testador.
IV - Porém, se estiver demonstrado que o testador se encontrava num estado de saúde mental em que a incapacidade era a consequência mais provável, cabe ao beneficiário do testamento o ónus de demonstrar que apesar disso, no momento da celebração do testamento, o testador se encontrava com aptidão natural para entender o sentido da declaração e exercer livremente o poder de dispor dos seus bens.
─ acórdão da Relação de Lisboa, de 10.11.2020, Luís Filipe Sousa,
www.dgsi.jtrl.pt
., proc. n.º 3308/16.0T8PDL.L1-7:
IV. Num contexto em que o outorgante em testamento e outros atos notariais padece de doença que, no plano clínico e cientifico, implica a deterioração progressiva das condições de perceção, compreensão, raciocínio, gestão dos atos quotidianos e da sua vivência existencial, aptidões de pensamento abstrato e concreto, discernimento das opções comportamentais básicas e fatores de funcionamento das relações interpessoais e sociais, incumbe ao peticionante da anulabilidade dos atos jurídicos praticados pelo outorgante “provar o estado de morbidez de que o declarante é padecente, por ser previsível, à luz da ciência e da experiência comum, que este tipo de situações não se compatibilizam com períodos de lucidez ou compreensão (normal) das situações vivenciais”. Ao Réu, que pugne pela validade de tais atos, cabe provar factos extintivos do direito invocado, nomeadamente que o outorgante/testador, no momento da outorga, se encontrava num “intervalo lúcido” do seu estado de demência.
─ acórdão da Relação de Coimbra, de 30.06.2015, Jaime Ferreira,
www.dgsi.jtrc.pt
., proc. n.º 893/05.5TBPCV.C1:
IV - Provado o estado de demência em período que abrange o acto anulando – testamento -, é de presumir, sem necessidade de mais, que na data do mesmo acto aquele estado se mantinha sem interrupção.
V - Corresponde ao id quod plerum accidit; está em conformidade com as regras da experiência. À outra parte caberá ilidir a presunção demonstrando (se puder fazê-lo) que o acto recaiu num momento excepcional e intermitente de lucidez.
VI - No entanto, sempre recai sobre o interessado na anulação o ónus de alegar e provar o estado de doença em período que abrange o acto anulado e que essa doença pela sua natureza e características
impede o testador de entender o sentido da sua declaração ou o livre exercício da sua vontade.
─ acórdão da Relação de Guimarães, de 09.04.2019, Margarida Sousa,
www.dgsi.jtrg.pt
., proc. n.º 1146/17.1T8BGC.G1:
I - Numa situação de incapacidade acidental decorrente de um estado clínico demencial ou de doença evolutiva e degenerescente das capacidades de perceção, compreensão e intelecção do mundo circundante e vivencial, não deve exigir-se de quem visa a anulação do ato a prova de que no exato momento em que o declarante materializou o ato jurídico ajuizado, o estado de incapacidade acidental se mantinha ou era verificável;
II - É próprio de um quadro crónico e irreversível de uma doença mental com tais características que as incapacidades a tal doença associadas se mantenham contínua e permanentemente, não necessitando, pois, os interessados na anulação, de provar o estado de incapacidade no exato momento de feitura do testamento de demonstração (id quod plerum accidit);
III - Nessas situações, incumbirá a quem argui um desvio a um padrão de normalidade, a demonstração da verificação in casu dos factos atípicos, ou seja, incumbirá a quem pretende manter os efeitos do ato demonstrar a existência de uma “janela de lucidez”.
─ acórdão da Relação de Guimarães, de 04.10.2017, Pedro Damião e Cunha,
www.dgsi.jtrg.pt
., proc. n.º 1108/14.0TJVNF.G1:
I- Em princípio, o ónus da prova dos factos demonstrativos da incapacidade acidental do testador, no momento da feitura do testamento- cfr. art. 2199º do CC-, recai sobre o interessado na anulação do testamento, nos termos do artigo 342, n.º 1 do Código Civil;
II- No entanto, logrando o interessado na anulação do testamento provar que a testadora padecia de doença de alzheimer com anterioridade ao período que abrange o acto anulando – testamento -, é de presumir, sem necessidade de mais, que na data do mesmo acto aquele estado se mantinha sem interrupção.
III- Assim, se, á data do testamento, se mostra atestado medicamente que a Testadora sofria da referida doença de alzheimer, em contínua actividade e progressão, e que estava totalmente dependente de terceiros, é de concluir que, no momento da feitura do testamento, aquela se encontrava numa situação de incapacidade natural de entender e de querer o sentido da declaração testamentária;
IV- Nestes casos, provando-se a referida situação de demência, incumbia à beneficiária do testamento fazer a prova de que, no momento da feitura do mesmo, apesar da referida doença de que sofria, a testadora não foi influenciada pelo concreto estado demencial em que se encontrava.
Vejamos então se os apelantes cumpriram o ónus que sobre eles impendia.
Atentemos no ponto 31 da matéria de facto provada, com o aditamento que lhe foi feito em sede de reapreciação da matéria de facto:
31) Na pendência da acção de maior acompanhado, referida em 12), foi realizado um exame pericial ao falecido, pelo Perito Dr. LL, por observação efectuada ao II em 11.12.2020, cfr. relatório se junta como documento n.º 13.
Consta desse exame pericial, para além do mais, o seguinte:
“1. O examinando, II, padece de PERTURBAÇÃO NEUROCOGNITIVA-MAJOR, ou, na terminologia da Classificação Internacional de Doenças-10, DEMÊNCIA INESPECÍFICA.
2. Esta perturbação tem uma etiologia complexa e multifactorial, surgiu nos últimos anos de vida do doente, desde 2015, tem uma evolução insidiosa, progressiva e com agravamento em 2019, sendo à luz do conhecimento médico actual, irreversível.
3. Este quadro clínico limita significativamente o desempenho do examinando em termos volitivos e cognitivos e resulta num prejuízo relevante do seu funcionamento adaptativo, de forma que este não consegue atingir padrões de independência pessoal e responsabilidade social em vários aspectos da sua vida diária.
4. Esta perturbação caracteriza-se por défices em vários domínios cognitivos, como o raciocínio, resolução de problemas e por alterações do comportamento.
5. Em termos concretos, o examinando encontra-se totalmente dependente de terceiros
para as actividades instrumentais da vida diária: gestão de dinheiro, pagamento de contas, compra e gestão de despensa, compromissos financeiros, bancários e tributários, sob pena de delitos. (…)
9. O examinando não tem capacidade plena para determinar quem pretende que seja nomeado para o cargo de seu acompanhante”».
É o seguinte o teor do segmento do “Exame Indirecto” do exame pericial, com sublinhado nosso, que foi aditado:
Registo da 1.ª consulta de neurologia no Centro Hospitalar ... (09-08- 2017) – Dr.ª XX: "A afilhada refere alguns esquecimentos (não sabe em que dia está, quer pagar as contas 2 vezes porque não se recorda que já tinha pago) e discurso repetitivo desde há pelo menos 2 anos, que tem vindo a progredir. Esquece-se das combinações e das conversas; recorda-se muito bem das coisas antigas. Confunde-se muito. Deixou de
se sentir capaz de conduzir. Nunca se perdeu; não sai de casa por dificuldades em se mobilizar. Queixa-se de falta de força nas pernas, sem alterações do comportamento nem alucinações visuais. Dorme bem. Necessita de apoio para tomar banho pelas dificuldades motoras.
MMSE: 26/30 (1 erro na orientação temporal, 1 na espacial, 1 na evocação, 1 na linguagem"
;
-Registo da 2ª consulta de neurologia no Centro Hospitalar ... (22-11- 2017) - Dra. XX: "Mantém os consumos alcoólicos excessivos. No dia 10-11 teve queda sob efeito de álcool (etanol> 1,50) com traumatismo craniano e cervical. Fez TAC-CE e cervical que descartou alterações traumáticas. As mesmas queixas. Mais confuso desde a queda."
-Consulta Neurologia (3-5-2019), Ora. III: "O doente acha que está bem mas a afilhada acha que está mais esquecido. Continua a viver sozinho, mas com muita ajuda desta afilhada - apoia na alimentação, da parte da tarde. Também é a afilhada que trata das coisas do banco e multibanco e as contas. Gere a própria medicação - mas às vezes esquece-se. Toma banho sozinho mas com dificuldade. Está sempre a perguntar o dia em que está. Já sai pouco de casa. Não se perde. Sem quedas ...
MMSE 25/30
(perde .4 na orientação e 1 na evocação). Portanto, parece haver deterioração cognitiva de predomínio mnésico, possivelmente degenerativa."
-Consulta Neurologia (20-11-2019) ─ Dra. JJJ: "A afilhada que lhe dá apoio traz um papel a dizer que voltou a beber, deixou de tomar toda a medicação, está cognitivamente cada vez pior e tem ideias na cabeça delirantes. Vive sozinho a afilhada dá apoio de tarde. Come sempre fora. Toma banho sozinho, mas desleixo na higiene. Bebe vinho tinto todos os dias, diz que é só um copo mas a afilhada diz que é bem mais. Toma conta dos pagamentos das contas mas a afilhada tem que o lembrar ...
MMS (23/30). Portanto síndrome demencial de predomínio mnésico, com impacto funcional e com alterações do comportamento descritas pela afilhada
. Existe o problema social, o senhor não tem aceite ajuda na gestão da medicação e nem aceita outro tipo de apoios ou centro de dia". Prescrita neste Consulta antidemencial- rivastigmina.
No capítulo da “Discussão” consta o seguinte:
O exame direto e indireto concordam, que o examinando apresenta um compromisso global muito significativo das suas funções cognitivas, nomeadamente das funções mnésicas
. Paralelamente apresenta incapacidade funcional significativa.
Este quadro clínico neurodegenerativo deve ser integrado numa PERTURBAÇÃO NEUROCOGNITIVA-MAJOR (pela Classificação DSM-5), ou, na terminologia da Classificação Internacional de Doenças-1 O, DEMÊNCIA INESPECÍFICA (F03). Em termos de gravidade,
a demência neste caso deverá ser estratificada de severa
.
A demência é uma síndrome clínica evolutiva caracterizada por um conjunto de sintomas e sinais manifestados por dificuldades cognitivas {na memória, funções executivas, compreensão, cálculo, julgamento), dificuldades na linguagem e alterações psicológicas e psiquiátricas (quadros ansiosos, depressivos,psicóticos), com diminuição do funcionamento psicossocial. Este impacto funcional faz-se sentir em atividades de vida diárias, como seja a higiene pessoal, a alimentação, a capacidade de controlo de esfíncteres, etc. No seu estado atual encontra-se já no estadio grave da doença. A sua doença não tem cura ou reversibilidade. Pelo contrário, evoluirá para níveis progressivos maiores de incapacidade.
Em termos etiológicos, a etiologia mais provável é de uma demência mista (Alzheimer e Vascular), valorizando os fatores de risco (hipertensão Em termos etiológicos, a etiologia mais provável é de uma demência mista (Alzheimer e Vascular), valorizando os fatores de risco (hipertensão, dislipidemia, alcoolismo) e a semiologia clínica (défices mnésicos marcados e ideação paranóide), bem como a
evolução da doença.
De acordo com a informação disponível a instalação deu-se de forma insidiosa, com registo na consulta de Neurologia em 2017, que as alterações da memória (défice cognitivo ligeiro) se vinham a desenvolver desde 2015. Em novembro de 2019, dada a incapacidade funcional e alterações do comportamento, é diagnosticada uma síndrome demencial
. Efetivamente, por ano,8-15% dos casos de défice cognitivo ligeiro evoluem para demência.
Mercê da doença neuropsiquiátrica de que padece o requerido está privado da sua autonomia para cuidar da higiene pessoal, alimentação, tomar a medicação que necessita, bem como para governar os seus bens e o seu dinheiro. A sua doença, que é permanente e irreversível, torna-a assim inapto para a prática de todos os negócios relacionados com a organização da sua vida e com a gestão dos seus bens e interesses. Carece, pois, de supervisão para as atividades básicas sob pena de graves negligências, estando totalmente dependente de terceiros para o exercício das atividades instrumentais da vida diária. Parece-nos adequada a medida de Representação geral e administração total de bens.
Daqui resulta que o testador padecia de uma perturbação neurocognitiva major, ou demência inespecífica, iniciada em 2015, com agravamento em 2019, patologia que levou a instauração de um processo especial de acompanhamento. O testamento foi elaborado em 2019.
A outorga do testamento ocorreu em pleno quadro de demência, de grau severo, sendo, por isso, legítimo presumir que o testador se encontrava incapacitado de entender o alcance da sua declaração. E, como resulta da impugnação da matéria de facto, os apelados não lograram demonstrar que, na altura da outorga do testamento, o testador se encontrava numa denominada “janela de lucidez”.
Nessa conformidade, importa concluir que, quando outorgou o testamento, o testador se encontrava incapacitado de entender o alcance da sua declaração, assim se preenchendo a previsão do artigo 2199.º CC.
Sustentam os apelados que a incapacidade acidental, prevista e regulada no artigo 257.º CC, exige, para a anulabilidade do acto, que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário (passível de apreensão por uma pessoa média, colocada na posição do declaratário).
Sem razão, porém.
O artigo 2199.º CC, ao prever a anulação do testamento por incapacidade acidental, estabelece um regime especial relativamente ao regime da incapacidade acidental no âmbito do negócio jurídico, previsto no artigo 257.º CC, pois, contrariamente ao que aqui sucede, não é ali exigida a notoriedade da incapacidade ou o seu conhecimento pelo declaratário.
A diferença de regimes assenta na diversa natureza dos actos que se destinam a regular: o artigo 257.º CC regula a incapacidade acidental no âmbito do negócio jurídico em geral, destinando-se a exigência de notoriedade da incapacidade ou conhecimento pelo declaratário a tutelar as expectativas deste; o artigo 2199.º CC reporta-se ao testamento, um negócio jurídico unilateral não receptício.
Neste sentido, e a título meramente exemplificativo, os acórdãos do STJ, de 02.05.2012, Marques Pereira,
www.dgsi.pt.jstj
, proc. n.º 2712/05.3TBPVZ.P1.S1; de 11.04.2013, Gabriel Catarino,
www.dgsi.pt.jstj
, proc. n.º 1565/10.4TJVNF.P1.S1 de 20.06.2023, Manuel Capelo,
www.dgsi.pt.jstj
, proc. n.º 5142/21.6T8CBR.C1.S1; da Relação do Porto, de 04. 05.2015, Ana Paula Amorim,
www.dgsi.jtrp.pt
, proc. n.º 1267/12.7TVPRT.P1; da Relação de Guimarães, de 11.01.2024, Carla Oliveira,
www.dgsi.jtrg.pt
., proc. n.º 2845/22.1T8BRG.G1.
Estão, pois, preenchidos os pressupostos para a anulação do testamento, devendo, em consequência determinar-se o cancelamento dos registos relativos aos imóveis e direito de
time sharing
identificados nos artigos 112.º e 113.º da petição inicial.
Não há que condenar os apelados a restituírem estes bens
à herança, por terem sido objecto de arrolamento, conforme sentença que constitui doc. n.º 7 junto com a petição inicial, e ter sido nomeado depositário o apelante AA.
4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação procedente, revoga-se a decisão recorrida e, em consequência:
─ anula-se o testamento outorgado por II, no dia no dia 12 de Novembro de 2019, no Cartório Notarial do Dr. JJ;
─ determina-se o cancelamento dos registos efectuados pela beneficiária do testamento relativamente aos imóveis e direito de time sharing identificados nos artigos 112.º e 113.º da petição inicial.
Custas pelos apelados (artigo 527.º CPC).
Porto, 11 de Março de 2025
Márcia Portela
Anabela Dias da Silva
João Diogo Rodrigues
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/f7c2828a2f547d5880258c59003dec2a?OpenDocument
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1,759,795,200,000
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REVOGAÇÃO PARCIAL
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3088/18.4T8AVR.P1
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3088/18.4T8AVR.P1
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ANA PAULA AMORIM
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I - A omissão de apreciação no acórdão do recurso interposto por uma das partes, configura a nulidade prevista no art.º 615º/1 d) CPC, que fica suprida com a apreciação desse recurso em novo acórdão, o qual passa a constituir parte integrante e complemento do primitivo acórdão.
II - O Instituto de Proteção e Assistência na Doença IP (ADSE I.P.) não suporta o reembolso de despesas de saúde e medicamentosas que têm como causa ato ilícito de terceiro, no caso acidente de viação. O Instituto assegura a proteção aos seus beneficiários nos domínios da promoção da saúde, da prevenção da doença, do tratamento e da reabilitação.
III - Não fora o facto de a autora beneficiar deste subsistema e seria o terceiro responsável pelo facto ilícito e pelas lesões causadas à autora e que determinaram os cuidados médicos e medicamentosos, quem teria de suportar tais despesas com os tratamentos.
IV - O Instituto de Proteção e Assistência na doença IP (ADSE I.P.) fica sub-rogado nos direitos do lesado – art.º 592º CC – e assiste-lhe o direito a ser reembolsado pelo Fundo de Garantia Automóvel, na posição do lesado, ao abrigo do disposto nos art.º 47º, 48º e 49º do DL 291/2007 de 21 de agosto.
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[
"RESPONSABILIDADE POR ACIDENTE DE VIAÇÃO",
"DESPESAS DE SAÚDE E E MEDICAMENTOSAS",
"DIREITO DE SUB-ROGAÇÃO DA ADSE"
] |
Conferência-Nulidade-Atendida-Proc. 3088/18.4T8AVR.P1
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SUMÁRIO
[1]
(art.º 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)
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I. Relatório
Em 03 de maio de 2025 proferiu-se sentença (ref. Citius 132435950), com a decisão que se transcreve:
“Por todo o exposto, julgo a ação parcialmente procedente por provada, condenando-se, solidariamente, o Fundo de Garantia Automóvel e o Réu AA:
A
- A pagar à Autora:
- A quantia de 52.893,09 €, (cinquenta e dois mil, oitocentos e noventa e três euros e cinquenta cêntimos - 2685,50 € + 2582,59 € +3125.00 € + 19.500,00 € + 25.000,00 €) a título de danos patrimoniais e de danos morais;
- A estas quantia acrescerão os juros legais de 4%, contados desde a citação no que se refere à quantia de 2685,50 € +3125.00 €, contados desde a notificação da ampliação do pedido, no que se refere às quantias de 2582,59 € e contados desde a prolação da sentença no que se refere aos montantes de19.500,00€ e 25.000,00€,
- As quantias correspondentes a todas as despesas futuras (médicas, medicamentosas, paramédicas e na aquisição de material que se revele necessário) que esta venha a ter que suportar em consequência da incapacidade que lhe determinou o acidente de que tratam os presentes autos;
B –
A pagar ao Instituto de Proteção e Assistência na doença IP (ADSE I.P.) a quantia de 6.443,59 € (seis mil quatrocentos e quarenta e três euros e cinquenta e nove cêntimos) quantia acrescida de juros legais contados desde a notificação do pedido de reembolso”.
-
Em 06 de maio de 2024 procedeu-se à notificação da sentença.
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Em 11 de junho de 2024 o Fundo de Garantia Automóvel veio interpor recurso da sentença (ref. Citius 16273937).
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Nas alegações de recurso formulou as seguintes conclusões:
1) As obrigações do Recorrente FGA e as suas relações com as entidades e sistemas de segurança social (como é o caso da ADSE) encontram-se reguladas pelo Dec. Lei n.º 291/2007 de 21 de agosto;
2) O legislador criou um normativo legal que consagra os limites especiais à responsabilidade do FGA – Cf., inter alia, o artigo 51.º do Dec. Lei n.º 291/2007 de 21 de agosto;
3) Conclui-se, assim, da letra do n.º 3 e do n.º 4 do referido artigo 51.º do Dec. Lei n.º 291/2007 de 21 de agosto, que o Recorrente FGA nunca poderia ser demando pela ADSE – e, a fortiori, condenado nessa demanda –, em virtude de o mesmo não ser, do lado passivo, parte materialmente legitima.
4) Na verdade, o citado artigo 51.º tem como epígrafe “limites especiais à responsabilidade do Fundo” e aparece depois da definição do âmbito geográfico e material da função garantística do FGA contra o responsável civil do acidente e sobre quem impenda a obrigação de segurar, que respondem solidariamente.
5) É evidente que o Recorrente FGA não é um responsável civil.
6) A expressão “sobre quem impenda a obrigação de segurar” – prevista no n.º 4 do citado artigo 51.º – deve ser entendida como reportada às empresas de seguros, e não ao FGA, a quem não é cometida legalmente qualquer “obrigação” de segurar.
7) Essa “obrigação” será sempre do causador do acidente ou de quem impenda a obrigação de segurar
Sem conceder,
8) Com o pagamento do montante global de € 6.443,59, a ADSE subrogou-se nos direitos da Autora BB, assistindo-lhe, nessa conformidade, legitimidade ativa para deduzir um pedido de reembolso.
9) No entanto, veja-se que, a sub-rogação, sendo uma forma de transmissão de obrigações, coloca o sub-rogado na titularidade do crédito primitivo (para o qual se lhe transmite).
10) Pelo que, se os primitivos lesados – por força do disposto no n.º 3 do artigo 51.º do Dec. Lei n.º 291/07, de 21 de agosto – não podem demandar diretamente o FGA para lhe peticionar o pagamento de uma indemnização na parte em que esta não ultrapassasse o valor já pago pela ADSE, por maioria de razão, a ADSE, porque se encontra sub-rogada nos direitos daqueles, também não o poderá fazer.
11) Face ao exposto, resulta, inequivocamente, que o presente pedido se encontra excluído do âmbito de competências do FGA, considerando o disposto no artigo 51.º n.º 3 do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.
12) O Tribunal a quo violou, entre outros, o disposto no artigo 51.º do Dec. Lei n.º 291/2007 de 21 de agosto e o artigo 30.º do Código de Processo Civil.
Termina por pedir que se julgue procedente, por provado, o presente recurso absolvendo o Réu FGA do pedido do Instituto de Proteção e Assistência na Doença (ADSE).
-
Não foi apresentada resposta ao recurso.
-
Em 26 de maio de 2025 proferiu-se acórdão (ref. Citius 19409076), com a decisão que se transcreve:
“
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e o recurso subordinado e confirmar a sentença.
Custas a cargo:
- dos réus/apelantes, na apelação;
- da autora, no recurso subordinado”.
-
As partes foram notificadas do teor do acórdão em 26 de maio de 2025.
-
Em requerimento junto aos autos em 02 de junho de 2025 (ref. Citius 421900) veio o apelante Fundo de Garantia Automóvel suscitar a nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, com fundamento no art.º 615º/1 d) CPC.
Termina o requerimento com as seguintes conclusões (manteve-se a numeração indicada na peça processual):
22.
O FGA foi notificado da sentença proferida no âmbito destes autos, a qual condenou o FGA, entre outros, a pagar ao Instituto de proteção e assistência na doença IP a quantia de € 6.443,59, acrescida de juros legais contados desde a notificação do pedido de reembolso.
23.
O FGA interpôs recurso do suprarreferido segmento decisório na data de 11.06.2024, pela referência citius n.º 16273937, pagando a competente taxa de justiça (face ao valor desse recurso) pelo DUC com a referência n.º 702780091644046.
24.
O Tribunal recorrido (através do acórdão prolatado a 26.05.2025) não apreciou, nem se pronunciou expressamente sobre o suprarreferido recurso que recaiu sobre a mencionada decisão de mérito.
25.
Pelo que é mister concluir pela sua nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
26.
Neste sentido, deve o Tribunal pronunciar-se sobre o dito recurso e, por sua vez, absolver o FGA do pedido formulado pelo Instituto de Proteção e Assistência na doença IP, uma vez que a condenação do FGA a esse título é legalmente impossível, porquanto esse pedido se encontra excluído do âmbito de competências do FGA, considerando o disposto no artigo 51.º do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.
Termos em que, deve a presente arguição de nulidade ser julgada procedente e, em consequência, determinar-se que a nulidade acima exposta seja suprida nos termos anteriormente referidos.
-
Não foi apresentada resposta à reclamação.
-
Cumpre apreciar e decidir.
-
II. Fundamentação
1.
Delimitação do objeto da conferência
As questões a decidir consistem em apreciar:
- se o acórdão é nulo, por omissão de pronúncia, com fundamento no art.º 615º/1/d) do CPC;
- se atendida a reclamação e apreciados os fundamentos do recurso, se deve considerar que o Fundo de Garantia Automóvel não é responsável pelo reembolso das quantias reclamadas pelo Instituto de Proteção e Assistência na Doença, IP (ADSE, IP).
-
2.
Os factos
Com relevância para a apreciação da reclamação cumpre ter presente os termos do relatório.
-
3
. O direito
O réu Fundo de Garantia Automóvel veio suscitar a nulidade, por omissão de pronúncia, do acórdão proferido em 26 de maio de 2025, pelo Tribunal da Relação do Porto, com fundamento no art.º 615º/1/d) e art.º 616º/1CPC.
Decorre do disposto no art.º 666º CPC, conjugado com o art.º 613º, 615º/ 4 e art.º 617º/6 CPC, que arguida qualquer nulidade do acórdão ou pedido de retificação ou reforma, não sendo o acórdão suscetível de recurso ordinário, compete ao tribunal que proferiu a decisão apreciá-la, sendo lícito ao tribunal que proferiu a decisão supri-la.
Em segunda instância, a decisão é tomada em conferência, conforme determina o art.º 666º/2 CPC.
Estando em causa acórdão que confirmou a decisão da primeira instância, sem voto de vencido, não é o mesmo suscetível de recurso de revista e por isso, cumpre apreciar da nulidade suscitada (art.º 615º/4 CPC).
-
As nulidades da sentença/acórdão são vícios que afetam a validade formal da sentença/acórdão em si mesma e que, por essa razão, projetam um desvalor sobre a decisão, do qual resulta a inutilização do julgado na parte afetada.
A sentença na sua formulação pode conter vícios de essência, vícios de formação, vícios de conteúdo, vícios de forma, vícios de limites
[2]
.
As nulidades da sentença incluem-se nos “vícios de limites” considerando que nestas circunstâncias, face ao regime do art.º 615º CPC, a sentença não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia
[3]
.
O Professor ANTUNES VARELA no sentido de delimitar o conceito, face à previsão do art.º 668º CPC, e atual art.º 615º CPC, advertia que: “[…] não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário[…]”
[4]
.
A omissão de pronúncia sobre questões que o juiz devesse apreciar ou o conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento
constitui um dos fundamentos de nulidade da sentença, previsto art.º 615º/1 d) CPC.
A omissão de pronúncia sobre questões que o juiz devesse apreciar e o conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento
, constitui um vício relacionado com a norma que disciplina a “ordem de julgamento” - art.º 608º/2 CPC.
Com efeito, resulta do regime previsto neste preceito, que o juiz na sentença:
deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A respeito do conceito “questões que devesse apreciar” refere ANSELMO DE CASTRO que deve “ser tomada em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das exceções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sob os aspetos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão”
[5]
.
LEBRE DE FREITAS por sua vez tem a respeito de tal matéria uma visão algo distinta, pois considera que devendo: “o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art.º 660º/2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado”
[6]
.
Para melhor precisar o seu entendimento remete para o estudo do Professor ALBERTO DOS REIS cuja passagem se transcreve:
“Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação “ não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (art.º 511º/1), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 664º) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”
[7]
.
Seguindo os ensinamentos dos ilustres Professores, atendendo ao regime processual vigente, afigura-se-nos ser esta a interpretação que melhor reflete a natureza da atividade do juiz na apreciação e decisão do mérito das questões que lhe são colocadas, pois o juiz não se encontra vinculado às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 5º CPC).
Importa ter presente que o objeto do recurso se define pelas conclusões da alegação, pelo que, os vícios que possam ser imputados ao acórdão estão sempre relacionados com o objeto do recurso tal como ficou definido nas conclusões de recurso (art.º 639ºCPC).
No caso concreto, o apelante/reclamante Fundo de Garantia Automóvel suscita a nulidade do acórdão proferido em 26 de maio de 2025, com fundamento em omissão de pronúncia, porque se omitiu a apreciação do recurso por si interposto.
Com efeito, compulsados os autos constata-se que o réu Fundo de Garantia Automóvel para além de acompanhar o recurso interposto pelo corréu (art.º 634º CPC), também interpôs recurso autónomo da sentença, o qual não foi apreciado no acórdão que apreciou os diferentes recursos interpostos pelas partes nesta ação. Omitiu-se, assim, a apreciação de uma questão, suscitada no processo e que se prende com o mérito da causa, na medida em que está em causa apurar se o Réu/apelante Fundo de Garantia Automóvel também é responsável pelo pagamento das quantias reclamadas pelo Instituto de Proteção e Assistência na Doença, IP(ADSE,IP).
Pelo exposto, a reclamação deve ser atendida e suprindo a nulidade cometida, passa a apreciar-se dos fundamentos do recurso.
-
- Da responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel pelo pagamento das quantias reclamadas pelo Instituto de Proteção e Assistência na Doença, IP(ADSE, IP) -
O apelante insurge-se contra o segmento da sentença que condenou solidariamente o Fundo de Garantia Automóvel e o réu AA a pagar ao Instituto de Proteção e Assistência na doença IP (ADSE I.P.) a quantia de 6.443,59 € (seis mil quatrocentos e quarenta e três euros e cinquenta e nove cêntimos), acrescida de juros legais contados desde a notificação do pedido de reembolso.
Na sentença, fundamentou-se a decisão, como se passa a transcrever:
“
Passando agora ao pedido formulado pelo Estado:
Em causa estão quantias pagas pela ADSE relativas a despesas médicas tidas pela Autora.
O FGA vem invocar a prescrição do direito do Estado.
Vejamos:
O fundamento da responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel é, a existência de responsabilidade por factos ilícitos por parte do Réu AA que circulava sem seguro obrigatório e o direito de regresso do Estado relativamente às quantias pagas ao lesado, nos termos do art.º 51º n.º 4 do DL 291/2007 de 21 de agosto.
Estabelece e artigo que as entidades que satisfaçam os pagamentos previstos nos números anteriores têm direito de regresso contra o responsável civil do acidente e sobre quem impenda a obrigação de segurar, que respondem solidariamente.
Nesses pagamentos incluem-se, nos termos do n.º 3, os efetuados pela ADSE.
Nos termos do art.º 498º n.º 1 do Código Civil o direito de indemnização nela fundado prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete.
Estando em causa um direito de regresso, o prazo de 3 anos fixado no art.º 498º n.º 1 do Código Civil, conta-se a partir da data dos pagamentos – art.º 498º n.º 2 do Código Civil.
Os pagamentos feitos pelo Estado ocorreram desde setembro de 2015 até janeiro de 2019.
O Estado deduziu o pedido em 15 de fevereiro de 2019.
Ora, considerando o último pagamento efetuado, é óbvio que ainda não ocorrera a prescrição à data da contestação do FGA
Discute-se se o prazo de prescrição deve ocorrer separadamente para cada pagamento ou se se deve atender à data do último.
Ora, estando em causa um único lesado, tratando-se de prestações similares e regulares, atinentes ao pagamento de despesas de saúde, entende-se que se deve, de facto atender à data do último pagamento para que se inicie o decurso do prazo de prescrição É o que se refere no Acórdão do STJ de 26/11/2020, processo 2325/18-0T8VRL.G1.S1 –
“
I - Para efeitos do disposto no art.º 498º, nº 2, do CC, no caso de fracionamento do pagamento da indemnização, deve atender-se, em regra, à data do último pagamento efetuado.
II - Pode, no entanto, autonomizar-se o pagamento de cada parcela, desde que se esteja perante danos normativamente diferenciados”.
Improcede, pois a invocada prescrição.
E nos termos do art.º 51º n.º 3 acima referido tem o Estado direito ao reembolso das quantias pagas, procedendo, assim o pedido formulado pelo Estado”.
O Instituto de Proteção e Assistência na Doença, IP (ADSE,IP) veio reclamar o pagamento da quantia de 6.443,59 € (seis mil quatrocentos e quarenta e três euros e cinquenta e nove cêntimos), acrescida de juros legais contados desde a notificação do pedido de reembolso, a título de reembolsos ou comparticipações nas despesas de saúde que a autora efetuou em consequência do sinistro dos autos.
Considera o apelante que ao abrigo do art.º 51º/3 do DL 291/2007 de 21 de agosto, o Fundo de Garantia Automóvel não é responsável pelo seu pagamento, porque assume a posição de garante e não de responsável civil e mesmo considerando-se o Instituto sub-rogado nos direitos do lesado, não pode ver reconhecido o direito que reclama, quando o mesmo não é reconhecido ao lesado.
A questão a apreciar consiste em saber se o Fundo de Garantia Automóvel é responsável pelo pagamento das quantias reclamadas pelo Instituto de Proteção e Assistência na Doença, IP (ADSE,IP) a título de comparticipações e reembolsos das despesas de saúde que a autora realizou em consequência do sinistro dos autos.
Na análise da questão cumpre ter presente o seguinte regime legal:
Artigo 47º
Fundo de Garantia Automóvel
1 - O Fundo de Garantia Automóvel garante a reparação dos danos decorrentes de acidentes rodoviários nas situações e termos previstos na secção seguinte.
2 - O Fundo de Garantia Automóvel é dotado de autonomia administrativa e financeira.
3 - A gestão do Fundo de Garantia Automóvel é assegurada pela ASF.
4 - O Fundo de Garantia Automóvel, existente nos termos do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de dezembro, mantém todos os seus direitos e obrigações.
5 - O Fundo de Garantia Automóvel pode efetuar o resseguro das suas responsabilidades.
[…]
Artigo 48.º
Âmbito geográfico e veículos relevantes
1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 5.º e nos artigos 57.º-C e 57.º-D, o Fundo de Garantia Automóvel satisfaz, nos termos da presente secção, as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados:
a) Por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório e, seja com estacionamento habitual em Portugal, seja matriculados em países que não tenham serviço nacional de seguros, ou cujo serviço não tenha aderido ao Acordo entre os serviços nacionais de seguros;
b) Por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório sem chapa de matrícula ou com uma chapa de matrícula que não corresponde ou deixou de corresponder ao veículo, independentemente desta ser a portuguesa;
c) Por veículo cujo responsável pela circulação está isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ainda que com estacionamento habitual no estrangeiro;
d) Por veículo retirado e proibido de utilização, ainda que de forma temporária, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 4.º.
2 - No caso previsto na alínea c) do número anterior, é aplicável o previsto no artigo 54.º relativamente ao responsável civil.
Artigo49.º
Âmbito material
1 - O Fundo de Garantia Automóvel garante, nos termos do n.º 1 do artigo anterior, e até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a satisfação das indemnizações por:
a) Danos corporais, quando causados por veículo não identificado ou em relação ao qual não haja seguro válido e eficaz;
b) Danos materiais, quando causados por veículo em relação ao qual não haja seguro válido e eficaz;
c) Danos materiais, quando, sendo causados por veículo não identificado, exista, em simultâneo, direito a uma indemnização por danos corporais significativos;
d) Danos corporais e materiais, quando causados por veículo objeto de seguro por empresa de seguros sujeita a um processo de insolvência ou de liquidação.
2 - Para efeitos do disposto na alínea c) do número anterior, consideram-se danos corporais significativos a lesão corporal que determine:
a) Morte ou internamento hospitalar igual ou superior a sete dias; ou
b) Incapacidade temporária absoluta por período igual ou superior a 60 dias; ou
c) Incapacidade parcial permanente igual ou superior a 15 /prct..
3 - (Revogado.)
Artigo 51.º
Limites especiais à responsabilidade do Fundo
1 - Caso o acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º seja também de trabalho ou de serviço, o Fundo só responde por danos materiais e, relativamente ao dano corporal, pelos danos não patrimoniais e os danos patrimoniais não abrangidos pela lei da reparação daqueles acidentes, incumbindo, conforme os casos, às empresas de seguros, ao empregador ou ao Fundo de Acidentes de Trabalho as demais prestações devidas aos lesados nos termos da lei específica de acidentes de trabalho ou de serviço, salvo inexistência do seguro de acidentes de trabalho, caso em que o FGA apenas não responde pelas prestações devidas a título de invalidez permanente.
2 - Se o lesado por acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º beneficiar da cobertura de um contrato de seguro automóvel de danos próprios, a reparação dos danos do acidente que sejam subsumíveis nos respetivos contratos incumbe às empresas de seguros, ficando a responsabilidade do Fundo limitada ao pagamento do valor excedente.
3 - Quando, por virtude de acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º, o lesado tenha direito a prestações ao abrigo do sistema de proteção da segurança social, o Fundo só garante a reparação dos danos na parte em que estes ultrapassem aquelas prestações.
4 - As entidades que satisfaçam os pagamentos previstos nos números anteriores têm direito de regresso contra o responsável civil do acidente e sobre quem impenda a obrigação de segurar, que respondem solidariamente.
5 - O lesado pelo acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º não pode cumular as indemnizações a que tenha direito a título de responsabilidade civil automóvel e de beneficiário de prestações indemnizatórias ao abrigo de seguro de pessoas transportadas.
6 - O pagamento pela empresa de seguros da indemnização prevista no n.º 2 não dá, em si, lugar a alteração de prémio do respetivo seguro quando o dano reparado for da exclusiva responsabilidade do interveniente sem seguro.
A questão da reclamação das despesas suportadas por terceiros em ação em que é demandado o réu Fundo de Garantia Automóvel não tem obtido na jurisprudência um tratamento uniforme.
A respeito das quantias reclamadas pelo Centro Nacional de Pensões, a título de pensão de sobrevivência e subsídio por morte e em relação às comparticipações da Segurança Social, a jurisprudência não tem adotado uma posição uniforme sobre a questão, sendo que neste Tribunal da Relação do Porto, se destacam, entre outros, os acórdãos proferidos em 04 de maio de 2023, Proc. 2120/20.6T8PNF.P1 e Ac. 04 de julho de 2024, Proc. 11004/19.0T8PRT.P1, ambos acessíveis em
www.dgsi.pt
, que consideram que o Fundo de Garantia Automóvel não responde pelo pagamento de tais quantias e o Ac. Rel. Porto 11 de setembro de 2023, Proc. 18386/18.9T8PRT.P1 (acessível em www.dgsi.pt) que entende que tais valores são suportados pelo Fundo de Garantia Automóvel (cita-se jurisprudência no mesmo sentido).
O apelante sustenta a sua posição na primeira corrente, citando jurisprudência nesse sentido, mas em que estava em causa as quantias reclamadas pelo Centro Nacional de Pensões, a título de pensão de sobrevivência e subsídio por morte e comparticipações da Segurança Social.
Contudo, na situação concreta, não se reclamou o pagamento de prestações ao abrigo do sistema de proteção da Segurança Social, a que se reporta o art.º 51º/3 do DL 291/2007 de 21 de agosto, motivo pelo qual a despesa reclamada não se enquadra na previsão deste preceito.
O Instituto de Proteção e Assistência na Doença IP (ADSE I.P.) reclamou as comparticipações que pagou à autora.
O Instituto de Proteção e Assistência na Doença IP (ADSE I.P.) (cujo regime consta do Decreto-Lei n.º 7/2017, de 9 de janeiro, na redação do DL n.º 33/2018, de 15/05) é um instituto público de regime especial e de gestão participada, nos termos da lei integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e património próprio (art.º 1º do Decreto-Lei n.º 7/2017, de 9 de janeiro, na redação do DL n.º 33/2018, de 15/05) e tem em vista assegurar a proteção aos seus beneficiários nos domínios da promoção da saúde, da prevenção da doença, do tratamento e da reabilitação (art.º 3º do diploma citado).
Nos termos do art.º 21º do citado diploma: “A ADSE, I. P., sucede nas atribuições da Direção-Geral de Proteção Social aos Trabalhadores em Funções Públicas.
2 - As posições jurídicas detidas pela Direção-Geral de Proteção Social aos Trabalhadores em Funções Públicas transmitem-se para a ADSE, I. P., nelas se incluindo a universalidade de bens e direitos, o ativo e passivo, o património físico e jurídico e as posições em contratos em vigor, incluindo os relativos aos seus trabalhadores, constituindo o presente Decreto-Lei título bastante para todos os efeitos legais”.
O Instituto de Proteção e Assistência na Doença IP (ADSE I.P.) veio reclamar as comparticipações que pagou à autora, porque a autora é beneficiária deste subsistema e beneficiou das comparticipações durante o período em que se encontrou em tratamento na sequência do acidente de viação em análise nestes autos.
Porém, o Instituto de Proteção e Assistência na Doença IP (ADSE I.P.) não suporta o reembolso de despesas de saúde e medicamentosas que têm como causa ato ilícito de terceiro, no caso acidente de viação. O Instituto assegura a proteção aos seus beneficiários nos domínios da promoção da saúde, da prevenção da doença, do tratamento e da reabilitação.
Não fora o facto de a autora beneficiar deste subsistema e seria o terceiro responsável pelo facto ilícito e pelas lesões causadas à autora e que determinaram os cuidados médicos e medicamentosos, quem teria de suportar tais despesas com os tratamentos.
Desta forma, o Instituto de Proteção e Assistência na doença IP (ADSE I.P.) ficou sub-rogado nos direitos do lesado (a autora) – art.º 592º CC – e assiste-lhe o direito a ser reembolsado pelo Fundo de Garantia Automóvel, na posição do lesado, ao abrigo do disposto nos art.º 47º, 48º e 49º do DL 291/2007 de 21 de agosto.
O regime previsto no art.º 51 do DL 291/2007 de 21 de agosto visa acautelar uma duplicação de indemnizações pelos mesmos danos.
No caso concreto, não se provou que a autora através do pedido formulado viu satisfeito na integra a indemnização das despesas de saúde e medicamentosas e por isso, não se pode afirmar que existe duplicação da indemnização.
Refira-se, por fim, que o facto do Fundo de Garantia Automóvel ser demandado como garante, não o dispensa de suportar a indemnização pelos danos sofridos pelo lesado, porque responde pela indemnização até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (art.º 49º/1 a) DL 291/2007 de 21 de agosto).
Assiste-lhe o direito, em ação de regresso, a reclamar os pagamentos que realizou, como prevê o art.º 54º DL 291/2007 de 21 de agosto.
É de considerar, ainda, que o Instituto de Proteção e Assistência na Doença IP (ADSE I.P.) e o Fundo de Garantia Automóvel são entidades que prosseguem fins de natureza social e de ordem pública. São dotados de autonomia administrativa e financeira. O respetivo fim e âmbito de ação encontra-se determinado na lei e as receitas que obtêm destinam-se apenas a satisfazer os fins respetivos. Estando o Fundo de Garantia Automóvel vocacionado para suportar as indemnizações em situações muito particulares deve assumir o seu pagamento independentemente do responsável civil o fazer, sabendo-se que muitas vezes o responsável civil não o faz, por não ter suporte económico para o fazer, ou até por ser desconhecido, ficando penalizada a instituição que assumiu o pagamento de despesas que não eram da sua responsabilidade, quando o Fundo de Garantia Automóvel dispõe de um fundo próprio para suportar tais encargos.
Rejeitar, como pretende o apelante, a obrigação de indemnizar vai penalizar os beneficiários do Instituto de Proteção e Assistência na Doença IP (ADSE I.P.) que fizeram os seus descontos e vêm as suas receitas afetas a despesas que não são da responsabilidade do Instituto de Proteção e Assistência na Doença IP (ADSE I.P.), sendo certo que o Fundo dispõe de receitas próprias para garantir o pagamento.
Conclui-se, assim, que não merece censura a sentença que condenou o Fundo de Garantia Automóvel no pagamento das quantias reclamadas pelo Instituto de Proteção e Assistência na Doença, IP (ADSE I.P.).
Contudo, porque a conduta da autora concorreu para a produção do sinistro (segmento da sentença que não foi alterado no recurso interposto pelo réu AA) e se fixou a responsabilidade dos dois condutores na proporção de 50%, é nessa mesma proporção que assiste o direito ao reembolso, ou seja, € 3 221, 80 (três mil duzentos e vinte e um euros e oitenta cêntimos).
Procedem, em parte, as conclusões de recurso.
-
As custas na reclamação, porque dela tirou proveito, são suportadas pelo reclamante Fundo de Garantia Automóvel e na apelação, pelo recorrente Fundo de Garantia Automóvel (art.º 527º CPC).
-
O acórdão agora proferido passa a constituir parte integrante e complemento do acórdão proferido em 26 de maio de 2025 (art.º 617º/2 CPC).
-
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em atender a reclamação e julgar, em parte, procedente a apelação do Fundo de Garantia Automóvel e nessa conformidade, condenar solidariamente o Fundo de Garantia Automóvel e o réu AA a pagar ao Instituto de Proteção e Assistência na Doença, IP (ADSE I.P.) a quantia de €3 221,80 (três mil duzentos e vinte e um euros e oitenta cêntimos), acrescida de juros a contar da data da notificação.
-
Custas da reclamação, a cargo do Fundo de Garantia Automóvel.
-
Na apelação, as custas são suportadas pelo recorrente Fundo de Garantia Automóvel.
*
O acórdão agora proferido passa a constituir parte integrante e complemento do acórdão proferido em 26 de maio de 2025 (art.º 617º/2 CPC).
*
Porto, 10 de julho de 2025
(processei, revi e inseri no processo eletrónico – art.º 131º, 132º/2 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Juiz Desembargador-Relator
António Mendes Coelho
1º Adjunto Juiz Desembargador
Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto Juiz Desembargador
__________________________
[1]
Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2]
JOÃO DE CASTRO MENDES,
Direito Processual Civil
, vol. III, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito, 1982, pág. 297.
[3]
JOÃO DE CASTRO MENDES,
Direito Processual Civil
, ob. cit., pág. 308.
[4]
ANTUNES VARELA, J.M.BEZERRA, SAMPAIO NORA
, Manual de Processo Civil
, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 686.
[5]
ANSELMO DE CASTRO
Direito Processual Civil Declaratório
, vol. III, Coimbra, Almedina, 1982, pág. 142.
[6]
JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO
Código de Processo Civil Anotado
, Vol. II, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pág. 704.
[7]
JOSÉ ALBERTO DOS REIS
Código de Processo Civil Anotado
, vol. V, Coimbra, Coimbra Editora Lim., 1984, pág. 143.
No mesmo sentido pode ainda ler-se o ANTUNES VARELA J. M. BEZERRA, SAMPAIO NORA
, Manual de Processo Civil
, ob. cit., pág. 688.
|
TRP
|
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/57e39f9b646a74fc80258cd700463766?OpenDocument
|
1,748,822,400,000
|
PROCEDENTE
|
19143/19.0T8SNT.L1-6
|
19143/19.0T8SNT.L1-6
|
ANTÓNIO SANTOS
|
1. -
O uso indevido do procedimento de injunção ocorre designadamente no caso de o respectivo pedido, no todo ou em parte, não se ajustar à respectiva
finalidade
nos termos previstos no art.º 7º do diploma anexo ao DL 269/98;
2. -
Ocorrendo a situação referida em 1., verifica-se uma excepção dilatória inominada, a qual é de conhecimento oficioso, desencadeando a inevitável absolvição da instância, nos termos dos artigos 576.º, n.º 2, 577.º e 578.º, todos do Código de Processo Civil
.
3. -
O vício referido em 2., todavia, não afecta em todo o caso todo o título
[
por aposição da fórmula executória
]
que se haja formado no procedimento de injunção, mas apenas na parte em que o subjacente pedido não se ajuste á
finalidade
do referido procedimento, nos termos previstos no art.º 7º do diploma anexo ao DL 269/98;
4. -
Em consonância com o referido em 3., impõe-se, portanto, apenas o indeferimento parcial do requerimento inicial executivo
[
cfr. Art.º 726º, nº 3, do CPC], quanto á parte do título afectada pelo vício referido em 4.2., devendo a execução prosseguia quanto ao restante;
5. - O referido em 3. e 4. consubstancia entendimento/interpretação que é a que melhor satisfaz e atende à
unidade do sistema jurídico
, concebendo o processo civil
como um instrumento e um mero meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um
estereótipo autista que a si próprio se contempla
e
impede que seja perseguida a justiça
, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo.
|
[
"USO INDEVIDO DE INJUNÇÃO",
"EXCEPÇÃO DILATÓRIA",
"CONHECIMENTO OFICIOSO",
"INDEFERIMENTO LIMINAR PARCIAL"
] |
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
*
1.-
Relatório
.
nos comunicações s.a
., propôs em
2/12/2019
acção executiva contra
B
visando a cobrança coerciva do montante total de
2.470,68 €
, e estando a execução amparada em título executivo resultante de procedimento de injunção [no qual reclamara a exequente/NOS, a quantia total de
2.085,81€,
sendo:
i)
a quantia de
1.613,99€,
a titulo de capital e referente a serviços prestados, facturados e não pagos;
ii)
a de
€67,52
, respeitante referente a juros vencidos até à data da apresentação do requerimento injuntivo;
iii)
a de
327,80€
, referente a
indemnização pelos custos administrativos e internos associados à cobrança da dívida
, e
iv)
76,50€,
referente a taxa de justiça] ao qual foi aposta formula executória.
1.1 – A execução prosseguiu os seus termos [v.g. com pedidos de penhora electrónica de saldos bancários dirigidos a instituições bancárias, sendo que todas as diligências encetadas revelaram-se inócuas em sede de apreensão de bens] e, já em
18-09-2024
, vem o Exmº Juiz titular dos autos a proferir o seguinte despacho:
Notifique o exequente para, em 10 dias e ao abrigo do artigo 3.º do CPC, a fim de evitar decisão surpresa, se pronunciar quanto à eventual rejeição da execução por força da ineficácia do documento junto como título executivo, por a pretensão formulada não se ajustar à finalidade do procedimento de injunção, devendo juntar aos autos, no mesmo prazo, a/s fatura/s a que alude no requerimento de injunção dado à execução”.
1.2. – Após cumprimento pela exequente do determinado em 1.2. [tendo a exequente atravessado nos autos instrumento a juntar cópia de diversas facturas não cobradas e, concomitantemente, alegado que “
A Exequente não peticiona qualquer valor a título de indemnização pelo incumprimento do contrato, como se poderá verificar pela análise das faturas agora juntas
”], vem o Exmº Juiz titular dos autos a proferir em
17/10/2024
a seguinte
DECISÃO
[a qual se reproduz parcialmente]:
“ (…)
Nos termos do disposto no artigo 734.º do CPC, “o juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo” (nº1), sendo que, “rejeitada a execução ou não sendo o vício suprido ou a falta corrigida, a execução extingue-se, no todo ou em parte”(nº2).
No caso em apreço, como supra se referiu, o exequente veio dar à execução requerimento de injunção ao qual foi aposta força executiva por secretário de justiça, do qual consta peticionado o pagamento de valores correspondentes, além do mais, a indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida.
Ora, o procedimento de injunção é aplicável às obrigações pecuniárias diretamente emergentes de contratos (não tendo a virtualidade de servir para exigir obrigações pecuniárias resultantes da responsabilidade civil contratual), sendo certo que tal prestação só pode ter por objeto imperativamente uma obrigação pecuniária, isto é, uma entrega em dinheiro em sentido restrito (em contraposição com a obrigação de valor, que não tem por objeto a entrega de quantias em dinheiro e visa apenas proporcionar ao credor um valor económico de um determinado objeto ou de uma componente do património).
Este regime processual só é aplicável às obrigações pecuniárias diretamente emergentes de contratos, pelo que não tem a virtualidade de servir para a exigência de obrigações pecuniárias resultantes, por exemplo, de responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, de enriquecimento sem causa ou de relações de condomínio.
A jurisprudência tem concluído, de forma praticamente unânime, no sentido da inadmissibilidade do pedido de pagamento da cláusula penal por incumprimento contratual, e/ou de indemnização, nesta forma processual (RL 08.10.2015, processo 154495/13.0YIPRT.L1-8; RL 12.05.2015, processo 54168/13.YIPRT.L1-7; RL 15-10-2015, processo 96198/13.1YIPRT-A.L1-2; RL 17.12.2015, processo 122528/14.9YIPRT.L1-2; RL de 25.01.2024, processo 101821/22.2YIPRT.L1-8).
(…)
A exequente não poderia, assim, ter recorrido ao requerimento de injunção e, tendo-o feito, deu causa à verificação de uma exceção dilatória inominada, prevista nos artigos 555.º,n.º 1, 37.º, n.º 1, primeira parte, e geradora de absolvição da instância ao abrigo do vertido nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, 578.º e 278.º, n.º 1, alínea e), todos do Código de Processo Civil.
Tal exceção atinge e contagia todo o procedimento de injunção, por não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigíveis para a sua utilização, e não apenas o pedido referente ao valor da cláusula penal peticionada – ver, neste sentido, Ac. RL, de 23.11.2021, relatado por Edgar Taborda Lopes, proc. 88236/19.0YIPRT.L1-7; Ac. RP, de 15.01.2019, relatado por Rodrigues Pires, proc. 141613/14.0YIPRT.P1 (in
www.dgsi.pt
).
(…)
Como recentemente se entendeu no Ac. RP, de 27.09.2022, relatado por Anabela Dias da Silva, o procedimento de injunção não é meio processual próprio para se peticionar o pagamento de uma quantia a título de cláusula penal indemnizatório ou qualquer outra quantia a título de indemnização pelos encargos com a cobrança da dívida. Intentando-se a execução dando-se como título executivo injunção de onde resulte que abrange semelhantes quantias, há que se verificar exceção dilatória de conhecimento oficioso que conduz à absolvição da instância, devendo-se indeferir liminarmente o requerimento executivo.
No sentido de que “a injunção à qual foi aposta fórmula executória nestas circunstâncias está assim afetada de vício que constitui exceção dilatória inominada justificativa do indeferimento liminar da execução”, ver, ainda, Acs. RP, de 26.09.2022, relatado por Maria José Simões, e de 08.11.2022, relatado por Alexandra Pelayo, bem como o Ac. RE, de 28.04.2022, relatado por Mata Ribeiro (in
www.dgsi.pt
), assim sumariado:
“1 - O procedimento de injunção não é meio adequado para peticionar o pagamento da obrigação resultante da aplicação da cláusula penal acordada para o incumprimento do período de fidelização.
2 - No procedimento de injunção não se pode obter título executivo cumulando pretensão por dívidas referentes a prestações pecuniárias emergentes de contrato com indemnização por incumprimento contratual.
3 - A injunção à qual foi aposta fórmula executória nestas circunstâncias está assim afectada de vício que constitui exceção dilatória inominada justificativa do indeferimento liminar da execução.”
Veja-se, ainda quanto a esta questão, o decidido nos recentíssimos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, datados, ambos, de 18.04.2024 – processo 12308/19.7T8SNT.L1, relatado por Carla Mendes e processo 18156/20.4T8SNT.L1, relatado por Eduardo Petersen Silva –, que recaíram sobre decisões proferidas por este Juízo de Execução (nos quais a ora exequente era, também, exequente e recorrente), confirmando-as, podendo ler-se, no último, o seguinte:
“(…)
Assim posta a questão, ela é simplesmente esta: - o tribunal pode conhecer de ofício a excepção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção?
Vejamos as disposições legais que a recorrente invoca violadas.
Dispõe o artigo 14º - A do DL nº 269/98 de 1.9, epigrafado “Efeito cominatório da falta de dedução da oposição”:
“1 - Se o requerido, pessoalmente notificado por alguma das formas previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo225.º do Código de Processo Civil e devidamente advertido do efeito cominatório estabelecido no presente artigo, não deduzir oposição, ficam precludidos os meios de defesa que nela poderiam ter sido invocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 - A preclusão prevista no número anterior não abrange:
a) A alegação do uso indevido do procedimento de injunção ou da ocorrência de outras exceções dilatórias de conhecimento oficioso;
b) A alegação dos fundamentos de embargos de executado enumerados no artigo 729.º do Código de Processo Civil, que sejam compatíveis com o procedimento de injunção;
c) A invocação da existência de cláusulas contratuais gerais ilegais ou abusivas;
d) Qualquer exceção perentória que teria sido possível invocar na oposição e de que o tribunal possa conhecer oficiosamente”.
Dispõe o artigo 726º do Código de Processo Civil:
“1 - O processo é concluso ao juiz para despacho liminar.
2 - O juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando:
a) Seja manifesta a falta ou insuficiência do título;
b) Ocorram exceções dilatórias, não supríveis, de conhecimento oficioso; c) (…)
3 - (…)
4 - Fora dos casos previstos no n.º 2, o juiz convida o exequente a suprir as irregularidades do requerimento executivo, bem como a sanar a falta de pressupostos, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 2 do artigo 6.º.
5 - Não sendo o vício suprido ou a falta corrigida dentro do prazo marcado, é indeferido o requerimento executivo.
6 – (…)”.
Isto posto, verifica-se ainda que não só é actualmente unânime a orientação doutrinária e jurisprudencial, aliás reconhecida pela recorrente, de que o procedimento injuntivo não pode ser usado para obter a (fórmula executória que permite a) execução de obrigação resultante de cláusula penal, como também não há dúvida – e de resto a jurisprudência citada pela sentença bem o demonstra – que também quanto à questão de saber se a excepção dilatória inominada de uso indevido do procedimento de injunção, pode ser conhecida oficiosamente e pode determinar o indeferimento liminar da execução baseada em requerimento de injunção ao qual, por via da não oposição, haja sido aposta fórmula executória. Isto é, é dominante, e de resto nem a recorrente nos aporta jurisprudência ou doutrina em sentido diverso, a orientação que entende que a excepção em causa pode ser conhecida oficiosamente – e se pode ser conhecida oficiosamente, não precisa de ser invocada, e é indiferente que não tenha sido invocada, precisamente note-se, porque excede a disponibilidade das partes a definição de meios e termos processuais legalmente regulados, ou seja, as partes não podem à partida, sob pena de violação aberta e abusiva das normas processuais que taxativamente definemos títulos executivos, garantes, elas mesmas, da assertividade da obrigação e consequentemente do exercício pressuposto do direito constitucional de defesa previsto no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa– o que significa do mesmo passo que não ocorre preclusão, como de resto resulta literalmente dos termos do artigo 14º - A, alínea a) acima transcrito, nem se podendo entender que a lei pudesse ser interpretada sem garantir um mínimo de correspondência com o elemento literal – confronte-se o artigo 9º do Código Civil. E consequentemente, é também claro que ao afirmar expressamente a não preclusão, a lei excepciona a regra da concentração da defesa invocada pela recorrente a partir do artigo 573º do Código de Processo Civil. E finalmente, é cristalino que se a lei excepciona a preclusão, a invocação e ou a aplicação da excepção de uso indevido do procedimento cautelar não ofende a força executória aposta ao requerimento de injunção – que precisamente, não pode incidir sobre o que não pode ser peticionado por essa via.
E se está expressamente prevista na alínea a) a excepção de uso indevido do procedimento injuntivo, e nele equiparada, pela previsão subsequente a “outras”, a excepção dilatória de conhecimento oficioso, é evidente que o caso cai sob a previsão desta
alínea a), sendo espúria a invocação da alínea b) do mesmo preceito, como fundamento do recurso.
De resto, sobre a aplicabilidade do artigo 729º do Código de Processo Civil, reiteramos o entendimento da não equiparação da aposição da fórmula executória a uma decisão judicial, que já manifestamos no acórdão proferido no processo 2825/17.9T8LSB.L1-6 em 15-02-2018, pelo relator subscrito enquanto adjunto, e relatado pela Exmª Senhora Desembargadora Anabela Calafate, ora segunda adjunta, acórdão que se encontra publicado no sítio electrónico da dgsi, e para cujo teor se remete.”
Cumpre, por fim, em jeito de conclusão, citar o Ac. RL, de 16.05.2024, relatado por Teresa Sandiães, processo 11350/23.8T8SNT.L1 – que recaiu sobre decisão proferida por este Juízo de Execução, confirmando-a –, podendo ler-se, no sumário, o seguinte:
“Decorre do art.º 1º do diploma preambular do DL nº 268/98, de 01/09 e art.º 7º do anexo que o regime processual especial nele previsto apenas pode ter por objeto obrigações pecuniárias, em sentido estrito, diretamente emergentes de contratos, visando-se o cumprimento daquelas.
Tal não sucede quando o requerimento de injunção se destina ao exercício da responsabilidade civil contratual, onde se peticionam valores que não integram a categoria de obrigações pecuniárias em sentido estrito (cláusula penal, bem como a globalidade das prestações previstas no contrato, por vencimento imediato de todas elas, com fundamento em resolução contratual), pelo que se fez uso indevido deste meio processual.
Tendo sido aposta fórmula executória à injunção que padece do apontado vício, que se reconduz a uma exceção dilatória inominada, impunha-se a rejeição oficiosa da execução.” – sublinhado e negrito, nossos.
Entende, assim, este Tribunal não dispor a exequente de título executivo eficaz, por a pretensão formulada não se ajustar à finalidade do procedimento de injunção.
*
Decisão:
Em face de todo o exposto, por verificação da exceção dilatória inominada do uso indevido do procedimento de injunção e consequente falta de título executivo, decido rejeitar a presente execução (cf. artigos 734.º n.º 1 e 726.º n.º 2 al. a) do CPC).
Custas pela exequente.
Registe e notifique.
Sintra, d.s
.”
1.3. - Inconformado com o teor da DECISÃO identificada em 1.2., da mesma veio a exequente
nos comunicações s.a
., apelar, formulando na respectiva peça recursória as
seguintes
conclusões
:
1. Não pode o tribunal do qual se recorre,
ex officio
, apreciar uma eventual exceção de utilização indevida de injunção.
2. Das causas admissíveis de indeferimento liminar do requerimento executivo constantes do artigo 726.º do CPC não resulta o uso indevido do procedimento de injunção;
3. Permitir-se ao juiz da execução pronunciar-se ex officio relativamente à exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção esvaziaria de função o artigo 14.º-A n.º 2 do DL 269/98, de 01 de setembro, e atentaria contra o princípio da concentração da defesa ínsito no artigo 573.º do CPC;
4. Não obstante, a injunção constitui um meio adequado para o pagamento das despesas associadas à cobrança das faturas relativas à prestação dos serviços contratados pelo Apelado;
5. Dado que, à semelhança do que sucede com os juros de mora, também as despesas de cobrança resultam diretamente da falta de pagamento da obrigação pecuniária principal e, por conseguinte, constituem uma obrigação pecuniária em sentido estrito, isto é, diretamente emergente do contrato;
6. Sem prescindir, o entendimento de que as despesas de cobrança não podem integrar o procedimento injuntivo não determina que a extinção total da instância executiva, mas somente a recusa do título executivo relativamente à parte que integra tais custos administrativos.
7. A sentença proferida pelo Tribunal
a quo
trata-se de um indeferimento liminar da petição inicial, o que legitima a apresentação do presente recurso;
8. Ainda que se conclua pela exceção indevida de utilização indevida da injunção, deverão os autos prosseguir para cobrança do remanescente em dívida conforme aliás já decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
De tudo quanto ficou exposto, resulta que, a decisão recorrida, ao rejeitar, liminarmente, a execução, violou, nomeadamente:
- o artigo 726.º n.º 2 do C.P.C.;
- o artigo 1.º do diploma preambular associado ao DL 269/98,
de 01 de setembro;
- o artigo 10.º n.º 2 al. e) do regime anexo ao DL 269/98;
- o artigo 14.º-A n.º 2 do regime anexo ao DL 269/98;
- o artigo 193.º do CPC
Deverá, consequentemente, ser revogada e substituída por decisão que admita o requerimento executivo e mande prosseguir os autos nos termos acima expostos.
1.4.- Dos autos não decorre que tenha o executado
b
apresentado contra-alegações – apesar de para o efeito ter sido citado nos termos do art.º 641º, nº7, do CPC.
*
Thema decidendum
1.5. - Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que, estando o objecto do recurso delimitado pelas
conclusões
[daí que as questões de mérito julgadas que não sejam levadas às conclusões da alegação da instância recursória, delas não constando, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal ad quem] das alegações dos recorrentes (cfr. artºs. 635º, nº 3 e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho), e sem prejuízo das questões de que o tribunal
ad quem
possa ou deva conhecer oficiosamente, as questões a apreciar e a
decidir são apenas duas, a saber
:
I - Aferir se decisão apelada se impõe ser revogada, impondo-se o prosseguimento da execução,
sem quaisquer limitações
, e isto porque:
a)
Vedado estava ao Tribunal
a quo
conhecer oficiosamente de excepções dilatórias relacionadas com o conteúdo do título executivo;
b)
Nada obstava a que a exequente, no âmbito do procedimento de injunção, tivesse reclamado o pagamento das despesas associadas à cobrança das faturas relativas à prestação dos serviços contratados pelo Apelado;
II - Aferir se a improcederam as questões identificadas em a) e b), supra, deve ainda assim o tribunal
a quo
prosseguir a execução quanto às quantias exequendas que podiam ter sido, como o foram, reclamadas no procedimento injuntivo, e isto porque não pode e não deve a errada utilização do referido processo [v.g no tocante à reclamada quantia para ressarcimento das despesas de cobrança] determinar a
extinção total da instância executiva
;
*
2.-
Motivação de Facto
A factualidade a atender em sede de julgamento do mérito da apelação pela exequente interposta é a que se mostra indicada no Relatório do presente Acórdão, e para o qual se remete, sendo pertinente outrossim acrescentar ainda a seguinte:
2.1. – O título executivo - “
levado
” à execução e que assenta em
requerimento de injunção
a que foi aposta fórmula executória - tinha o
seguinte teor:
O(s) requerentes(s) solicita(m) que seja(m) notificado(s) o(s) requeridos, no sentido de lhe(s) ser paga a quantia de €2.085,81 conforme discriminação e pela causa a seguir indicada:
Capital: €
1.613,99
Juros de mora:
€ 67,52
à taxa de: 0,00%, desde … até à presente data; Outras quantias:
€327,80
…Taxa de Justiça paga: €76,50.
Contrato de: Fornecimento de bens ou serviços Contrato nº:
Data do contrato: 11-12-2015 Período a que se refere: 11-12-2015 a 12-06-2018.
Exposição dos factos que fundamentam a pretensão:
A Req.te (Rte), celebrou com o Req. do (Rdo) de acordo com as propostas por este assinadas, dois contratos de prestação de bens e serviços telecomunicações a que foram atribuídos os seguintes números de contrato/conta cliente:
Contrato nº …99 de 11.12.2015; contrato Nº …96 de 20.05.2016.
No âmbito dos referidos contratos, a Requerente obrigou-se a prestar o serviço, nos planos tarifários escolhidos pelo Requerido; e este obrigou-se a efetuar o pagamento tempestivo das faturas e a manter os contratos pelo período fixado nas propostas, sob pena de, não o fazendo, ser responsável pelo pagamento à Requerente, a título de cláusula penal e nos termos das condições gerais e específicas, do valor relativo à quebra do vínculo contratual.
Após a assinatura das propostas, a Requerente ativou os serviços, tendo emitido as faturas correspondentes.
Das facturas emitidas e vencidas, permanecem em dívida as que constam da relação abaixo.
Tais facturas foram enviadas ao Requerido, logo após a data de emissão, para a morada por este indicada para o efeito. Pelo facto de não as ter pago, apesar das diligências da Requerente, constituiu-se o Requerido em mora e devedor de juros legais desde o vencimento, calculados à taxa de juro comercial, sucessivamente, em vigor - a qual é de 7% à presente data, juros vencidos que totalizam o valor supra indicado.
Relação das facturas e juros de mora em dívida:
- contrato n.º …99: capital em dívida de €814.76 e juros de mora de €35.26, relativos à(s) fatura(s) abaixo indicada(s) em 1); - contrato n.º …96: capital em dívida de €799.23 e juros de mora de € 32.26, relativos à(s) factura(s) abaixo indicada(s) em 2).
Relação das facturas em dívida:
1)
- Factura n.º F06170182492, emitida em 15-06-2017 no valor de €92,85, vencida em 05-07-2017 e de que permanecem em dívida € 43,98;
- Factura n.º F07170094404, no valor de €2,5, emitida em 18-07-2017 e vencida em 05-08-2017;
- Factura n.º FT 201785/1425768, no valor de €163,6, emitida em 01-08-2017 e vencida em 01-09-2017;
- Factura n.º FT 201785/1800663, no valor de €90,49, emitida em 01-09-2017 e vencida em 01-10-2017;
- Factura n.º FT 201785/2051299, no valor de €1,5, emitida em 01-10-2017 e vencida em 01-11-2017;
- Factura n.º FT 201785/2443190, no valor de €149,31, emitida em 01-11-2017 e vencida em 01-12-2017;
- Factura n.º FT 201785/2768863, no valor de €91,95, emitida em 01-12-2017 e vencida em 01-01-2018;
- Factura n.º FT 201885/209688, no valor de €99,82, emitida em 01-01-2018 e vencida em 01-02-2018;
- Factura n.º FT 201885/549574, no valor de €118,1, emitida em 01-02-2018 e vencida em 01-03-2018;
- Factura n.º FT 201885/863055, no valor de €52,01, emitida em 01-03-2018 e vencida em 01-04-2018;
- Factura n.º FT 201885/1186200, no valor de €1,5, emitida em 01-04-2018 e vencida em 01-05-2018;
2) - Factura n.º F05170618552, no valor de €68,38, emitida em 23-05-2017 e vencida em 15-06-2017;
- Factura n.º F06170282467, no valor de €58,48, emitida em 23-06-2017 e vencida em 15-07-2017;
- Factura n.º FT 201782/466374, no valor de €65,53, emitida em 16-07-2017 e vencida em 12-08-2017;
- Factura n.º FT 201782/742592, emitida em 16-09-2017 no valor de € 112,5, vencida em 12-10-2017 e de que permanecem em dívida € 82,5;
- Factura n.º FT 201782/898107, no valor de € 68,38, emitida em 16-10-2017 e vencida em 12-11-2017;
- Factura n.º FT 201782/1003348, no valor de € 68,38, emitida em 16-11-2017 e vencida em 12-12-2017;
- Factura n.º FT 201882/112764, no valor de € 98,06, emitida em 16-01-2018 e vencida em 12-02-2018;
- Factura n.º FT 201882/210309, no valor de € 72,38, emitida em 16-02-2018 e vencida em 12-03-2018;
- Factura n.º FT 201882/394237, no valor de € 72,38, emitida em 16-03-2018 e vencida em 12-04-2018;
- Factura n.º FT 201882/539060, no valor de €72,38, emitida em 16-04-2018 e vencida em 12-05-2018;
- Factura n.º FT 201882/674270, no valor de €72,38, emitida em 16-05-2018 e vencida em 12-06-2018;
É o Requerido, também, devedor do montante peticionado em "outras quantias", a título de indemnização pelos custos administrativos e internos associados à cobrança da dívida.
Termos em que requer a condenação do Requerido a pagar a quantia peticionada e juros vincendos.
***
3.-
Motivação de Direito
3.1. –
Se vedado estava ao Tribunal
a quo
conhecer oficiosamente de exceções dilatórias relacionadas com o conteúdo do título executivo.
Discordando a recorrente da decisão recorrida, começa a apelante por “
censurar
” o conhecimento
ex officio
pelo tribunal recorrido de pretensa
excepção dilatória inominada de uso indevido do procedimento de injunção
, conhecimento que considera não ser permitido, antes apenas apreciado desde que devidamente invocado pela parte interessada.
Nesta parte, não tem a apelante razão.
Vejamos
.
A presente execução segue a forma sumária nos termos das disposições conjugadas dos artigos 550º, número 2, alínea b) e 855º e seguintes do Código de Processo Civil.
A tramitação da execução sumária não prevê a prolação despacho liminar, como resulta do previsto no artigo 855º, número 1, do Código de Processo Civil, o qual reza que “
O requerimento executivo e os documentos que o acompanhem são imediatamente enviados por via eletrónica, sem precedência de despacho judicial, ao agente de execução designado, com indicação do número único do processo
”, o qual, se o receber e o processo houver de prosseguir “
inicia as consultas e diligências prévias à penhora, que se efetiva antes da citação do executado
”.
Perante o referido, é óbvio que não fica em todo o caso o juiz titular dos autos coercivos de vir a conhecer de questões que são passíveis de conhecimento oficioso, designadamente das que se mostram indicadas nas diversas alíneas do nº 2, do art.º 726º, do Código de Processo Civil, as quais [a ter lugar o despacho liminar] podem e devem conduzir à prolação de despacho de
indeferimento liminar
.
Neste conspecto, recorda-se que, mais adiante, o mesmo CPC, no respectivo artigo 734º CPC [norma que é aplicável à execução sumária por força da remissão prevista no número 3 do artigo 551º do Código de Processo Civil], vem dispor que (nº 1) “
O juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo
”, e que (nº 2), “
Rejeitada a execução ou não sendo o vício suprido ou a falta corrigida, a execução extingue-se, no todo ou em parte
”.
Ora, porque o título executivo é pressuposto essencial e formal
imprescindível
da acção executiva [
nulla executio sine titulo
], devendo o mesmo acompanhar o requerimento inicial de execução [cfr. Art.ºs 10º, nº 5 e 724, nº 4, alínea a), ambos do CPC], a aferição da respectiva existência é claramente do conhecimento oficioso do juiz titular da execução. (1)
Dito de uma outra forma, dispensadas que estão – as execuções sumárias - de despacho liminar [cfr. artigo 855.º, n.º 1, do CPC], certo é que pode/deve desde logo o agente de execução exercer um controlo liminar da quase totalidade das execuções que dão entrada nos Juízos de Execução [cfr. artigo 855.º, n.º 2, do CPC], recusando o requerimento executivo nos moldes em que o pode fazer a secretaria [cfr. artigo 725.º do CPC] ou
suscitando a intervenção do juiz
quando se lhe afigure provável a ocorrência de alguma das situações previstas nos n.ºs 2 e 4 do artigo 726.º do CPC, designadamente em caso de manifesta falta ou insuficiência do título ou de ocorrência de excepções dilatórias, não supríveis, de
conhecimento oficioso
.
Perante o exposto, temos assim que nada obsta a que em sede de execução sumária o juiz conheça oficiosamente das questões que poderiam suscitar indeferimento liminar do requerimento executivo caso a execução seguisse a forma ordinária, e que são as elencadas no artigo 726º, número 2 do Código de Processo Civil.
Improcede, portanto, a questão recursória acabada de apreciar.
***
3.2. –
Se nada obstava a que a ora exequente/apelante, no âmbito do procedimento de injunção, tivesse reclamado o pagamento das despesas associadas à cobrança das facturas relativas à prestação dos serviços contratados pelo Apelado.
Sabemos já [como decorre do relatório do presente acórdão] que a exequente/apelante veio dar à execução requerimento de injunção ao qual
foi aposta força executiva por secretário de justiça
, sendo que do referido requerimento injuntivo fez constar/reclamar diversos valores/créditos que [v.g. valores correspondentes a indemnização pelos encargos associados à cobrança da dívida],
prima facie
, escapam ao âmbito dos que o legislador considerou [nos artºs 2º,nº1, 3º e 10º, todos do DL n.º 62/2013, de 10 de Maio].
Discordando a apelante do aludido entendimento do tribunal a quo, considera ao invés que, “
à semelhança do que sucede com os juros de mora, também as despesas de cobrança resultam diretamente da falta de pagamento da obrigação pecuniária principal e, por conseguinte, constituem uma obrigação pecuniária em sentido estrito, isto é, diretamente emergente do contrato
”, logo, nada obstava a que a quantia de
327,80€
, referente a
indemnização pelos custos administrativos e internos associados à cobrança da dívida
, tivesse sido, como o foi, reclamada em sede de procedimento de injunção.
Apreciando.
A injunção, como decorre do disposto no art.º 7º, do DL n.º 269/98, de 01 de Setembro, consubstancia um procedimento especial destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos [art.º 1º, do referido diploma legal], e tem por desiderato “
conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de Fevereiro
”.
A justificar o incremento e o incentivo ao uso da INJUNÇÃO, esclareceu o legislador [no preâmbulo do DL n.º 269/98, de 01 de Setembro - PROCEDIMENTOS CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES EMERGENTES DE CONTRATOS – INJUNÇÃO] que:
“(…)
Paralelamente, a injunção, instituída pelo Decreto-Lei n.º 404/93, de 10 de Dezembro, no intuito de permitir ao credor de obrigação pecuniária a obtenção, 'de forma célere e simplificada', de um título executivo, no mesmo triénio mereceu uma aceitação inexpressiva, que se cifra, em todo o País, em cerca de 2500 providências por ano.
À margem da sensibilização dos grandes utilizadores para o preocupante fenómeno que se verifica, e que está a contar com a sua adesão, deu-se um passo relevante com o Decreto-Lei n.º 114/98, de 4 de Maio, que alterou o artigo 71.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, permitindo retirar dos tribunais a tarefa de meras entidades certificadoras de incobrabilidade de dívidas de montante já significativo, apenas para que os credores pudessem conseguir a dedução do IVA.
Procura-se agora incentivar o recurso à injunção, em especial pelas possibilidades abertas pelas modernas tecnologias ao seu tratamento informatizado e pela remoção de obstáculos de natureza processual que a doutrina opôs ao Decreto-Lei n.º 404/93, nomeadamente no difícil, senão impraticável, enlace entre a providência e certas questões incidentais nela suscitadas, a exigirem decisão judicial, caso em que a injunção passará a seguir como acção.
Por sua vez, do art.º 1º do D.L. 269/98, de 01/09 (diploma preambular), decorre que o regime dos procedimentos aprovado mostra-se destinado “
a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a (euro) 15.000
”.
Perante as disposições legais supra identificadas, tudo aponta para que a injunção consubstancia um procedimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, ou seja de obrigações pecuniárias que
decorram directamente
de contratos celebrados entre as partes, isto é, em causa está o cumprimento do contrato, ainda que de forma coerciva, e não as consequências do incumprimento, designadamente ao nível indemnizatório.
Dito de uma outra forma (2), tem o procedimento por desiderato exigir/reclamar créditos decorrentes do próprio acordo contratual, mas não tem já
“a virtualidade de servir para obter indemnização no âmbito da responsabilidade civil contratual ou extracontratual ou com base no enriquecimento sem causa
”.
É vero que, não se olvida, que do art.º 10º, nº 2, al. e), do diploma anexo ao D.L. 269/98, com a epígrafe “
Forma e conteúdo do requerimento
”, decorre que:
1 - O modelo de requerimento de injunção é aprovado por portaria do Ministro da Justiça.
2 - No requerimento, deve o requerente:
(…);
e) Formular o pedido, com discriminação do valor do capital, juros vencidos e
outras quantias devidas
;
(…)”.
A propósito da referida expressão
outras quantias devidas
,
e ainda segundo SALVADOR da COSTA, é discutível se abrange a mesma, ou não
, “os juros vincendos, as despesas administrativas do contrato, incluindo as de expediente concernentes às comunicações de advogados e os honorários a estes pagos pelo requerente”
, justificando-se, “
a propósito da interpretação do referido segmento normativo”,“a distinção entre o procedimento de injunção geral” “e o especial, previsto no Decreto-Lei no 62/2013
”.
Ora, o D.L. 62/2013, de 10/05 [diploma que transpõe para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011, e que estabelece medidas contra os atrasos de pagamento nas
transações comerciais
], no seu art.º 7º, com a epígrafe, “
Indemnização pelos custos suportados com a cobrança da dívida
”, reza que que “
quando se vençam juros de mora em transacções comerciais, nos termos dos artigos 4.º e 5.º, o credor tem direito a receber do devedor um montante mínimo de 40,00 EUR (quarenta euros), sem necessidade de interpelação, a título de indemnização pelos custos de cobrança da dívida, sem prejuízo de poder provar que suportou custos razoáveis que excedam aquele montante, nomeadamente com o recurso aos serviços de advogado, solicitador ou agente de execução, e exigir indemnização superior correspondente”,
logo
acrescentando mais adiante o art.º 10º, do mesmo diploma que
“O atraso de pagamento em transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida ”.
Não existindo norma semelhante no D.L. 269/98, de 01/09 [apesar de ter sido alterado em 2019, pela Lei nº 117/2019, de 13/09, ou seja, já depois do D.L. 62/2013],
prima facie
caso o legislador entendesse que deveria contemplar solução semelhante nos casos do procedimento geral de injunção, poderia tê-lo feito nesta altura, pelo que, se não o fez, foi porque entendeu que uma tal norma não tinha cabimento neste procedimento.
Ademais, do preâmbulo do D.L. 62/2013 [diploma que visou transpor para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16/02/2011, resultando a norma em causa precisamente de uma imposição da Directiva, que regula todas as transacções comerciais (e só estas)], decorre que não se aplica o mesmo às transacções com os
consumidores
, o que igualmente sucede com o Decreto-Lei em causa, como decorre do seu art.º 2º, nº 2, al. a), que exclui do âmbito de aplicação deste os contratos celebrados entre consumidores [tal como ocorre no caso dos autos].
Destarte, no seguimento do entendimento de SALVADOR da COSTA, a indemnização prevista no art.º 7º do D.L. 62/2013 não se aplica ao procedimento geral de injunção e, de qualquer forma, certo é também estando em causa obrigações pecuniárias emergentes de contrato as referidas quantias a que se reporta a alínea e), do nº 2, do art.º 10º [do DL n.º 269/98, de 01 de Setembro] hão-de sempre forçosamente resultar do que foi objecto do contrato em causa.
Em suma, não cabe no âmbito das “
outras quantias devidas
”, no que respeita ao procedimento de injunção geral, o pedido de pagamento de encargos associados à cobrança da dívida, os quais constituem danos decorrentes do incumprimento contratual, não sendo obrigação directamente emergente do contrato. (3)
Improcede, portanto, a questão recursória relacionada com a
“legalidade
” de a exequente, no âmbito do procedimento de injunção do qual emerge o título executivo dado à execução, ter reclamado o pagamento das despesas associadas à cobrança das facturas relativas à prestação dos serviços contratados pelo Apelado.
***
3.3 –
Improcedendo as questões identificadas em 3.1. e 3.2., se ainda assim deve o tribunal a quo prosseguir com a execução quanto às quantias exequendas que podiam ter sido, como o foram, reclamadas no procedimento injuntivo, e isto porque não pode e não deve a errada utilização do referido processo [v.g no tocante às reclamadas a título de cláusula penal e de despesas de cobrança] determinar inevitavelmente a
extinção total
da instância executiva.
Estando assim o OBJECTO da providência da INJUNÇÃO
expressis verbis
delimitado/restringido pelo legislador, a questão que de imediato se passou a colocar – junto dos tribunais – foi a de aferir qual o
vício
da providência que
ultrapassa
o referido campo de aplicação e, bem assim, qual a
sorte
de todo o respectivo expediente.
É assim que, v.g. com referência a requerimento de injunção que integra reclamação de quantia que se considera ser devida a titulo de
cláusula penal
, se tem decidido estar-se na presença de uma exceção dilatória inominada, prevista nos artigos
555.º, n.º 1, 37.º, n.º 1
, primeira parte, e geradora de absolvição da instância ao abrigo do vertido nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, 578.º e 278.º, n.º 1, alínea e), todos do Código de Processo Civil. (4)
E é assim também que, v.g. com referência a requerimento de injunção que integra reclamação de quantia que se considera ser devida a titulo de responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, de enriquecimento sem causa ou de relações de condomínio, se considera não ser “lícito” o recurso á providência de INJUNÇÃO, existindo
assim um obstáculo processual impeditivo do conhecimento de meritis, ocasionando exceção dilatória inominada, que determina a absolvição da instância
. (5)
A questão que a seguir se coloca é porém a de saber se, integrando o OBJECTO da injunção diversos “
créditos
” reclamados, e, sendo uns apropriados/adequados à providência de injunção, mas outros já não, o destino da providência é
inevitavelmente/forçosamente
sempre o mesmo, a saber, não podendo a mesma conduzir/amparar de todo um título executivo e, ainda que naquela – por ausência de oposição – seja
Aposta a fórmula executória
[
Este documento tem força executiva
– cfr. Art.º 14º, nº 1, do DL n.º 269/98, de 01 de Setembro], outrossim o desfecho
da execução a que der lugar só pode ser um
, o da respectiva
extinção
in totum
, que não parcial.
Não merecendo –
maxime
da parte da jurisprudência - a questão por último colocada uma resposta
pacífica e unânime
, e alinhando alguma jurisprudência pelo entendimento de que a ocorrer/verificar-se o aludido vício, estamos então perante uma excepção que atinge e
contagia/fulmina
todo o procedimento de injunção
, por não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigíveis para a sua utilização, e não apenas o pedido/crédito insusceptivel de legalmente ser reclamado através da providência de injunção, diversos são efectivamente os Acórdãos da 2ª instância que assim decidiram. (6)
É assim que, este mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, em Acórdão de
23.11.2021
(7), veio a concluir que:
I - A absolvição da instância no caso do conhecimento oficioso de uma excepção dilatória inominada de uso indevido do procedimento de injunção, quando a acção está já transmutada em acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato (por ter um valor inferior ao da alçada da Relação), inquina todo o processo, implicando a sua inaproveitabilidade total (também para os créditos que efectivamente poderiam ser peticionados por aquela via).
II– Esta consequência gravosa penaliza quem, usando uma ilegítima estratégia de risco, decide iniciar um procedimento de injunção (na expectativa da notificação e não oposição do Requerido), sabendo que o(s) crédito(s) invocado(s) não lho permitia(m) (por ausência de condições substantivas para ser decretada a injunção), só para, assim – defraudando as exigências legais – obter com mais facilidade um título executivo.
Ainda segundo o mesmo e douto Aresto, verificando-se uma situação de uso indevido do procedimento de injunção, está-se então perante um vício que
inquina todo o processo
[verificando-se uma excepção que atinge e contagia todo o procedimento de injunção, por não se mostrarem reunidos os pressupostos legalmente exigíveis para a sua utilização] implicando a sua
inaproveitabilidade total
, seja no processo declarativo, seja na execução em que o título executivo tenha resultado da aposição de fórmula executória a uma injunção utilizada em concreta situação que não permitia o recurso à mesma.
Prossegue-se no mesmo e douto Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa e de
23.11.2021
– e neste particular bem amparado/sustentado em douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
14/02/2012
(8), que a tese perfilhada é aquela que se impõe, e isto porque “
as condições que a lei impõe para que seja decretada a injunção são condições de natureza substantiva que devem verificar-se para que a injunção seja decretada; no entanto, ultrapassada esta fase, elas não assumem expressão na fase subsequente do processo que venha a ser tramitado sob a forma de processo comum ordinário quando o seu valor seja superior à alçada da Relação
”, já o mesmo não sucedendo quando a transmutação da acção é para acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (valor inferior à alçada da Relação), caso em que o processo se torna
inaproveitável e a absolvição da instância faz terminar a acção pela procedência da excepção dilatória inominada de uso indevido/inadequado da providência de injunção.
Em suma, conclui-se então [com arrimo no acima indicado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/02/2012, que a consequência a tirar do
uso indevido do procedimento de injunção
(por ausência das condições de natureza substantiva que a lei impõe para a decretar) é a verificação da presença de uma excepção dilatória inominada, a qual, obstando a que se possa conhecer do mérito da causa, desencadeia a
inevitável absolvição da instância
, nos termos dos artigos 576.º, n.º 2, 577.º e 578.º do Código de Processo Civil.
O referido entendimento, cumpre salientar, é também aquele que veio a merecer a concordância do Primeiro Grau [entendimento de resto já sufragado em Acórdão de
10/10/2024
deste mesmo Tribunal e Secção da Relação de Lisboa (9) e, igualmente em recente outro Acórdão outrossim deste mesmo Tribunal e de
22/10/2024
(10)], considerando-se designadamente no primeiro dos acórdãos deste Tribunal referidos que uma vez que a opção legislativa criada teve em vista
concretos credores
[“
empresas que negoceiam com milhares de consumidores”
], visando “
facilitar-lhes a vida
” e descongestionar os Tribunais, então em casos como o dos autos a “
responsabilidade desse uso indevido deverá recair sobre o requerente/exequente, não lhes concedendo oportunidades de aproveitamento de actos processuais que, de todo o modo, neste caso concreto não existiriam caso o requerido tivesse deduzido oposição, tendo em atenção o valor do pedido do procedimento de injunção”].
Dissentindo do entendimento acabado de explicitar, outras decisões enveredam, porém, por desenlaces bem diversos, sendo que, algumas delas são inclusive oriundas desta mesma 6ª Secção do tribunal da Relação de Lisboa, e tendo dois deles sido recentemente relatados pelo Desembargador Eduardo Petersen Silva, enfatizando-se em um deles – e acertadamente, desde já adiantando - que (12):
“
Na verdade, não nos convence um argumento que se baseia no sancionamento dos requerentes de indevida injunção por categoria, nem como remédio para qualquer abuso.
(…)
Assim, quando se defende o indeferimento total, que cobre as dívidas para as quais inequivocamente o legislador permitiu o recurso ao procedimento de injunção, esse indeferimento funciona só como sanção, porque para essas dívidas nenhum obstáculo havia a recorrer ao procedimento. Donde, aplicamos uma sanção – obrigamos o “infractor” a tudo repetir em sede de acção declarativa – para quem além de pedir as quantias em dívida resultantes do contrato, também pede uma indemnização por incumprimento do contrato ou os custos com a cobrança de um contrato incumprido pela contraparte.
Com o devido respeito, quando o legislador quer sancionar, assim o faz e assim o diz. O propósito da instituição do procedimento especial de injunção foi o de agilizar a vida económica (agilizar cobranças) e simultaneamente o de libertar os tribunais das acções declarativas subjacentes. Defender a absolvição total, o indeferimento total, é fazer exactamente o contrário, ou seja, estamos perante uma interpretação que se revela contrária ao propósito e à lógica do legislador, havendo de presumir-se que o legislador sabe exprimir o que quer, e que não legisla sem sentido. Repare-se que o legislador, ou melhor dizendo, a lei, por definição, é geral e abstracta. Não pode o intérprete não a considerar como tal, como tendo sido feita nesses termos. Se há credores que têm condições para saber como devem legalmente fazer e se esses credores recorrem massivamente a este tipo de procedimento, em função dos seus negócios e dos volumes de negócio, não quer isto dizer que não haja credores sem essas condições nem nessas condições de volume de negócios, que não tenham interesse em agilizar as suas cobranças.
Em suma, entendemos que não se encontra na lei qualquer indício de um propósito sancionatório nem discriminatório dos credores, de modo que, por efectivo e racional princípio de aproveitamento dos actos processuais, por um princípio de utilidade, e porque em sede executiva se prevê realmente esse aproveitamento, com assim resulta claramente do artigo 726º nº 3 do Código de Processo Civil, não podemos, em conclusão, concordar com a posição jurisprudencial que defende o indeferimento total.
Em última análise, e como se decidiu em Acórdão do Tribunal da Relação de Évora já por nós acima mencionado, quando confrontado com pretensão que extravasa o objecto contratual admissível nos procedimentos de injunção, depara-se o Juiz titular dos autos com “
uma excepção dilatória inominada e isso implica que nesta parte a decisão seja mantida, mas na parte restante a empresa recorrente dispõe de um título válido e suficiente para prosseguir a acção executiva
”. (13)
Este último entendimento, de resto muito
recentemente
[por Acórdão de
10/10/2024
(14)], veio a ser sufragado por este mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, nele se tendo concluído que:
X - Nas situações de indevida cumulação de pedidos no âmbito do procedimento injuntivo (em que se cumula o cumprimento de obrigações pecuniárias estritamente emergentes de contrato, com a indemnização decorrente de cláusulas penais, indemnizatórias ou compulsórias, bem como de despesas originadas pela cobrança da dívida), impõe-se a aproveitabilidade e utilização do título na parte remanescente, relativa aos pedidos e valores admissíveis no âmbito injuntivo, atenta a existência, apenas de uma parcial viciação, decorrente da inclusão de pedido(s) não admissível(is), com consequente prolação de um juízo de indeferimento liminar parcial;
XI - O que é justificado por imperativo dos princípios ou regras de economia processual e da proporcionalidade, bem como na adopção de um princípio de aproveitabilidade dos actos processuais, a determinar a manutenção e reconhecimento da validade do título executivo na parte relativa ao pedido ou pedidos com legal cabimento no âmbito do procedimento injuntivo;
XII - Tal solução parece, ainda, justificar-se pela circunstância de, em muitas situações, a parte do pedido afectadora do procedimento injuntivo configurar-se, relativamente à parte remanescente válida, de muito menor relevância, o que acentua a necessidade de salvaguarda do título constituído, na parte em que o mesmo se reporta à tutela do incumprimento de concretas obrigações pecuniárias estritamente emergentes de um contrato.”
(15)
Aqui chegados, e impondo-se tomar decisão, difícil não foi subscrever a “
tese
” da possibilidade do
indeferimento liminar parcial da execução
quanto aos créditos exequendos que
contra legem
foram reclamados em providência de injunção que, por ausência de oposição, foi “
Aposta a fórmula executória
”.
É que, no nosso modesto entendimento, e com todo o respeito pela a tese que defende a
absolvição total, o indeferimento total
, em última análise acaba a mesma por
enveredar exactamente pela via
contrária
ao propósito e à lógica do legislador quando
criou/consagrou
a providência da injunção
,
a qual como sabemos foi a de criar um mecanismo marcado pela
simplicidade e celeridade, vocacionado para a cobrança simples de dívidas, de molde a aliviar os Tribunais da massificação decorrente de um exponencial aumento de ações de pequena cobrança de dívidas
.
Ou seja, a tese da
absolvição total, ou do indeferimento total
,
como que não apenas frusta - elemento racional da interpretação – a
ratio iuris
, ou a
vontade da lei
[como ensina FRANCESCO FERRARA (16), a “
lei é um ordenamento de relações que mira a satisfazer certas necessidades e deve interpretar-se no sentido que melhor responde a esta finalidade, e portanto em toda a plenitude que assegure tal tutela
”], como em última análise conduz a
resultados
perfeitamente contrários aos pretendidos pelo legislador, potenciando e conduzindo ao
absurdo e/ou paradoxo
[v.g. basta a reclamação de um insignificante crédito na providência de injunção que não deveria na mesma ter sido peticionado, para de mediato se inutilizar todo o “
título
” entretanto criado - por falta de oposição -, e mesma na parte em que podia o credor tê-lo inserido na referida providência].
Ora, porque é para nós pacífico que toda a tarefa da hermenêutica carece de ser
temperada
pelo argumento do
absurdo
, e da coerência da disciplina jurídica, o que equivale a dizer que uma interpretação, para ser defensável e acertada, não deve conduzir ao absurdo e/ou paradoxo, ao mesmo tempo que importa que qualquer interpretação mostre estar em perfeita coerência com a
unidade do sistema jurídico
, não o destabilizando [“
Na interpretação deve-se sempre preferir a inteligência que faz sentido à que não faz
(17), pensamento este que em rigor mostra-se presente no art.º 9º, nº 3, do CC, ao expressar que “
Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados
”] eis porque é para nós inaceitável a “
tese
” da inutilização
in totum
de todo o titulo entretanto “
criado
”.
Dito de uma outra forma, se “
É impossível dizer qual a melhor interpretação de um texto
”, mas é já “
possível dizer qual a que é errada
”, então deve esta última ser à partida
descartada
. (18)
Acresce que, decorrendo do art.º 9º, nº 1, do CC, que deve a interpretação atender outrossim, à
unidade do sistema jurídico
[constituindo a unidade do sistema jurídico o mais importante dos três
factores hermenêuticos
a que se refere o n.º 1 do art.º 9.º do Código Civil], e no âmbito da integração das lacunas da lei [art.º 10º, nº 3, do CC], importa igualmente segundo o legislador resolver a mesma – lacuna - através de norma que se insira “
dentro do espirito do sistema
”, pacífico e elementar é que há-de o princípio da
unificação do ordenamento jurídico
consubstanciar um factor
decisivo na interpretação e aplicação das leis
, sendo o mesmo imposto desde logo pela própria “
coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica
”.
Ora, nesse conspecto, recorda-se que
um sistema jurídico
é um conjunto de elementos que constituem um todo
organizado e consistente
,
integrando ele
Princípios Programáticos
[aqueles que definem determinados objetivos/fins a atingir, fixam metas ideais que se procuram atingir],
Princípios Formais
[grandes princípios orientadores, mais concretos e que realizam uma função constitutiva e regulativa] e
Princípios Materiais
[os quais realizam uma função regulativa, por exemplo, atendem ao princípio de igualdade e da proporcionalidade] (19).
Recorda-se também que, consubstanciando em rigor o requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta a fórmula executória um título
executivo extrajudicial
, já que na sua formação não há qualquer intervenção jurisdicional do Tribunal enquanto órgão de soberania (20) [tendo de resto o próprio legislador português consignado no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 404/93, de 10 de Dezembro, que “[a]
aposição da fórmula executória, não constituindo, de modo algum, um acto jurisdicional, permite indubitavelmente ao devedor defender-se em futura acção executiva, com a mesma amplitude com que o pode fazer no processo de declaração, nos termos do disposto no artigo 815.º, do CPC …”]
, é em todo o caso um verdadeiro
acto jurídico
[art.º 295º, do CC], porque equivalente a um comportamento voluntário de uma pessoa, singular ou coletiva, ao qual o Direito reconhece
relevância e efeitos jurídicos
, ou, como ensinava o Prof. MANUEL DE ANDRADE (21), um
facto jurídico
, porque correspondente a facto-actuação da vida real produtivo de
efeitos jurídicos
, sendo que, para FRIEDRICG CARL SAVIGNY (22), “
tudo o que não for negócio jurídico é acto jurídico
”.
Em face do referido por último e, por remissão do art.º 295º, do CC, é para nós pacifico que a “
tese
” da inutilização
in totum
de todo o título entretanto “
criado
” acaba em última análise por menosprezar a aplicação – por analogia e por se verificar a razão determinante da norma a seguir indicada – do disposto no art.º 292º, do Código Civil, o qual suplica e postula a
conservação parcial do negócio.
Dir-se-á que, ao fazê-lo, entra a referida tese em divergência manifesta com princípio
material e relevante
do
sistema jurídico
, o que equivale a dizer que não atende à necessária
unidade do sistema jurídico
[art.º 9º, nº 1, do CC].
A mesma unidade do sistema jurídico é contrariada - pela “tese” da inutilização
in totum
de todo o título -, em razão diversos
Princípios Formais
que o nosso sistema jurídico também
claramente
sufraga, todos eles direcionados para a ideia/regra da
conservação
quando possível, de partes de
acto processuais
.
É assim que, o nº 2, do art.º 195º, do CPC, dispõe que “
Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a
nulidade de uma parte do acto não prejudica as outras partes que dela sejam independentes
”,
e é também assim que o nº1, do art.º 193º, do mesmo diploma legal, reza que “
O erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.”.
Ainda em total harmonia com o recomendável/aconselhável “
aproveitamento
” de processado não obstante a existência de obstáculos à coligação de pedidos, é o art.º 37º, do CPC, claro em permitir o prosseguimento dos autos quando aos pedidos não correspondam formas de processo com tramitação
manifestamente incompatível
, e, bem assim, em conceder ao autor a “
benesse
” de vir aos autos indicar qual o pedido ou os pedidos que podem continuar a ser apreciados no processo – nºs 2 e 4, ambos do art.º 37º, do CPC.
Por último, e a patentear igualmente a
desconsideração
- pela qual envereda a “
tese
” da inutilização
in totum
de todo o título – da unidade do
sistema jurídico
, recorda-se que em sede de acção executiva diz expressamente o legislador [no art.º 726º,nº3, do CPC], que “
É admitido o indeferimento parcial
,
designadamente quanto à parte do pedido que exceda os limites constantes do título executivo
ou aos sujeitos que careçam de legitimidade para figurar como exequentes ou executados
”, ou seja, é o despacho de indeferimento liminar parcial a decisão apropriada em situações em que os vícios não afectem a
totalidade da execução
, nos seus elementos
objetivo ou subjectivo
, como sucede, nomeadamente, quando o pedido extravasa ou exceda os limites ou finalidades constantes do título, em violação do disposto no art.º 10º, n.º 5, do CPC. (23)
Ora, com todo o respeito pela “
tese
” da inutilização
in totum
de todo o título entretanto “
criado
” em providência de injunção, a não aplicação do nº 3, do art.º 726º ao caso
sub judice
incorre outrossim em interpretação que não atende minimamente a relevantes
princípios formais
orientadores do nosso sistema jurídico, contrariando assim a
unidade
do mesmo, em violação clara do disposto no art.º 9º, nº 1, do CC.
Neste conspecto, ademais, recorda-se que de há muito a esta parte [logo com o DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro (24)] que o legislador vem salientando a necessidade de o CPC se dever guiar por um conjunto de princípios e de regras axiologicamente relevantes que [quais Linhas orientadoras da nova legislação processual civil], sobremaneira,
garantam a prevalência do fundo sobre a forma
, tornando-o moderno, verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material concerne, impondo-se “
perspectivar o processo civil como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um
estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça
, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo”.
(25)
Novamente em sede de exposição dos motivos do NCPC [aprovado pela Lei Nº 41/2013,de 26 de junto], volta o legislador
a insistir e chamar
a atenção para a necessidade/conveniência de “
se viabilizar e conferir conteúdo útil aos princípios da verdade material, à cooperação funcional e ao primado da substância sobre a forma
”, impondo-se passar “
necessariamente por uma nova cultura judiciária, envolvendo todos os participantes no processo, para a qual deverá contribuir decisivamente um novo modelo de processo civil, simples e flexível, despojado de injustificados formalismos e floreados adjectivos, centrado decisivamente na análise e resolução das questões essenciais ligadas ao mérito da causa
”, e consagrando-se um modelo que contribuía decisivamente“
para inviabilizar e desvalorizar comportamentos processuais arcaicos, assentes na velha praxis de que as formalidades devem prevalecer sobre a substância do litígio e dificultar, condicionar ou distorcer a decisão de mérito
.”
Aqui chegados, tudo visto e ponderado, porque a “
tese
” da inutilização
in totum
de todo o título entretanto “
criado
” em providência de injunção acaba por privilegiar a
forma em detrimento do fundo
[menosprezando a
insistente vontade do Legislador adjectivo
], dá primazia ao instrumento com sacrifício do escopo (que é a aplicação do direito ao caso concreto), contradiz a regra hermenêutica que ensina ser equivocada a exegese que conduz ao resultado
prático absurdo
(26) e, por último, não tem em conta a
unidade do sistema jurídico
[art.º 9º, nº 1, do CC], eis porque não pode pela nossa parte ser sufragada, antes impõe-se ser rejeitada, porque não convincente.
Ademais, como bem salienta CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO (27), “
O processo civil moderno quer ser um
processo de resultados
, não um processo de conceitos ou de filigranas”,
ou, dito de uma outra forma (28), “
O jurista há-de ter sempre diante dos olhos o escopo da lei, quer dizer, o
resultado prático que ela se propõe conseguir
, pois que a Lei é um ordenamento de relações que mira a satisfazer certas necessidades e deve interpretar-se no sentido que melhor responda a esta finalidade, e portanto em toda a plenitude que assegure tal tutela
”. (29)
3.4. -
Em conclusão
,
perante tudo o acabado de expor, a apelação merece provimento e, porque não integra o
Objecto
recursório a questão adjectiva relacionada com a “
ilegalidade
” da providência de injunção poder servir para a cobrança de valores relativos a cláusula penal pela rescisão antecipada do contrato e de despesas associadas à cobrança da dívida, resta determinar a
revogação da decisão recorrida
e o prosseguimento da execução com vista à cobrança coerciva de todas as quantias reclamadas pela exequente à excepção das acima referidas [as relativas a cláusula penal pela rescisão antecipada do contrato e de despesas associadas à cobrança da dívida].
***
4 -
Sumariando
(cfr. nº 7, do art.º 663º, do CPC).
4.1. -
O uso indevido do procedimento de injunção ocorre designadamente no caso de o respectivo pedido, no todo ou em parte, não se ajustar à respectiva
finalidade
nos termos previstos no art.º 7º do diploma anexo ao DL 269/98;
4.2. –
Ocorrendo a situação referida em 4.1., verifica-se uma excepção dilatória inominada, a qual é de conhecimento oficioso, desencadeando a inevitável absolvição da instância, nos termos dos artigos 576.º, n.º 2, 577.º e 578.º, todos do Código de Processo Civil
.
4.3. -
O vício referido em 4.2., todavia, não afecta em todo o caso todo o título
[
por aposição da fórmula executória]
que se haja formado no procedimento de injunção, mas apenas na parte em que o subjacente pedido não se ajuste á
finalidade
do referido procedimento, nos termos previstos no art.º 7º do diploma anexo ao DL 269/98;
4.4. –
Em consonância com o referido em 4.3., impõe-se, portanto, apenas o indeferimento parcial do requerimento inicial executivo
[
cfr. art.º 726º, nº 3, do CPC], quanto á parte do título afectada pelo vício referido em 4.2., devendo a execução prosseguia quanto ao restante;
4.5. – O referido em 4.3. e 4.4. consubstancia entendimento/interpretação que é a que melhor satisfaz e atende à
unidade do sistema jurídico
, concebendo o processo civil
como um instrumento e um mero meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um
estereótipo autista que a si próprio se contempla
e
impede que seja perseguida a justiça
, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo.
***
5.-
Decisão
.
Em face de tudo o
supra
exposto,
acordam os Juízes na 6ª Secção Cível, do Tribunal da Relação de LISBOA, em,
concedendo
provimento à apelação de
nos comunicações s.a.
:
5.1. - Revogar a DECISÃO apelada.
5.2. - Determinar o prosseguimento da execução, nos termos e com o âmbito referidos em 3.4.
supra.
***
Custas da apelação pelo apelado [O apelado não
apresentou contra-alegações
, mas decai na presente apelação - do normativo que actualmente consta do n.º 2 do artigo 527º, do CPC, resulta a presunção
iuris et de iure
de que dá sempre
causa às custas do processo
a parte vencida na proporção em que o for -,
razão porque suporta as respectivas custas
(cfr. art.º 527º, nº2, do CPC)] (30) (31).
***
(1) In Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, páginas 95/96.
(2) VG. cfr. SALVADOR da COSTA, em A Injunção e as Conexas Ação e Execução, Almedina, 8ª ed., 2021, pág. 13.
(3) Neste sentido vide, de entre muitos outros, o Acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa
, de 25/05/2021 [proferido no processo nº 113862/19.2YIPRT.L1-7]; os Acórdãos do
Tribunal da Relação do Porto
de 12/07/2023 [proferido no processo nº 3889/21.6T8VLG-A.P1] e de 07/06/2021 [proferido no processo nº 2495/19.0T8VLG-A.P1] e o Acórdão do
Tribunal da Relação de Évora
de 15/09/2022 [proferido no processo nº 2274/20.1T8ENT.E1], todos publicados acessíveis em
www.dgsi.pt
.
(4) Neste sentido, vide v.g. o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de
15.10.2015
[proferido no Processo nº 96198/13.1YIPRT-A.L1-2 e em
www.dgsi.pt
] e, bem assim, João Vasconcelos Raposo e Luís Baptista Carvalho, in «Injunções e Ações de Cobranças», 2012, pág.22.
(5) Vide, v.g. o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de
15.09.2022
[proferido no Processo nº 96198/13.1YIPRT-A.L1-2], o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de
27.11.2014
[proferido no Processo nº 1946/13.1YIPRT.L1-8] e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de
28.10.2015
[proferido no Processo nº 126391/14.1YIPRT.P1 ], e todos eles acessíveis em
www.dgsi.pt
.
(6) Proferido no processo nº 88236/19.0YIPRT.L1-7, sendo que, no mesmo sentido alinharam igualmente diversos outros Acórdãos, v.g. o do Tribunal da Relação de Coimbra, de
20/05/2014
[proferido no Processo n.º 30092/13.6YIPRT.C1-F] e o do Tribunal da Relação do Porto, de
18/12/2013
[Proferido no Processo n.º 32895/12.0YIPRT.P1], todos eles disponíveis em
www.dgsi.pt
.
(7) Acórdão proferido no processo nº 88236/19.0YIPRT.L1-7 e publicado em
www.dgsi.pt
.
(8) Proferido no Processo n.º 319937/10.3YIPRT.L1.S1,sendo Relator SALAZAR CASANOVA e disponível em
www.dgsi.pt
.
(9) Acórdão – com voto de vencido - proferido no processo nº 5820/24.8T8SNT.L1-6 e publicado em
www.dgsi.pt
.
(10) Proferido no processo nº 5533/24.0T8SNT.L1 [com voto de vencido], e no mesmo sentido, o de
24/10/2024
[proferido no processo nº 13379/21.1T8SNT.L1-6], ambos publicados em
www.dgsi.pt
.
(11) Sendo um de
10.10.2024
[proferido no processo nº 4709/23.2T8SNT.L1], e, outro, de
24.10.2024
, proferido no processo nº 20009/22.2T8SNT.L1, e disponíveis ambos em
www.dgsi.pt
.
(12) No mesmo sentido, vide o Acórdão de
15.09.2022
, do Tribunal da Relação de Évora [ proferido no processo nº 2274/20.1T8ENT.E1] e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de
8.11.2022
[proferido no processo nº 901/22.5T8VLG-A.P1], ambos acessíveis em
www.dgsi.pt
.
(13) Sufragando o indeferimento parcial de execução na parte em que as quantias reclamadas incorrem em uso indevido do procedimento de injunção, vide ainda os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de
12/7/2023
[proferido no processo nº 3889/21.6T8VLG-A.P1] e de
4/7/2024
[proferido no processo nº 3368/23.7T8VLG-A.P1], estando ambos acessíveis em
www.dgsi.pt
.
(14) Acórdão proferido no processo nº 21181/22.7T8SNT.L1-2, estando o mesmo acessível em
www.dgsi.pt
.
(15) No mesmo sentido se pronunciaram,
mais recentemente
ainda, diversos outros Acórdãos deste mesmo Tribunal da Relação de Lisboa [o que
indicia tratar-se de entendimento que começa a ganhar preponderância
no Tribunal da Relação de Lisboa], designadamente o de
22/10/2024
[proferido no processo nº 5533/24.0T8SNT.L1-7], de
24/10/2024
[proferido no processo nº 13698/23.2T8SNT.L1-2],
7/11/2024
[proferido no processo nº 6121/23.4T8SNT.L1-2], de
7/11/2024
[proferido no processo nº 5740/24.6T8SNT.L1-2], de
21/11/2024
[proferido no processo nº 14970/22.4T8SNT.L1-8], de
21/11/2024
[proferido no processo nº 5760/24.0T8SNT.L1-8] de
5/12/2024
[proferido no processo nº 8399/23.4T8SNT.L1-2], de
3/12/2024
[proferido no processo nº 9984/22.7T8SNT.L1-7], de
5/12/2024
[proferido no processo nº 5802/24.0T8SNT.L1-2], de
19/12/2024
[proferido no processo nº 5885/24.2T8SNT.L1-8], de
16/1/2025
[proferido no processo nº 5863/24.1T8SNT.L1]e de
30/1/2025
[proferido no processo nº 5901/24.8T8SNT.L1], todos eles acessíveis em
www.dgsi.pt
.
(16) Em Interpretação e Aplicação das Leis, traduzido por MANUEL DE ANDRADE, 4ª edição, Coimbra 1987, pág. 137/141.
(17) Cfr. SANTOS, Alberto Marques dos. Regras científicas da hermenêutica, pág. 9. Disponível em: <albertosantos.org>. Acesso em 22/10/2024.
(18) Cfr. UMBERTO ECO, em Os limites da interpretação, Lisboa, Difel, 1990, pág. 60.
(19) Cfr. LEONOR BRANCO JALECO, em Introdução ao Estudo do Direito II, AAFDL, págs. 1 e segs.
(20) Cfr. JOEL TIMÓTEO RAMOS PEREIRA, em EXECUÇÃO DE INJUNÇÃO: QUESTÕES CONTROVERTIDAS NA INSTAURAÇÃO E NA OPOSIÇÃO, pág. 103, Revista JULGAR - N.º 18 – 2012
(21) Em Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 1964, Almedina, Coimbra, pág. 1
(22) Em
Sistema del Derecho Romano Actual
. Trad. Jacinto Mesía e Manuel Poley. 2. ed.
Madrid
: Centro Editorial de Gongora, 1933.
(23) Diz o legislador na EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS do NCPC que “
Foi na reforma de 1995/1996, com início de vigência em 1 de Janeiro de 1997, que se promoveu a primeira rotura com a ideologia de 1939, consagrando-se novos princípios, atribuindo-se ao juiz um papel dirigente e activo, promovendo-se a igualdade substancial dos intervenientes processuais, com privilégio da verdade material, proibindo-se as decisões surpresa e revigorando-se o princípio do contraditório. Em suma, foi nesta reforma que se operou a viragem histórica e a actualização do direito adjectivo civil em Portugal”.
(24) Cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de
15-12-2022
, proferido no Processo nº 44819/16.2T8VNF.G3, acessível em
www.dgsi.pt
.
(25) Cfr. preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro.
(26) Cfr. SANTOS, Alberto Marques dos. Regras científicas da hermenêutica, pág. 11 e disponível em:
<albertosantos.org>, a
cesso em 22/10/2024.
(27) Em A Reforma do Código de Processo Civil, São Paulo, Malheiros, 1995, pág. 20,
apud
SANTOS, Alberto Marques dos,
ibidem
, pág.11.
(28) Cfr. FRANCESCO FERRARA, em Interpretação e Aplicação das Leis, traduzido por MANUEL DE ANDRADE, 4ª edição, Coimbra 1987, pág. 137.
(29) Como há muito
advertia
ENRICO TULLIO LIEBMAN – Em Manual de Direito Processual Civil, 3 ed. Vol 1, São Paulo: Malheiros, 2005, pág. 328 - “
as formas são necessárias, porém, o
formalismo excessivo é uma deformação
”.
(30) Cfr.
SALVADOR DA COSTA
, em a “
Responsabilidade pelas custas no recurso julgado procedente sem contra-alegação do recorrido
”, 18.6.2020, publicado no
blog
do IPPC, e outrossim em “
Custas da apelação na proporção do decaimento a apurar a final
”, publicado no mesmo
blog
em 31.10.2020, concluindo no primeiro que “
a parte vencida
[no âmbito da relação jurídica processual relativa à presente apelação importa considerar a
apelada como parte vencida
, porque a decisão ora proferida por este Tribunal da Relação e de procedência
lhe é potencialmente desfavorável
]
nas acções, nos incidentes e nos recursos é responsável pelo pagamento das custas, ainda que em relação
a eles não tenha exercido o direito de contraditório
, o que se conforme com o velho princípio que envolve esta matéria, ou seja, o da justiça gratuita para o vencedor
”.
(31) Neste sentido, vide v.g. o Acórdão deste mesmo Tribunal da Ralação de Lisboa de
15/3/2011
[proferido no Processo nº 6730/09.4TVLSB.L1-7 e
in
www.dgsi.pt
]
, nele se concluindo que “ I -
No quadro tributário do Regulamento das Custas Processuais o recorrido, que não contra-alegue, não é em caso algum responsável pelo pagamento de taxa de justiça, o qual não lhe é exigível, ainda que no recurso fique vencido
(artigos 7º, nº 2, do RCP, e 37º, nº 4, da Portaria nº 419-A/2009, de 17 de Abril); II -
Se, porém, ficar vencido no recurso, é responsável pelo pagamento das custas, nos termos gerais
(artigo 446º do CPC).
***
Lisboa,
06/02/2025
António Manuel Fernandes dos Santos
(#)
Nuno Luís Lopes Ribeiro
João Manuel P. Cordeiro Brasão
(
#) Declaração de voto
Votei vencido, na medida em que considero que deveria improceder a apelação, pelas razões que explanei no Acórdão por mim relatado em 24/10/2024, publicado em
www.dgsi.pt
:
«A absolvição da instância, em virtude do conhecimento oficioso da excepção dilatória inominada de uso indevido do procedimento de injunção, proferida em despacho liminar na acção executiva onde foi dada à execução aquela injunção, inquina todo o processo, pelo que o respectivo âmbito deve ser total, inexistindo título válido.».
Da fundamentação aí escrita, ressalto o seguinte trecho:
«Se o invocado princípio do máximo aproveitamento dos actos processuais merece ponderação, não podemos deixar de recordar que o mesmo terá natural âmbito de aplicação em caso de vício formal parcial ou nulidade processual parcial.
E tem como limite externo ou máximo, o impedimento da diminuição das
garantias do réu – limite esse que sempre será ultrapassado pela formação do título executivo.
As necessidades de segurança jurídica material que rodeiam a formação de um título executivo justificam o indeferimento total, extravasando-se o desvalor daquele meramente formal, emergente de uma simples nulidade processual.
A isto acrescendo a equiparação ao tratamento jurídico que o sistema confere, caso o requerido tivesse deduzido oposição ao requerimento injuntivo: em sede de acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, resultaria inquinado todo o processo e não apenas o segmento indevidamente incluído na pretensão injuntiva.
A necessidade de penalização desta ilegítima estratégia de risco suplanta ou consome o citado princípio do máximo aproveitamento dos actos processuais, optando-se pelo desvalor total, justificador do indeferimento liminar total do requerimento executivo, como foi decidido na 1ª instância.».
Apesar da profundidade com que se defende a posição que aqui obteve vencimento, não me parece que se consigam afastar aqueles argumentos, pelo que não altero a minha posição anterior.
Nuno Lopes Ribeiro
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/7a7ea3bdb1d0249480258c3100586ec0?OpenDocument
|
1,747,872,000,000
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REVOGADA PARCIALMENTE A SENTENÇA RECORRIDA
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1035/22.8T8BJA.E1
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1035/22.8T8BJA.E1
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ANTÓNIO MARQUES DA SILVA
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Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):
- sendo impugnada a decisão sobre a matéria de facto com base em depoimentos de testemunhas e declarações de partes, gravados, e indicando o recorrente as passagens da gravação relevantes apenas quanto a uma das testemunhas, reproduzindo quanto às demais testemunhas/partes menções genéricas colhidas da motivação da sentença recorrida, tal actuação não se mostra suficiente para dar por cumprida a exigência decorrente do art. 640º n.º2 al. a) do CPC.
|
[
"IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO",
"ÓNUS DO RECORRENTE",
"COMPROPRIEDADE",
"USUFRUTO"
] |
Acordam no Tribunal da Relação de Évora
I. AA e BB intentaram a presente acção contra CC e marido DD, formulando os seguintes pedidos:
A) Serem os RR condenados a pagar aos AA a quantia de € 30.735,32, (trinta mil, setecentos e trinta e cinco euros e trinta e dois cêntimos), correspondente a 50% das despesas de material e mão de obra pagos pelos AA.
B) Serem os RR condenados a pagar aos AA a título de juros vencidos e calculados desde 18/0772017 até 18/07/2022, à taxa de 4%, calculados no valor de € 6.150,43 (seis mil, cento e cinquenta euros e quarenta e três cêntimos).
C) Serem os RR condenados a pagar aos AA os juros vincendos até integral pagamento das quantias peticionadas
.
Alegaram para tanto, no essencial, que:
- o A. AA e a R. CC são comproprietários do imóvel que identificam, adquirido por doação de 2005, imóvel que é usado pelos AA. (pagando por tal uso uma contrapartida aos RR.).
- como comproprietária, a R. é também responsável pelas despesas de manutenção do imóvel.
- foram feitas obras de recuperação e manutenção, tendo as primeiras importado em 50.820 euros (documentos 5 e 6).
- foram depois realizadas outras, as quais, na parte que os AA. pretendem ver comparticipadas pela R., importaram em 2021:
. em material, 154,29 euros.
. em limpeza de telhados e algerozes, substituição de telhas partidas e pinturas de paredes interiores e exteriores, e em mão de obra, 9.963 euros.
- o valor total das obras ascende a 61.470,64 euros, respondendo a R. por 30.735,22 euros, metade daquele valor.
- a que acrescem juros vencidos nos últimos 5 anos.
Os RR. contestaram, começando por invocar a preclusão do direito à indemnização reclamada por:
. os AA. terem deduzido pedido reconvencional relativo a benfeitorias em acção de divisão de coisa comum pendente, reconvenção que não foi admitida sem os AA. terem reagido;
. ter sido instaurada acção pelos agora RR. na qual os AA. invocaram obras de beneficiação sem deduzir pedido reconvencional;
. os AA. terem intentado acção contra os RR. pedindo o pagamento das obras de conservação e manutenção no valor de 50.820 euros, a qual terminou com a absolvição da instância dos RR. (com base em facturas que já tinham sido apresentadas em outro processo).
Invocaram também excepção assente no facto de, a partir de 28.05.2018, o A. passou ser usufrutuário do imóvel, respondendo ele pelas despesas de conservação; no período anterior, as obras foram realizadas sem nada ter sido comunicado aos RR..
Impugnaram ainda a versão dos AA., discutindo em particular os documentos juntos e a falta de recibos, e alegando que o valor pago pelos AA. não constitui contrapartida pelo uso mas indemnização por privarem os RR. do uso, o que retira aos AA. o direito de exercerem o direito de regresso contra os RR..
Os AA. responderam, tecendo amplas considerações sobre aspectos acessórios, e afirmando em particular que foi por lapso que não referiram que actuavam como usufrutuários e como representantes dos seus filhos, o que ocorre, que interpelaram verbalmente a R., e que as obras eram necessárias.
Foi depois proferido despacho a convidar os AA. a «
concretizar as obras que realizaram no imóvel, em que momento temporal e qual o seu valor unitário
».
Os AA. não responderam ao convite.
Na audiência prévia as partes acordaram na suspensão da instância. Prosseguindo o processo, foi proferido despacho saneador, julgada improcedente a invocada preclusão do direito dos AA., e considerado inexistirem outras excepções. Procedeu-se depois à fixação do valor da causa, à identificação do objecto do litígio e à enunciação dos temas da prova e actos subsequentes (avaliação dos requerimentos de prova e agendamento da audiência).
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, na qual, após rectificação, se julgou a acção parcialmente procedente, tendo condenado «
os Réus no pagamento aos Autores da quantia de €4.981,50 (quatro mil novecentos e oitenta e um euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros vencidos desde a citação
».
Desta sentença interpuseram os AA. recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. Não compreendem os Recorrentes como se valora as obras de 2021 que são descritas num recibo-verde da Autoridade Tributária e Aduaneira, conforme documento 8 (oito) da Petição Inicial e não se valoram os documentos 5 (cinco), 6 (seis) e 7 (sete) do mesmo articulado.
2. Todos estes documentos se referem aos empreiteiros que prestaram oras de manutenção.
3. Como bem se sabe, variadas situações têm apenas e só fatura a qual não é recibo, porém, quando posa em crise, poderiam os Recorridos impugnarem as mesmas, o que não fizeram.
4. Ninguém pôs em causa que os trabalhos fossem realizados.
5. A referida fatura refere-se obviamente a quem fez – nomeadamente o nome e contribuinte – e na morada que fez, conforme documentos 5 (cinco) e 6 (seis) da Petição Inicial.
6. E que não se diga que são genéricos quando se refere na designação de trabalhos na fatura n.º 008 “limpeza de telhados e substituição de telhas degradas”, “manutenção dos algerozes” e “reconstrução de beirados e guarda fogos”.
7. Igualmente não se compreende a não aceitação do documento 7 (sete) no valor de €154,29 (cento e cinquenta e quatro euros e vinte e nove cêntimos) quando aceitou a Mmª. Juiz de Direito condenou ao pagamento de 50% as obras desse mesmo ano relativamente ao documento 8 (oito) da Petição Inicial.
8. As despesas apresentadas nos documentos 9 (nove) a 18 (dezoito) da Petição Inicial e que contabilização a totalidade de €533,35 (quinhentos e trinta e três euros e trinta e cinco cêntimos) deveriam ter sido levadas em conta na douta decisão ora posta em crise.
9. Refira-se igualmente que os Recorridos não impugnaram qualquer fatura, nem puseram e causa a sua legalidade – o que se considera matéria efetivamente assente.
10. Por outro lado, não é exigível nem obrigatório a passagem de recibo, sendo um mero direito do devedor e não uma obrigatoriedade do credor, sendo que na verdade, a Ordem dos Contabilistas Certificados já se pronunciou sobre tal matéria, no seu parecer “PT27977 - fevereiro de 2024”.
11. Na motivação a Ré CC esclareceu que até 2011 não tinha problemas com o irmão, mas chatearam-se após a morte do pai e a mesma refere ainda “Quando a perícia foi realizada, em 2016, a casa estava pintada como sempre esteve, sendo que admite que o seu irmão tenha retocado a pintura e limpo algerozes” e que “o jardim estava limpo e arranjada, nessa altura”.
12. A aceitação por parte da Ré destes factos deveriam ter lado Tribunal a quo a aceitar que houve pinturas, limpezas de algerozes outras anteriores a 2016, nomeadamente desde 2005 até tal data, levando de facto a ter que se olhar para os documentos supra referidos que não foram levados e conta na sentença ora posta em crise, como deveriam ter sido.
13. No que respeita às declarações do Autor AA, o mesmo não pediu recibos atenta a relação pessoal que havia entre o mesmo e a Ré CC
14. Igualmente se demonstra que o Tribunal valorou o depoimento de EE, sobrinha das partes, e que refere, e passamos a citar: “Quanto à foto 34 referiu que a porta está igual ao que é hoje, sendo que no máximo pode ter sido envernizada”.
15. Se não tivessem sido feitas obras de manutenção, como as referidas no documento 6 (seis) da Petição Inicial e que no último item – que o douto Tribunal a quo considera genérico – refere “restauro de janelas e portas exteriores”, a porta referida não estaria na forma que estava e naturalmente, até foi envernizada varias vezes.
16. Os Recorrentes apresentaram um relatório pericial onde intervieram três avaliadores, o Senhor Engenheiro FF, o Senhor Engenheiro GG e o Senhor Engenheiro HH.
17. Nenhuma das partes questionou qualquer situação e os seus representantes apresentaram qualquer posterior declaração de voto ou algo que pusesse em causa o referido relatório.
18. Fácil é assim demonstrar que o Senhor Engenheiro GG visitou o imóvel, bem como os seus peritos que o acompanhavam e os mesmos concluíram que “…os materiais de construção são as correntes à época em que o edifício foi construído e o estado de conservação é razoável…”.
19. Ora fácil também é de concluir que para estarem em razoável estado de conservação em 2016, o mesmo teria de ter tido obras em anos anteriores, onde houve limpezas de algerozes, pinturas, rebocos, rectificaçao de telhados, et. al., tudo como vem referido nas facturas apresentadas, que salvo o devido respeito e melhor opinião, não são factos genéricos como o Tribunal a quo refere quanto a estes trabalhos serem referidos na forma que o são nas facturas 008 e 011 supra referidas.
20. Quanto às obras, os Recorrentes arrolaram em juízo o Senhor Engenheiro GG, perito supra melhor identificado.
21. O seu depoimento teve lugar no dia 06-06-2024, entre as 14h37min e 16h18min.
22. Neste depoimento, referiu esta testemunha:
A. “Um edifício desta época, o aspeto seria pior do que está aqui à vista.”
B. “Essa não é…. não é, não é não é isso…não é substituto… é a substituição de partes degradáveis, é a reabilitação do telhado”.
C. “Substituição de telhas partidas… reparação de telhado, obriga a substituição das telhas, a ver (não se compreende)… a mexer no telhado para melhorar as condições de…”
D. “Justificavam a manutenção…. Isso é um edifício com as característicos que existe uma cadência de obras de manutenção mas curtas que um edifico moderno.”
E. “Mas a manutenção deverá ser sempre feita. Eu acho que foi muito tempo de espaço entre a primeira manutenção e a segunda. Isso anualmente devia ter uma manutenção até para não haver tanto a degradação e o orçamento ser maior. Se hoje viessem (não compreensível) entre 400/500…”.
F. “Este edifício o que (não compreensível) há cem anos atrás, quer dizer nem (não compreensível) uma atualização da extração dos fundos, por exemplo… não é da época…houve uma atualização… (não compreensível) da cozinha, a casa de banho…”
G. “A cozinha estava a funcionar.”
H. “Estava habitada sim, eu não sei por quem mas estava habitada, estava com móveis…(não compreensível).”
I. “Eu diria que estas obras têm para aí mais de vinte anos, pela casa de banho, (não compreensível) ……. mas seguramente serão coisas com 20 anos.? Sim seguramente.”
J. Eu vi o edifício restaurado por fora… a parte de trás também restaurada e a parte de trás…(não compreensível)…não é um edifício bolorento ou bafiento…”
23. Concluindo, o Senhor Engenheiro neste depoimento e na transcrição supra apresentada, demonstra várias coisas, a saber:
a) Que as madeiras não poderiam estar tanto tempo sem manutenção e estarem no estado em que estava aquando do momento do relatório de avaliação;
b) Que houve variadas pinturas entre 2002 e 2016;
c) Os telhados e algerozes foram mantidos e limpos variadas vezes em tal período;
d) As casas de banho tiveram de ser remodeladas há menos de vinte anos, pois não estariam nem teriam o aspeto que tinham aquando do relatório;
e) E instado sobre o valor das mesmas oras apresentado, o mesmo referiu estarem abaixo do valor médio apresentado, em edifícios que necessita das mesmas obras.
24. Consideramos que tal matéria deverá ser dada como provada e em consequência alterada para factos como provados as obras realizadas em 2008, constantes nas faturas 008 e 011, que até foram consideradas “valoradas” na motivação do douto Tribunal a quo, mas não foi determinado o seu valor para pagamento aos Autores, ora Recorrentes.
25. Cai a Sentença ora posta em crise num erro, pois que os Recorrentes só eram usufrutuários de 50% (cinquenta por cento).
26. É referida na sentença quando nos factos provados constantes nos números 5 e 6 referem “por sentença proferida no processo n.º 665/16.1..., que correu termos neste Juízo Local – J2, os Autores foram condenados a pagar aos Réus o valor de €34.060,03, o que fizeram” e “Pelo uso exclusivo do referido imóvel, os Autores pagam aos Réus o valor mensal de €375,00/mês, fixado tendo em consideração o valor de arrendamento do imóvel de €750,00/mês”.
27. Demonstrado fica que o Autor não era nem nunca foi o usufrutuário único do referido imóvel, mas foi usufrutuário de 50% (cinquenta por cento) e usou e feito uso dos outros 50% (cinquenta por cento) de sua irmã, Recorrida.
28. A Recorrida CC não deixou de ser usufrutuária, mas em sentença do processo supra referido, passou a ser remunerada pelo uso que o seu irmão AA fazia no imóvel, e tal encontra-se assente nos factos provados.
29. No caso em apreço, e com a posição estribada, notório é que a conjugação dos factos dados como provados e não provados, com a prova documental e testemunhal devidamente produzida, estamos perante uma situação de erro de julgamento.
30. Não se pode aceitar a valoração das obras de 2021 que são descritas num recibo-verde da Autoridade Tributária e Aduaneira, conforme documento 8 (oito) da Petição Inicial e não a não valoração dos documentos 5 (cinco), 6 (seis) e 7 (sete) do mesmo articulado.
31. Não se pode aceitar a não aceitação dos documentos 9 (nove) a 18 (dezoito) da Petição Inicial e que contabilização a totalidade de €533,35 (quinhentos e trinta e três euros e trinta e cinco cêntimos).
32. Não há qualquer obrigação legal da emissão de recibo, sendo que a faturação em apreço não só indica o nome do Autor AA, o seu Número de Identificação Fiscal, como a sua morada.
33. As faturas ora em causa foram, em momento algum, postas em causa ou impugnadas pelos Recorridos, sendo necessariamente consideradas matéria assente.
34. Os Recorrentes apresentaram um relatório pericial onde intervieram três avaliadores, o Senhor Engenheiro FF, o Senhor Engenheiro GG e o Senhor Engenheiro HH, sendo que nenhuma das partes questionou qualquer situação e os seus representantes apresentaram qualquer posterior declaração de voto ou algo que pusesse em causa o referido relatório.
35. Prova bastante há que demonstra como provada as obras realizadas em 2008, constantes nas faturas 008 e 011, sendo que o douto Tribunal a quo, ao não o fazer, pecou em erro de julgamento.
36. Entendeu o Tribunal a quo que “…é o usufrutuário o responsável pelo pagamento das despesas originadas pela manutenção do prédio (fachadas, telhado, pintura), resultando do desgaste normal de qualquer edifício, não cabendo no conceito de “reparações extraordinárias”, pelo que tais valores apenas são da responsabilidade do usufrutuário e não podem ser exigidas ao proprietário da raiz. Funda-se tal entendimento no disposto no artigo 1446.º do Código Civil…”.
37. O Autor AA não era nem, nunca foi o usufrutuário único do referido imóvel, mas foi usufrutuário de 50% (cinquenta por cento) e usa dos outros 50% (cinquenta por cento) de sua irmã, Recorrida.
38. Pois, conforme ficou esclarecido a título de matéria provada, os Recorrentes pagam 50% pelo uso do imóvel, do valor locativo de um imóvel equivalente (conforme estabelecido no âmbito do processo n.º 665/16.1...).
39. E isto porque, a Recorrida CC não deixou de ser usufrutuária, mas em sede de sentença do processo supra referido, passou a ser remunerada pelo uso que o seu irmão AA fazia no imóvel, e tal encontra-se assente nos factos provados, como ora referido.
40. Nestes termos, o Tribunal a quo violou o artigo 1446.º e 1472.º do Código Civil, aquando da sua interpretação de que era o Autor AA o único usufrutuário, sendo que na verdade, ambos assumem tal qualidade jurídica.
41. Nestes termos, devem os Recorridos ser condenados ao valor total peticionado de €36.875,75 (trinta e seis mil, oitocentos e setenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos), atento todos os factos assentes e prova produzida, devendo esse mui honroso Tribunal da Relação de Évora decidir nesse sentido.
Os RR. responderam, sustentando a improcedência do recurso.
II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».
Assim, importa avaliar:
- a impugnação da decisão sobre a matéria factual.
- os efeitos dessa impugnação, e da existência de usufruto, no mérito da causa.
III. Foram considerados provados os seguintes factos [
1
]:
1. O Autor AA e a Ré CC são irmãos.
2. As partes estão desavindos relativamente ao imóvel de sua compropriedade, descrito na Conservatória de Registo Predial de Local 1 sob o n.º 943 da freguesia de ....
3. Tendo em vista solucionar tal contenda, os Réus interpuseram acção de divisão de coisa comum, pendente neste Tribunal, J2, sob o n.º 90/14.9..., tendo sido outorgada escritura de compra e venda, em 05/07/2024 através da qual os Réus adquiriram a propriedade da metade indivisa do prédio e o direito de usufruto sobre o mesmo.
4. Nesses autos foi requerida pelo Autor a declaração da nulidade da venda concretizada, estando em curso a sua apreciação por aquele Tribunal.
5. Por sentença proferida no processo n.º 665/16.1..., que correu termos neste Juízo Local – J2, os Autores foram condenados a pagar aos Réus o valor de €34.060,03, o que fizeram.
6. Pelo uso exclusivo do referido imóvel, os Autores pagam aos Réus o valor mensal de €375,00/mês, fixado tendo em consideração o valor de arrendamento do imóvel de €750,00/mês.
7. Trata-se de um edifício secular, com 840m2 de construção, divididos por 3 pisos.
8. Desde 2014, os Autores residem no imóvel.
9. Um imóvel com estas características tem obrigatoriamente de ter alguma constante manutenção, designadamente com o telhado, as caleiras e as pinturas.
10. Em 2021, o Autor despendeu a quantia de €154,29, no Bricomarchê, a título de materiais que destinou a obras de manutenção no imóvel, entregando a sua realização a II, que levou a efeito:
- toda a limpeza de telhados e algerozes;
- substituição de telhas partidas;
- pinturas de paredes, no interior e exterior do imóvel.
11. Com a realização destes trabalhos despendeu o Autor a quantia de €9.963,00.
12. Entre 2005 e 28.05.2018, o Autor foi comproprietário do imóvel juntamente com a Ré mulher.
13. Conforme Ap. 147 de 2018.05.28 do prédio descrito sob o n.º 943- ..., o Autor fez doação da nua propriedade aos filhos, na pendência da acção de divisão de coisa comum.
14. O Autor não comunicou previamente os Réus quer sobre a necessidade das obras, do seu custo e forma de pagamento, quer sobre quem as iria efectuar ou mesmo como deveriam ser efectuadas.
15. Os pais de Autor e Ré efectuaram obras de remodelação no imóvel em 1999.
16. Que consistiram entre outras, na construção de uma laje de cobertura em todo o imóvel e reconstrução dos telhados com substituição das asnas e demais elementos de suporte e implantação de prévia cobertura do telhado com placas de “onduline” com posterior assentamento de “telhas de canudo” conforme é obrigação legal por estar o imóvel localizado em zona histórica.
17. Os Réus não têm acesso ao imóvel desde 2011.
E foram tidos por não provados os seguintes factos:
18. No período dentre 2005 e 2015, o imóvel necessitou de recuperações e manutenção, sem que estivesse habitado.
19. As primeiras obras de recuperação e manutenção foram levadas a efeito pelo Sr. JJ, orçadas em €50.820,00.
20. Desde 2014, o Autor despendeu com o serviço de mão de obra mais de €10.000,00.
21. O Autor, porquanto tem vários trabalhadores ao seu serviço, muitas vezes não contabiliza pequenos trabalhos que ao longo do ano ascendem a algumas centenas ou mesmo milhares de euros.
22. As obras realizadas no imóvel foram motivadas pela sua urgência.
23. A Ré teve conhecimento das obras realizadas até 2016 e do valor que as mesmas importaram.
IV.1. Os recorrentes começam por anunciar a intenção de impugnar a decisão recorrida no que à fixação da matéria factual respeita.
Essa impugnação fica sujeita às regras decorrentes do art. 640º do CPC, do qual, na parte ora relevante, decorre que:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. — No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
2. Tem sido entendido (de forma claramente dominante na jurisprudência [
2
]) que não cabe despacho de aperfeiçoamento da impugnação da matéria de facto em sede de recurso, com razões que se julgam fundadas, assentes: na sequência das intervenções legislativas, em sentido agregador de maior exigência; na letra da norma em causa, que inculca uma sanção imediata (art. 640º n.º1
in fine
e, em particular, n.º2 al. a) do CPC); na contraposição sistemática e material face ao art. 639º n.º3 e ao art. 652º n.º1 al. a) do CPC, confirmando a referida asserção literal (quanto à imediata rejeição) derivada do art. 640º e indiciando quer o carácter específico (especial) do regime do art. 640º em causa, quer a existência de razões que distinguem aqueles regimes e explicam a diferença entre eles; razões estas ligadas ao tipo de recurso, no qual o tribunal
ad quem
intervém após a produção da prova e sobre questões factuais específicas (sem reavaliação de toda a prova produzida nem de toda a prova produzida), exigindo-se, por razões de coerência, inteligibilidade, funcionalidade e também derivadas da sujeição do recurso ao dispositivo e ao contraditório, que a intervenção do tribunal de recurso esteja devidamente balizada (condição da possibilidade da devida discussão), obviando do mesmo passo a recursos infundados, assentes em meras considerações gerais (derivando de razões de economia mas também, com o demais, sublinhando a auto-responsabilidade das partes) – assim, a exigência legal é condição da fixação precisa do objecto da impugnação, da sua inteligibilidade e da seriedade da impugnação, condições sem as quais o recurso não merece ser aproveitado; a própria concessão do prazo adicional de 10 dias para recorrer tempera o rigor da exigência, quanto à al. a) do n.º2 do art. 640º, mas tende também a justificar a dispensa legal do aperfeiçoamento (pois a parte teve tempo adicional para cumprir, e cumprir bem).
Nesta medida, verificado fundamento de rejeição, não cabe qualquer medida paliativa prévia mas apenas operar o efeito legal.
3. Quanto aos termos da impugnação, admite-se dever valer, na sua avaliação e como sustentado pelo STJ, «um critério adequado à função e conforme aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade»; os ónus previstos pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do objecto e da finalidade do recurso e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido, e por isso o critério de observância dos requisitos impostos há-de medir-se pelo cumprimento destas finalidades; os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade assentam na relação a estabelecer entre a gravidade da inobservância dos ónus e a gravidade das consequências impostas, exigindo uma relação de adequação, proporcionalidade e razoabilidade entre a gravidade da falha e a consequência imposta [
3
]. Deve, assim, admitir-se a impugnação que, embora apresentando alguma desconformidade formal (deficiência), ainda corresponda materialmente àqueles requisitos (ou seja, ainda cumpra as funções que eles desempenham, definindo suficientemente o objecto e fundamento da impugnação e permitindo o exercício do contraditório), não traduzindo um incumprimento preclusivo, impeditivo da realização das finalidades assinaladas aos requisitos legais.
4. No que respeita ao assento formal destas obrigações, entende-se que o requisito imposto pela al. a) do n.º1 do art. 640º deve estar enunciado quer na motivação quer nas conclusões (nestas porque a indicação nessa sede se mostra essencial à definição do objecto do recurso), admitindo-se que os demais devem estar expressos nas alegações mas não têm que ter tradução, sucinta que seja, nas conclusões - porque constituem
razões
, as quais não definem o objecto do recurso [
4
]. A esta distinção se atenderá.
Também se acentua que a relativização do ónus (tido por secundário) constante da al. a) do n.º2 do art. 640º do CPC constitui firme orientação jurisprudencial, sustentando-se que o incumprimento desse ónus apenas acarreta a rejeição do recurso nos casos em que fique gravemente dificultada a análise pelo tribunal de recurso e/ou o exercício do contraditório pela outra parte [
5
]. Não obstante, não se pode perder de vista que esta relativização não pode redundar na imposição ao tribunal da reapreciação sistemática ou global da prova indicada ou da prova produzida em audiência, reapreciação esta contrária à intenção legal, pelo que a indicação da prova gravada deve permitir, de um modo ou de outro, a concreta identificação dos momentos, em cada elemento probatório gravado, que se mostram determinantes, de acordo com o impugnante.
Acresce que a rejeição, a ser devida, não opera em bloco, havendo que avaliar cada um dos concretos pontos impugnados, só se rejeitando o recurso onde fique afectada a análise do recurso ou a contraditoriedade pela parte [
6
] [atendendo à teleologia da regra, com lugar paralelo na parte final do n.º3 do art. 639º do CPC [
7
] ou também na al. a) do n.º2 do art. 640º («na parte afectada», aí se diz), que supõe que só se rejeita o recurso onde for inviável o seu conhecimento [princípio da cindibilidade]; ainda ao abrigo do princípio do máximo aproveitamento dos actos, a que a ideia da redução não é alheia, princípio este que tem expressão legal, mormente no art. 195º n.º2 do CPC [
8
]).
Assim, cabe apreciar a impugnação realizada, à luz das coordenadas fixadas.
5. Impugnação em cuja avaliação o tribunal não está, apesar do referido ónus decorrente do art. 640º n.º1 al. b) do CPC, limitado aos meios probatórios indicados pelo recorrente, tendo o poder-dever de envolver na discussão todos os elementos probatórios disponíveis (v. art. 640º n.º2 al. b), 1ª parte, e 662º n.º1 do CPC).
6. Pese embora os termos do recurso interposto em relação à matéria de facto não se mostrem límpidos. ainda é possível apreender o seu sentido, o qual compreende os seguintes momentos:
i. matéria atinente aos trabalhos traduzidos nos documentos 5 e 6 (facturas) - mormente em termos expressos nas conclusões 1, 2, 5, 15 e 30.
ii. matéria atinente ao documento 7, no valor de 154,29 euros - mormente em termos expressos nas conclusões 1, 2, 7 e 30.
iii. matéria atinente aos documentos 9 a 18, no valor de 533,35 euros - mormente em termos expressos nas conclusões 8 e 31.
7. Começando pelo ponto ii., a impugnação assenta num equívoco dos AA. pois a matéria em causa consta do elenco de factos provados - v. matéria descrita em 10 dos factos provados. Fica, pois, prejudicada a avaliação desta impugnação, no que à decisão sobre a matéria de facto respeita.
8. Quanto ao ponto iii., os recorrentes nunca indicam quais os pontos de facto impugnados nem os factos que pretendiam ver demonstrados, limitando-se a indicar que as despesas que constam dos documentos em causa deveriam ter sido levadas em conta na decisão. Tal não cumpre, manifestamente, os requisitos postos pelas al. a) e c) do n.º1 do art. 640º do CPC, sendo particularmente relevante a completa omissão da indicação da pretendida decisão sobre os factos que estariam em causa, pois a descrição dos factos que os recorrentes pretendiam ver apurados constitui ónus próprio, não podendo o tribunal substituir-se nessa descrição aos recorrentes: são estes, e não aquele, que deve definir com precisão o objecto do recurso. Nestes termos, o recurso oferece-se justamente com a feição genérica ou vaga que o requisito em causa quer precisamente evitar.
Omissão aquela que, contudo, até se mostra de algum modo compreensível ou antecipável, pois está em causa matéria que, em rigor, não foi sequer alegada, pois em momento algum da PI os AA. descrevem os factos pertinentes (e, convidados a aperfeiçoar a sua alegação, nada disseram). Com efeito, apenas no art. 36º da PI se referem aos documentos em causa como contribuindo para fixar o valor global das «obras, respectivos materiais e despesas» que o recorrente teria suportado, mas sem alegarem os factos pertinentes - na verdade, sem alegarem qualquer facto concreto que sustente a conclusão, e nem sequer o valor em causa nesses documentos indicaram [
9
]. Ora, pese embora a junção de documentos possa, em certas condições, valer como alegação factual, tal não vale manifestamente no caso, em que, de um lado, os documentos (facturas) apenas referem uma série de materiais avulsos, sendo completamente ignorada (por não alegada) a sua relação com obras realizadas, ou a natureza das obras, ou a sua localização espácio-temporal, não correspondendo, por isso e em rigor, a verdadeiros factos constitutivos do direito dos recorrentes. Pelo que, ignorando intencionalmente o convite ao aperfeiçoamento da sua alegação, passaram os recorrentes a responder pela omissão da alegação dos factos relevantes (sendo que, por isto, a falta de cumprimento daqueles ónus vem até, no caso, associado ao princípio do dispositivo, quando à alegação factual).
9. Finalmente, e quanto ao ponto i., os recorrentes não cumprem com rigor as exigências postas pelas al. a) e c) do n.º1 do citado art. 640º do CPC, não indicando de forma directa e clara qual o ponto de facto impugnado, nem qual a decisão que, sobre esse ponto, pretendem ver tomada. Não obstante, ainda deriva da alegação, e das conclusões, que discutem a matéria que consta do ponto 19 dos factos não provados, e que consideram que tal matéria (reportando-se aos valores gastos em 2008) deveria ser dada como provada (art. 49 e 50 da alegação e 24 das conclusões
10
). Assim, à luz de uma avaliação proporcional e razoável, no sentido já referido, ainda seria entendível o sentido da impugnação, quanto àqueles requisitos, e assim podiam ter-se por suficientemente cumpridas as exigências contidas em tais requisitos: existiria um cumprimento deficiente mas não radical, impeditivo da satisfação das finalidades legais.
Sucede porém, de forma determinante, que os recorrentes, invocando prova gravada (depoimento da testemunha EE e declarações da recorrida CC e do recorrente AA), reproduzem avaliações desses depoimentos colhidos da sentença impugnada (da motivação desta sentença) sem nunca indicarem as passagens da gravação relevantes, assim incumprindo o ónus fixado na al. a) do n.º2 do art. 640º do CPC. Sendo que as menções colhidas da sentença impugnada não suprem esta omissão pois deixam por perceber qual o ponto do depoimento/declaração que se mostra relevante, impondo, mormente ao tribunal, uma avaliação generalizada ou integral dos depoimentos/declarações em causa, a qual contraria a finalidade limitativa da amplitude da reapreciação da prova que cabe ao requisito em causa. É certo que os recorrentes já cumprem esta exigência no que respeita ao depoimento da testemunha GG. Isto não significa, contudo, que a impugnação se possa aproveitar por referência a esse depoimento (e aos elementos documentais invocados pelos recorrentes), mas apenas que o cumprimento da exigência legal foi apenas parcial. Ora, o cumprimento parcial equivale ao não cumprimento pois só existe acolhimento da exigência legal (cumprimento) quando a regra legal é cumprida em toda a sua extensão. Acresce que solução contrária defraudava a razão de ser da norma (que visa facilitar a localização do momento dos depoimentos relevante, assim permitindo um directo exercício do contraditório pela contraparte e um imediato controlo do meio probatório pelo tribunal) pois impunha à parte contrária e ao tribunal o ónus de avaliar integralmente os depoimentos das testemunhas e as declarações de parte, que os recorrentes indicam como pertinentes (e, na verdade, até como determinantes [
11
]), em relação aos quais o ónus não foi cumprido, contra a intenção legal, e já que, sendo invocado a sua pertinência, e tendo que ser discutido o ponto factual impugnado, não podiam ser eles ignorados [
12
] - acabaria por constituir uma forma indirecta de impor ao tribunal aquilo que o requisito legal via evitar. Justifica-se, pois, a rejeição também deste ponto da impugnação.
10. Por também poder contender com a fixação dos factos relevantes, anota-se que, ao contrário do que os recorrentes arrojadamente afirmam, a matéria aqui em causa foi impugnada pelos recorridos (art. 57º da contestação), pelo que por essa via também inexiste razão para alterar a factualidade relevante (sendo que os documentos relevantes também foram impugnados - art. 40º e ss. da contestação, particularmente 49º).
11. Do ponto de vista do mérito da causa, os recorrentes sustentam a alteração da decisão recorrida com base na valoração dos factos cuja impugnação intentaram. Importa, assim, atender aos 3 pontos acima referidos:
i. matéria atinente aos trabalhos traduzidos nos documentos 5 e 6 (facturas).
ii. matéria atinente ao documento 7, no valor de 154,29 euros.
iii. matéria atinente aos documentos 9 a 18, no valor de 533,35 euros.
Não se alterando a matéria de facto no que aos pontos i. e iii. respeita, não pode nessa parte proceder a pretensão recursiva, por privada de suporte factual.
Já quanto ao ponto ii., deriva efectivamente dos factos provados que o valor em causa foi suportado pelo recorrente, na aquisição de materiais utilizados nos mesmos trabalhos que justificaram a procedência parcial da acção (factos 10 e 11). Tal foi, também, considerado na fundamentação de direito da sentença recorrida, a qual, porém, a final acabou por desconsiderar os 154,29 euros, não os incluindo na fixação dos direitos que atribuiu aos recorrentes (a sentença terá possivelmente considerado que esse valor se integrava no valor mais amplo referido em 11 dos factos provados; tal não é correcto, como deriva da articulação dos factos 10 e 11, de onde deriva que o facto 11 apenas se reporta a trabalhos e não aos materiais referidos no facto 10, para além de já assim decorrer da alegação [
13
]). Justifica-se, pois, atender também a este valor, respondendo por eles os recorridos na proporção de metade (equivalente à participação da recorrida na compropriedade: 77,15 euros) - isto também na medida em que se não discute no recurso a responsabilização do recorrido pelo pagamento dos valores em causa, à luz da sua condenação transitada (porque não impugnada) no pagamento dos demais valores fixados na sentença recorrida.
12. Ainda em sede de mérito, os recorrentes tecem considerações sobre o usufruto a que, salvo o devido respeito, se não conseguem associar efeitos precisos. Assim, dos factos provados decorre que a recorrida é comproprietária do prédio em causa, não sendo por isso clara a menção a que a recorrida «não deixou de ser usufrutuária» [
14
] (o recorrente é que é, a partir de 2018, usufrutuário de uma quota ideal ou na medida desta quota ideal - metade). De todo o modo, os recorrentes não atribuem qualquer efeito específico àquela afirmação, não se percebendo de que modo a sua alegação impacta a decisão recorrida (ou que efeitos pretendem ver, na sequência dessa alusão, reconhecidos), o que tornaria a alegação irrelevante. É certo que a decisão recorrida não se mostra muito feliz quando discute o relevo do usufruto também face à recorrida. A questão não releva, porém, porquanto: i. o ponto é, na verdade, irrelevante para a consideração do pedido formulado pois, do ponto de vista deste pedido, apenas se discute a responsabilidade dos recorridos e esta mostra-se justificada pela qualidade de comproprietária da recorrida, e por essa via pela sua participação proporcional nas despesas apuradas (art. 1411º n.º1 do CC); e ii. a responsabilidade do usufrutuário apenas respeita a metade do bem (pois apenas sobre essa metade tal usufruto incide) e apenas se joga face ao nu proprietário dessa metade (só perante estes dois se pode discutir qual deles suporta as despesas); já perante a recorrida, comproprietária plena, é ela sempre responsável pela sua participação nas despesas pois perante ela inexiste a mediação de qualquer usufruto (inexistente quanto à sua metade) [
15
], pelo que a discussão em torno do usufruto é, para a responsabilização da recorrida, indiferente [
16
].
13. Não tendo sido impugnada a decisão recorrida no que aos juros concerne, nenhuma valoração autónoma é nesta sede devida.
14. Decaindo ambas as partes, devem elas responder pelas custas do recurso na proporção do decaimento, que se fixa em 99% para os recorrentes e em 1% para os recorridos (de forma simplificada, os recorrentes pretendiam obter 25.754 euros no recurso, e obtêm 77,15 euros).
Atendendo ao carácter muito limitado do decaimento dos recorridos nesta sede, não se justifica alterar a distribuição, não impugnada, efectuada na primeira instância (e que corresponde tendencialmente aos decaimentos proporcionais em tal sede).
V. Pelo exposto, decide-se:
- rejeitar parcialmente a impugnação relativa à decisão da matéria de facto,
- julgar parcialmente procedente o recurso, condenando-se os recorridos a pagarem aos recorrentes 5.058,65 euros (cinco mil e cinquenta e oito euros e sessenta e cinco cêntimos), quantia a que acrescem os juros de mora vencidos desde a citação, e
- julgar improcedente o recurso na parte restante.
Custas pelos recorrentes e recorridos na proporção indicada.
Notifique-se.
Datado e assinado electronicamente.
Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).
António Marques da Silva - Relator
Maria João Sousa e Faro - Adjunta
Ricardo Manuel Neto Miranda Peixoto - Adjunto
1. Em reprodução literal.
↩︎
2. V. por todos os Ac. do STJ proc. 21389/15.1T8LSB.E1.S1, proc. 4330/20.7T8OER.L1.S1, proc. 1680/19.9T8BGC.G1.S1, proc. 1229/18.0T8OLH.E1.S1, proc. 1786/17.9T8PVZ.P1.S1, proc. 150/19.0T8PVZ.P1.S1 ou proc. 296/19.4T8ESP.P1.S1 (3w.dgsi.pt), este com indicações doutrinais a que se podem aditar Henrique Antunes, Recurso de apelação e controlo da decisão da questão de facto, Estudos em Comemoração dos 100 Anos do Tribunal da Relação de Coimbra, Almedina 2018, pág. 80 no sentido da inadmissibilidade legal do convite (embora com reservas face ao direito constitucional a um processo equitativo); e, no sentido oposto, L. Freitas, R. Mendes e I. Alexandre, CPC Anotado, vol. 3º, Almedina 2022, pág. 95 e 99 (também com outras indicações). No sentido da constitucionalidade da solução, v. DS 256/2021 do TC (no site do TC).
↩︎
3. V. Ac. do STJ proc. 20592/16.1 T8SNT.L1.S1 (3w.dgsi.pt), que se seguiu de perto.
↩︎
4. V. A. Abrantes Geraldes, Recursos em processo civil, Almedina 2022, pág. 197, 198, 201 e nota 348, e 202 nota 350, L. Freitas, R. Mendes e I. Alexandre, CPC Anotado cit., pág. 97 a 99, Acs. do STJ proc. 10300/18.8T8SNT.L1.S1, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1, proc. 326/14.6TTCBR.C1.S1, proc. 157/12.8TUGMR.G1.S1, proc. 299/05, proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1, proc. 233/09, proc. 1572/12, proc. 449/410, proc. 1060/07 ou proc. 2351/21.1T8PDL.L1.S1 (in 3w.dgsi.pt). Para a exigência da al. c) do citado art. 640º n.º1 do CPC, vale agora o AUJ 12/2023, segundo o qual «o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações».
↩︎
5. V. Acs. do STJ proc. 7430/17.7T8LRS.L1.S1, proc. 294/08.3TBTND.C3.S1 ou proc. 3683/16.6T8CBR.C1.S2 (3w.dgsi.pt).
↩︎
6. V. Ac. do STJ proc. 1007/17.4T8VCT.G1.S1 in 3w.dgsi.pt.
↩︎
7. Aqui como afloramento de princípio geral, com alcance diferente do que foi assinalado em sede de avaliação da inadmissibilidade do aperfeiçoamento.
↩︎
8. E também no princípio da conservação dos (
negócios e
) actos jurídicos (art. 292º e 295º do CC).
↩︎
9. Apenas o indicando no recurso agora interposto.
↩︎
10. Nesta última conclusão os recorrentes referem-se às facturas 8 e 11 mas trata-se de manifesto lapso pois estas não respeitam a 2008 (e estão relacionadas com outros factos: a factura 8 com o descrito em 10 e 11 dos factos provados; a factura 11 com outra impugnação factual também intentada pelos recorrentes, a reportada supra como ponto iii.).
↩︎
11. Já que o depoimento da aludida testemunha GG é meramente instrumental, apenas facultando dados indiciários, e dados estes que, em rigor, nem estabelecem uma relação próxima com as obras invocadas. A testemunha apenas refere obras anteriores, não se estabelecendo qualquer relação de exclusividade com as obras de 2008, sendo que outras obras houve (como os próprios recorrentes alegam).
↩︎
12. Isto para além do poder-dever de avaliação geral de toda a prova que cabe ao tribunal.
↩︎
13. Além da formulação usada na alegação, também se verifica que o valor global peticionado (30.735,32 euros) corresponde a metade da soma dos valores relativos a 2008 (50.820 euros), relativos a 2021 (154,29 euros e 9.963 euros) e relativos aos referidos documentos 9 e ss. (cujo valor não é indicado na PI mas que no recurso se afirma corresponder a 533,35 euros).
↩︎
14. Mesmo que se quisesse dizer que a recorrida não perdeu o «uso», a expressão é incorrecta e apta a criar equívocos.
↩︎
15. A asserção de que o usufrutuário de metade do bem não tem que responder pelas despesas atinentes à outra metade (de que não é usufrutuário) mostra-se evidente (axiomática, até) pela falta de título de responsabilização, dispensando desenvolvimentos.
↩︎
16. Apenas relevaria para saber se a metade restante das despesas, que o recorrente pagou, deveria ser suportada pelo recorrente ou antes pelos seus filhos (nu-proprietários), questão esta aqui não discutida.
↩︎
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/373513c33524743d80258c9f00532adf?OpenDocument
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1,740,614,400,000
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REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA
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379/17.5T8FAR.E2
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379/17.5T8FAR.E2
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MÁRIO BRANCO COELHO
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Sumário
:
1. O tribunal pode divergir, de forma fundamentada, do laudo pericial médico, quando estão em causa elementos factuais que vão além do mesmo, como sejam as concretas condições e exigências em que o trabalho era prestado e as repercussões das sequelas no desempenho dessas tarefas.
2. Não existe qualquer primazia jurídica do parecer médico em relação ao parecer do IEFP, pois é ao tribunal que cabe a tarefa de fixar a natureza e grau de incapacidade do sinistrado, em face de todos os elementos probatórios ao seu dispor e o seu prudente juízo.
3. Se os autos demonstrarem que as limitações sofridas pelo sinistrado o impedem efectivamente de exercer a sua profissão habitual, deverá atribuir-se uma IPATH, mesmo que os peritos médicos não se tenham pronunciado nesse sentido.
4. Tal é o caso de um sinistrado afectado de hérnia lombar com raquialgia residual, que desempenhava as funções de vigilante de transporte de valores, que em virtude dessa sequela não mais logrou retomar as funções profissionais, vindo a ser considerado em situação de invalidez relativa, motivo pelo qual a empregadora lhe comunicou a caducidade do seu contrato de trabalho.
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[
"ACIDENTE DE TRABALHO",
"PROVA PERICIAL",
"PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA",
"FORÇA VINCULATIVA",
"FIXAÇÃO DA INCAPACIDADE"
] |
Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora
:
No Juízo do Trabalho de Portimão, foi participado acidente de trabalho sofrido em 18.04.2016 por
AA
, quando exercia as funções de vigilante de transporte de valores, ao serviço de ESEGUR – Empresa de Segurança, S.A., a qual havia transferido sua responsabilidade infortunística para
Seguradoras Unidas, S.A.
e
Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.
, em regime de co-seguro, na proporção de 50% para cada uma.
No exame médico singular, foi atribuída uma IPP de 2%, com alta a partir de 17.01.2017 mas, na tentativa de conciliação, o sinistrado não aceitou esse grau de incapacidade, motivo pelo qual requereu a realização de junta médica.
Esta realizou-se, com intervenção de médicos da especialidade de neurocirurgia, atribuindo uma IPP de 6%, desde a data da alta pelas Seguradoras.
Apresentada reclamação pelo sinistrado, foi indeferida e, posteriormente, proferida sentença fixando a IPP em 6%, com alta a 17.01.2017, fixando as prestações devidas ao sinistrado com base nesse pressuposto.
Interposto recurso, por Acórdão desta Relação de 11.05.2023 foi a sentença anulada, determinando-se:
a. a realização de inquérito descritivo da história profissional do sinistrado;
b. a realização de análise do seu posto de trabalho, com caracterização dos riscos profissionais e sua quantificação, se tecnicamente possível;
c. a requisição à empregadora de todas as fichas de aptidão para o trabalho realizadas ao sinistrado após o acidente, bem como informação sobre se retomou as suas funções profissionais ou se, pelo contrário, não foi possível a sua reconversão no seu anterior posto de trabalho;
d. ainda à empregadora, informação sobre o percurso profissional do sinistrado na empresa e, em especial, as modificações na sua categoria profissional ou no seu posto de trabalho ocasionadas pelas lesões sofridas no acidente; e,
e. a posterior realização de junta médica, com intervenção de médicos da especialidade de neurocirurgia, para determinar não apenas as sequelas directamente derivadas do acidente, mas ainda se ocorre:
• lesão ou doença consecutiva ao acidente, agravada por lesão ou doença anterior;
• agravamento de lesão ou doença anterior ao acidente, por via da lesão ou doença consecutiva a este.
Regressando os autos à primeira instância, foi solicitado o inquérito ao IEFP, solicitadas as informações à entidade empregadora, e realizada junta médica com intervenção de médicos da especialidade de neurocirurgia.
Após, foi proferida sentença com o mesmo sentido da anterior – atribuição de uma IPP de 6%, considerando-se que
“decorre da condição física do sinistrado que, no contexto das limitações que presenta e lhe conferem uma IPP de 6%, permite o desempenho do núcleo essencial das tarefas associadas à actividade de vigilante, não sendo de reconhecer um quadro de IPATH.”
Inconformado, o sinistrado recorre e conclui:
1. Em consequência do acidente de trabalho sofrido, o ora apelante sofreu um traumatismo lombar (hérnia fiscal lombar em L5/S1 direita);
2. Foi acompanhado pelos Serviços Clínicos da Companhia de Seguros, tendo efectuado vários exames e iniciado tratamentos de fisioterapia;
3. Foi tratado cirurgicamente em 22 de Julho de 2016 apresentando nessa data ciatalgia direita;
4. Após regressar ao trabalho, foi observado na medicina do trabalho, tendo sido considerado inapto para as suas funções, sendo referenciado para o SNS onde permanece em ITA por acidente de trabalho;
5. Desde 18 de Dezembro de 2019, que se encontra em situação de invalidez relativa;
6. Não se tendo conformado com a incapacidade atribuída foi observado em novas juntas médicas, onde foi fixada uma IPP final de 6% recorreu para o Venerando Tribunal da Relação de Évora,
7. Tendo sido concedido provimento ao recurso, anulando-se a decisão recorrida e determinado a ocorrência de novas diligências;
8. Foi realizada a análise do posto de trabalho e reunidas todas as informações, sendo que a nova JM aferiu as suas conclusões quanto à verificação ou não de IPATH, com base no pressuposto, erróneo, de que o sinistrado desempenhava as funções de vigilante e não de vigilante de transporte de valores;
9. Resultando de todos os documentos juntos aos autos que o sinistrado não foi reconduzido ao seu posto de trabalho, por não ter capacidade física para desempenhar as mesmas;
10. É modesto entender do ora recorrente que o Mmº Juiz a quo, não valorou devidamente o Parecer realizado pelo IEFP, uma vez que, (e não obstante a falta de juízo cientifico), este especifica de uma forma cabal e concreta as funções inerentes à sua categoria profissional e as limitações do sinistrado no desempenho das mesmas.
11. Para além do recorrente não concordar com o facto de não ter sido fixada IPATH,
12. Não concorda com o facto de não lhe ter sido atribuída bonificação nos termos do disposto na al. a) do n.º 5 da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo DL 352/2007, de 23 de Outubro;
13. Resulta do teor dos documentos juntos aos autos e da leitura do Auto de exame por junta médica de neurocirurgia efectuado a 2 de Novembro de 2022 que o ora recorrente foi considerado inapto para as suas funções;
14. Em consequência, foi referenciado para o SNS onde permanece em ITA por acidente de trabalho, sendo que, a partir de 18 de Dezembro de 2019, encontra-se em situação de invalidez relativa;
15. Tem direito a uma pensão por invalidez relativa quem apresenta uma incapacidade definitiva e permanente para a profissão que estiver a exercer ou a última que tiver exercido quando, devido à incapacidade, não pode ganhar na sua actual profissão mais de um terço do ordenado que normalmente ganharia ou que não se prevê que recupere, no prazo de três anos, a capacidade de ganhar mais de 50% do que normalmente ganharia;
16. Sendo certo que, o ora apelante cumpre os requisitos, não tendo capacidade para, desde o acidente sofrido, desempenhar o núcleo essencial da actividade profissional que desempenhava desde 13 de Maio de 2002;
17. Da leitura dos Autos de Exame por Junta Médica de Neurocirurgia realizados, resulta que não foi aplicada ao ora apelante qualquer bonificação, nem tão pouco foi a situação apreciada ou considerada;
18. Resulta do teor da al. a) do n.º 5 da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo DL 352/2007, de 23 de Outubro que o coeficiente de incapacidade previsto é bonificado, até ao limite da unidade, com uma multiplicação pelo factor 1.5, se a vítima não for reconvertível em relação ao posto de trabalho o que, efectivamente, não veio a acontecer;
19. Uma vez que o ora apelante não retomou o exercício das funções correspondentes ao concreto posto de trabalho que ocupava antes do acidente, e não beneficiou de qualquer bonificação, terá forçosamente a mesma de ser agora aplicada;
20. Certo é que o douto tribunal a quo só pode/deve afastar-se do resultado da junta médica em casos devidamente justificados, que se mostrem fundamentados em opinião científica;
21. Entendendo-se que o caso do ora apelante se encontra aí enquadrado, devendo o uma vez que se encontra devidamente justificada a fixação IPATH e que a mesma não é incompatível com a atribuição da bonificação prevista na al. a) do n.º 5 da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo DL 352/2007, de 23 de Outubro;
22. Pelo que, deverá alterar-se a douta sentença proferida, sendo que os cálculos das indemnizações a pagar pelas Rés bem como o montante da pensão anual e vitalícia deverão ser efectuados tendo também como base a bonificação constante na al. a) do n.º 5 da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo DL 352/2007, de 23 de Outubro e fixação de IPATH.
A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Nesta Relação, o Digno Magistrado do Ministério Público proferiu parecer no sentido da manutenção do julgado.
Cumpre-nos decidir.
Alteração da decisão de facto
Nos termos do art. 662.º n.º 1 do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Nos autos foi solicitado ao IEFP parecer técnico relativo a inquérito profissional e estudo do posto de trabalho do sinistrado, nos termos do art. 21.º n.º 4 da LAT e da Instrução Geral n.º 13, als. a) e b), da TNI.
O parecer apresentado pelo IEFP procedeu à análise do posto de trabalho do sinistrado, enumerou as funções por ele desempenhadas como vigilante de transporte de valores, mencionou as exigências desse posto e descreveu os respectivos riscos profissionais.
Tal parecer tem valor de prova pericial
1
– foi elaborado por perito especializado que, conforme consta do próprio parecer, estudou o posto de trabalho do sinistrado, não apenas como base na necessária entrevista que lhe fez, mas também com fundamento na análise da informação clínica que acompanha o processo e na consulta de informação técnica sobre a actividade profissional em causa – e está sujeito à livre apreciação do julgador (art. 389.º do Código Civil).
Por outro lado, também deve ser considerada a informação prestada pela entidade empregadora, relativa aos exames de medicina de trabalho realizados pelo sinistrado após o acidente, que o consideraram inapto temporariamente, não tendo retomado funções até que o seu contrato de trabalho cessou por caducidade, por passagem à situação de pensionista por invalidez.
Ademais, no elenco fáctico também deve ser incluído o parecer da comissão de verificação de incapacidades do Instituto da Segurança Social, que considerou o sinistrado em situação de invalidez relativa a partir de 18.12.2019.
Tais factos são essenciais para o apuramento da incapacidade do sinistrado para desempenhar as tarefas inerentes ao seu posto de trabalho,
pelo que se decide aditar ao elenco fáctico quer a descrição do conteúdo funcional, das exigências e dos riscos profissionais do posto de trabalho, efectuada no parecer do IEFP, quer a informação prestada pela entidade empregadora e o parecer da comissão de verificação de incapacidades do ISS
.
Mais se decide retirar do elenco fáctico a afirmação do sinistrado estar afectado de uma IPP de 6%
– trata-se de matéria conclusiva, respeitante à determinação da sua incapacidade, questão jurídica essencial a determinar no recurso.
A matéria de facto fixa-se assim nos seguintes termos
:
1. AA nasceu no dia ........1977.
2. No dia 18.04.2016, em ..., quando exercia as funções de inerentes à sua profissão, ao serviço de “ESEGUR – Empresa de Segurança, S.A.”, foi vítima de um acidente de trabalho, em consequência do qual sofreu traumatismo Lombar (hérnia discal lombar em L5/S1).
3. Actualmente apresenta raquialgia residual lombar.
4. Desse acidente resultou para o sinistrado:
a) uma Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) de 19.04.2016 a 30.12.2016 (256 dias);
b) uma Incapacidade Temporária Parcial (ITP) de 5% de 31.12.2016 a 17.01.2017 (18 dias);
c) cura clínica a partir de 17.01.2017.
5. Na data do acidente o sinistrado auferia da empresa “ESEGUR – Empresa de Segurança, S.A.” a retribuição anual de € 18.434,02 [(€ 962,33 x 14) + (€ 135,08 x 11) + (€ 3.475,52)].
6. Nessa data, a entidade patronal do autor tinha a sua responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho encontrava-se transferida para as rés “Seguradoras Unidas, S.A.” e “Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.”, em regime de co-seguro, na proporção de 50% para cada uma delas.
7. O sinistrado já foi ressarcido da indemnização legal relativa aos períodos de incapacidade temporária devida pelas entidades seguradoras, pelo montante de € 8.885,20.
8. O conteúdo funcional da actividade desempenhada pelo sinistrado é o seguinte:
Assegura o manuseamento, transporte e segurança de valores (notas, moedas, entre outros) e conduz veículo pesado, blindado, de transporte de valores, de acordo com procedimentos e protocolos de trabalho definidos pelo empregador, executando as seguintes tarefas e operações:
1. Consulta diariamente o “diário de bordo” para se inteirar das localidades e clientes da empresa a que tem de prestar serviço e das tarefas a realizar;
2. Efectua o carregamento do veículo blindado com os valores a entregar no dia, conjuntamente com o colega;
2.1. Empurra o(s) “gradão(ões)” (contentor de metal, com rodas, com cerca de um metro de largura, por um metro de comprimento e um metro de altura) com os sacos com valores, da caixa-forte do estabelecimento da empresa para junto da carrinha de transporte dos mesmos;
2.2. Procede à arrumação dos sacos com valores no cofre do compartimento de transporte da carrinha e confere-os, utilizando dispositivo de leitura óptica;
3. Conduz o veículo pesado de transporte de valores nos itinerários previstos (Algarve e Baixo Alentejo, bem como de dois em dois meses Algarve-Lisboa), alternadamente com o colega, respeitando as regras de segurança, horários, zelando pela viatura e salvaguarda da segurança dos valores:
3.1. Controla a velocidade e direcção do veículo, procedendo às manobras necessárias, por meio da utilização coordenada dos comandos e instrumentos adequados (volante, alavanca da caixa de velocidades, pedais, etc.) atendendo ao estado da via e do veículo, à circulação de outros veículos e peões, e às regras e sinais de trânsito;
3.2. Efectua manobras de parqueamento, por vezes em locais de espaço limitado, para proceder ao descarregamento e carregamento de valores relativos a cada entidade cliente (agências bancárias, hipermercados, supermercados, hotéis e espaços com ATM,) recorrendo com persistência ao manuseamento do volante, utilização dos pedais e caixa de velocidades e visualização dos espelhos retrovisores.
4. Procede à entrega e à recolha de valores (ou de excedentes no caso das máquinas ATM) aos diferentes clientes, em dias alternados com o colega:
4.1. Coloca um saco com notas na mala de segurança, tantas vezes quantos os sacos com notas a entregar aos clientes no dia;
4.2. Solicita ao colega, condutor, abertura de porta sempre que sai ou entra do veículo no decurso dos actos de entrega e recolha de valores;
4.3. Transporta a mala de segurança com valores em nota e os sacos com moeda do veículo blindado para as instalações de cada cliente, carregando-os manualmente;
4.4. Recebe nas instalações do cliente os sacos de moedas e os sacos com notas, coloca os valores em nota na mala de segurança, e transporta os sacos com moedas e a mala de segurança para o veículo de transporte de valores;
4.5. Retira os cacifos das notas das máquinas ATM, procedendo à abertura das máquinas, mediante introdução de código e accionamento de manivela de abertura, e puxando para o seu exterior o dispensador que contém os cacifos;
4.6. Transporta os cacifos vazios dos espaços com ATM para o veículo, onde procede ao seu carregamento com notas, transportando-os posteriormente para a máquina;
5. Realiza vários percursos a pé, do veículo de transportes de valores para as instalações do cliente/espaço com ATM, e vice-versa (em média, cerca de 150 por período diário de trabalho);
6. Abre e fecha (desarma e arma) a mala de segurança de transporte de notas no interior do veículo e no cliente, as vezes que forem necessárias;
7. Confere os sacos entregues e recebidos, com dispositivo de leitura óptica;
8. Imprime, a partir de impressora móvel que transporta presa a si, talão com valores entregues em cada cliente e assina;
9. Coloca os sacos com notas recolhidas nas prateleiras e os sacos com moedas no piso do cofre do veículo blindado, procurando distribuir o peso e manter separados os valores recolhidos daqueles a entregar;
10. Verifica as condições de segurança do meio envolvente da viatura, através de câmaras, das janelas da cabine de condução e dos retrovisores, autorizando a saída do colega que transporta os valores e procedendo à abertura e encerramento da porta de acesso ao cofre, através de comandos posicionados no tablier, quando se encontra a conduzir, ou efectuando o reconhecimento do local, mediante circuito a pé pela parte traseira da viatura, quando procede à entrega e recolha de valores.
9. As exigências do posto de trabalho do sinistrado são as seguintes:
• Relativamente às condições de execução do trabalho, as tarefas são executadas, tanto em espaço fechado climatizado (interior da viatura - na cabine de condução quando conduz o veículo, no compartimento de transporte de valores quando procede à sua entrega e recolha). As operações inerentes ao transporte de valores entre o veículo e as instalações do cliente são, por vezes, realizadas ao ar-livre, estando nesta situação o trabalhador sujeito às diversas condições atmosféricas (frio, calor, vento, chuva), bem como a mudanças de temperatura. No exercício do posto de trabalho está, ainda, sujeito a vibrações de corpo inteiro, bem como a permanecer longos períodos de tempo em espaço confinado (interior do compartimento de transporte de valores).
• Quanto às exigências físicas, relativamente à postura de trabalho, o trabalhador adopta durante longos períodos de tempo a posição de sedestação, no interior da cabine de condução ou no interior do compartimento de transporte de valores. Adopta ainda a posição ortostática, por vezes inclinado, bem como agachado, ao conferir os valores a entregar, e de joelhos, ao proceder à abertura e carregamento de valores em máquinas ATM. No desenvolvimento da actividade o trabalhador está sujeito a persistentes flexões e torsões do pescoço, flexões e torsões do tronco, nomeadamente ao colocar e remover sacos com moedas e mala de transporte de notas no interior do compartimento de transporte do veículo, proceder à arrumação dos sacos de valores e conferi-los, remover e colocar cacifos nos ATM, assim como a trabalhar com os braços estendidos em frente (manusear o volante e o manípulo da caixa de velocidades, efectuar manobras de condução, designadamente parqueamentos em marcha atrás, e arrumar os sacos de notas nas prateleiras do cofre).
• Em termos de locomoção a função exige deslocações rápidas em terreno geralmente plano, transportando com muita frequência cargas (sacos de moedas, mala com notas, cacifos com notas), bem como subir e descer escadas nas instalações dos clientes e, persistentemente, subir/descer ao compartimento de transporte de valores do veículo a cerca de 40cm de altura do solo.
• No que diz respeito ao tipo e intensidade do esforço, o desempenho da actividade exige que o trabalhador possa manusear, levantar, baixar e transportar, subindo e descendo do compartimento de transporte de valores, pesos na ordem dos 16Kg e dos 20K, respectivamente mala de segurança com notas e sacos de moeda, assim como empurrar pesos na ordem dos 200Kg (gradão). Requer, ainda, que o trabalhador possua força dinâmica ao nível dos membros superiores, inferiores e do tronco, nomeadamente na manipulação e transporte frequente de sacos de moedas e da mala de segurança com valores nota, na persistente manipulação do volante, no accionar dos pedais, na manipulação do manípulo da caixa de velocidades, bem como na frequente subida e descida do compartimento de transporte de valores da viatura.
• Quanto às exigências sensoriais é necessário para o desempenho das tarefas de condução acuidade visual ao longe, campo visual, visão estereoscópica, bem como visão crepuscular e resistência ao deslumbramento, atendendo a que o trabalhador conduz em períodos nocturnos e de mudança de luminosidade (Inverno e quando faz o horário 17h-02h/03h).
• Em relação a exigências psicomotoras é necessária agilidade física e coordenação motora no desenvolvimento das tarefas, especificamente a coordenação motora mão-mão, pé-pé, ombro-braço-mão, mão-dedos, coxa-perna-pé e óculo-manual-pedal (tarefas e gestos de condução, subir e descer do veículo pesado).
• Ao nível das exigências perceptivo-cognitivas o trabalhador necessita deter capacidade de estimação de movimento, rapidez de integração perceptiva e atenção distribuída acima da média, para a execução das tarefas de condução do veículo, sendo estas duas últimas também importantes para proceder às operações inerentes à entrega e recolha de valores.
• Em termos personalísticos são exigidas ao trabalhador suficiente estabilidade emocional e resistência a situações de tensão psíquica e esforço cognitivo contínuos, que lhe permitam conduzir um veículo pesado em condições de segurança, assim como realizar sem falhas a conferência dos valores entregues e recolhidos, exposto ao risco de assalto e de agressão física.
10. Os riscos profissionais a que está mais exposto são a manipulação manual de cargas, inerente à arrumação de sacos com valores e, sobretudo, ao transporte manual de sacos com moedas e de mala de segurança com notas, vibrações mecânicas de corpo inteiro, decorrentes da deslocação do veículo sobre o piso das estradas, agressões e violência física, associados a potenciais assaltos e furtos, bem como tensão psíquica, inerente à manutenção de um estado de permanente atenção e ao risco de agressão física com perigo de vida.
11. Após o acidente, o sinistrado não retomou as tarefas profissionais, tendo sido declarado inapto temporariamente em exames de medicina do trabalho realizados em 24.05.2016 e em 10.01.2017;
12. Manteve-se em situação de baixa médica e foi-lhe atribuído pelo SNS um atestado médico de incapacidade multiusos, reconhecendo uma IPP de 69%;
13. A comissão de verificação de incapacidades do Instituto da Segurança Social veio a declarar que o sinistrado se encontrava
“em situação de incapacidade permanente que o impede de auferir, na sua profissão, mais de um terço da remuneração correspondente ao seu exercício normal, presumindo-se que o mesmo não recupere a capacidade de auferir, no desempenho da sua profissão, mais de 50% da retribuição correspondente, dentro dos próximos 3 anos. Por esse motivo, foi considerada a situação de invalidez relativa a partir de 2019/12/18”
;
14. A partir dessa data passou a auferir pensão de invalidez relativa e a entidade empregadora, ao tomar conhecimento deste facto, comunicou a caducidade do contrato de trabalho.
APLICANDO O DIREITO
Da fixação da incapacidade
De acordo com o art. 138.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, a parte que não se conformar com o resultado da perícia realizada na fase conciliatória do processo, requer perícia por junta médica, a qual se realiza nas condições previstas no art. 139.º do mesmo diploma.
A prova assim apreciada pelo juiz é essencialmente pericial, tanto mais que estão em apreciação factos para os quais são necessários conhecimentos especiais, nomeadamente de carácter médico, que os julgadores não possuem. Porém,
“apesar de a resposta do perito assentar, por via de regra, em conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, é ao tribunal, de harmonia com o prudente critério dos juízes, que se reconhece o poder de decidir sobre a realidade do facto a que a perícia se refere. Parte-se do princípio de que aos juízes não é inacessível controlo do raciocínio que conduz o perito à formulação do seu lado e de que lhes é de igual modo possível optar por um dos laudos ou afastar-se mesmo de todos eles, no caso frequente de divergência entre os peritos.”
2
No âmbito do procedimento para fixação da incapacidade emergente de acidente de trabalho, o juiz não apenas preside à perícia por junta médica, como pode solicitar aos peritos os esclarecimentos que entender por convenientes, formular quesitos e determinar a realização de exames e pareceres complementares ou requisitar pareceres técnicos, se o considerar necessário – art. 139.º n.ºs 1, 6 e 7 do Código de Processo do Trabalho. E pode fazê-lo por sua própria iniciativa, independentemente do impulso processual das partes, pois está em causa um poder discricionário do juiz.
3
No caso em apreciação, os peritos médicos declararam que o sinistrado estava apenas afectado de uma incapacidade parcial permanente de 6%, recusando a atribuição de IPATH.
O Supremo Tribunal de Justiça vem afirmando que os casos de IPATH são situações típicas de não reconvertibilidade do sinistrado em relação ao seu anterior posto de trabalho.
4
Se o trabalhador retoma o essencial das suas funções, embora com limitações decorrentes das lesões sofridas no acidente, não se pode concluir que se mostra em situação de IPATH; se, pelo contrário, não consegue desempenhar o essencial das tarefas inerentes ao seu posto de trabalho, então já se poderá concluir que se encontra afectado de IPATH.
5
Os factos apurados demonstram que o sinistrado exercia as funções de vigilante de transporte de valores, em tarefas que exigem a manipulação manual de cargas, inerente à arrumação de sacos com valores e, sobretudo, ao transporte manual de sacos com moedas e de mala de segurança com notas, vibrações mecânicas de corpo inteiro, decorrentes da deslocação do veículo sobre o piso das estradas, agressões e violência física, associados a potenciais assaltos e furtos, bem como tensão psíquica, inerente à manutenção de um estado de permanente atenção e ao risco de agressão física com perigo de vida.
O parecer do IEFP descreve as exigências do posto de trabalho, acima reproduzidas no ponto 9 do elenco fáctico, e certo é que o sinistrado não mais retomou as funções profissionais, vindo a ser declarado em situação de invalidez relativa a partir de 18.12.2019, motivo pelo qual a sua entidade empregadora lhe comunicou a caducidade do contrato de trabalho.
Os peritos médicos concordaram que o sinistrado sofreu hérnia discal em L5/S1, padecendo de raquialgia residual lombar, que enquadraram na seguinte rúbrica da TNI:
• Capítulo I – 1.1.1.b) – Coluna vertebral – Entorses, fracturas e luxações – Traumatismos raquidianos sem fractura, ou com fracturas consolidadas sem deformação ou com deformação insignificante – Apenas com raquialgia residual: 0,02 a 0,10, tendo arbitrado um coeficiente de 0,06, sem qualquer bonificação.
Ora, é preciso atender às concretas tarefas desempenhadas pelo sinistrado, de vigilante de transporte de valores, em tarefas que exigem a manipulação e transporte manual de cargas, vibrações mecânicas de corpo inteiro, risco de agressões e violência física, e tensão psíquica.
Trata-se de tarefas que requerem esforço, mobilidade e destreza, com pleno uso dos membros e da coluna, e certo é que o sinistrado nunca mais pode retomar as funções profissionais – foi declarado inapto temporariamente em dois exames de medicina do trabalho, passou à situação de baixa médica e veio a ser declarado em situação de invalidez relativa a partir de 18.12.2019, com subsequente perda do seu posto de trabalho, por caducidade comunicada pela empregadora.
Destes elementos, devemos concluir que o sinistrado não voltou a desempenhar as funções que exercia à data do acidente, e não foi sequer reconvertido no seu posto de trabalho.
Nesta Relação de Évora
6
já se decidiu que o tribunal pode divergir, de forma fundamentada, do laudo pericial médico, em especial quando estão em causa elementos factuais que vão além do mesmo, como sejam as concretas condições e exigências em que o trabalho era prestado e as repercussões das sequelas no desempenho dessas tarefas. Deste modo, se os autos demonstrarem que as limitações sofridas pelo sinistrado o impedem efectivamente de exercer a sua profissão habitual, deverá atribuir-se uma IPATH, mesmo que os peritos médicos não se tenham pronunciado nesse sentido.
Acresce que não existe qualquer primazia jurídica do parecer médico em relação ao parecer do IEFP, pois é ao tribunal que cabe a tarefa de fixar a natureza e grau de incapacidade do sinistrado, em face de todos os elementos probatórios ao seu dispor e o seu prudente juízo.
7
Por último, temos a apontar que a lesão detectada na coluna, hérnia discal em L5/S1, e a sequela subsequente, revelou-se objectivamente impeditiva do exercício pelo sinistrado da sua profissão.
E certo é que a actividade profissional desempenhada pelo sinistrado exige intensa mobilização da coluna, dada a necessidade de manipulação e transporte manual de cargas, e a sujeição constante a vibrações mecânicas de corpo inteiro.
Nestas condições, não conseguindo o sinistrado desempenhar o essencial das tarefas inerentes ao seu posto de trabalho, temos a concluir que se encontra afectado de IPATH, e que à sua incapacidade deve ser adicionado o factor de bonificação de 1,5 por não ser reconvertível em relação ao seu posto de trabalho – Instrução Geral 5, al. a), da TNI, elevando assim o coeficiente de incapacidade a 9%.
A pensão anual e vitalícia a que o sinistrado tem assim direito, face ao disposto no art. 48.º n.º 3 al. b) da LAT, obtém-se de acordo com a seguinte fórmula: € 18.434,02 x (0,09 x 0,20 + 0,50) = € 9.548,82.
Esta pensão, devida desde o dia 18.01.2017, está sujeita a actualizações anuais, que as Seguradoras aplicarão de forma automática e imediata, nos termos prescritos no art. 8.º n.º 1 do DL 142/99, de 30 de Abril.
Quanto ao subsídio por situação de elevada incapacidade permanente a que se refere o art. 67.º n.º 3 da LAT, ascende a: € 421,32 x 1,1 x 12 x (0,09 x 0,30 + 0,70) = € 4.043,15.
DECISÃO
Destarte, concede-se provimento ao recurso, decidindo-se:
a. condenar as Rés Seguradoras, na proporção de 50% para cada uma, a pagar ao sinistrado, com efeitos a partir de 18.01.2017, a pensão anual e vitalícia de € 9.548,82, a qual actualizarão anualmente, de forma automática e imediata, acrescendo juros de mora em relação às prestações já vencidas e até integral pagamento;
b. condenar as mesmas Rés a pagar, na mesma proporção, por uma única vez, um subsídio de elevada incapacidade permanente no valor de € 4.043,15, acrescendo juros de mora desde a mesma data e até integral pagamento.
Valor da causa: (€ 9.548,82 x 15,55) + € 4.043,15 = € 152.527,30.
Custas pelas Seguradoras.
Évora, 27 de Fevereiro de 2025
Mário Branco Coelho
(relator)
Paula do Paço
Emília Ramos Costa
1. Neste sentido, vide o Acórdão da Relação de Coimbra de 27.05.2022 (Proc. 1142/12.5TTLRA.1.C1), publicado em
www.dgsi.pt
.
↩︎
2. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in
Manual de Processo Civil
, 2.ª ed., 1985, pág. 583.
↩︎
3. Neste sentido, vide o Acórdão de Relação de Lisboa de 13.07.2016 (Proc. 1491/14.8T2SNT.L1-4), e da Relação de Guimarães de 02.11.2017 (Proc. 12/14.7TTBCL-C.G1), ambos em
www.dgsi.pt
.
↩︎
4. Em especial, no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 10/2014, de 28.05.2014 (publicado no DR, I Série, de 30.06.2014), chamando-se a atenção para a jurisprudência citada na respectiva nota 12.
↩︎
5. Cfr., a propósito, o Acórdão da Relação de Lisboa de 07.03.2018 (Proc. 1445/14.4T8FAR.L1-4), publicado em
www.dgsi.pt
.
↩︎
6. Neste sentido, vide os Acórdãos desta Relação de Évora de 14.06.2018 (Proc. 1676/15.0T8BJA.E1), de 07.04.2022 (Proc. 1025/17.2T8PTM.E1) e de 16.03.2023 (Proc. 47/18.0T8TMR.E1), também publicados na página da DGSI.
↩︎
7. Neste sentido, o Acórdão desta Relação de Évora de 17.06.2021 (Proc. 249/15.1T8PTM-A.E1), publicado na mesma página da DGSI.
↩︎
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/9d3b6415b1fa79e580258c490051d320?OpenDocument
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1,745,798,400,000
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REVOGAÇÃO
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1009/23.1T8OVR-B.P1
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1009/23.1T8OVR-B.P1
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CARLOS GIL
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I - Se uma das questões recursórias suscitadas pelo recorrente foi já conhecida e indeferida pelo tribunal recorrido por decisão transitada em julgado, em homenagem ao caso julgado, deve o tribunal ad quem abster-se de conhecer dessa questão.
II - O arresto previsto no nº 2 do artigo 771º do Código de Processo Civil não é aplicável para garantia da obrigação de devolução do exequente de importância que lhe foi indevidamente entregue pelo Agente de Execução.
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[
"CASO JULGADO",
"ARRESTO DE BENS DO DEPOSITÁRIO"
] |
Processo nº 1009/23.1T8OVR-B.P1
Sumário do acórdão proferido no processo nº 1009/23.1T8OVR-B.P1 elaborado pelo relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
……………………………………………………….
……………………………………………………….
……………………………………………………….
***
*
***
Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
1. Relatório
Em 11 de maio de 2023, com referência ao Juízo de Execução ..., Comarca de Aveiro, o
Condomínio Rua ...
, sito na Rua ..., ..., instaurou ação executiva ordinária para
pagamento de quantia certa contra
AA
[1]
exigindo o pagamento da quantia de € 9.709,49 acrescida de juros de mora até efetivo e integral pagamento.
Em 28 de maio de 2023 foi proferido despacho a declarar a existência de erro na forma de processo, determinando que os autos seguissem sob a forma sumária para pagamento de quantia certa.
Em 06 de julho de 2023, foi lavrado auto de penhora de dois depósitos bancários da titularidade do executado no montante global de € 12 426,89.
O executado foi citado postalmente para os termos da ação executiva e da penhora realizada.
Em 19 de setembro de 2023, por apenso à ação executiva de que estes autos foram extraídos
[2]
,
AA
deduziu embargos de executado arguindo a prescrição das obrigações exequendas, a sua ilegitimidade em virtude do imóvel a que respeitam as contribuições exequendas integrar a herança aberta por óbito de sua esposa
BB
, a inexistência e inexequibilidade do título exequendo, a compensação decorrente do não depósito pelo exequente de cheques sacados pelo executado no montante global de € 2 724,85, concluindo pela extinção da ação executiva ou, assim não se entendendo, pela compensação parcial da dívida exequenda e consequente redução para o montante de € 6 431,14.
Em 29 de setembro de 2023, o Sr. Agente de Execução solicitou à Secretaria Judicial informação sobre a dedução de oposição à execução, não resultando dos autos que haja sido prestada qualquer informação.
Em 10 de outubro de 2023, o Sr. Agente de Execução transferiu o montante de € 9 977,59 para a conta bancária do exequente, havendo para si a quantia de € 1 170,74, a título de honorários.
Em 19 de outubro de 2023, o executado foi notificado pelo Sr. Agente de Execução da existência de um saldo remanescente para ser devolvido a fim deste indicar o seu IBAN para tal efeito, tendo na mesma data sido declarada extinta a ação executiva por decisão do Sr. Agente de Execução
[3]
.
Em 31 de outubro de 2023,
AA
ofereceu o seguinte requerimento:
“
AA, no processo à margem referenciado em que é Executado, notificado em 23 de Outubro de 2023 da extinção da instância (?), vem arguir a nulidade do levantamento e entrega do saldo bancário penhorado para pagamento da quantia exequenda e despesas de execução, por violação do disposto no artº 780º, nº 13 CPC.
De facto, o Executado deduziu Oposição (19/09/2023) – cfr. apenso – pelo que o digno AE não podia proceder ao pagamento sem ordem de V. Exa, salvo melhor opinião.
Aliás, o digno AE sabe disso perfeitamente, pois solicitou à Secretaria – e bem – que informasse se foi deduzida Oposição à execução.
De resto, quando o fez (29/09/2023) já a Oposição tinha dado entrada 10 dias antes, pelo que não se entende o prosseguimento das diligências, salvo o devido respeito.
Pelo exposto, requer a V. Exa se digne anular todos actos subsequentes a 29/09/2023, devendo o digno AE repor à ordem do processo todas as quantias indevidamente levantadas.
”
Em 03 de novembro de 2023, o Sr. Agente de Execução ofereceu o seguinte requerimento:
“
CC, Agente de Execução nos presentes autos, notificado que foi da arguição de nulidade pelo Executado, vem, muito respeitosamente, a V. Exa. dizer o seguinte:
O Executado foi citado após penhora em 17/07/2023, pelo que o prazo para deduzir embargos de executado/oposição à penhora terminou a 26/09/2023.
Em 29/09/2023, o Agente de Execução questionou à secretaria deste Tribunal se havia sido deduzidos embargos de Executado, só tendo obtido resposta, após contacto telefónico com a secretaria, em 02/11/2023.
Consultados os autos (em Processos Dependentes), em 10/10/2023, não existia qualquer apenso de embargos de executado.
Entretanto, foi o Agente de Execução contactado pela I. Mandatária do Exequente, que também informou não existir, naquela data, quaisquer embargos/oposição nos autos, solicitando a entrega de resultados para pagamento da dívida.
Pelo que, o Agente de Execução, procedeu em 10/10/2023, à transferência ao Exequente dos valores penhorados nos autos, penitenciando-se, desde já, por este acto, pois não aguardou resposta da secretaria, estando, porém, absolutamente convencido de que não existiam quaisquer embargos/oposição, pois já tinha passado o prazo e nada constava dos autos.
Nestes termos, requer-se a V. Exa., se digne dar sem efeito a extinção da execução, bem como ordenar a notificação do Exequente para devolver ao processo todos os valores que lhe foram entregues indevidamente, devendo estes manter-se no processo, até decisão sobre os embargos deduzidos.
”
Em 27 de novembro de 2023 foi proferido o seguinte despacho
[4]
:
“
Arguição de nulidade (Req. Ref.ª Elect.ª 15253028, de 31.10.2023):
Veio o executado AA arguir a nulidade dos actos praticados pelo Agente de Execução subsequentes a 29/09/2023, solicitando a reposição à ordem do processo todas as quantias indevidamente levantadas, por preterição do disposto no art. 780.º, n.º 13, do Novo Código de Processo Civil.
Efectivamente, como reconhece o próprio Agente de Execução, assiste razão ao executado, porquanto tendo sido tempestivamente deduzida oposição à execução, mediante embargos de executado, e atento o preceituado no art. 780º, nº 13 Novo Código de Processo Civil, as quantias penhoradas que incidam sobre depósitos bancários não podiam ser entregues ao exequente, antes do termo do prazo para a oposição à execução ou à penhora ou, como sucede no caso em apreço, sendo deduzida oposição, antes do trânsito em julgado da respectiva decisão.
Deste modo, o Exmo Sr. Agente de Execução ao declarar extinta a instância e ao ter procedido à entrega ao exequente das quantias penhoradas quando se encontra pendente o apenso de embargo do executado cometeu uma nulidade processual com clara influência na decisão da causa, nos termos do preceituado no art. 195.º, n.º 1, do Novo Código de Processo Civil, sendo, por conseguinte, susceptível de invalidar o acto praticado e de acarretar a invalidação dos actos da sequência processual que daquele dependem absolutamente.
Nesta conformidade, declaro nulos, e sem qualquer efeito, os actos praticados pelo Agente de Execução de entrega das quantias penhoradas ao Exequente (9/10/2023) e da declaração de extinção da execução datada de 19/10/2023.
Em consequência, determino a notificação do Exequente para, no prazo de dez dias, devolver ao processo todos os valores que lhe foram entregues indevidamente, devendo estes manter-se no processo, até ao trânsito em julgado da decisão que incidir sobre os embargos deduzidos nos autos.
Notifique.
”
Em 06 de dezembro de 2023, o Sr. Agente de Execução notificou a Sra. Advogada do exequente “para, no prazo de dez dias, devolver ao processo todos os valores que lhe foram entregues indevidamente, uma vez que, estes serão mantidos no processo, até o trânsito em julgado da decisão que incidir sobre os embargos deduzidos nos autos.”
Em 12 de dezembro de 2023, o exequente ofereceu requerimento em que afirma não dispor já da totalidade do montante penhorado que lhe foi entregue requerendo que o Sr. Agente de Execução seja chamado a responsabilizar-se pelo lapso a que deu causa, com todos os efeitos legais daí advenientes.
Em 22 de janeiro de 2024 foi proferido o seguinte despacho
[5]
:
“
Req. Ref.ª Elect.ª 15446110, de 14.12:
Considerando que relativamente ao determinado no despacho datado de 27-11-2023 se mostra esgotado o poder jurisdicional sobre tal matéria, tendo tal decisão revestido a força de caso julgado formal, prevista no art. 620.º, n.º 1, do Novo Código de Processo Civil, incumbe ao Exequente repor aos autos a quantia que lhe foi indevidamente entregue, porquanto dela beneficiou.
Nesta conformidade, indefere-se o requerido.
Consequentemente, notifique o Exequente para, no prazo de dez dias, devolver ao processo todos os valores que lhe foram entregues indevidamente, devendo estes manter-se no processo, até ao trânsito em julgado da decisão que incidir sobre os embargos deduzidos nos autos, sob pena de condenação em multa (cfr. art. 417.º, n.ºs 1 e 2 do Novo Código de Processo Civil).
”
Em 20 de fevereiro de 2024,
AA
ofereceu o seguinte requerimento:
AA, no processo à margem referenciado em que é Executado, notificado do douto despacho que antecede, vem informar que o Exequente não repôs a quantia que levantou indevidamente e, portanto, não cumpriu com o ordenado por V. Exa no prazo que lhe foi concedido; em conformidade, vem requerer que lhe sejam arrestados bens, nomeadamente as quotas mensais ou anuais do condomínio (vencidas e vincendas), até perfazer todos os valores que lhe foram entregues indevidamente (€ 11.300,00) e de que beneficiou.
Mais vem requerer a condenação em multa (artº 417º, nº 1 e 2 CPC).
”
Em 22 de abril de 2024 foi proferido o seguinte despacho
[6]
:
“
Considerando que o Exequente não devolveu ao processo, no prazo que lhe foi concedido, os valores que lhe foram entregues indevidamente, condeno o mesmo na multa de 2 Uc’s, por falta de colaboração para com o Tribunal (cfr. art. 417.º, n.ºs 1 e 2 do Novo Código de Processo Civil).
***
Nos termos do disposto no art. 771.º, n.º 2 do Novo Código de Processo Civil, ordena-se o arresto em bens do Exequente, até perfazer todos os valores que lhe foram entregues indevidamente (€ 11.300,00) e de que beneficiou.
Notifique.
”
Em 10 de maio de 2024, inconformado com o despacho que precede,
Condomínio Rua ...
[7]
interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões
[8]
:
“
A)
O Exequente deu entrada do requerimento executivo a 20/05/2023, peticionando a penhora do montante de 9709,49€ ao Executado AA.
B)
Execução cujo título executivo são atas do condomínio.
C)
Tendo-se nomeado como Agente de Execução o Dr. CC com cédula profissional n.º ...94, e domicílio profissional na Av. ..., ... ..., ... ....
D)
O Executado foi citado da penhora a 03/08/23 para deduzir oposição à execução.
E)
Dispondo, portanto, de 20 dias para contestar, prazo que terminaria a 20/09/2023.
F)
Na data de 29/09/2023 o Agente de Execução Dr. CC, solicitou esclarecimentos ao processo no sentido de averiguar se havia sido deduzida oposição à execução, requerimento com a referência 15104671.
G)
Solicitação que não obteve resposta nos autos.
H)
Pelo que o Sr. Agente de Execução tomou a liberdade de a 09/10/2023 fazer o levantamento dos seus honorários (ref n.º 15137286) no montante de 1.170,74€. E também na mesma data a entrega de resultados ao Exequente no valor de 9.977,59€ (ref n.º 15137289)
I)
Tendo o Exequente sido informado da transferência dos resultados a 11/10/2023 (ref n.º 15155377)
J)
A 19/10/2023 foi o Exequente notificado “Fica V. Exa. notificado(a), na qualidade de exequente que a presente execução se encontra extinta, nos termos do disposto no artigo 849.º do Código do Processo Civil (CPC).
Atentamente,” (ref. n.º 15197260).
K)
Sendo o Exequente um condomínio, e tendo o mesmo prestações de obras e outros serviços em atraso, tendo sido notificado da extinção da instância procedeu à regularização desses pagamentos uma vez que tinha sido notificada da extinção da instância.
L)
A 31/10/2023 foi o Exequente notificado de uma arguição de nulidade pelo Executado, de 31/10/2023 (com a ref. n.º 15253028):
“AA, no processo à margem referenciado em que é Executado, notificado em 23 de Outubro de 2023 da extinção da instância (?), vem arguir a nulidade do levantamento e entrega do saldo bancário penhorado para pagamento da quantia exequenda e despesas de execução, por violação do disposto no artº 780º, nº 13 CPC.
De facto, o Executado deduziu Oposição (19/09/2023) – cfr. apenso – pelo que o digno AE não podia proceder ao pagamento sem ordem de V. Exa, salvo melhor opinião.
Aliás, o digno AE sabe disso perfeitamente, pois solicitou à Secretaria – e bem – que informasse se foi deduzida Oposição à execução.
De resto, quando o fez (29/09/2023) já a Oposição tinha dado entrada 10 dias antes, pelo que não se entende o prosseguimento das diligências, salvo o devido respeito.
Pelo exposto, requer a V. Exa se digne anular todos actos subsequentes a 29/09/2023, devendo o digno AE repor à ordem do processo todas as quantias indevidamente levantadas.”
M)
Veio o Executado alegar que deduziu Oposição à Execução a 19/09/2023, pelo que quando o Agente de Execução transferiu os resultados a 11/10/2023, já havia sido deduzida oposição à Execução.
N)
Podendo ler-se na Arguição de nulidade:
“AA, no processo à margem referenciado em que é Executado, notificado em 23 de Outubro de 2023 da extinção da instância (?), vem arguir a nulidade do levantamento e entrega do saldo bancário penhorado para pagamento da quantia exequenda e despesas de execução, por violação do disposto no artº 780º, nº 13 CPC.
De facto, o Executado deduziu Oposição (19/09/2023) – cfr. apenso – pelo que o digno AE não podia proceder ao pagamento sem ordem de V. Exa, salvo melhor opinião.
Aliás, o digno AE sabe disso perfeitamente, pois solicitou à Secretaria – e bem – que informasse se foi deduzida Oposição à execução.
De resto, quando o fez (29/09/2023) já a Oposição tinha dado entrada 10 dias antes, pelo que não se entende o prosseguimento das diligências, salvo o devido respeito.
Pelo exposto, requer a V. Exa se digne anular todos actos subsequentes a 29/09/2023, devendo o digno AE repor à ordem do processo todas as quantias indevidamente levantadas.”
O)
O Exequente só foi notificado pela secretaria desta Oposição à Execução a 13/11/2023 no âmbito do Apenso A, (1009/23.1T8OVR-A), cerca de um mês e meio depois da extinção da instância.
P)
Em consequência e sem ter sido facultado o contraditório ao Exequente foi proferido pelo Meritíssimo Juiz um despacho a 27/11/2023 com a (ref n.º 130215394) onde se pode ler:
“Arguição de nulidade (Req. Ref.ª Elect.ª 15253028, de 31.10.2023):
Veio o executado AA arguir a nulidade dos actos praticados pelo Agente de Execução subsequentes a 29/09/2023, solicitando a reposição à ordem do processo todas as quantias indevidamente levantadas, por preterição do disposto no art. 780.º, n.º 13, do Novo Código de Processo Civil.
Efectivamente, como reconhece o próprio Agente de Execução, assiste razão ao executado, porquanto tendo sido tempestivamente deduzida oposição à execução, mediante embargos de executado, e atento o preceituado no art. 780º, nº 13 Novo Código de Processo Civil, as quantias penhoradas que incidam sobre depósitos bancários não podiam ser entregues ao exequente, antes do termo do prazo para a oposição à execução ou à penhora ou, como sucede no caso em apreço, sendo deduzida oposição, antes do trânsito em julgado da respectiva decisão.
Deste modo, o Exmo Sr. Agente de Execução ao declarar extinta a instância e ao ter procedido à entrega ao exequente das quantias penhoradas quando se encontra pendente o apenso de embargo do executado cometeu uma nulidade processual com clara influência na decisão da causa, nos termos do preceituado no art. 195.º, n.º 1, do Novo Código de Processo Civil, sendo, por conseguinte, susceptível de invalidar o acto praticado e de acarretar a invalidação dos actos da sequência processual que daquele dependem absolutamente.
Nesta conformidade, declaro nulos, e sem qualquer efeito, os actos praticados pelo Agente de Execução de entrega das quantias penhoradas ao Exequente (9/10/2023) e da declaração de extinção da execução datada de 19/10/2023.
Em consequência, determino a notificação do Exequente para, no prazo de dez dias, devolver ao processo todos os valores que lhe foram entregues indevidamente, devendo estes manter-se no processo, até ao trânsito em julgado da decisão que incidir sobre os embargos deduzidos nos autos.
Notifique..”
Q)
Ora, a este despacho o Exequente respondeu através de requerimento a 12/12/2023 com a referência n.º 15446110:
Processo n.º 1009/23.1T8OVR
V/Ref.ª 130368099
EXMO. SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DO JUIZO DE EXECUÇÃO ..., TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE AVEIRO Condomínio do Prédio Sito Rua ..., Exequente- nos autos à margem cotados e aí melhor identificado, notificado que foi para o efeito, vem muito respeitosamente,
expor e requerer:
1.º
É ao Agente de execução que cabe a confirmação da existência ou não de Embargos de executado.
2.º
Não esteve na disposição do Exequente a confirmação da entrada dos embargos já que deles apenas foi notificado a 16/11/2023.
3.º
A 29/09/2023, vem o Ilustre agente de Execução solicitar que informem se havia sido deduzida oposição.
4.º
Solicitação que não obteve qualquer resposta por parte do tribunal, muito embora já a oposição tivesse entrado há 10 dias.
5.º
Por sua vez o Exequente foi notificado da transferência a dia 10/10/2023.
6.º
E a 19/10/2023 procede-se à Extinção da execução.
7.º
Ora, nenhuma destas movimentações processuais dependeu do Exequente.
8.º
Pelo que a ter que se devolver o dinheiro, deve este ser devolvido pelo agente de execução, eventualmente com recurso aos seguros profissionais obrigatórios.
9.º
Desde logo porque sendo o Exequente um Condomínio, o Administrador procedeu ao pagamento das diversas dívidas que o mesmo tinha, nomeadamente de obras, que a qualquer momento acarretariam um processo de cobrança coerciva.
10.º
Do que resulta, que o Exequente através do seu Administrador, poderá juntar um extrato bancário em como já não dispõe da totalidade do montante penhorado.
11.º
Nem tinha de dispor já que foi notificado da extinção da instância.
12.º
Assim, a serem assacadas responsabilidades, devem as mesmas ser assacadas a quem cometeu a nulidade não ao Exequente, já que mesmo que quisesse não poderia devolver a quantia global, porque a usou para pagar dívidas do condomínio.
13.º
Acresce que para devolver o montante penhorado o administrador teria de convocar uma assembleia para informar os condóminos do motivo da subtração do referido valor da conta do condomínio.
14.º
Pelo que se torna absolutamente impossível a devolução de uma quantia que já não existe, e que não existe não por dolo já que o administrador com a extinção da Execução ficou convicto que poderia alocar a quantia ao pagamento das dívidas que o Exequente detinha.
Nestes termos, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exa., deverá o presente requerimento ser recebido e, em consequência – e assegurando-se a normal, mas célere, tramitação dos presentes autos –, ser o Agente de Execução chamado a responsabilizar-se pelo lapso que deu causa, com todos os efeitos legais daí advenientes.
R)
Sendo proferido a 22/01/2024 o seguinte despacho com a referência n.º 130995181:
“Req. Ref.ª Elect.ª 15446110, de 14.12:
Considerando que relativamente ao determinado no despacho datado de 27-11-2023 se mostra esgotado o poder jurisdicional sobre tal matéria, tendo tal decisão revestido a força de caso julgado formal, prevista no art. 620.º, n.º 1, do Novo Código de Processo Civil, incumbe ao Exequente repor aos autos a quantia que lhe foi indevidamente entregue, porquanto dela beneficiou.
Nesta conformidade, indefere-se o requerido.
Consequentemente, notifique o Exequente para, no prazo de dez dias, devolver ao processo todos os valores que lhe foram entregues indevidamente, devendo estes manter-se no processo, até ao trânsito em julgado da decisão que incidir sobre os embargos deduzidos nos autos, sob pena de condenação em multa (cfr. art. 417.º, n.ºs 1 e 2 do Novo Código de Processo Civil).”
S)
A 20/02/2024 voltou o Exequente a fazer um novo Requerimento (com a ref. n.º 15763276) onde se pode ler:
“Ex.mo Senhor
Dr. Juiz de Direito
AA, no processo à margem referenciado em que é Executado, notificado do douto despacho que antecede, vem informar que o Exequente não repôs a quantia que levantou indevidamente e, portanto, não cumpriu com o ordenado por V. Exa no prazo que lhe foi concedido; em conformidade, vem requerer que lhe sejam arrestados bens, nomeadamente as quotas mensais ou anuais do condomínio (vencidas e vincendas), até perfazer todos os valores que lhe foram entregues indevidamente (€ 11.300,00) e de que beneficiou.
Mais vem requerer a condenação em multa (artº 417º, nº 1 e 2 CPC).”
T)
Não foi o Executado convidado a exercer o contraditório nem quanto ao facto de não ter devolvido a quantia, nem quanto ao facto de se requerer o arresto dos seus bens.
U)
Consequentemente foi proferido o seguinte despacho do qual se Recorre a 23/04/2024 e com a referência n.º 132512269:
“Considerando que o Exequente não devolveu ao processo, no prazo que lhe foi concedido, os valores que lhe foram entregues indevidamente, condeno o mesmo na multa de 2 Uc’s, por falta de colaboração para com o Tribunal (cfr. art. 417.º, n.ºs 1 e 2 do Novo Código de Processo Civil).
***
Nos termos do disposto no art. 771.º, n.º 2 do Novo Código de Processo Civil, ordena-se o arresto em bens do Exequente, até perfazer todos os valores que lhe foram entregues indevidamente (€ 11.300,00) e de que beneficiou.
Notifique.” (sublinhado e negrito nossos)
V)
Vem o Exequente recorrer do último despacho de 23/04/2024, porque a) o exequente não tem como devolver a quantia entregue, b) o Exequente não é depositário da quantia, c) trata-se de uma decisão surpresa, d) o Agente de execução não entregou ao Exequente 11.300,00€.
***
W)
Nem o Administrador, (ou mesmo o Exequente) nem a ora signatária tinham como saber de uma oposição cujo apenso só foi criado em Novembro de 2023 a 08/11/2023 com a referência n.º 129858130 no apenso A (1009/23.1T8OVR-A).
X)
Pelo que quando lhe são entregues os resultados da penhora e quando é decretada a Extinção da Execução, notificada ao Exequente o mesmo legitimamente alocou essa quantia ao pagamento de serviços e fornecedores do Condomínio.
Y)
O condomínio não tem uma linha de Crédito, é impossível essa devolução senão através da aprovação de uma quota-extra para todos os condóminos.
Z)
Tendo de se convocar uma Assembleia Extraordinária para se deliberar a aprovação de uma quota extra para devolução de uma quantia que erradamente foi entregue, e esperar que todos os condóminos aprovem essa deliberação e a cumpram.
AA)
A responsabilidade pelo sucedido é do Agente de Execução que não poderia ter entregue os resultados sem a obtenção de uma resposta quanto à dedução de oposição pelo Executado,
BB)
É a este sujeito que devem ser assacadas responsabilidades, nomeadamente obrigando-se o mesmo a acionar o seu seguro profissional, já que foi lapso seu.
CC)
Pelo que não se aceita, a multa de dois UC’s, assim como não se aceita que não seja o Agente de Execução chamado a assumir a responsabilidade, eventualmente por via do seu seguro profissional, e muito menos se aceita que sejam as contas do condomínio arrestadas quando não só não há título que o motive como se trata de uma decisão surpresa e sem fundamento legal.
***
DD)
Pode ler-se no despacho recorrido de 24/04/2024:
“(...) Nos termos do disposto no art. 771.º, n.º 2 do Novo Código de Processo Civil, ordena-se o arresto em bens do Exequente, até perfazer todos os valores que lhe foram entregues indevidamente (€ 11.300,00) e de que beneficiou.”
EE)
Ora nos termos do referido dispositivo a que se socorreu o Mmo. Juíz, art. 771.º n.º2 do CPC pode ler-se:
“Se o depositário não apresentar os bens que tenha recebido dentro de cinco dias e não justificar a falta, é logo ordenado pelo juiz arresto em bens do depositário suficientes para garantir o valor do depósito e das custas e despesas acrescidas, sem prejuízo de procedimento criminal.”
FF)
A figura jurídica definida para “representar” o tribunal neste ato é o fiel depositário. O fiel depositário é aquele que fica responsável pelo bem penhorado e promove a sua guarda.
GG)
Como é que de Exequente que recebeu os resultados aquando da extinção da execução o mesmo passou a depositário?
HH)
Nos termos do art 764.º n.º 1 “A penhora de coisas móveis não sujeitas a registo é realizada com a efetiva apreensão dos bens e a sua imediata remoção para depósito, assumindo o agente de execução que realizou a diligência a qualidade de fiel depositário.”
II)
Assim, não sendo o Executado depositário da quantia que recebeu em virtude da extinção da instância, será depositário aquele que a lei estabelece como tal, ou seja, o Agente de execução nos termos do art. 764.º n.º 1 do CPC.
JJ)
Devendo ser este arrestado, e não o Executado, que nunca foi designado como depositário.
KK)
Ainda que venha o mesmo a ter um direito de regresso sobre o Executado, questão que não se pode decidir nos presentes autos.
LL)
O Exequente recebeu os resultados da penhora nessa qualidade, não foi designado depositário nos termos do art. 756.º, pelo que se não lhe pode aplicar o art. 771.º n.º 2 do CPC
***
MM)
Foi proferido a 22/01/2024 o seguinte despacho com a referência n.º 130995181:
“Req. Ref.ª Elect.ª 15446110, de 14.12:
Considerando que relativamente ao determinado no despacho datado de 27-11-2023 se mostra esgotado o poder jurisdicional sobre tal matéria, tendo tal decisão revestido a força de caso julgado formal, prevista no art. 620.º, n.º 1, do Novo Código de Processo Civil, incumbe ao Exequente repor aos autos a quantia que lhe foi indevidamente entregue, porquanto dela beneficiou.
Nesta conformidade, indefere-se o requerido.
Consequentemente, notifique o Exequente para, no prazo de dez dias, devolver ao processo todos os valores que lhe foram entregues indevidamente
, devendo estes manter-se no processo, até ao trânsito em julgado da decisão que incidir sobre os embargos deduzidos nos autos,
sob pena de condenação em multa (cfr. art. 417.º, n.ºs 1 e 2 do Novo Código de Processo Civil).
” (sublinhado e negrito nossos)
NN)
No supracitado despacho o Exequente não foi equiparado a depositário nem a consequência para a não devolução do que lhe foi entregue seria o arresto das suas contas, antes a aplicação de uma multa.
OO)
Já no despacho de que se Recorre de 23/04/2024:
“(...)
Nos termos do disposto no art. 771.º, n.º 2
do Novo Código de Processo Civil,
ordena-se o arresto em bens do Exequente
, até perfazer todos os valores que lhe foram entregues indevidamente (€ 11.300,00) e de que beneficiou.” (sublinhado e negrito nossos)
PP)
Pelo que nem sequer se deu ao Exequente de exercer o contraditório quanto à sua designação como depositário, que não é nem pode ser, nem quanto ao arresto já que a consequência do despacho anterior era a condenação em multa.
QQ)
Com este despacho o Exequente aqui Recorrente, foi confrontado com uma decisão com que não poderia contar, com fundamentos que não perspetivou de uma decisão que não era esperada com violação do preceituado no n.º 3 do art. 3.º do CPC.
RR)
Ao ordenar o arresto dos bens do condomínio por força da sua equiparação à figura de depositário, o Mmo. Juiz proferiu uma decisão surpresa, uma nulidade processual em conformidade com o disposto no artigo 195.º do CPC pelo que deve a mesma ser anulada.
***
SS)
No despacho de que se Recorre de 23/04/2024 foi ordenado o arresto de 11.300,00€:
“(...)
Nos termos do disposto no art. 771.º, n.º 2
do Novo Código de Processo Civil,
ordena-se o arresto em bens do Exequente
, até perfazer todos os valores que lhe foram entregues indevidamente (€ 11.300,00) e de que beneficiou.” (sublinhado e negrito nossos)
TT)
O Sr. Agente de Execução fez a 09/10/2023 o levantamento dos seus honorários (ref n.º 15137286) no montante de 1.170,74€, entregando a 11/10/2023 apenas o valor de 9.977,59€ (ref n.º 15137289) ao Exequente.
UU)
Ou seja, o Exequente/Recorrente, devolve o que recebeu e o que não recebeu.
VV)
Pelo que ter que ser devolvido pelo Exequente qualquer quantia, o que se não concebe, devendo em primeira instância ser o Agente de Execução chamado a ativar o seu seguro profissional, sempre terá de o ser na exata medida do que lhe foi entregue, ou seja 9.977,59€ e não 11.300,00€.
”
Não houve resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e no efeito meramente devolutivo.
Ordenou-se a notificação do recorrente e da Sra. Advogada subscritora do recurso para em dez dias juntarem aos autos procuração forense com ratificação do processado.
Em 02 de abril de 2025, foi requerida a junção aos autos de procuração forense a favor da Sra. Advogada subscritora do recurso, com ratificação do processado, procuração que foi admitida, julgando-se ratificado todo o processado.
Uma vez que o objeto do recurso é de natureza estritamente jurídica e que as questões decidendas se revestem de simplicidade, com o acordo dos restantes membros do coletivo dispensaram-se os vistos, cumprindo agora apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil)
[9]
, por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da obrigação de o Sr. Agente de Execução restituir o valor entregue ao exequente;
2.2 Da revogação do arresto e do montante a restituir.
3. Fundamentos de facto
Os factos necessários e suficientes para conhecimento do objeto do recurso constam do relatório deste acórdão e resultam destes autos, bem como daqueles donde foram extraídos e ainda dos processos apensados a estes últimos, autos que nesta vertente estritamente adjetiva têm força probatória plena.
4. Fundamentos de direito
4.1 Da obrigação de o Sr. Agente de Execução restituir o valor entregue ao exequente
A recorrente pede a revogação da decisão recorrida e que se ordene ao Sr. Agente de Execução que restitua o montante que indevidamente pagou ao exequente, pois que foi ele que procedeu à entrega da quantia de € 9 977,59 à exequente e extinguiu a ação executiva sem obter informação da Secretaria Judicial sobre a existência ou não embargos de executado.
Cumpre apreciar e decidir.
A ora recorrente requereu em 12 de dezembro de 2023 que o Sr. Agente de Execução seja chamado a responsabilizar-se pelo lapso a que deu causa, com todos os efeitos legais daí advenientes, tendo em 22 de janeiro de 2024 sido proferido despacho a indeferir esta pretensão. Este despacho não foi impugnado pelo que transitou em julgado.
Deste modo, a recorrente não pode “ressuscitar” uma questão que já colocou ao tribunal
a quo
e que obteve resposta negativa desse tribunal mediante decisão transitada em julgado.
O caso julgado é uma exceção dilatória (artigos 576º, nº 2 e 577º, alínea i), ambos do Código de Processo Civil) de conhecimento oficioso (artigo 578º, do Código de Processo Civil), obstando a que este tribunal
ad quem
conheça desta questão recursória.
Assim, o respeito do caso julgado formado sobre esta questão determina necessariamente o não conhecimento desta questão recursória.
4.2 Da revogação do arresto e do montante a restituir
A recorrente pugna pela revogação da decisão que decretou o arresto em virtude de não ser depositária, não lhe sendo aplicável o disposto no nº 2 do artigo 771º do Código de Processo Civil e, além disso, não deve ser condenada a restituir montante superior ao que recebeu.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no nº 2 do artigo 771º, do Código de Processo Civil, “[s]e o depositário não apresentar os bens que tenha recebido dentro de cinco dias e não justificar a falta, é logo ordenado pelo juiz arresto em bens do depositário suficientes para garantir o valor do depósito e das custas e despesas acrescidas, sem prejuízo do procedimento criminal.”
No caso dos autos, o exequente recebeu do agente de execução a quantia de € 9 977,59, a título de pagamento da quantia exequenda, ao abrigo do disposto no nº 13 do artigo 780º do Código de Processo Civil, tendo, entretanto, sido notificado da extinção da ação executiva.
O Sr. Agente de Execução procedeu ao referido pagamento sem receber qualquer confirmação por parte da secretaria judicial da inexistência de qualquer oposição à ação executiva, não obstante tenha solicitado essa informação em 29 de setembro de 2023.
Sendo o crédito exequendo de valor inferior a cento e noventa unidades de conta, não era admitida reclamação de crédito (artigo 788º, nº 4, alínea b) do Código de Processo Civil), pelo que o Sr. Agente de Execução podia proceder ao pagamento ao exequente logo que tivesse informação segura da não dedução de oposição.
Por circunstâncias que os autos não deixam transparecer, os embargos de executado deduzidos em 19 de setembro de 2023, apenas foram apensados à ação executiva em 02 de novembro de 2023
[10]
.
Neste circunstancialismo processual conclui-se que o Sr. Agente de Execução cometeu um erro ao proceder ao pagamento ao exequente da quantia de € 9 977,59 sem ter informação da secretaria judicial da não dedução de oposição à execução por parte do executado, tal como o exequente recebeu um pagamento a que ainda não tinha direito, embora aquando desse recebimento não dispusesse de quaisquer dados que pudessem suscitar dúvidas sobre a regularidade do pagamento realizado pelo Sr. Agente de Execução.
Ao receber a referida importância, o exequente não foi constituído depositário nem tinha de ser pois que se tratava da realização coerciva do crédito exequendo, mediante a entrega de parte do produto da penhora de depósitos bancários ao credor.
É assim claro que não está preenchida a previsão do nº 2 do artigo 771º do Código de Processo Civil, pelo que o arresto decretado não se pode manter ao abrigo deste normativo e, por outro lado, o requerimento do executado de 20 de fevereiro de 2024 que deu origem ao decretamento do arresto não reúne as condições legais para poder ser objeto de convolação em procedimento cautelar de arresto.
Procede assim este segmento desta questão recursória.
Vejamos agora a questão do montante a restituir.
Resulta da ação executiva que em 10 de outubro de 2023, o Sr. Agente de Execução transferiu o montante de € 9 977,59 para a conta bancária do exequente, havendo para si a quantia de € 1 170,74, a título de honorários.
Neste enquadramento factual é notório que o exequente não tem de devolver à ação executiva a quantia de € 11.300,00, como afirma o tribunal
a quo
na decisão recorrida, pois que apenas recebeu € 9.977,59, tendo o Sr. Agente de Execução havido para si, a título de honorários, a quantia de € 1.170,74 e ficando um remanescente que seria para restituir ao executado.
Pelo exposto, o recurso procede parcialmente, pois que improcede quanto à primeira questão recursória e procede relativamente a esta última questão recursória, sendo as custas na proporção de metade a cargo do recorrente, sendo a metade restante da responsabilidade dos recorridos habilitados em virtude de o seu antecessor ter dado causa à decisão recorrida (artigo 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelo
Condomínio Rua ...
e, em consequência, com fundamento em caso julgado, não se conhece da questão referente à obrigação de o Sr. Agente de Execução restituir à ação executiva o valor entregue ao exequente, revoga-se o despacho recorrido que decretou o arresto de bens do recorrente e que determinou que o valor a restituir era de € 11 300,00, cingindo-se a obrigação de restituir a cargo do exequente ao montante de € 9 977,59 (
nove mil novecentos e setenta e sete euros e cinquenta e nove cents
).
Custas na proporção de metade a cargo do recorrente, sendo a metade restante da responsabilidade dos recorridos habilitados em virtude de o seu antecessor ter dado causa à decisão recorrida, aplicando-se a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
***
O presente acórdão compõe-se de quinze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.
Porto, 28/4/2025
Carlos Gil
Jorge Martins Ribeiro
José Nuno Duarte
____________________________
[1]
AA faleceu em ../../2024 e em 11 de fevereiro de 2025 foi proferida sentença em incidente de habilitação de herdeiros, já transitada em julgado, que julgou habilitados como sucessores do falecido seus filhos DD, EE e FF.
[2]
Porém, inexplicavelmente, o termo de apensação dos embargos à ação executiva está datado de 02 de novembro de 2023.
[3]
Decisão notificada às partes por via postal registada em 19 de outubro de 2023.
[4]
Notificado às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 28 de novembro de 2023.
[5]
Notificado às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 24 de janeiro de 2024.
[6]
Notificado às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 23 de abril de 2024.
[7]
No requerimento de interposição de recurso o recorrente identifica-se como
Condomínio Rua ...
.
[8]
No final das conclusões o recorrente pede que se: “
1) Ordene ao Agente de Execução enquanto depositário que restitua o valor que indevidamente entregou, caso assim não se entenda 2) ser o despacho 132512269 substituído por outro onde o Exequente apenas é condenado em multa e não ao arresto por não ser depositário e à devolução de apenas 9.977,59€.
”
[9]
Na conclusão RR o recorrente arguiu a nulidade processual decorrente de não ter sido ouvida sobre a viabilidade de arresto em bens da sua titularidade requerido pelo executado para garantir a restituição das importâncias que lhe foram entregues pelo Agente de Execução. Porém, no pedido que formula a final não pede qualquer anulação, restringindo as suas pretensões recursórias à obrigação de o Sr. Agente de Execução restituir as quantias indevidamente entregues à exequente e à revogação do arresto por não ter a qualidade de depositária e, ainda, em todo o caso, de redução do montante a restituir ao montante efetivamente recebido. Neste contexto e tendo ainda em atenção que o arresto é um procedimento em que o contraditório é diferido, não se entendeu que a aludida nulidade processual fosse uma das questões a decidir neste recurso.
[10]
Sublinhe-se que o embargante requereu a apensação dos embargos à ação executiva, identificando esta de forma correta no formulário com que deu entrada aos embargos.
|
TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/4550f3c9add41c8180258c84004c46de?OpenDocument
|
1,736,812,800,000
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CONFIRMADA
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2656/24.0T8LRA.C1
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2656/24.0T8LRA.C1
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MARIA JOÃO AREIAS
|
I – Tendo ficado assente a taxatividade do elenco do artigo 49º do CIRE com a nova redação da Lei 9/22, continua a justificar-se a ponderação da suscetibilidade de alargamento, por via interpretativa, do “elenco de pessoas especialmente relacionadas com o devedor”.
II – Em sede interpretativa, haverá que ter em consideração as razões que estão na base da enumeração constante do artº 49º - a situação de superioridade informativa sobre a situação económico-financeira do devedor e que possam influenciar o comportamento deste.
III – A existência de um controlo comum a ambas as sociedades – resultante de uma total coincidência entre os gerentes da sociedade credora e os administradores da sociedade devedora –, é, pela capacidade de influência direta nos destinos da sociedade devedora, suscetível de integrar uma relação de domínio nos termos do art. 21º, nº1 do CVM, suscetível de lhe atribuir o estatuto de pessoa especialmente relacionada com a devedora.
(Sumário elaborado pela Relatora)
|
[
"PROCEDIMENTO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO",
"PESSOA ESPECIALMENTE RELACIONADA COM O DEVEDOR",
"ALARGAMENTO POR VIA INTERPRETATIVA",
"RELAÇÃO DE DOMÍNIO",
"CRÉDITOS SUBORDINADOS",
"RECUSA DE HOMOLOGAÇÃO DO ACORDO EXTRAJUDICIAL"
] |
Relator: Maria João Areias
1º Adjunto: Chandra Gracias
2º Adjunto: Catarina Gonçalves
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO
A..., Lda., apresentou-se a procedimento especial de Revitalização (PER), pedindo a
homologação de acordo extrajudicial de recuperação
, assinado com credores representando a maioria de votos prevista nas als. b) e c) do nº 5 do artigo 17º - F do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Juntou a identificação dos credores e documentou acordo por escrito obtido com credores que representam a maioria dos votos prevista nas als. b) e c) do nº 5 do art. 17º-F, CIRE.
Apresentada pelo Administrador Judicial Provisório a
Lista Provisória de Créditos
, nos termos do art. 17º-D, nº 4, do CIRE, a mesma foi objeto de impugnação por parte do credor iapmei, com os seguintes fundamentos:
o crédito das credoras B..., Lda., e C..., Lda., é um crédito de natureza subordinado, por serem pessoas especialmente relacionadas com a devedora, atendendo que o conselho de administração da devedora é composto exatamente pelas mesmas pessoas que administram/gerem as empresas credoras que apresentaram o acordo extrajudicial neste processo;
os créditos subordinados não são considerados no apuramento dos votos nas subalíneas ii) das alíneas b) e c) do nº 5 do art. 17º-F, não se encontrando, assim, o acordo extrajudicial aprovado;
mais requer a não homologação do acordo extrajudicial, alegando que o crédito do IAPMEI, uma vez classificados os créditos das empresas “B...” e “C...” como créditos subordinados, é ressarcido de uma forma muitíssimo mais vantajosa no caso da declaração da insolvência da empresa.
O Srº AJP veio responder, alegando:
o crédito por si reconhecido à credora B..., Lda., no montante de 942.500,00 €, de natureza garantida, está relacionado com empréstimos para a construção de unidade fabril, existindo hipoteca voluntária sobre os imóveis da devedora;
também se verifica a existência da Confissão de Dívida com Penhor Mercantil entre a Devedora e a B..., Lda.;
não existe qualquer relação de subordinação entre a credora B..., Lda. e a A..., S.A., não se verificando nenhuma das situações taxativamente referidas no art. 49º, nº 2, als. a), b), c) e d) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
relativamente aos créditos reconhecidos à credora C..., no montante de 773.611,25 €, cuja natureza do crédito é garantida no montante de 433.839,09 € e subordinado, no montante de 339.772,16 €;
o crédito garantido está relacionado com a cessão de créditos, ocorrida no dia 16.04.2019, por parte do Banco 1..., SA à credora C..., SA., sendo que, tratando-se de uma cessão de créditos com mais de 2 anos, o crédito é de natureza garantida.
Pelo juiz
a quo
foi proferido Despacho, ao abrigo do disposto no artigo 17º- I, nº 4, a
recusar a homologação do acordo extrajudicial
apresentado pela requerente A..., SA.
*
Inconformada com tal decisão, a devedora A...., S.A., dela interpôs recurso de
Apelação
, sintetizando a sua motivação com as seguintes
conclusões
:
(…).
*
Não foram apresentadas
contra-alegações
ao recurso
*
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
*
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se a decisão recorrida errou ao considerar subordinado o crédito da B... ao abrigo do disposto no artigo 49º, nº2, al. b) do CIRE.
2. Se a decisão recorrida, ao considerar que o Plano de Revitalização não respeita o princípio da igualdade entre os credores, violou o disposto nos arts. 195º e 215º, ambos do CIRE
*
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Na sentença sob recurso, o tribunal
a quo
, teve em consideração os
seguintes factos
, que entendeu de relevo para a decisão das questões em causa:
1º- A requerente A..., S.A. foi constituída, em 2013, como sociedade por quotas com o capital social de €500,00 e tinha como sócios D... SGPS, Lda e AA SGPS, SA.
2º- Por deliberação de 29.08.2013 a gerência foi atribuída a:
- BB;
- CC;
- AA;
3º- O capital social da A..., S.A. encontra-se dividido atualmente por cinco acionistas:
- BB com 5 acções;
- CC com 5 acções;
- AA com 5 acções;
- D..., S.A. com 178.996 acções;
- E..., SGPS, S.A. com 89.498 acções;
4º- A D..., S.A. detém participações sociais nas seguintes sociedades:
a) F..., S.A., cujo participação social representa 75% do Capital Social – Capital Social total da sociedade de 1.805.000,00 €;
b) C..., S.A., cuja participação social representa 60% do Capital Social – Capital Social total da sociedade de 500.001,00 €;
c) G..., Unipessoal Lda., cuja participação social representa 100% do Capital Social – Capital Social total da sociedade de 500,00 €;
d) H..., Lda, cuja participação social representa 33,33% do Capital Social –Capital Social total da sociedade de 5.001,00 €.
5) - A E..., SGPS, S.A. detém participações sociais nas seguintes sociedades:
AA) I..., S.A., cuja participação social representa 97,99% do Capital Social – Capital Social total da sociedade de 50.000,00 €;
BB) J..., S.A., cuja participação social representa 49,50% do Capital Social – Capital Social total da sociedade de 50.000,00 €;
CC) H..., Lda, cuja participação social representa 33,34% do Capital Social – Capital Social total da sociedade de 5.001,00 €.
DD) K..., S.A. (anteriormente designada L..., S.A.), cuja participação social representa 48% do Capital Social – Capital Social total da sociedade de 50.000,00 €;
EE) F..., S.A., cuja participação social representa 22% do Capital Social – Capital Social total da sociedade de 1.805.000,00 €;
FF) M..., Lda., cuja participação social representa 20,02% do Capital Social – Capital Social total da sociedade de 100.000,00 €;
GG) C..., S.A., cuja participação social representa 30% do Capital Social – Capital Social total da sociedade de 500.001,00 €;
II) N..., Lda., cuja participação social representa 100% do Capital Social – Capital Social total da sociedade de 30.000,00 €.
6) - A sociedade A..., S.A. obriga-se com a assinatura conjunta de 3 administradores ou de um procurador, no âmbito dos poderes especiais que lhe tenham sido conferidos pelo Conselho de administração.
7) – A gerência e posteriormente a administração A..., S.A. esteve sempre atribuída às pessoas referidos em 2).
8)- A C..., SA, foi constituída como sociedade por quotas com o capital social de €5001,00 e tinha como sócios BB, CC, AA cada com uma quota no valor nominal de €1.667,00.
9) - Por deliberação de 21.01.2008 a gerência foi atribuída a:
- BB, CC e AA.
10)- Encontra-se registado pela Ap. ...28 um aumento do capital social para €50.001,00 e a alteração do contrato social, com os seguintes sócios:
- BB, com uma quota no valor nominal de €16.667,00 CC com uma quota no valor nominal de €16.667,00;
- AA, com uma quota no valor nominal de €16.467,00;
- DD com uma quota no valor nominal de €100,00;
- EE com uma quota no valor nominal de €100,00;
11) - Encontra-se registada pela Ap. ...31 a transformação da sociedade em sociedade anónima:
Número de ações 50.001
Valor nominal: €1.00
Forma de obrigar a sociedade: Pelas assinaturas conjuntas de 3 administradores ou pela assinatura de um procurador, no âmbito dos poderes especiais que lhe tenha sido conferido pelo Conselho de administração.
12)- A gerência e a administração C..., SA esteve sempre atribuída às pessoas referidos em 9).
13) - Pela Ap. ...16 foi registada a constituição da sociedade O..., Unipessoal, Lda, com o capital social de €1,00 que tinha como sócio e gerente CC,
14) - Pela Ap. ...02 foi registado um aumento do capital social para €500,00 e a alteração do contrato de sociedade para sociedade por quotas com a firma B..., Lda., passando a ser sócios:
- CC com uma quota no valor nominal de €187,50;
- BB com uma quota no valor nominal de €187,50;
- AA com uma quota no valor nominal €125,00.
15) - A gerência foi atribuída a:
- BB,
- CC,
- AA.
16) - Pela Ap. ...17 foi registado um aumento do capital da sociedade para €50.000,00 e transformação da sociedade em sociedade anónima e designação de membro social, passando a constar:
- Forma de obrigar: a) Pela assinatura conjunta de 3 administradores; b) pela assinatura de um procurador, no âmbito dos poderes especiais que lhes tenha sido conferido pelo Conselho de administração.
17) - Pela Ap. ...02 foi registada a transformação da sociedade para sociedade por quotas e designação dos membros do órgão social, tendo como sócios:
- CC com uma quota no valor nominal de €18.637,50;
- BB com uma quota no valor nominal de €18.637,50;
- FF com uma quota com o valor nominal de €12.425,00;
- P..., Unipessoal Lda. com uma quota com o valor nominal de €75.000;
- Títulos e Q..., Lda. com uma quota com o valor nominal de €225,00;
Forma de obrigar a intervenção conjunta de 3 gerentes ou de um procurador e um gerente.
18) - A gerência e administração da sociedade desde Outubro de 2017 esteve sempre atribuída a: BB, CC e AA.
19) - Por escritura pública denominada de “cessão de créditos hipotecários” outorgada ,no dia 16.04.2019, o Banco 1..., SA, na qualidade de cedente e CC, na qualidade de administrador da sociedade C..., SA, declarou aquele que é credor da sociedade A..., S.A. na importância de €349.040,50, crédito este decorrente de um contrato de mútuo celebrado em 10 de Novembro de 2014, por documento particular, no montante inicial de €520.000,00. Que para garantia do contrato de mútuo, o Banco é titular de hipoteca voluntária constituída pela sociedade A..., S.A sobre os seguintes imóveis:
-Prédio rustico, Pinhal, sito em ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na CRP ... sob o nº ...08 e inscrito na matriz rústica sob o artigo ...28.
- Prédio urbano, composto por armazém de um piso e logradouro, Lote ...1, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na CRP ... sob o nº ...57.
Que a referida hipoteca encontra-se registada a favor da Banco, pela inscrição Ap. ...14.
Que, pela presente escritura e pelo preço global de €359.040,56, já recebido, cede à sociedade C..., SA o crédito hipotecário, com todos os seus direitos, garantias e demais acessórios, sem qualquer reserva ou exceção, sendo, por isso, transmitidas para a cessionária a hipoteca incidente sobre os imóveis.
20) - Por escritura denominada “Confissão de dívida com hipoteca unilateral”, outorgada no dia 11.02.2020, AA, na qualidade de membro do conselho de administração e em representação da sociedade A..., SA declarou que, por esta escritura, confessa a sociedade A..., SA, que representa, devedora da quantia de setecentos mil euros à sociedade B..., Lda. A importância em dívida será exigível aquando da interpelação judicial extrajudicial para o efeito. Para garantia do mencionado empréstimo, a sociedade que representa, constitui segunda hipoteca voluntária unilateral a favor da sociedade B..., Lda. sobre os prédios referidos em 19).
21) - Por escritura denominada “Confissão de dívida com hipoteca voluntária unilateral” outorgada no dia 6.06.2024, CC e AA, em representação da sociedade A..., SA declararam que a sociedade A..., SA se confessa devedora da sociedade B..., Lda. da importância global de cento e noventa e sete mil euros. Que para garantia do capital em dívida, a sociedade que representam, constitui a favor da sociedade credora, hipoteca voluntária unilateral sobre os prédios referidos em 19).
22) - Sobre os prédios referidos em 19) encontram-se registados os seguintes ónus:
- A hipoteca voluntária registada pela AP. ...97 de 10.11.2014 a favor do Banco 1..., SA até ao montante máximo assegurado de €743.600,00.
- Cessão de créditos registada Ap. ...23 de 18.04.2019 a favor C..., SA, tendo como sujeito passivo o Banco 1..., SA.
- Hipoteca voluntária registada pela AP. ...98 de 13.02.2020 a favor da B..., SA até ao montante máximo assegurado de €750.000,00.
- Encontra-se pendente o registo de hipoteca voluntária pela Ap. ...94 de 6.06.2024.
23) – No acordo extrajudicial e no plano de recuperação juntos com o requerimento inicial, os quais se dão aqui como integralmente reproduzidos, consta, para além do mais, o seguinte:
1) Relativamente aos
Créditos Garantidos
, é proposto:
a) Quanto aos Créditos Garantidos da C..., S.A., é proposto:
i. Perdão integral de juros de mora, cláusulas penais, indemnizatórias e compensatórias, despesas de cobrança e comissões, que sejam devidos até à data do trânsito em julgado do Despacho da Homologação do Plano de Recuperação e do Acordo Extrajudicial de Recuperação;
ii. Capitalização dos juros remuneratórios que sejam devidos até à data do trânsito em julgado do Despacho da Homologação do Plano de Recuperação e do Acordo Extrajudicial de Recuperação;
iii. Cancelamento do penhor mercantil sobre o seguinte bem dado de penhor:
Descascador de Tambor, modelo TD12;
iv. Perdão de 10,00% do capital devido;
v. Carência de capital de 12 meses, contados a partir do mês seguinte ao trânsito em julgado do Despacho da Homologação do Plano de Recuperação e do Acordo Extrajudicial de Recuperação;
vi. Pagamento de 90,00% do capital devido em 7 prestações anuais, postecipadas, iguais e sucessivas, iniciadas no mês seguinte ao termo da carência;
vii. Pagamento de juros remuneratórios vincendos calculados a partir do trânsito em julgado do Despacho da Homologação do Plano de Recuperação e do Acordo Extrajudicial de Recuperação, à taxa fixa de 1,50 pontos percentuais;
b) Quanto aos Créditos Garantidos da B..., Lda., é proposto:
i. Perdão integral de juros de mora, cláusulas penais, indemnizatórias e compensatórias, despesas de cobrança e comissões, que sejam devidos até à data do trânsito em julgado do Despacho da Homologação do Plano de Recuperação e do Acordo Extrajudicial de Recuperação;
ii. Capitalização dos juros remuneratórios que sejam devidos até à data do trânsito em julgado do Despacho da Homologação do Plano de Recuperação e do Acordo Extrajudicial de Recuperação;
iii. Perdão de 10,00% do capital devido;
iv. Pagamento de 90,00% do capital devido, nos seguintes termos:
1. Dação em pagamento do equipamento dado em penhor mercantil sobre o seguinte bem: Descascador de Tambor, modelo TD12, ao qual é atribuído o valor líquido contabilístico atual, ou seja, 255.041,64 €;
2. Carência de capital de 12 meses, contados a partir do mês seguinte ao trânsito em julgado do Despacho da Homologação do Plano de Recuperação e do Acordo Extrajudicial de Recuperação;
3. O remanescente do valor será pago em 7 prestações anuais, postecipadas, iguais e sucessivas, iniciadas no mês seguinte ao termo da carência;
v. Pagamento de juros remuneratórios vincendos calculados a partir do transito emjulgado do Despacho da Homologação do Plano de Recuperação e do Acordo Extrajudicial de Recuperação, à taxa fixa de 1,50 pontos percentuais;
2) Relativamente aos
Créditos Comuns
da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDR - Centro) e do IAPMEI - Agência para a Competitividade e Inovação, I.P., é proposto:
a) Perdão integral de juros de mora, cláusulas penais, indemnizatórias e compensatórias, despesas de cobrança e comissões, que sejam devidos até à data do trânsito em julgado do Despacho da Homologação do Plano de Recuperação e do Acordo Extrajudicial de Recuperação;
b) Capitalização dos juros remuneratórios que sejam devidos até à data do trânsito em julgado do Despacho da Homologação do Plano de Recuperação e do Acordo Extrajudicial de Recuperação;
c) Perdão de 75,00% do capital devido;
d) Carência de capital de 36 meses, contados a partir do mês seguinte ao trânsito em julgado do Despacho da Homologação do Plano de Recuperação e do Acordo Extrajudicial de Recuperação;
e) Pagamento de 25,00% do capital devido em 7 prestações anuais, postecipadas, iguais e sucessivas, iniciadas no mês seguinte ao termo da carência;
f) Pagamento de juros remuneratórios vincendos calculados a partir do transito em julgado do Despacho da Homologação do Plano de Recuperação e do Acordo Extrajudicial de Recuperação, à taxa fixa de 1,50 pontos percentuais;
3) Relativamente aos
Créditos Subordinados
da C..., S.A., é proposto:
a) Perdão integral de juros de mora, cláusulas penais, indemnizatórias e compensatórias, despesas de cobrança e comissões, que sejam devidos até à data do trânsito em julgado do Despacho da Homologação do Plano de Recuperação e do Acordo Extrajudicial de Recuperação;
b) Capitalização dos juros remuneratórios que sejam devidos até à data do trânsito em julgado do Despacho da Homologação do Plano de Recuperação e do Acordo Extrajudicial de Recuperação;
c) Perdão de 95,00% do capital devido;
d) Carência de capital de 36 meses, contados a partir do mês seguinte ao trânsito em julgado do Despacho da Homologação do Plano de Recuperação e do Acordo Extrajudicial de Recuperação;
e) Pagamento de 5,00% do capital devido em 7 prestações anuais, postecipadas, iguais e sucessivas, iniciadas no mês seguinte ao termo da carência, subordinado ao prévio pagamento aos demais credores;
f) Pagamento de juros remuneratórios vincendos calculados a partir do transito em julgado do Despacho da Homologação do Plano de Recuperação e do Acordo Extrajudicial de Recuperação, à taxa fixa de 1,50 pontos percentuais”.
24º- Na lista provisória de créditos o Srº Administrador Judicial Provisório reconheceu os seguintes créditos:
- Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro um crédito no montante de 261.566,19 €, com natureza de comum.
- IAPMEI - Agência para a Competitividade e Inovação, I.P um crédito no montante de 775.014,52 €, com natureza de comum.
- B..., Lda. um crédito no montante de 942.500,00 €, com natureza de garantido.
- C..., S.A um crédito no montante de 773.611,25 €€, sendo 339.772,16 € com natureza de subordinado e 433.839,09 € garantido.
*
A Sentença recorrida recusou a homologação do plano de revitalização apresentado, fundamentando tal recusa em duas distintas ordens de razões:
a) considerando a credora B..., Lda., uma “
pessoa especialmente relacionada com a devedora
”, ao abrigo de uma interpretação extensiva da al. b), do nº2 do artigo 49º, CIRE, o que acarreta a qualificação de tal crédito como
subordinado
[artigo 48º, al. a)], o acordo judicial não respeita as maiorias exigidas previstas nas alíneas. b) ou c) do nº5 do art. 17º-F do CIRE.
b) ainda que se tivesse em consideração a natureza de garantido do crédito da B... e que, por isso, o acordo extrajudicial alcançava as maiorias exigidas para a sua homologação, este não podia ser homologado por violação do princípio da igualdade.
*
a) Se a credora B..., Lda., pode ser considerada “pessoa especialmente relacionada pelo devedor”, por via de uma interpretação extensiva do artigo 49º, nº2, al. b), do CIRE
O tribunal
a quo
, considerou que a credora B..., Lda é uma
pessoa especialmente relacionada com a requerente/devedora
, apoiando-se numa
interpretação extensiva do artigo 49º, nº2, alínea b), do CIRE
, o que acarretaria a qualificação do seu crédito subordinado, com a seguinte fundamentação:
“(…)
O
art. 49º, nº 2, al. c)
do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas refere que são ainda havidos como especialmente relacionados com o devedor “os administradores, de direito ou de facto, do devedor e aqueles que o tenham sido em algum momento nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.
O que,
conjugado com a al. b)
tem sido considerado pela jurisprudência, como fundamento para a integração dos casos em que a gerência da sociedade credora e da devedora é exercida, pela mesma pessoa (neste sentido Ac. RL de 29.05.2008, proc. nº 1548/2008-2, de 2.02.2010, proc. º 171/07.5TBOBR-C.C1, de 20.6.2017, proc. nº 810/16.7T8PDL-D.L1-7 e da RL de 31.10.2023, proc. nº 10242/23.5T8SNT e da RP de 30.01.2024, proc. nº 1763/23.9T8VNG.P1, estes dois últimos em que os gerentes e sócios eram os mesmos, todos in www.dgsi.pt), como é o caso.
Na verdade,
os gerentes da credora B..., Lda. são os administradores da requerente do PER
, obrigando-se quer a credora quer a requerente com
as mesmas pessoas
.
Aliás repare-se que quer
o acordo extrajudicial
junto, quer a
declaração da requerente e das credoras para encetarem negociações
foram
subscritas pelas mesmas pessoas
da parte da requerente e da parte das credoras.
Os gerentes da credora e os administradores da requerente/devedor têm essa qualidade os primeiros desde 2017 e a requerente/devedora desde a constituição da sociedade requerente.
A credora B..., Lda. e a requerente do processo especial de revitalização são sociedades comerciais.
E foi um dos administradores da requerente e gerente da credora que, representando a sociedade requerente, outorgou a escritura de confissão de dívida e constituição de hipoteca de 6.06.2024 (um mês antes de a requerente se apresentar a PER) e dois administradores da requerente/devedora e gerentes da credora que outorgaram a escritura de confissão de dívida e constituição de hipoteca outorgada em 11.02.202.
A credora B..., Lda, por intermédio dos seus gerentes que eram simultaneamente administradores da requerente/devedora,
conhecia como não podia deixar de ser a situação económica, patrimonial e financeira da requerente
. A administração e representação, nas sociedades por quotas cabe à gerência nos termos do art. 252º, nº 1, do CSC e nas sociedades anónimas ao conselho de administração (art. 405º do CSC); Administradores que têm poderes e competência para praticar todos os actos de administração e de disposição (art. 406º do CSC)
Assim, o critério para a classificação dos créditos não pode confinar-se à diferente identidade jurídica das partes. Tem de relevar o facto de que quem manifestou a vontade de conceder e contrair os créditos foram as mesmas pessoas singulares que formaram e manifestaram a vontade de ambas as sociedades.
As pessoas que vinculam a sociedade credora
são as mesmas que vinculam a devedora.
É certo que a constituição dos créditos foi entre sociedades
e não entre os administradores e gerentes de ambas sociedades, razão pela qual, em termos estritamente literais, dir-se-ia que não se verifica nenhuma das alíneas do art. 49º, nº 2 do CIRE, nomeadamente a al. b) e c).
E, assim, teríamos a constituição de créditos entre duas sociedades, representadas pelas mesmas pessoas, actuando estas
em representação orgânica de ambas as sociedades
, mas em que apenas os gerentes/administradores relevariam como pessoas especialmente relacionadas.
Deste modo, ocorrendo a constituição do crédito e consequente dívida entre duas sociedades, só na hipótese do art. 49º, nº 2, al. b) do CIRE poderia haver pessoas especialmente relacionadas com o devedor, uma vez que os representantes/administradores/gerentes das sociedades, não sendo eles próprios a sociedade, não relevariam para tal efeito.
Porém, salvo o devedor respeito por opinião contrária, não podemos concordar.
Por
interpretação extensiva
, sendo os intervenientes na constituição do crédito sociedades (pessoas colectivas), o relacionamento especial de que fala o art. 49º, nº 2, al.s b) e c) do CIRE tem que se haver por estabelecido se os
gerentes e administradores
forem comuns a ambas as sociedades
.
(…).
A Lei nº 9/2022, de 11.01 veio efectivamente pôr termo à discussão consagrando a positivação da taxatividade relativa ao elenco das pessoas especialmente relacionadas com o devedor.
No entanto, apesar da alteração, ainda é possível recorrer a uma
interpretação extensiva
, porquanto, estando-se perante uma norma excepcional, encontra-se vedado o recurso à integração analógica (art. 11º do Código Civil). Como refere Miguel Teixeira de Sousa “Nada parece impedir a interpretação extensiva das enumerações taxativas, desde que respeitados os limites impostos pelos elementos de interpretação enunciados no artigo 9º do Código Civil” (Resolução em benefício da massa insolvente por contrato celebrado com pessoa especialmente relacionada com o devedor – Ac. de Uniformização de Jurisprudência nº 15/2014, de 13.11.2014, proc. 1936/10, Cadernos de Direito Privado, nº 50, pág. 46 e ss).
Como se refere no Ac. da RC de 13.05.2012, proc. n.º 885/09.5T2AVR.C1, in www.dgsi.pt “A interpretação extensiva verifica-se, pois, sempre que a letra da lei se refira à espécie e o seu significado deva abarcar, por imposição dos elementos não literais da interpretação, o género ou sempre que a letra de uma tipologia taxativa respeita a um ou a alguns subtipos e o seu significado deva abranger, pelo mesmo motivo, outros subtipos do mesmo tipo.
A interpretação extensiva é, portanto, uma interpretação praeter litterum, dado que a dimensão pragmática da lei vai além da sua dimensão semântica e tem subjacente um juízo de agregação – o que vale para a parte deve valer para o todo.
Como daqui decorre, a interpretação extensiva, assume, regra geral, a forma de extensão teleológica: a própria razão de ser da lei reclama a aplicação aos casos que não são directamente abrangidos pela letra da lei, mas que indubitavelmente se compreendem na sua finalidade.
São dois os argumentos que se podem convocar para fundamentar uma interpretação extensiva: o argumento de identidade de razão – argumento a pari – e o argumento de maioria de razão – argumento a fortiori. De harmonia com o primeiro, onde a razão de decidir seja a mesma, mesma há-de ser a decisão; de acordo com o segundo, se a lei contempla, explicitamente, certas situações para que estabelece um dado regime, há-de forçosamente pretender abranger também outra ou outras que, com mais fortes motivos, exigem ou justifiquem aquele regime”.
(…).
A natureza subordinada dos créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, como já supra se referiu, encontra justificação
na presunção de que essas pessoas estão colocadas numa posição preferencial ou de vantagem em relação aos demais credores, quer por terem acesso a informação privilegiada de que estes não dispõem
,
máxime a situação patrimonial e financeira do devedor
, quer pelo facto de o devedor poder aproveitar-se da proximidade inerente a demais credores, designadamente no que diz respeito ao esvaziamento ou à dissipação do seu património, quer ainda pela circunstância de essas pessoas poderem, de alguma forma, ter “influenciado a actuação do devedor, tendo-o levado a adoptar, na condução dos seus negócios, condutas lesivas para os credores com quem ele não mantinha um vinculo daquela espécie” (MARIA DE FÁTIMA RIBEIRO, Nótula sobre a Responsabilidade da Massa Insolvente pelas suas dívidas, Revista de Direito da Insolvência, nº 3, Almedina, pág. 94). Desta feita, se o objectivo do legislador é abranger o maior número de pessoas que tenham presumivelmente uma superioridade informativa, ou seja, que estejam em condições de conhecer a situação em que se encontrava o devedor e possam ter participado em actos conjuntos ou influenciado de alguma forma o comportamento deste e com isso evitar ou diminuir o eventual prejuízo para os credores, não faz sentido eximir aos efeitos da norma as pessoas que comprovadamente sejam especialmente relacionadas com o devedor (Catarina Serra, Lições de Direito de Insolvência, pág. 75).
Assim, na interpretação da norma impõe-se considerar os interesses que a lei pretende acautelar. Este elemento teleológico é decisivo na interpretação da lei, clarificando a sua finalidade.
Deste modo, como se referiu no Acórdão do RC, de 2.02.2010, Proc.171/07.5TBOBR-C.C1 in www.dgsi “o artº 49º do CIRE não deve ser interpretado com um excessivo rigor formal, mas antes plástica e razoavelmente, de sorte a concluir-se, ou não, se o caso concreto encerra o quid essencial que lhe subjaz, a saber: se o credor reclamante, directa ou indirectamente, tem na sua posse informação sobre a situação do devedor que o coloque numa situação de superioridade face aos demais credores no que toca à definição ou condicionamento de factualidade de que o seu crédito emirja. Precisamente para se obter o fito prosseguido pela lei, qual seja o de obviar a que pessoas detentoras de tal superioridade informativa, dela possam aproveitar-se para criar ou condicionar factos e situações que determine o seu assim indevido favorecimento creditício relativamente a outras que não estão na posse de tal informação”.
Também no Ac. da RP de 30.01.2024, proc. nº 1763/23.9T8VNG.P1 in
www.dgsi.pt
se refere que “Ponderando que se deve ter presente, enquanto elemento teleológico decisivo na interpretação do preceito (da alínea b) do nº 1 do art. 49º do CIRE), os interesses que se pretende acautelar (a sujeição dos créditos ao regime de subordinação justifica-se em atenção à ‘situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor’ que tais credores gozam relativamente aos demais[2]), dever recusar-se, na tarefa (de interpretação da norma), qualquer excessivo rigor, adoptando-se antes critério de razoabilidade de sorte a apurar se a situação ‘encerra o quid essencial que lhe subjaz’, qual seja o de saber se credor, “directa ou indirectamente, tem na sua posse informação sobre a situação do devedor que o coloque numa situação de superioridade face aos demais credores”[3](o propósito é o de obstar que pessoas detentores de superioridade informativa possam dela prevalecer-se e beneficiar no confronto com os demais credores)”.
Se o intuito do legislador através da criação do instituto da subordinação de créditos, em particular das pessoas especialmente relacionadas com o devedor, foi o de combater o aproveitamento por parte do devedor de relações de especial proximidade para praticar actos prejudiciais aos demais credores da insolvência, naturalmente que tem de existir uma abertura do elenco de pessoas especialmente relacionadas com o devedor, pois só assim, pensamos que fica acautelada, com uma maior justiça, a principal finalidade do processo em causa.
Repare-se que, neste caso, a requerente
concedeu uma garantia
ao crédito da credora B..., Lda., beneficiando-o em detrimento de todos os outros credores com créditos constituídos já à data e com valores também elevados, nomeadamente o crédito do IAPMEI. Não estamos apenas perante a constituição de um crédito, mas de um crédito garantido. A requerente confessou ainda um mês antes de se apresentar a Processo Especial de Revitalização um crédito e garantiu-o mediante a constituição de hipoteca.
Posto isto, importa concluir que os gerentes da credora
B..., Lda
. são
também administradores da requerente/devedora
desde a sua constituição e, por isso,
conheciam necessariamente a situação financeira e patrimonial da requerente
e
podem exercer sobre esta uma influência dominante
, pelo que não pode deixar de se interpretar a al. b) conjugada com a al. c) do nº 2 do art. 49º no sentido de existir
uma relação de domínio a que se refere o art. 21º, nº 1 do CVM quando os gerentes e administradores da sociedade credora e da requerente/devedora são os mesmos e exercem a gerência/administração efectiva dessas sociedades
.
Deste modo, há que concluir que a credora B..., Lda. é uma pessoa especialmente relacionada com a requerente/devedora, sendo, por isso, o seu crédito subordinado.”
*
Insurge-se a devedora/Apelante contra o decidido, com a seguinte argumentação:
- face à taxatividade do artigo 49º do CIRE, consagrada expressamente pelo legislador com a publicação da Lei nº 9/2022, que veio dar nova redação aos artigos 48º e 49º, e tratando-se de normas legais excecionais, não admitem interpretação extensiva;
- considerar que, ao dar a atual redação ao artigo 49º, o legislador disse menos do que aquilo que pretendia, é afastar da interpretação um dos seus elementos essenciais;
- o facto de os administradores de várias empresas serem os mesmos, não permite, por si só, concluir pela existência de uma posição dominante, ainda mais quando, nenhum deles, individualmente considerado, tem o poder de determinar os destinos de uma só dessas empresas;
- era evidente que o crédito da B... sobre a recorrente nunca poderia ser considerado subordinado, na medida em que a mesma não se enquadra em nenhuma das situações previstas nas quatro alíneas do nº2 do artigo 49º do CIRE.
A oposição do Apelante centra-se em dois fundamentos:
1. inadmissibilidade de interpretação extensiva, face à taxatividade do elenco do artigo 49º.
2. o crédito da B... nunca poderia ser considerado subordinado, na medida em que não se enquadra em nenhuma das situações previstas nas 4 alíneas do nº2 do artigo 49º.
Vejamos o que se poderá acrescentar relativamente ao tratamento dado a cada uma dessas questões na decisão recorrida, ao qual, desde já, adiantamos
aderir na íntegra
.
1.a. inadmissibilidade de interpretação extensiva do artigo 49º
Quanto a esta questão, é óbvia a ausência de razão da Apelante.
As normas excecionais contrapõem-se às normas gerais/direito regra, às quais é aplicável o argumento
a contrario
, ou seja, se consagram para certos casos um regime excecional, então, todas as situações não previstas na hipótese da norma deverão seguir o regime inverso que será o direito regra
[1]
.
No entanto, o próprio legislador, com vista a salvaguardar o espírito da norma, dispôs no artigo 11º do Código Civil que “
As normas excecionais não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva
”.
Como sustenta Miguel Teixeira de Sousa, precisamente a propósito da interpretação do artigo 49º do CIRE, “é sempre possível – se, como é claro, os elementos de interpretação enunciados no art.9º do CC o impuserem –, estender uma enumeração taxativa para além da sua letra, por exemplo, a coerência do sistema
[2]
”.
Também Ana Perestelo de Oliveira
[3]
afirma possibilidade de uma extensão interpretativa, nos termos característicos de uma tipicidade delimitativa: a analogia entre a situação do sujeito que controla a sociedade em virtude de fator interno (como a detenção de capital) e a daquele cujo controlo assenta no poder económico externo, constitui razão suficiente para justificar a ponderação da suscetibilidade de alargamento, por via interpretativa, do “elenco de pessoas especialmente relacionadas com o devedor”.
E Maria de Fátima Ribeiro
[4]
reconhece ser orientação maioritariamente acolhida na jurisprudência a afirmada necessidade de recurso à interpretação extensiva, de modo a abranger no leque das pessoas especialmente relacionadas determinadas pessoas que não se prevê estarem nele contidas.
Para alcançar a melhor interpretação do artigo 49º, o caminho mais correto é, segundo Catarina Serra, identificar e manter presentes os fins que presidiram à conceção da disciplina das pessoas especialmente relacionadas com o devedor: “Só evitando uma leitura rígida ou demasiado literal da norma do artigo 49º é possível assegurar a realização plena dos fins visados pelo legislador e a exclusão de todos os resultados irrelevantes ou indesejáveis
[5]
”.
Improcedem, assim, as conclusões em contrário formuladas a tal respeito pela Apelante nas suas alegações de recurso.
1.b. Se a credora /B... pode ser considerada como “pessoa especialmente relacionada com o devedor”, ao abrigo do disposto no artigo 49º, nº2, al. b).
Sendo incontrovertida nos autos a natureza
taxativa
da enumeração das pessoas que, segundo o artigo 49º, nº2, als. a) a d), “
são exclusivamente considerados especialmente relacionados com o devedor pessoa coletiva
”, vejamos se a situação em apreço, embora, à primeira vista e numa mera interpretação literal de tais alíneas, não se encontre expressamente prevista em nenhuma delas, poderá ainda ser enquadrada na al. b) do nº2 do artigo 49º, sobretudo quando conjugado com a previsão da al. c).
Dispõe o citado
artigo 49º, nº2
, CIRE:
2 - São exclusivamente considerados especialmente relacionados com o devedor
pessoa coletiva
:
a) Os
sócios, associados ou membros
que respondam legalmente pelas suas dívidas, e as pessoas que tenham tido esse estatuto nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;
b) As pessoas que, se for o caso, tenham estado com a sociedade insolvente em
relação de domínio ou de grupo, nos termos do artigo 21.º do Código dos Valores Mobiliários
, em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;
c)
Os administradores
, de direito ou de facto,
do devedor
e aqueles que o tenham sido em algum momento nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;
d) As pessoas relacionadas com alguma das mencionadas nas alíneas anteriores por qualquer das formas referidas no n.º 1.
O legislador afasta-se do conceito de
relação de domínio
ou
de grupo
constante do Código das Sociedades Comerciais, remetendo para a definição contida no artigo 21º do Código dos Valores Mobiliário:
1 - Para efeitos deste Código, considera-se
relação de domínio
a relação existente entre uma pessoa singular ou colectiva e uma sociedade quando, independentemente de o domicílio ou a sede se situar em Portugal ou no estrangeiro, aquela possa exercer sobre esta, directa ou indirectamente, uma influência dominante.
2 - Existe,
em qualquer caso
, relação de domínio quando uma pessoa singular ou colectiva:
a) Disponha da maioria dos direitos de voto;
b) Possa exercer a maioria dos direitos de voto, nos termos de acordo parassocial;
c) Possa nomear ou destituir a maioria dos titulares dos órgãos de administração ou de fiscalização.
3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, e sem prejuízo da imputação de direitos de voto à pessoa que exerça influência dominante, as relações de domínio existentes entre a mesma pessoa singular ou coletiva e mais do que uma sociedade são consideradas isoladamente.
4 - Para efeitos deste Código consideram-se em
relação de grupo
as sociedades como tal qualificadas pelo Código das Sociedades Comerciais, independentemente de as respetivas sedes se situarem em Portugal ou no estrangeiro.
Assentando as relações de domínio e de grupo, essencialmente na titularidade (total ou parcial) de participações de uma sociedade sobre outra, inexistem nos autos elementos suficientes para afirmar esse tipo de relação entre a sociedade credora (B...) e a sociedade devedora A.... E dizemos que inexistem tais elementos, uma vez que desconhecemos quem são os detentores do capital das duas sociedades que detêm a quase totalidade do capital social da devedora A..., as sociedades D..., S.A., e E..., SGPS, S.A.
[6]
, sendo que, é a própria devedora que, no seu requerimento inicial, alega que “
se encontra inserida
num grupo de sociedades
que têm
os mesmos sócios/acionistas
, cujo âmbito de atividade se situa no mercado da produção, comercialização e venda de pellets (…), Todo o grupo funciona numa lógica de maximização no aproveitamento de sinergias, razão pela qual a requerente tem apenas um funcionário
”.
De qualquer modo, as situações elencadas nas várias alíneas do nº2 do artigo 21º, são meramente
exemplificativas
, não esgotando o conceito de domínio aqui tido em causa
[7]
(como resulta da expressão contida no nº1, “
em qualquer caso
”), identificando-se a relação de domínio como “
a relação existente entre uma pessoa singular ou coletiva e uma sociedade
quando, independentemente do domicílio ou a sede se situar e Portugal,
aquela
possa exercer
sobre esta,
direta ou indiretamente
, “
uma influência dominante
”.
Como tem salientado a doutrina, a opção pela remessa para a definição de relação de domínio constante do Código dos Valores Mobiliários em detrimento do conceito dado pelo Código das Sociedades Comerciais, teve por objetivo o alargamento das situações abrangidas.
No caso em apreço, embora, face aos elementos existentes, apenas possamos afirmar, quanto à estrutura social das sociedades, que alguns acionistas e sócios são comuns a ambas as sociedades
[8]
, a conexão entre ambas que se encontra exposta em toda a sua crueza na matéria de facto dada como provada, reside na
total coincidência entre os gerentes da credora B... e os administradores da insolvente
.
De tal modo que, encontrando-se a gerência e a administração de tais sociedades, confiadas às mesmas pessoas singulares, deparamo-nos com um fenómeno de dupla representação, em que os administradores de uma atuam simultaneamente como gerentes da outra:
- quer o
acordo extrajudicial de recuperação
, quer a
declaração da requerente e das credoras para encetarem as negociações
, foram
subscritas pelas mesmas pessoas físicas
, na
tríplice
qualidade de
representantes das credoras B..., C... e pela devedora A...
(em tais atos, quer as credoras B... e C..., quer a devedora, foram representadas por aqueles a quem se encontra entregue, em exclusivo, a gerência da B... e a administração da C... e da A... (CC, BB, AA);
- também as
declarações de confissão de dívida
e de
constituição de hipoteca
que suportam o crédito da New Peletts sobre a In Bark Solutins, são subscritas pelas pessoas que sendo os
administradores
da A..., exercem em conjunto a
gerência
da B...!
Esta coincidência total de representantes entre as sociedades credoras e a sociedade devedora poderia, inclusive, levar à qualificação de tais atos como negócio consigo mesmo (artigo 261º do Código Civil), na medida em envolvem atos não compreendidos no objeto das sociedades credoras e dos quais resultam vantagens para as credoras (empréstimos à devedora com constituição de hipotecas a favor daquela).
Na interpretação da al. b) do nº2 do art. 49º do CIRE, e como elemento teológico a considerar, temos a justificação dada para a sujeição dos créditos ao regime de subordinação no Preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03 – em atenção à “
situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor
” que tais credores gozam relativamente aos demais.
Nas palavras de Catarina Serra, o objetivo do legislador é “abranger, à partida, o maior número de sujeitos que tenham presumivelmente uma “superioridade informativa”, ou seja, que estejam em condições de conhecer a situação em que se encontrava o devedor e possam ter participado em atos conjuntos ou possam ter influenciado de alguma forma o comportamento deste. Compreende-se bem o objetivo. Mediatamente, visa-se evitar ou prejudicara prática de atos em prejuízo dos credores
[9]
”.
Semelhante entendimento é sustentado por Maria de Fátima Ribeiro
[10]
, identificando as seguintes razões que levaram a considerar as pessoas enumeradas nas als. a) a d) do nº2 art. 49º, como especialmente relacionadas com o devedor:
- pessoas que estariam em condições de poder conhecer a situação em que se encontrava o devedor (superioridade informativa);
- pessoas que de algum modo poderiam ter influenciado a atuação do devedor, levando-o a adotar, na condução dos seus negócios, condutas lesivas para os credores com quem ele não mantinha um vínculo daquela espécie.
A
total coincidência de gerentes e administradores
entre as duas sociedades, praticamente desde a respetiva constituição, e uma vez que é através dos seus gerentes/administradores que a respetiva vontade se forma se materializa e manifesta, leva a que a sociedade “credora” e a sociedade devedora estejam, simultaneamente, na posse de
toda a informação
económica, patrimonial e financeira, respeitante a ambas as sociedades (total coincidência ao nível da gestão que se estende igualmente à outra sociedade que subscreveu o acordo de pagamento, C...), encontrando-se colocadas em posição para
influenciarem
diretamente o comportamento uma e da outra.
E não estamos a falar de um perigo abstrato de instrumentalização de uma e de outra sociedade em função de determinadas necessidades e a favor de uma ou de outra, mas de uma “confusão” entre as sociedades, de “
mistura de responsabilidades
”, pelo facto de terem
administradores/gerência comuns
– a gerência e posterior administração da A..., esteve,
sempre
, atribuída a CC, BB e R..., que correspondem aos sócios/gerentes da ... –, mas de algo que possibilitou o alcançar de uma maioria para aprovação de um plano.
Com efeito, os créditos da B... encontram-se formalizados através de:
- uma “escritura de confissão de dívida com hipoteca unilateral”, no dia 11-02-2020, outorgada por AA, na qualidade de membro de administração e em representação da A..., pela qual se declara devedora da quantia de
700.000,00 €
à B...;
- uma “escritura de confissão de dívida com hipoteca unilateral”, no dia
06-06-2024
, um mês antes da apresentação do presente Acordo Extrajudicial em tribunal, outorgada por CC e R..., em representação da A..., pela qual se confessa devedora B... de
197.000,00 €
.
Ou seja, as pessoas físicas que, em nome da A..., declararam dever à sociedade B..., as quantias totais de 897.000 €, são os gerentes e detentores da totalidade do capital social da “credora” B....
Tais declarações de dívida, acompanhadas da constituição de hipotecas, permitiram a elaboração de um acordo extrajudicial em que fosse dado distinto tratamento aos demais credores, todos comuns.
Há aqui um acordo entre a devedora e as credoras que, com ela subscrevem o acordo extrajudicial, que prejudicam os demais credores.
É aqui, nítida,
uma aliança para prejudicar os demais credores
, conseguindo a detenção de créditos, “garantidos”, para, no momento seguinte conseguirem as maiorias necessárias à aprovação do plano e de modo a conseguirem uma redução de 75% do capital dos credores que não possuem qualquer ligação à devedora, prejudicando-os.
Como reconhece Letícia Marques Costa
[11]
, existem por vezes acordos simulatórios de dívidas para que o devedor se possa apresentar à insolvência ou até mesmo para dar inicio ao PER, ou em que um dos credores (simulador) possui um grande peso (atento o valor do seu crédito) a fim de serem asseguradas as maiorias necessárias para o devedor alcançar os seus intentos.
Ora, o nº1 do artigo 21º do CVM considera
relação de domínio
a relação existente entre uma pessoa singular ou coletiva e uma sociedade quando aquela possa exercer sobre esta,
direta
ou
indiretamente
, uma
influencia dominante
.
No caso em apreço, a existência de um
controlo comum
a ambas as
sociedades credoras
que subscreveram o acordo extrajudicial e à
sociedade devedora
, faz perigar os interesses dos demais credores (a par do risco de conflito de interesses entre credoras e devedora), sobretudo quando, face ao seu volume, representam a maioria dos créditos, impondo aos demais credores uma solução que, não só, os gradua à frente dos destes, como lhes impõe restrições muito superiores ao nível de perdão do capital, moratórias, pagamento de juros etc.
No sentido de que da articulação entre as als. b) e c), do artigo 49º, não pode deixar de se interpretar a al. b) do nº2 do artigo 49º no sentido de se considerar existir a relação de domínio a que se reporta o artigo 21º, nº1 do CVM quando a sociedade credora e a sociedade requerente do PER têm um sócio comum, que em ambas as sociedades exerce a sua gerência efetiva, por, sobre a mesma poderem exercer influência dominante, se pronunciou o Acórdão do TRL de 31-010-2023
[12]
.
Também no Acórdão do TRP de 04-05-2022
[13]
, se reconhece que o conceito de domínio constante do nº1 do art. 21º do CVM pode ser preenchido por outros convénios de direito comum, aptos a criar relações de domínio de uma sociedade sobre outra, ou mesmo uma mera administração unitária, de facto, das duas sociedades.
Improcedem
, como tal, também nesta parte, as alegações da Apelante.
*
Confirmada por este tribunal a decisão que considerou a credora B... como “
pessoa especialmente relacionada com a devedora
”, qualificando tal crédito como subordinado, mantém-se válidas as considerações constantes da sentença recorrida que culminaram na recusa a homologação do acordo por desrespeito das maiorias exigidas nas als. b) ou c) do nº5 do artigo 17º-F do CIRE, ficando prejudicada a apreciação das demais questões colocadas pela Apelante, respeitantes à recusa do plano por violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do Acordo.
A Apelação é de
improceder
.
*
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordando os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação
improcedente
,
confirmando-se
a decisão recorrida de recusa da homologação do Acordo extrajudicial por desrespeito das maiorias exigidas nas als. b) ou c) do nº5 do artigo 17º-F do CIRE.
Custas a suportar pela Apelante.
Coimbra, 14 de janeiro de 2025
V –
Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC
.
(…).
[1]
Catarina de Oliveira Carvalho, “Comentário ao Código Civil, Parte Geral”, Universidade Católica Editora, Coord. de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença, anotações I e II ao art. 11º, p. 55.
[2]
“Resolução em benefício da massa insolvente por contrato celebrado com pessoa especialmente relacionada com o devedor”, Anotação ao Ac. UJ nº 15/2014, Cadernos de Direito Privado, Nº 50 Abril/Junho 2015, p. 61.
[3]
“A Insolvência nos grupos de sociedades: notas sobre a consolidação patrimonial e a subordinação de créditos intragrupo”, in RDS I (2009), 4, 995 – 1028, pp. 1026-1027, disponível in
https://www.revistadedireitodassociedades.pt/artigos/a-insolvencia-nos-grupos-de-sociedades-notas-sobre-a-consolidacao-patrimonial-e-a-subordinacao-de-creditos
.
[4]
Insolvência, Pessoas especialmente relacionadas, resolução em benefício da massa insolvente e subordinação de créditos”, in V Congresso do Direito da Insolvência”, Coord. Catarina Serra, Almedina, p. 97.
[5]
Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, pp. 73-74.
[6]
Esta sociedade já foi denominada AA, SGPS, S.A., sendo AA precisamente um dos três/Administradores gerentes comuns que subscreveram o acordo extrajudicial de recuperação, o que nos leva a suspeitar de que, também ao nível do capital social, se verifique coincidência de titulares entre as duas referidas empresas credoras e a devedora.
[7]
Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Recuperação de Empresas e Insolvência Anotado”, 2ª ed., QUID JURIS, p. 316.
[8]
Embora se encontrem juntas aos autos as certidões de registo comercial de ambas as sociedades, desconhecemos quem detém as sociedades S..., S.A. e E... SGPS, S.A., sociedades estas que detêm a quase totalidade do capital da devedora A... (99,994%), sendo que E... SGPS, S.A, já foi denominada AA, SGPS, S.A., sendo que o AA, pessoa singular, é um dos sócios da credora B... e da A....
[9]
Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, p.75.
[10]
“Insolvência, Pessoas especialmente relacionadas, resolução em benefício da massa insolvente e subordinação de créditos”, in V Congresso do Direito da Insolvência”, Coord. Catarina Serra, Almedina, p. 94.
[11]
“A Insolvência de Pessoas Singulares”, Coleção TESES, Almedina, pp. 238-239.
[12]
Acórdão relatado por Manuel Ribeiro Marques, e Acórdão do TRP de 30-1-2024, relatado por João Ramos Lopes, ambos disponíveis in
www.dgsi.pt
.
[13]
Acórdão relatado por João Diogo Rodrigues, disponível in
www.dgsi.pt
. Em sentido semelhante, Acórdão do TRL de 20-06-2017, de Luís Filipe Pires de Sousa, também citado pela decisão recorrida, segundo o qual “Deve ser qualificado como subordinado o crédito de sociedade cujo único gerente era também gerente da (futura) insolvente, que obrigava só com a sua assinatura, tendo nesta última qualidade constituído hipoteca unilateral a favor da primeira sociedade porquanto tal gerente exerceu uma influência dominante sobre a devedora.”
|
TRC
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https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/7e6f4a1257bb08a880258c2600373716?OpenDocument
|
1,748,217,600,000
|
REVOGADA PARCIAL
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2087/22.6T8VCD.P1
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2087/22.6T8VCD.P1
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CARLA FRAGA TORRES
|
I - A falta de impugnação autónoma do despacho que julgou improcedente a excepção do caso julgado com o recurso da sentença importa o seu trânsito em julgado e consequente caso julgado formal.
II - A decisão de facto inserida numa sentença, desligada da respectiva decisão jurídica, não tem autonomia e, como tal, não lhe assiste autoridade de caso julgado ou eficácia probatória num outro processo.
III - A única alternativa ao aviso postal como meio para proceder à convocatória das assembleias gerais das associações é a publicação do respectivo aviso nos termos legalmente previstos para os actos das sociedades comerciais, se esta forma de convocação estiver prevista nos respectivos estatutos.
IV - A anulação por sentença de deliberação social pode ser substituída por outra que não padeça do vício da precedente.
V - A anulação de deliberação social por vício procedimental prejudica a admissibilidade do conhecimento da factualidade objecto da deliberação.
|
[
"CASO JULGADO FORMAL",
"AUTORIDADE DE CASO JULGADO",
"CONVOCATÓRIA PARA ASSEMBLEIA GERAL",
"ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL"
] |
Proc. n.º 2087/22.6T8VCD.P1 – Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Vila do Conde – Juiz 2
Relatora: Carla Fraga Torres
1.º Adjunta: Eugénia Maria Moura Marinho da Cunha
2.º Adjunta: Teresa Pinto da Silva
Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da 5.ª Secção Judicial/3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório.
AA
, residente na Rua ..., ..., Braga, instaurou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra
Clube ...
, com sede na Rua ..., Vila do Conde, pedindo que:
A) seja reconhecida a verificação do caso julgado/autoridade do caso julgado quanto aos factos (matéria de facto e de direito) alegados pelo Autor em sede de recurso interposto para a Assembleia Geral da Ré da decisão de expulsão de associado, tornando definitiva a revogação de tal decisão de expulsão com impossibilidade de nova apreciação e decisão sobre os mesmos factos imputados pela Ré àquele em sede de procedimento disciplinar;
B) seja a deliberação constante do ponto 2 da ordem de trabalhos - “Discussão e votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo 14º alínea j) dos Estatutos do Clube ...” – declarada nula ou caso assim não se entenda, o que não se admite de todo anulada;
Na eventualidade de não ser considerada verificada a excepção do caso julgado/autoridade do caso julgado nos termos descritos em A), o que não se admite e apenas por mera hipótese teórica se coloca:
A) seja a deliberação constante do ponto 2 da ordem de trabalhos -“Discussão e votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo 14º alínea j) dos Estatutos do Clube ...” – ser declarada nula, ou caso assim não se entenda, anulada;
e
C) seja declarado o uso indevido do procedimento disciplinar, devendo o mesmo ser arquivado quanto ao Autor, com a posterior anulação de todos os actos praticados posteriormente ao mesmo;
D) seja declarada a ilicitude da decisão de expulsão do Autor por se verificar a nulidade da Nota de Culpa por falta de circunstanciação;
ou caso assim não se entenda,
C.1) seja anulada a nota de culpa por falta de circunstanciação e consequentemente ser declarada a ilicitude da decisão de expulsão do Autor;
e
E) seja a decisão de expulsão do Autor enquanto associado da Ré declarada nula e consequentemente o Autor readmitido como associado da Ré, mantendo o seu número de associado anteriormente atribuído e bem assim com os direitos inerentes à qualidade de associado;
ou, caso assim não se entenda,
D.1) seja declarada a anulabilidade da decisão de expulsão do Autor enquanto associado da Ré e consequentemente o Autor readmitido como associado da Ré, mantendo o seu número de associado anteriormente atribuído e bem assim com os direitos inerentes à qualidade de associado;
e
F) seja revogada a decisão de expulsão do Autor enquanto associado da Ré e consequentemente o Autor readmitido como associado da Ré, mantendo o seu número de associado anteriormente atribuído e bem assim com os direitos inerentes à qualidade de associado; por não se ter verificado por parte do Autor a prática de qualquer infracção disciplinar;
caso assim não se entenda,
E.1) a decisão de expulsão aplicada ao Autor seja substituída por outra sanção disciplinar menos gravosa por a mesma ser abusiva e desproporcional e em consequência ser o Autor readmitido como associado da Ré, mantendo o seu número de associado anteriormente atribuído e bem assim com os direitos inerentes à qualidade de associado.
e
G) a Ré seja condenada a pagar ao A. a titulo de danos não patrimoniais a quantia de 5.000,00 euros, acrescida de juros de mora contabilizados desde a citação da R. até efectivo e integral pagamento de tais dano.
Para o efeito, alegou, em síntese, que, além de associado da R. foi, de 2016 a 2020, seu vogal da Direção, cabendo-lhe, no desempenho destas funções, zelar pela manutenção do parque de campismo sito na Rua ..., em ..., Vila do Conde, e que, não obstante a sentença judicial proferida no processo n.º ... de anulação da deliberação da assembleia geral que o expulsou como sócio da R., esta, em Assembleia Geral Extraordinária de 18/06/2022, para a qual não foi convocado, voltou a deliberar nesse sentido, estando-lhe vedado fazê-lo por força do caso julgado ou da autoridade do caso julgado assim como impedi-lo de exercer os seus direitos de associado, como seja entrar, permanecer e fruir do parque de campismo. Assim, defende que esta deliberação social é nula ou anulável, ao que acresce, relativamente aos factos que lhe são imputados, ter sido autorizado a utilizar os bungalows, com o que poupou despesas à R. com as deslocações para sua casa sita em Braga, usar os serviços de lavandaria para lavar a roupa que era de trabalho, ter-lhe sido doado o telemóvel, e serem falsos os demais, de resto, alegados de forma genérica e não circunstanciada, em todo o caso, enquanto vogal e não enquanto associado, e que nunca lhe deveria ser aplicada a sanção da expulsão, quando muito a repreensão/suspensão, sendo-lhe devida pelos danos não patrimoniais que sofreu em virtude da imputações falsas de que foi alvo por parte da R. uma indemnização no valor de 5.000,00 €.
Citada, a R. contestou, defendendo que são já várias as decisões judiciais que atestam a legalidade da sua actuação no que ao procedimento disciplinar e deliberações sociais diz respeito e que reforçam a certeza do comportamento ilícito do A. no exercício da funções de vogal, inclusive a sentença proferida no identificado processo n.º ... que, anulando a deliberação social e condenando-a a si a pagar ao A. uma indemnização por danos não patrimoniais, ao não se ter pronunciado sobre a invalidade do próprio procedimento disciplinar pretendida pelo A, formou caso julgado material, a que acresce a excepção da caducidade, porquanto já se encontra ultrapassado o prazo de um ano de que o A. dispunha para impugnar o processo disciplinar e os seus efeitos. Conclui, portanto, pela litigância de má-fé do A. em virtude de este não respeitar as decisões dos tribunais, pondo em causa um procedimento disciplinar válido e tentando pôr em crise a deliberação social renovada. Para mais, a anterior deliberação social, sustentada em factos que o A. não negou, como seja apropriar-se de material electrónico, gastos em proveito próprio suportados pela R. sem autorização da assembleia geral, foi, em Assembleia Geral Extraordinária de 18/06/2022 - para a qual o A. foi convocado por comunicação enviada para o email fornecido pelo próprio e por informação prestada por familiares - renovada e expurgada dos vícios que haviam ditado a sua anulação.
Notificado para aperfeiçoar a PI por dela não constar o teor da nota de culpa, o A. satisfez o solicitado, a que a R. respondeu.
Foi dispensada a realização de audiência prévia, foi elaborado o despacho saneador, no âmbito do qual o valor da acção foi corrigido, foram julgadas improcedentes as excepções do caso julgado, e foram definidos o objecto do litígio e os temas de prova.
Realizada a audiência final foi proferida sentença com o segmento decisório que segue:
“V – Decisão
Face a todo o exposto, o Tribunal decide:
a) Declarar a anulação da deliberação constante do ponto 2 da Ordem de Trabalhos da Assembleia Geral de 18/06/2022, com o seguinte teor: “Discussão e votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo 14º alínea j) dos Estatutos do Clube ...”, com as respectivas consequências legais (restituição do Autor da qualidade de sócio da Ré);
b) Absolver a Ré do pedido de condenação em montante indemnizatório; e
c) Absolver o Autor do pedido de condenação como litigante de má-fé.
*
Custas na proporção de 15% para o Autor e 85% para a Ré”.
Inconformado com tal sentença, dela apelou o R., concluindo as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
(…)
O A., não contra-alegando, também recorreu da referida sentença, pedindo a sua revogação na parte em que julgou improcedentes os pedidos formulados por si, terminando as respectivas alegações, com as seguintes conclusões:
(…)
A R. apresentou contra-alegações.
Os recursos foram admitidos como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação, proferiu-se despacho a considerar os recursos como próprios, tempestivamente interpostos e admitidos com o efeito e o modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art. 5.º, n.º 3 do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente R. e pelo recorrente A., são as seguintes:
1. da impugnação pela R. da decisão sobre a matéria de facto contida no ponto 8 dos factos não provados.
2. da impugnação pelo A. da decisão sobre a matéria de facto contida nos pontos 14, 17, 22 e 23 dos factos provados e dos pontos 1, 5, 6 e 7 dos factos não provados.
3. da revogação da decisão de anular a deliberação social em causa (do recurso da R.).
4. da nulidade da deliberação de 18/06/2022 (do recurso do A.).
5. da decisão de absolvição da R. do pedido de indemnizar o A. (do recurso do A.).
*
III. Fundamentação
3.1.
Fundamentação de facto
O Tribunal recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos (destacando-se a negrito a matéria de facto ora impugnada):
“III.1 – Matéria de facto provada
Com relevo para a decisão, encontram-se provados os seguintes factos:
1. A Ré é uma instituição de utilidade pública que não tem por fim o lucro económico dos seus associados, tendo por principal objectivo “fazer conhecer, viver, amar as montanhas, serras, campos e praias e, em particular, a prática de desporto ao ar livre, colectiva ou individual, nomeadamente, montanhismo, alpinismo, campismo e caravanismo”.
2. No âmbito das suas finalidades, a Ré é detentora do parque de campismo sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de Vila do Conde, o qual se encontra à disponibilidade de ser utilizado pelos seus associados.
3. O artigo 8.º dos Estatutos da Ré estabelece, nomeadamente, que é direito dos Associados usufruir dos serviços, actividades e benefícios prestados pelo Clube; eleger órgão sociais, ser eleito para os órgãos sociais, participar e votar nas Assembleias Gerais, requerer a convocação de Assembleias Gerais extraordinárias, examinar relatórios, contas e outros documentos, no período que antecede à Assembleia Geral Ordinária anual, nos termos e condições ficados pela Mesa da Assembleia Geral, desde que o requeiram por escrito, com a antecedência mínima de 15 dias e o fundamentem com um interesse legitimo, directo e pessoal; ser esclarecido em Assembleia Geral dos motivos e fundamentos dos actos praticados pelos órgãos sociais do clube e Subscrever a admissão
de novos sócios.
4. O art.º 12.º dos Estatutos da Ré, sob a epigrafe “Responsabilidade Disciplinar”, determina que: “Incorrem em responsabilidade disciplinar os associados que violem o consignado nos presentes estatutos, bem como regulamentos, deliberações dos órgãos sociais e legislação aplicável, e nomeadamente: 1) Desrespeitem algum sócio, membro de órgãos sociais, departamentos, comissões ou qualquer individuo nomeado ou contratado pela Direcção para determinado cargo; 2) Pratiquem nas instalações do Clube ... quaisquer atos, ativos ou omitidos contrários á lei, estatutos ou regulamentos; 3) causem dano ao Clube ... e 4) aproveitem o Clube ... para atividades politicas ou religiosas”.
5. O art.º 13.º dos Estatutos da Ré preconiza que: “a) Podem ser aplicadas sanções disciplinares de repreensão, suspensão e expulsão”.
6. Por sua vez, resulta do disposto no art.º 14.º, alínea K), dos mesmos Estatutos, sob a epigrafe “Procedimento Disciplinar”, que: “Até á decisão definitiva do processo disciplinar poderá, o associado, por decisão fundamentada da Direcção, ser suspenso do exercício dos seus direitos”.
7. O art.º 17.º dos Estatutos da Ré especifica que os cargos dos respectivos órgãos sociais são gratuitos.
8. O art.º 18.º, n.º 1, dos Estatutos da Ré refere que a condição de Associado é essencial para pertencer aos respectivos órgãos sociais.
9. Dispõe o artigo 22.º, n.º 1, dos Estatutos da Ré determina que: “A Assembleia Geral é convocada pelo Presidente da Mesa, nos termos dos presentes Estatutos através da convocatória afixada na sede e em todos os locais de estilo do Clube ... com a antecedência mínima de 15 dias, constando obrigatoriamente da mesma o dia, hora, local e respectiva Ordem de Trabalhos.”
10. O art.º 31.º, alínea e), dos Estatutos da Ré estabelece que uma das funções do Vogal da Direcção é zelar pelo parque de campismo.
11. O Autor é associado da Ré há mais de 42 anos, tendo pertencido aos respectivos órgãos sociais durante cerca de vinte anos.
12. O Autor foi, ainda, no período de 2016-2020, eleito Vogal da Direcção da Ré.
13. Durante o exercício de tais funções, foi fornecido ao Autor, pela Direcção da Ré, um telemóvel de marca Samsung, para o uso das suas funções em tal qualidade.
14. Em tal período, o Autor utilizou regularmente, em proveito próprio ou de familiares e de amigos, e sem o pagamento de qualquer contrapartida, os serviços da Ré de lavandaria, engomadoria, manutenção e reparação de residências, roulottes, casas, quintas, entre outros locais e de recolha do lixo.
15. O Autor, conjuntamente com a sua família, utilizavam os Bungalows da Ré sem proceder ao pagamento de qualquer contrapartida monetária, nomeadamente a respectiva taxa de utilização.
16. Tais utilizações ocorriam entre os meses de Outubro e Março de cada ano.
17. Em determinadas ocasiões, nomeadamente no final do ano, a utilização dos Bungalows pelo Autor e pela sua família impediram a realização de reservas e ocupação dos mesmos por outros sócios.
18. A utilização de tais serviços foi motivada pelo facto de o Autor permanecer no aludido parque a tempo inteiro.
19. A residência do Autor no parque de campismo ao longo de todo o ano permitia-lhe melhor exercer as suas funções de zelador, evitando deslocações para a sua habitação, sita em Braga.
20. O custo das deslocações do Autor de e para Braga ascenderiam ao valor aproximado de € 51,00 e poderiam ser cobrados à Ré.
21. Com a permanência do Autor nas instalações da Ré, foi evitado tal custo.
22. O Autor participou e beneficiou de incontáveis almoços e jantares de forma gratuita, contribuindo para uma despesa em alimentação, conjuntamente com os seus colegas da Direcção e ao longo do quadriénio 2016-2020, em valor superior a € 200.000,00.
23. O Autor assinou uma confissão de dívida em nome da Ré, titulando pretensos mútuos efectuados à Ré que, na realidade, não existiram.
24. No dia 10 de Junho de 2020, tomou posse uma nova Direcção da Requerida, tendo cessado nessa data as funções do Autor, enquanto vogal, mantendo, após essa data, apenas e tão só a qualidade de Associado da Ré.
25. O Autor não devolveu o telemóvel à Ré após a cessação de funções e após solicitação desta, por entender que o mesmo lhe havia sido oferecido pela Direcção.
26. No dia 5 de Outubro de 2020 foi instaurado um processo disciplinar ao Autor, imputando àquele, ainda que de forma indiciária, a prática de vários factos, enquanto no exercício das funções de Vogal da Ré, factos esses que segundo a Ré fundavam a sua intenção de proceder á expulsão do Autor, nos termos do disposto no artigo 13º, alínea c) dos seus Estatutos.
27. Aquando da instauração do referido processo disciplinar e comunicação da nota de culpa, a Ré comunicou ainda ao Autor que o mesmo, por “decisão da Direcção do Clube ... (Clube ...) se encontrava suspenso do exercício dos seus direitos, nos termos do artigo 14º, alínea k) dos Estatutos”.
28. Em resposta, o Autor apresentou, a título pessoal, a sua defesa, peticionando, a final, que a Ré “revogasse a decisão de suspensão contra ele deliberada”.
29. A Ré, por carta registada com aviso de recepção, datada de 13 de Janeiro de 2021, notificou o Autor da decisão final do procedimento disciplinar em causa, o qual culminaria na decisão de expulsão do Autor, enquanto Associado da Ré, por terem sido dados como provados os factos que constavam da nota de culpa.
30. Para fundamentar a decisão de expulsão do Autor, enquanto Associado da Ré, esta proferiu a seguinte decisão final por si proferida:
“DO PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
Conforme consta da acusação do procedimento disciplinar, no passado dia 4 de setembro, a direção do Clube ... deu conhecimento a todos os associados do Clube ..., via email, os resultados da Due Dilgence/Auditoria que compreendeu o período 2016-2019.
Perante a gravidade dos factos praticados pela anterior direção e aqueles que se apuraram relativamente a V.Exa., a actual direção submeteu à apreciação deste Conselho a abertura do devido procedimento disciplinar.
Foi entendido pelo conselho de disciplina que os factos apurados e relatados na nota de culpa do procedimento disciplinar demonstram uma violação e desrespeito por parte de V/Exa. das regulamentos, estatutos e lei geral, colocando em causa o bom nome e o património do Clube ....
Em reunião do Conselho Disciplinar, ocorrida no passado dia 3 de outubro de 2020, foi deliberada a abertura de instrução de um processo ao referido infrator, nos termos do artigo 14.º dos estatutos do Clube ..., tendo sido nomeado como instrutor o Presidente do Conselho Disciplinar, BB.
Tendo V/Exas. sido notificado na nota de culpa, com direito a apresentar a sua defesa e todos os factos que percecionava como relevantes.
Nestes termos, o Conselho Disciplinar do Clube ... decidiu acusar o Sr. AA de tudo o que infra melhor se exporá.
I - O ENQUADRAMENTO DOS FACTOS:
1º. - Os associados CC, DD, EE, AA e FF, foram membros da Direção do Clube ... no período de 2016 - 2020.
2°. - Tendo V/ Exa. desempenhado funções como Vogal do Clube ....
3°. - No dia 10 de junho de 2020, e depois de eleições realizadas no dia 7 de junho, tomou posse uma nova direção no Clube ....
4º. - Logo no dia de tomada de posse, a atual direção deparou-se com indícios e factos que comprovam a violação dos estatutos, regulamentos do Clube ... e normativos legais por parte da anterior direção de V/Exa. Em concreto.
5º. - Face a tais factos e indícios, a direção do Clube ... deliberou contratar uma Due Dilgence/Auditoria que compreendesse o período 2016-2019.
6º. - Os factos apurados por tal auditoria indiciam à prática de ações (também por V.Ex) com relevância disciplinar (e criminal) face ao mandato da anterior Direção de que V/ Exa. fez parte.
7º. - Como tal, resulta dos indícios apurados que V/Exa. praticou atos que prejudicaram o bom nome e o património do Clube ....
8º. - A direção do Clube ... informou igualmente o Conselho Disciplinar, que perante a gravidade dos factos que resultaram da Auditoria, decidiu intentar Queixa-Criminal, procurando desta forma o ressarcimento dos danos e julgamento de todos os factos com relevância criminal nas instâncias competentes.
II - DOS ACTOS PRATICADOS NO DESEMPENHO DAS FUNÇÕES COMO VOGAL DO Clube ...:
9.º A atual direção do Clube ... comunicou ao conselho disciplinar indícios e situações que desrespeitam o bom nome e património do clube;
10.º Logo após a tomada de posse dos novos órgãos sociais do Clube ..., verificou a nova direção do Clube ..., que existia faturas emitidas pela A..., Lda, já liquidadas pela Contabilidade do Clube ..., na qual a direção anterior adquiriu equipamento digital (telemóveis e computado) no valor de 6 743,93€ (seis mil setecentos e quarenta e três euros e noventa e três cêntimos).
11.º Sendo certo, que a direção verificou que nenhum destes equipamentos se encontrava nas instalações do clube.
12.º Chegou ao conhecimento da direção do Clube ... que os mesmos estavam na posse de V/ Exa. e ex-diretores.
13.º Depois de interpelado (via presencial, email e por carta registada de mandatário), V./ Exa. Continua sem devolver o equipamento que é pertença do Clube ....
14.º Contudo, não foi apenas material digital que foi comprado pelos exdiretores do Clube ... para uso próprio ou de terceiros a expensas do Clube ....
15.º A direção em exercício deparou-se com várias faturas cuja materialidade não existe no Clube ....
16.º Nomeadamente, matérias adstritas à atividade de construção civil, material de decoração, material para casas de banho, entre outro tipo de aquisições.
17.º Até hoje, a direção do Clube ... continua por identificar o destino destes materiais.
18.º Sendo certo, que os mesmos não se encontram nas instalações do clube.
19.º Acresce a isto, que funcionários e associados do Clube ... já confirmaram à atual direção do Clube ... que os mesmos foram aplicados, usados e comprados para proveito próprio dos ex-diretores, familiares e amigos dos mesmos, na qual descreveram situações em que os mesmos se destinavam para uso pessoal do associado e seus familiares.
20.º Tendo referido inclusivamente, que existem materiais pagos e faturados em nome do Clube ... que foram aplicados pelos funcionários do clube nas residências e terrenos dos ex-diretores do Clube ....
21.º Aliás, ex-diretores referiram à direção do Clube ..., que algumas destas aquisições eram adquiridas com o objetivo de conceder benesses a associados do Clube ...;
22.º Para além destas aquisições indevidas, tomou conhecimento a direção do Clube ... que os funcionários do clube prestavam durante o horário de trabalho, em prejuízo do clube (não existia remuneração), serviços aos exdiretores, familiares e amigos (onde V. Exª se inclui), nomeadamente:
- Serviço de lavandaria;
- Serviço de engomadoria;
- Serviço de manutenção e reparação de residências, roulottes, casas, quintas, entre outros locais de ex- diretores;
- Serviço de recolha de lixo
23.º Tendo o associado usufruído de todas estas condições, que prejudicaram o clube.
24.º Todas estas situações podem ser comprovadas por funcionários e associados, que já se disponibilizaram para testemunhar no presente processo;
25.º Esta situação revela um abuso desmedido das prerrogativas e poderes dos ex-diretores e de V. Exª em concreto.
26.º Aquando da tomada de posse dos novos órgãos sociais a atual direção do Clube ... verificou que “desapareceram” grande parte dos documentos com elevada importância para o apuramento da real situação do Clube ..., nomeadamente:
- Comprovativos dos cheques;
- Processo disciplinares movidos contra associados;
- Atas da anterior direção;
27.º Até hoje, apesar de interpelado para o efeito, V/ Exa. não indicou quais atuais diretores o porquê desta situação e o local onde os mesmos se encontram.
28.º Acresce a tudo isto, que V/ Exa. e familiares usaram as instalações de aluguer do Clube ... (Bungalows) de forma gratuita e sem nunca proceder ao pagamento a que estavam obrigados.
29.º Tendo ficado reservado durante muitos fins-de-semana, semanas e meses, estas instalações para uso próprio e proveito de V/ Exa. e seus familiares, tendo o Clube ... ficado prejudicado no seu património com estas ações que configuram verdadeiras formas de abuso de poder.
30.º Estes factos aconteceram de forma reiterada.
31.º Destarte, V/ Exa. no âmbito das suas funções enquanto vogal do Clube ..., desrespeitou e violou os estatutos, regulamento do Clube ..., tendo ainda praticado atos que pela sua gravidade estão a ser apreciados em sede própria, uma vez que, todos estes factos podem ter relevância criminal.
III – DA AUDITORIA
32.º No decorrer de auditoria realizada ao Clube ..., referente aos anos de 2016, 2017, 2018, 2019, por uma entidade externa independente, foram identificados os seguintes indícios de violação dos regulamentos e estatutos do Clube ... e da lei Portuguesa por parte da Direção na qual V. Exa. Desempenhou funções:
- Adulteração dos relatórios de contas apresentados aos associados do Clube ... em Assembleia Geral;
- Adulteração dos resultados contabilísticos do Clube ...;
- Montantes reclamados por fornecedores que, segundo a contabilidade do Clube ..., e documentos de quitação e suporte, o Clube ... já terá liquidado, ou seja 206.000,00€ (duzentos e seis mil euros) que foram pagos pelo Clube ... foram levantados por terceiros que não fornecedores, sempre em montantes superiores aos autorizados por lei;
- Tendo alguns destes levantamentos sido efetuados por ex-diretores;
- Foram ainda liquidados 25.000€ (vinte e cinco mil euros) sem que seja identificado o destinatário;
- Verificaram-se gastos com despesa de alimentação não justificada, mais de 260.000,00 (duzentos e sessenta mil euros) em apenas quatro anos. Este valor revela-se consideravelmente desproporcional a uma instituição desta dimensão, por comparação com organizações semelhantes;
- No total, para uma organização desta dimensão, podermos considerar normal o valor de 60.000,00€ para gastos de alimentação durante 4 anos. Bem assim, temos o valor de 200.000,00€ (duzentos mil euros) de despesa não justificada;
- Verificaram-se valores retirados por caixa sem justificação;
- Foram ainda levantados, por elementos da direção, valores superiores a 6.000,00€ (seis mil euros) sem que, até ao momento, se tenham apresentado os respetivos fins para que foram usados;
- Constata-se a existência de despesas cuja aplicabilidade não foi para a atividade do Clube ..., mas sim para fins não justificados;
- No acumulado dos últimos 4 anos, verificaram-se um conjunto de compras, sobretudo de matéria-prima, que não foi aplicada no Clube ..., nem ao seu fim se adequa à atividade do mesmo. Tudo num valor superior a 38.000,00 (trinta e oito mil euros);
- Foram adiantados a fornecedores 235.000,00€ (duzentos e trinta e cinco mil euros), estando esse montante refletido no balanço da instituição como “outras contas a receber”. Esta alteração contabilística não deveria ter ocorrido, pois para além de tecnicamente não ser aceitável, camufla as contas apresentadas.
- Contratação de supostos financiamentos não autorizados segundo os Estatutos do Clube ...;
Destarte, do relatório da Auditoria resultam as principais Conclusões:
"Pela análise das peças financeiras disponibilizadas em confrontação com os demais documentos disponibilizados é possível aferir, de forma categórica, as peças financeiras apresentadas não representam, nem a situação operacional da instituição, nem a situação patrimonial da mesma. De referir que foram encontradas, no decorrer da autoria, violações ao que está plasmado nos estatutos da instituição, desde logo com a contração de financiamentos não autorizados.
Foram constatadas práticas de gestão que prejudicam a ação do Clube ..., práticas essas revestidas de ações que não estão justificadas desde logo pela orientação para registos contabilísticos que omitem a verdadeira natureza das operações e que enviesam a análise correta da situação do Clube ....
Foram, recorrentemente, utilizadas práticas financeiras que não se compadece com ação do Clube ..., nomeadamente o pagamento excessivo de despesas de alimentação que ainda que numa interpretação abusiva poderiam ser referentes a uma espécie de remuneração, mas que ainda assim não foram autorizadas conforme previsto nos estatutos.
Através da amostra analisada, a contabilidade do Clube ... recorrentemente não espelha a verdadeira situação com os fornecedores, como por exemplo utilização massiva letras para pagamentos, levantamento de cheques por terceiros à operação, adiantamentos a fornecedores superiores no montante do RL do período entre outros.
Conclui-se que não são cumpridas as normas contabilísticas e de relatos exigidas a uma qualquer organização, verificando-se a reiterada existência de processos sem suporte documental.”
IV - DA PROVA APRESENTADA POR V/EXA:
33º. - Através de missiva datada de 13 de outubro de 2020 V/Exa. afirmou que a maioria dos Factos relatados na acusação do procedimento disciplinar em apreço, não estava diretamente relacionada com o desempenho das suas funções;
34º. - Confessando inclusivamente o uso abusivo dos bungalows do Clube ..., os ditos "serviços de lavandaria" e a apropriação do telemóvel do clube, referindo uma vez mais que este tinha sido oferecido.
35º. - Relativamente aos outros factos, V/Exa. optou por não referir nada e nem apresentar prova em contrário, nomeadamente face aos factos resultantes da auditoria realizada ao Clube ...;
V - Dos Factos Provados
36º. - Consideramos como provados os factos resultantes dos articulados 9.º ao 31.º e ainda o referido nos artigos 32.º e 33.º;
37º. - A defesa apresentada por V/Exa. não suscita qualquer elemento de dúvida, nem prova contraria perante a acusação;
38º. - Tendo confessado os factos descritos nos artigos 9.º a 31.°;
VI - DECISÃO FINAL
39º. - Foi instaurado processo disciplinar ao Associado AA, associado n. 236, nos termos artigo 12.º dos Estatutos do Clube ....
40º. - Uma vez que «Incorrem em responsabilidade Disciplinar os associados que violem o consignado nos presentes estatutos bem como regulamentos, deliberações dos órgãos sociais e legislação aplicável e, nomeadamente: 1) Desrespeitem algum sócio contratado pela direção para determinado cargo. 2) Pratiquem nas instalações do Clube ... quaisquer atos, ativos ou omitidos, contrários à lei, estatutos ou regulamentos”, nos termos do art. 12º dos estatutos do Clube ....
41º. - Destarte, os factos relatados e os comportamentos adotados consubstanciam-se na violação do artigo 10.º, n.°s 1, 4 e 5 dos Estatutos do Clube ..., nomeadamente "Constituem deveres dos associados:
1) Respeitar os Estatutos, regulamentos e deliberações dos orgãos sociais do Clube ......
4) Contribuir com todo o seu empenho e com todos os meios ao seu alcance para melhoria das Condições e desenvolvimento do Clube .... 5) Desempenhar com zelo as funções para as quais for eleito ou nomeado.”
42º. - Tendo em conta, que V/Exa. praticou os seguintes atos, entre outros:
- Adulteração dos relatórios de contas apresentados aos associados do Clube ... em Assembleia Geral;
- Gastos com despesa de alimentação não justificada;
- Aquisição de bens, pagos a expensas do Clube ..., cuja materialidade não existe no clube e foram usados em seu proveito;
- Uso indevido dos funcionários, equipamentos e instalações do Clube ...;
- Compra de equipamentos tecnológicos para proveito próprio a expensas do Clube ... sem devolução dos mesmos (apesar de interpelado para o fazer);
- Montantes reclamados por fornecedores que, segundo a contabilidade do Clube ..., e documentos de quitação e suporte, o Clube ... já terá liquidado, ou seja 206.000,00€ (duzentos e sais mil euros) que foram pagos pelo Clube ... foram levantados por terceiros que não os fornecedores, sempre em montantes superiores aos autorizados por lei;
- Contratação de supostos financiamentos não autorizados segundo Estatutos do Clube ...;
43º. - Nos termos do artigo 13.º dos Estatutos do Clube ..., podem ser aplicadas sanções disciplinares de repreensão, suspensão e expulsão.
44º. - Face aos factos relatados e às normas violadas, este Conselho decidiu aplicar a sanção de expulsão, nos termos do c) do artigo 19° dos Estatutos do Clube ....
45º. - Desta forma, "A sanção de expulsão será aplicada nos associados que, de forma grave e culposa, violem o consignado na lei, estatutos, regulamento e deliberações dos órgãos sociais, bem como aqueles que pratiquem atos que prejudiquem gravemente o Clube ....”
31. Não se conformando com a decisão em causa, o Autor apresentou, por carta registada de 2 de Fevereiro de 2021, recurso da mesma para a Assembleia Geral da Ré.
32. Tal Assembleia Geral veio a ser realizada a 14 de Agosto de 2021, tendo resultado aprovada a expulsão do Autor enquanto sócio da Ré.
33. O Autor, em 07/10/2021 viria a instaurar acção declarativa cível comum que correu os seus termos no Juiz 2 do Juízo Local Cível de Vila do Conde, Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este sob o processo n.º ....
34. Em tal acção o Ré formulou os seguintes pedidos:
“A) Ser a deliberação constante do ponto 2 da ordem de trabalhos -“votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo 14º alínea j) dos Estatutos do Clube ...” – declarada nula;
OU CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, o que não se admite e apenas por mera hipótese teórica se coloca,
A.1) Ser a deliberação constante do ponto 2 da ordem de trabalhos -“votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo 14º alínea j) dos Estatutos do Clube ...” – ser anulada; E
B) Ser declarado o uso indevido do procedimento disciplinar, devendo o mesmo ser arquivado quanto ao Autor, com a posterior anulação de todos os actos praticados posteriormente ao mesmo;
C) Ser declarada a ilicitude da decisão de expulsão do Autor por se verificar a nulidade da Nota de Culpa por falta de circunstanciação;
OU CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, o que não se admite e apenas por mera hipótese teórica se coloca,
C.1)Ser anulada a nota de culpa por falta de circunstanciação e consequentemente ser declarada a ilicitude da decisão de expulsão do Autor; E
D) Ser a decisão de expulsão do Autor enquanto associado da Ré ser declarada nula e consequentemente ser o Autor readmitido como associado da Ré, mantendo o seu número de associado anteriormente atribuído e bem assim com os direitos inerentes á qualidade de associado; OU CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, o que não se admite e apenas por mera hipótese teórica se coloca,
D.1)Ser declarada a anulabilidade da decisão de expulsão do Autor enquanto associado da Ré e consequentemente ser o Autor readmitido como associado da Ré, mantendo o seu número de associado anteriormente atribuído e bem assim com os direitos inerentes á qualidade de associado; E
E) Ser revogada a decisão de expulsão do Autor enquanto associado da Ré e consequentemente ser o Autor readmitido como associado da Ré, mantendo o seu número de associado anteriormente atribuído e bem assim com os direitos inerentes á qualidade de associado; por não se ter verificado por parte do Autor a prática de qualquer infracção disciplinar;
Caso assim não se entenda, o que não se concede e apenas por mera hipótese teórica se admite,
E.1)Deve a decisão de expulsão aplicada ao Autor ser substituída por outra sanção disciplinar menos gravosa por a mesma ser abusiva e desproporcional e em consequência ser o Autor readmitido como associado da Ré, mantendo o seu número de associado anteriormente atribuído e bem assim com os direitos inerentes á qualidade de associado. E
F) Deve ainda a Ré ser condenada a pagar ao A. a titulo de danos não patrimoniais a quantia de 5.000,00 euros, acrescida de juros de mora contabilizados desde a citação da R. até efectivo e integral pagamento de tais danos; E
G) Ser a Ré condenada no pagamento das custas processuais.”
35. A Ré, regularmente citada, não contestou a aludida acção.
36. O Tribunal, em 19 de Maio de 2022, no âmbito processo judicial supra citado, proferiu sentença, já transitada em julgado, que
“a) declarou procedente o pedido principal de anulação da deliberação constante do ponto 2 da ordem de trabalhos- “votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo 14º alínea j) dos Estatutos do Clube ... da Assembleia Geral Ordinária do Ré de 14-08-2021;
b)condenou o Ré a pagar ao Autor a quantia de 400,00€ a titulo de indemnização pelos danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora á taxa legal desde a presente data e até efectivo e integral pagamento, absolvendo o Ré do demais peticionado a esse titulo (…)”.
37. Não obstante a aludida decisão, a Ré não permitiu do Autor no parque de campismo a partir do dia 23/05/2022.
38. Consequentemente, a Ré, em 3 de Junho de 2022, decidiu proceder à convocatória de uma nova Assembleia Geral Extraordinária com a seguinte ordem de trabalhos: “(…)
Ponto 1: Tomada de conhecimento da sentença decretada no âmbito do processo nº … que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível de Vila do Conde – Juiz 2;
Ponto 2: Discussão e Votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo14º alínea j) dos estatutos do Clube ...”.
39. A convocatória para a referida Assembleia, para além de ter sido colocada nos lugares comuns, foi efectuada via e-mail remetido para os Associados daquela e foi agendada para o dia 18/06/2022.
40. Para garantir que o Ré tomava conhecimento da aludida Convocatória, foi-lhe ainda enviado, para o e-mail por si anteriormente indicado ..........@....., um segundo e-mail contendo tal convocatória.
41. No dia 18 de Junho de 2022, a Ré realizou a aludida Assembleia Geral Extraordinária.
42. No decurso da Assembleia, aos associados presentes foi questionado se tinham tido acesso a toda a documentação relevante e se algum deles desejava, naquele momento, o acesso a qualquer documento ou informação a que não tivessem tido acesso, não tendo nenhum deles se manifestado, tendo ainda todos os associados tido a oportunidade de, previamente à votação sobre a expulsão do Autor, discutir o que entendessem por pertinente acerca de tal facto.
43. De seguida, procedeu-se à discussão e deliberação mediante votação dos presentes, que se decidiram, novamente e em larga escala, pela rejeição do recurso e consequente expulsão do requerente da qualidade de associado do Clube ..., com a seguinte deliberação: “ (…) quanto ao ponto dois da Ordem dos Trabalhos, votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA nº ..., nos termos do disposto no artigo 14º alínea j) dos Estatutos do Clube ... foi obtido o seguinte resultado:1. Votos Não: 372, 2. Votos Sim: 57, Nulos:1 (…), pelo que, de acordo com a vontade dos associados expressa em tal votação não foram aprovados o recurso e a revogação da expulsão do sócio AA, nº ..., isto é, foi aprovado por maioria a confirmação da sua expulsão, perdendo assim os seus direitos como sócios do Clube ...”.
44. Por carta dirigida ao Ilustre Mandatário da Ré, bem como através de requerimento remetido ao proc. crime que corre termos com o n.º ..., veio o Autor propor o pagamento de € 300,00 como forma de compensar o facto de não ter devolvido o telemóvel à Ré.
45. Até ao procedimento disciplinar em causa, nunca havia sido aplicado ao Autor qualquer sanção.
46. O Autor sente-se triste, humilhado e revoltado perante a decisão de expulsão.
*
III.2 – Matéria de facto não provada
Com relevo para a decisão, encontram-se não provados os seguintes factos:
1. Que o telemóvel Samsung tenha sido oferecido, a título definitivo, ao Autor.
2. Que o Autor tenha facturado à Ré actividades de construção civil, material de
decoração e para casas de banho, utilizados a título pessoal ou por familiares e amigos seus.
3. Que o Autor estivesse convencido que, na qualidade de associado, tivesse direito a usufruir gratuitamente de todos os serviços prestados pela Ré, designadamente lavandaria, engomadoria, manutenção e reparação de residências, roulottes, casas, quintas, entre outros locais e de recolha do lixo.
4. Que o Autor tenha contribuído para o desaparecimento de diversos documentos da Ré, tais como comprovativos de cheques, processos disciplinares movidos contra outros Associados e actas da sua Direcção.
5. Que a utilização dos Bungalows pelo Autor e pela sua família não tenha privado a sua utilização por terceiros.
6. Que a anterior Direcção tenha autorizado o Autor a utilizar os Bungalows.
7. Que o Autor, durante todo o tempo que estava a residir nas instalações da Ré, designadamente nos Bungalows, se dedicasse integralmente à sua actividade de zelador do parque de campismo.
8. Que o Autor tenha tomado conhecimento da convocatória da realização da
Assembleia Geral de 18/06/2022, bem como a respectiva ordem de trabalhos.
9. Que, não obstante o impedimento genérico em estar presente no parque de campismo, o Autor tenha sido impedido de estar presente na aludida Assembleia e, bem assim, de participar na respectiva discussão, assim expondo a sua versão dos factos.
10. Que os associados tenham sido impedidos de discutir e defender a versão dos factos apresentada pelo Autor no âmbito da aludida Assembleia”.
*
3.2. Fundamentação de direito
Delimitadas que estão, sob o n.º II, as questões a decidir, é o momento de as apreciar.
3.2.1 Impugnação da decisão de fato
1-
Da impugnação da decisão relativa ao ponto 8 dos factos não provados (recurso da R.)
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC, segundo o qual
a
Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Para o efeito, o art. 640.º, n.º 1 do NCPC impõe que o recorrente especifique obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios de prova constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
No que respeita à decisão da matéria de facto impugnada pelo R., está em causa a correspondente ao
ponto 8 dos factos não provados
que tem a seguinte redacção: “8. Que o Autor tenha tomado conhecimento da convocatória da realização da Assembleia Geral de 18/06/2022, bem como a respectiva ordem de trabalhos”.
Fundamenta o R./recorrente a sua objecção na matéria dada como provada nos pontos 38, 39, 40 e 9 (conclusões xvi, xvii, xviii e xxi), no facto de o próprio autor ter feito parte activa dos órgãos do R./recorrente (pontos 11 e 12 dos factos provados), que efectuaram várias convocatórias para assembleias ordinárias e extraordinárias nos exactos termos estatutários, nunca aquele pondo em causa a legalidade das mesmas (conclusão xxi); no facto de que a convocatória para a anterior Assembleia Geral de 14/08/2021, contendo a ordem de trabalhos, data e local da sua realização, bem como da possibilidade de consulta da documentação, ter sido efectuada nos exactos termos previstos nos Estatutos do Recorrente (conclusões vi a xi) e para tal assembleia, o autor, já se encontrar expulso e suspenso dos seus direitos de associado e, assim, impedido de frequentar as instalações do R./recorrente, tomou conhecimento naquela exacta forma, da convocatória, fazendo-se representar naquela por intermédio do seu ilustre procurador/mandatário (conclusão xi), tudo conjugado com as regras da experiência comum e da normalidade da vida (conclusão xxxiii), e na própria motivação expressa pelo tribunal
a quo
(conclusões xxvi, xxvii e xxx).
Vejamos.
Os factos assentes a que o R./recorrente apela são os seguintes:
“9. Dispõe o artigo 22.º, n.º 1, dos Estatutos da Ré determina que: “A Assembleia Geral é convocada pelo Presidente da Mesa, nos termos dos presentes Estatutos através da convocatória afixada na sede e em todos os locais de estilo do Clube ... com a antecedência mínima de 15 dias, constando obrigatoriamente da mesma o dia, hora, local e respectiva Ordem de Trabalhos.
…
11. O Autor é associado da Ré há mais de 42 anos, tendo pertencido aos respectivos órgãos sociais durante cerca de vinte anos.
12. O Autor foi, ainda, no período de 2016-2020, eleito Vogal da Direcção da Ré.
…
38. Consequentemente, a Ré, em 3 de Junho de 2022, decidiu proceder à convocatória de uma nova Assembleia Geral Extraordinária com a seguinte ordem de trabalhos: “(…)
Ponto 1: Tomada de conhecimento da sentença decretada no âmbito do processo nº … que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível de Vila do Conde – Juiz 2;
Ponto 2: Discussão e Votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo14º alínea j) dos estatutos do Clube ...”.
39. A convocatória para a referida Assembleia, para além de ter sido colocada nos lugares comuns, foi efectuada via e-mail remetido para os Associados daquela e foi agendada para o dia 18/06/2022.
40. Para garantir que o Ré tomava conhecimento da aludida Convocatória, foi-lhe ainda enviado, para o e-mail por si anteriormente indicado ..........@....., um segundo e-mail contendo tal convocatória.”
Por sua vez, a motivação relativa a este ponto 8 dos factos não provados é a seguinte:
O facto não provado n.º 8 resulta do depoimento do Autor e dos representantes da Ré, GG e HH, bem como as testemunhas II, JJ, KK e LL.
Foi igualmente considerado o teor dos e-mails juntos como documentos n.ºs 14 e 15 da contestação e a Acta da Assembleia Geral junta como documento n.º 13 da contestação.
Há que salientar, neste ponto, que o Tribunal não tem grandes dúvidas, perante as regras da experiência e da normalidade da vida, que o Autor tomou conhecimento da realização de “uma Assembleia Geral”.
De facto, II é genro do Autor e tem uma relação de proximidade com ele, não tendo o Tribunal a mínima incerteza do facto de a realização da Assembleia Geral ter sido comentada entre ambos antes de a mesma ter ocorrido.
Todavia, o que importa apurar nestes autos é que o Autor tenha tido conhecimento da específica convocatória, com a respectiva ordem de trabalhos, de forma a poder apreciar cabalmente aquilo que iria ser discutido.
Quanto a tal ponto, nem mesmo as regras da experiência e da normalidade da vida permitem ao Tribunal fazer prova de tal facto.
Na verdade, por um lado, embora a convocatória seja colocada nos lugares de estilo e na sede da Ré, a verdade é que o Autor se encontrava impedido de aceder a tais lugares.
Por outro lado, pese embora tenham sido remetidos ao Autor dois e-mails, não existe nos autos qualquer prova que o mesmo foi recepcionado, já que não foi junto nenhum recibo de entrega, nem as testemunhas da Ré referiram ter solicitado tal recibo.
Para além do que se referiu, na própria acta da Assembleia Geral, e da visualização da mesma, resulta que a testemunha II imediatamente invocou que o seu sogro não tomou conhecimento da convocatória, o que demonstra um comportamento consistente e congruente por parte do Autor ao longo do tempo.
Perante os motivos que se expõem, sendo certo que seja perfeitamente plausível que o Autor tivesse tomado conhecimento do teor da convocatória (por, por exemplo, a mesma lhe ter sido mostrada pelo seu genro ou, inclusivamente, por ter recebido e lido os e-mails remetidos pela Ré), a verdade é que não pode o Tribunal, com base em tal hipótese, partir para a conclusão que tal foi o que sucedeu.
No caso, incumbindo a prova do conhecimento da convocatória à Ré, não teve o Tribunal outra solução senão dar o respectivo facto como não provado”.
Para análise da questão em apreço – saber se está demonstrado ou não que o A. tomou conhecimento da convocatória da realização da Assembleia Geral de 18/06/2022, bem como da respectiva ordem de trabalhos – aos apontados elementos, convocados pelo R. recorrente, acrescentamos os factos provados sob os pontos 33, 36 e 37:
“33. O Autor, em 07/10/2021 viria a instaurar acção declarativa cível comum que correu os seus termos no Juiz 2 do Juízo Local Cível de Vila do Conde, Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este sob o processo n.º ....
…
36. O Tribunal, em 19 de Maio de 2022, no âmbito processo judicial supra citado, proferiu sentença, já transitada em julgado, que
“a) declarou procedente o pedido principal de anulação da deliberação constante do ponto 2 da ordem de trabalhos- “votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo 14º alínea j) dos Estatutos do Clube ... da Assembleia Geral Ordinária do Ré de 14-08-2021;
b)condenou o Ré a pagar ao Autor a quantia de 400,00€ a titulo de indemnização pelos danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora á taxa legal desde a presente data e até efectivo e integral pagamento, absolvendo o Ré do demais peticionado a esse titulo (…)”.
37. Não obstante a aludida decisão, a Ré não permitiu do Autor no parque de campismo a partir do dia 23/05/2022”.
Em face do elementos expostos, não tem este tribunal razões para duvidar, tal como o tribunal recorrido não teve, de que, a par da convocatória da Assembleia Geral para 18/06/2022, efectuada nos termos impostos pelo art. 22.º, n.º 1 dos Estatutos da R. (pontos 9, 38 e 39 dos factos provados), e do envio de dois emails para o endereço electrónico fornecido pelo A. à recorrente R. com a respectiva convocatória (pontos 39 e 40 dos factos provados), o A. e o seu genro II, que veio a comparecer à dita Assembleia Geral, falaram da ulterior realização de uma assembleia geral. Se assim é, não deixa, igualmente, de se acompanhar o tribunal
a quo
nas reservas que manifestou relativamente à possibilidade de, com segurança suficiente, se extrair desses elementos que o A. tomou conhecimento da concreta convocatória colocada nos lugares comuns (ponto 39 dos factos provados) e da respectiva ordem de trabalhos. Na verdade, desconhece-se qual tenha sido o teor da conversa entre o A. e o seu genro acerca da agendada assembleia geral da R./recorrida, e, pese embora, a precedente sentença proferida em 19/05/2022 no âmbito do processo ... (ponto 33 e 36 dos factos provados), que declarou procedente o pedido principal de anulação da deliberação constante do ponto 2 da ordem de trabalhos- “votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo 14º alínea j) dos Estatutos do Clube ... da Assembleia Geral Ordinária do Ré de 14-08-2021” –, nem por isso se nos afigura ser inevitável concluir que da ordem de trabalhos da assembleia de 18/06/2022, mormente do ponto 2- “Discussão e Votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo14º alínea j) dos estatutos do Clube ...” – foi dado o devido conhecimento ao A..
Acresce que, “a Ré não permitiu [a entrada] do A. no parque de campismo a partir do dia 23/05/2022” (ponto 37 dos factos provados), o que impede a afirmação de que o A. teve conhecimento da convocatória da assembleia geral e da respectiva ordem de trabalhos por via da sua afixação na sede e em todos os locais de estilo do Clube ... (pontos 9 e 39 dos factos provados). E não se diga, como diz a R. recorrente, que, aquando da convocatória para a assembleia geral de 14/08/2021, segundo refere, efectuada nos exactos termos previstos nos seus Estatutos, o A. já estava expulso e suspenso dos seus direitos de associado e, portanto, impedido de frequentar as suas instalações, e ainda assim tomou conhecimento da convocatória e fez-se representar naquela por intermédio do seu ilustre procurador/mandatário (conclusões vi a xi). Com efeito, este precedente não permite a extrapolação de que o A. viu ou acedeu à convocatória para a Assembleia Geral de 18/06/2022 afixada no interior das instalações do R. recorrente, ainda que soubesse, por ter pertencido aos órgãos sociais da R. recorrente durante cerca de 20 anos, da modalidade de convocação prevista nos estatutos.
Finalmente, apesar dos emails enviados pela R. para o endereço electrónico fornecido pelo A. contendo a convocatória para a assembleia geral do dia 18/06/2022 (pontos 39 e 40 dos factos provados), o tribunal recorrido teve oportunidade de, na sua motivação, salientar que “não existe nos autos qualquer prova que o mesmo foi recepcionado, já que não foi junto nenhum recibo de entrega, nem as testemunhas da Ré referiram ter solicitado tal recibo”.
Neste conspecto, concorda-se e subscreve-se a conclusão da decisão recorrida a este respeito, que, por desnecessidade de mais considerandos, nesta parte, se reproduz uma vez mais:
“Perante os motivos que se expõem, sendo certo que seja perfeitamente plausível que o Autor tivesse tomado conhecimento do teor da convocatória (por, por exemplo, a mesma lhe ter sido mostrada pelo seu genro ou, inclusivamente, por ter recebido e lido os e-mails remetidos pela Ré), a verdade é que não pode o Tribunal, com base em tal hipótese, partir para a conclusão que tal foi o que sucedeu.
No caso, incumbindo a prova do conhecimento da convocatória à Ré, não teve o Tribunal outra solução senão dar o respectivo facto como não provado”.
De onde, a pretensão recursiva da R./recorrente tem nesta parte de improceder.
2-
Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto contida nos pontos 14, 17, 22 e 23 dos factos provados e dos pontos 1, 5, 6 e 7 dos factos não provados (recurso do A.).
Como já acima tivemos oportunidade de dizer a propósito do recurso da R., a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, sendo expressamente admitida pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC, exige do recorrente determinados ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, como seja a especificação, sob pena de rejeição, dos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios de prova constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que imponham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
No caso, o recorrente A. invoca erro no julgamento quanto aos factos contidos nos pontos 14, 17, 22 e 23 dos factos provados e nos pontos 1, 5, 6, 7 dos factos não provados, por entender que, com base nos meios de prova por si identificados, os primeiros não podem assim ser considerados, ao menos, no que respeita a alguns deles, com a abrangência que a redacção conferida pelo tribunal recorrido lhes confere, e os segundos por terem ficado demonstrados.
A este respeito, afigura-se-nos que, na generalidade, o recorrente cumpre os aludidos ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Antes de prosseguirmos para a análise de cada um dos pontos impugnados pelo A. esclarecemos desde já da impossibilidade de o mesmo se socorrer, como quis fazer, da sentença proferida e transitada em julgado no Proc. n.º 1428/21.8TVCD como meio de prova para sustentar a alteração da impugnada decisão da matéria de facto.
Na verdade, em fase de saneador, o tribunal
a quo
julgou improcedentes as excepções do caso julgado e da autoridade de caso julgado invocadas, decisão que, não sendo passível de apelação autónoma, não foi objecto de impugnação autónoma no recurso da sentença final, apesar de o A. aí ter voltado a convocar as mesmas excepções de caso julgado - no sentido de o R. não poder deliberar novamente e sobre os mesmos factos a expulsão do A., defendendo, por isso, que a deliberação ora em causa é nula, ao abrigo do art. 56.º, n.º 1, al. d) do CSC, por contrária aos bons costumes e à lei - e da autoridade do caso julgado (conclusões LXXVI a LXXXIX).
Sem prejuízo de mais longe, ainda nesta sentença, voltarmos ao tema, convém, desde já, esclarecer que aquela decisão interlocutória que conheceu das excepções do caso julgado, não tendo sido objecto de impugnação autónoma com o recurso da decisão final, nos termos do art. 644.º, n.º 3 do CPC, transitou em julgado, e, portanto, faz caso julgado formal nos termos dos arts. 620.º, n.º 1 e 628.º do CPC. Assim decidiu o STJ em acórdão de 5/07/2022 (Proc. 2892/16.2T8VIS.C1.S1; rel. Ana Paula Boularot), cujo sumário, no que releva, se transcreve: “I- Decidida a excepção de caso julgado, suscitada pelo Réu, em sede de despacho saneador, pela sua improcedência, a mesma faz caso julgado formal no que tange a essa questão, concretamente apreciada, nos termos do nº3 e da alínea a) do nº1 do artigo 595º do CPCivil, caso não seja impugnada autonomamente de harmonia com o preceituado nos artigos 620º, nº1 e 628º este como aquele do mesmo diploma legal. II- Não tendo havido recurso do despacho saneador, quanto a esse particular, nunca poderia tal questão ser apreciada em sede de recurso de Apelação interposto da decisão final de mérito, por se tratar de res judicata” (
in
www.dgsi.pt
).
Negada à sentença proferida no Proc. 1428/21 a eficácia ou a autoridade de caso julgado, a decisão nela contida acerca do comportamento do A. que foi objecto do processo disciplinar levado a cabo pela R. não tem efeito sobre neste processo, inclusive no que respeita à decisão de facto. Como se explica no acórdão do STJ de 19/09/2024 (proc. 3042/21.9T8PRT.S2; rel. Fernando Baptista): “Os juízos probatórios positivos ou negativos que consubstanciam a chamada “decisão de facto” não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos, constituindo apenas fundamentos de facto da decisão jurídica em que se integram. Nessa medida, embora tais juízos probatórios relevem como limites objectivos do caso julgado material nos termos do artigo 621.º do CPC, sobre eles não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo” (
in
www.dgsi.pt
).
O mesmo STJ em acórdãos de 12/03/2023 (Proc. 979/21.9T8VFR.P1.S1; rel. Jorge Dias) e de 29/10/2024 (proc. 2985/20.1T8FNC.L1S1; rel. Henrique Antunes), pronunciaram-se em igual sentido, escrevendo-se, neste último, que “a decisão proferida num processo anterior, não prova plenamente, no âmbito de uma acção posterior, os factos tidos como provados na acção em que foi proferida e, por isso, não provam, plenamente, qualquer dos factos controvertidos. Considerados a partir do valor probatório da sentença, enquanto documento público, os factos apreciados no processo em que foi proferida, não se impõem noutro processo, porque a sentença prova plenamente a realização do julgamento – dos actos praticados pelo juiz – mas não a realidade dos factos dado como provados, do que decorre, como regra, a rejeição de qualquer eficácia probatória das premissas,
maxime
de facto, de uma decisão. A ordem jurídica processual portuguesa não aceita, pois, que o caso julgado incida sobre factos. Pode compreender-se que o caso julgado abranja os fundamentos directos da decisão, mas isso é completamente diferente de concluir que o caso julgado abrange todo e qualquer facto que tenha sido adquirido na acção. Se assim fosse, nem sequer se compreenderia o regime da eficácia extraprocessual das provas, dado que, em vez de se invocar a prova produzida num processo, seria suficiente invocar-se o caso julgado constituído sobre o facto provado” (
in
www.dgsi.pt).
Neste conspecto, a sentença proferida no id. Proc. 1428/21 não tem nos presentes autos qualquer valor probatório, o que desde já se assinala para valer em relação a todos os pontos da matéria de facto impugnados pelo A./recorrente.
Quanto ao
ponto 14 dos factos provados
, tem o mesmo a seguinte redacção:
“
Em tal período, o Autor utilizou regularmente, em proveito próprio ou de familiares e de amigos, e sem o pagamento de qualquer contrapartida, os serviços da Ré de lavandaria, engomadoria, manutenção e reparação de residências, roulottes, casas, quintas, entre outros locais e de recolha do lixo”.
A factualidade contida neste ponto, de acordo com a motivação da sentença recorrida, provém da falta de oposição, “tendo sido dados como assentes em sede de despacho saneador, sem reclamação”.
Consultado este despacho verifica-se que, do mesmo passo, além da identificação do objecto do litígio e da enunciação dos temas de prova, consta o elenco dos temas considerados provados por acordo das partes, de entre estes, o vertido sob o ponto Q com o seguinte teor: “Utilização, pelo A., a tempo inteiro, dos serviços de lavandaria da R. a título pessoal, sem pagamento da taxa devida”.
O que a este respeito foi reconhecido na PI foi que “o Autor dos supra transcritos serviços apenas utilizou o serviço de lavandaria enquanto exerceu as funções de Vogal do Clube ... a tempo inteiro” (art. 177.º).
Ouvida a gravação da prova pessoal prestada em julgamento contata-se que o A., tal como a esposa, a testemunha JJ, reconheceram a utilização dos serviços de lavandaria, que, segundo as testemunhas KK e LL, chefe de pessoal e recepcionista da R., respectivamente, incluía serviços de engomadoria. Acrescentou o A. que o fazia durante todo o ano e a esposa que o faziam sem pagar (“ali não pagavam”).
Se assim é, a utilização desses serviços pelo A. em proveito de outros familiares e de amigos, sem pagamento, afigura-se-nos que não ficou demonstrado. Com efeito, em julgamento ninguém mencionou o recurso à lavandaria pelo A. em benefício de amigos, ou por estes autorizados por aquele. Verdade que as identificadas testemunhas KK e LL mencionaram que a filha do A. ia passar o fim de semana ao parque de campismo e levava, no carro, roupa de casa para lavar na lavandaria da R. sem que pagasse esse serviço. Disseram mesmo que assistiram à chegada da referida filha do A. com roupa que era entregue na lavandaria para ser lavada. A primeira dessas testemunhas justificou esse conhecimento porque estava na recepção e via aqueles factos e a segunda porque chegou a ser a própria quem, passando já das 16.30 h – altura em que a colega da lavandaria saía - abriu a porta para descarregar o carro. Se assim é, não mencionaram estas testemunhas qualquer outro elemento revelador de que tal sucedia com conhecimento ou autorização do A. ou de que o pagamento não fosse efectuado. Por sua vez, a testemunha JJ, instada sobre o assunto, disse desconhecer se a roupa das filhas era lavada no parque. À falta de outras provas corroborantes, os referidos relatos das testemunhas KK e LL afiguram-se-nos escassos para se poder concluir que a filha do A., pessoa reconhecidamente adulta e independente do pai, tirava proveito da lavandaria sem pagar e que o fazia autorizada pelo A.
Quanto aos restantes serviços elencados sob o ponto 14, a testemunha JJ admitiu que “às vezes um funcionário ia arranjar a antena da TV”; a testemunha LL referiu o corte da relva no alvéolo do A. de familiares e de amigos, assim como referiu a limpeza da roulotte do A. pela funcionária da R. aquando da transição do mesmo para o bungalow e a testemunha KK mencionou a limpeza deste bungalow também pela funcionária da R.
A questão da limpeza do bungalow porque integrado na utilização que o A. reconheceu deste tipo de equipamento não se nos afigura que possa ser autonomizada desta utilização e a limpeza da roulotte assim como o corte da relva, tendo sido mencionado apenas por uma testemunha, sem maiores detalhes, como seja a identificação dos amigos, a localização temporal desses acontecimentos e sem a confirmação por parte dos funcionários do R. directamente envolvidos, também se mostram sem sustentação probatória suficiente para serem considerados demonstrados. E o arranjo da antena da TV, desconhecendo-se o tipo de arranjo e inclusive se se tratava de TV do próprio A. ou de TV de que o bungalow dispusesse, não se apresenta com relevância para sequer ser mencionado como benefício indevido.
Assim, o ponto
14 dos factos provados
, extraídos os factos que este tribunal considera não terem sido demonstrados e mantidos os factos que resultaram provados, ficará com a seguinte redacção: “
Em tal período, o Autor utilizou regularmente, em proveito próprio e da esposa, e sem o pagamento de qualquer contrapartida, os serviços da Ré de lavandaria e engomadoria
”.
O
ponto 17 dos factos provados
tem o seguinte teor: “Em determinadas ocasiões, nomeadamente no final do ano, a utilização dos Bungalows pelo Autor e pela sua família impediram a realização de reservas e ocupação dos mesmos por outros sócios”.
O A. pretende, em primeira linha, que o mesmo seja eliminado.
Para fundamentar a sua decisão o tribunal recorrido escreveu: “No que concerne ao facto provado n.º 17, as testemunhas KK, LL, confirmaram tal situação, tendo o seu depoimento sido igualmente corroborado por aquele prestado por GG que, embora não tendo a certeza de concretas ocasiões, igualmente confirmou o facto em causa”.
Reconhecida pelo A. a utilização dos Bungalows por si e pela esposa de Outubro a meados de Março, a prova produzida quanto à demais factualidade ali vertida consistiu nos depoimentos das já identificadas testemunhas KK e LL, dado que GG, legal representante da R., afirmou não saber se o A. ocupou bungalows quando havia clientes.
Disse a primeira das apontadas testemunhas que “houve algumas alturas em que havia um bungalow disponível para um familiar penso que é uma das filhas” e a segunda que o A. “tinha uma filha que é a MM que costumava ficar também no bungalow aos fins de semana” e disseram ambas que a utilização dos bungalows pelo A. e pelos familiares impediu a sua ocupação por terceiros na altura da passagem de ano em que a procura aumenta. Estes depoimentos, assim prestados, sem mais circunstâncias concretizadoras, como seja a identificação dos interessados, e sem outros meios probatórios corroborantes, designadamente pedidos de reserva ou comunicações dirigidas ao A. sobre o sucedido, não permitem formar uma convicção segura acerca dos factos em causa, ou seja que a eventual utilização dos bungalows pela filha do A. seja imputável a este e que a utilização dos bungalows pelo A. tenha impedido a realização de reservas e a ocupação dos mesmos por outros sócios.
Nestes termos, o ponto 17 dos factos provados não merece manter-se e, como tal elimina-se (veja-se a matéria já vertida no ponto 15 não impugnado).
O
ponto 22 dos factos provados
tem a seguinte redacção: “O Autor participou e beneficiou de incontáveis almoços e jantares de forma gratuita, contribuindo para uma despesa em alimentação, conjuntamente com os seus colegas da Direcção e ao longo do quadriénio 2016-2020, em valor superior a € 200.000,00”. O A. pretende que esta factualidade transite para os factos não provados.
No que toca a este ponto, o tribunal
a quo
motivou do seguinte modo a sua convicção:
“O Autor e as suas testemunhas II e JJ referiram que, sendo verdade que o Autor usufruía de almoços e jantares no restaurante da Ré, pagou pontualmente os mesmos.
Tal versão foi negada de forma perfunctória por GG e de modo mais justificado pelas testemunhas KK, LL e NN.
Neste particular, as testemunhas KK e NN explicaram por que motivo consideram que nunca foi paga nenhuma refeição, tendo prestado um depoimento espontâneo e genuíno e apresentado uma explicação que o Tribunal considerou lógica e perfeitamente plausível.
Embora as testemunhas KK, LL e NN não se recordassem de concretas datas em que o Autor consumiu refeições no restaurante que não pagou, não é exigível que as testemunhas retenham tais concretas datas na memória, sobretudo se for tido em conta que, conforme as mesmas referiram, tais almoços e jantares eram recorrentes e, à data dos depoimentos, já tinham decorrido há cerca de quatro anos.
Neste circunspecto, a testemunha NN salientou que, caso o Autor tivesse pago as refeições, deveria existir nas instalações da Ré documentação comprovativa de tais pagamentos, o que não ocorreu.
No mais, há que considerar que II e JJ são, respectivamente, genro e esposa do Autor, e frequentadores assíduos do Parque, tendo utilizado o mesmo durante o período temporal em que o Autor era Vogal da Direcção, o que leva a concluir que os mesmos têm um interesse praticamente idêntico ao do Autor no desfecho da acção.
Por contraposição, ainda que KK, LL e NN sejam funcionários da Ré, não se lhes vislumbra idêntico interesse na decisão dos presentes autos”.
Ouvida a gravação dos referidos depoimentos verifica-se que nenhum deles discriminou ou quantificou minimamente os almoços e jantares de que o A. usufruiu conjuntamente com os seus colegas da Direcção ao longo do quadriénio 2016-2020. De facto, o A. admitiu que usufruiu, sem pagar, de refeições no restaurante do parque juntamente com os restantes elementos da Direcção nos dias em que havia reuniões. A testemunha LL disse que as reuniões eram à 4.ª feira. NN, actual Vice-Presidente da R., disse que quem estava ligado à Direcção comia lá todos os dias sem pagar. Porém, como também afirmou, esta informação foi recolhida juntos dos funcionários da R.. GG, Presidente da Direcção da R., referiu-se a despesas no restaurante efectuadas pela Direcção, de forma genérica. As testemunhas LL falou de almoços ao Domingo de 80,00 €, segundo pensava, do A., e KK falou de várias refeições que o A. não pagou, contudo, nenhum destes depoimentos é acompanhado por qualquer tipo de prova documental que é acessível já que, como explicaram estas testemunhas, as refeições não pagas são documentalmente reportadas à R. pela concessionária do restaurante a fim de ser ressarcida do respectivo custo. Afigura-se-nos, pois, que, independentemente da credibilidade dos depoimentos em causa, a qualidade dos mesmos em termos de informações prestadas é extremamente parco, em prejuízo do apuramento e esclarecimento dos factos com a segurança e o rigor indispensável a uma decisão judicial.
Assim sendo, este tribunal de recurso decide julgar parcialmente procedente a pretensão do A., e, por consequência, o
ponto 22 dos factos provados
passará a ter a seguinte redacção: “
O Autor participou e beneficiou em almoços e jantares de forma gratuita, contribuindo para uma despesa em alimentação, conjuntamente com os seus colegas da Direcção aquando das respectivas reuniões, ao longo do quadriénio 2016-2020
”.
Quanto ao
ponto 23 dos factos provados
– “O Autor assinou uma confissão de dívida em nome da Ré, titulando pretensos mútuos efectuados à Ré que, na realidade, não existiram” -, o A. entende que o tribunal apenas poderia dar como provado que “O Autor assinou uma confissão de dívida em nome da Ré, titulando pretensos mútuos efectuados à Ré”.
Justificou o tribunal recorrido a prova destes factos do seguinte modo: “No que tange ao facto provado n.º 23, há que salientar que o próprio Autor confirmou ter assinado uma confissão de dívida, embora justificando a sua conduta no facto de ter confiado nos demais membros da Direcção e, por isso, desconhecer que a mesma não correspondia à realidade.
A assinatura da confissão de dívida foi igualmente confirmada por ambos os representantes da Ré, GG e HH, bem como pela testemunha LL.
O Tribunal não ficou convencido da veracidade das declarações do Autor quanto ao desconhecimento da falsidade da declaração de dívida. Na verdade, GG e HH salientaram de forma veemente que as assinaturas ocorreram quando o Autor já não era Vogal da Direcção, o que inquina o teor das suas declarações, que se basearam numa pretensa candura face à relação de confiança que detinha com os demais elementos da Direcção”.
Relativamente a esta matéria, o próprio A. reconhece ter assinado uma declaração de dívida em nome da R., titulando pretensos mútuos efectuados à R., e o identificado GG, assim como HH, novo tesoureiro, asseveraram que esse dinheiro não entrou na R., o que, atentas as funções exercidas por estes na nova Direcção da R. e a actividade que explicaram, sobretudo este último, ter sido desenvolvida pela nova Direcção no sentido de apurar os factos imputados à anterior Direcção, inclusive ao A., foi considerado credível.
Assim, não obstante a ausência da referida declaração de dívida, o tribunal considera que a prova produzida nos termos sobreditos é suficiente para a demonstração da factualidade inserida no ponto 23 dos factos provados, e, como tal, nesta parte, o recurso do A. improcede.
Quanto ao
ponto 1 dos factos não provados
– “Que o telemóvel Samsung tenha sido oferecido, a título definitivo, ao Autor” - a pretensão recursiva é no sentido de esta matéria ser dada como provada, apelando-se para o efeito ao depoimento de II, genro do A, que sobre o assunto disse que achava que lhe tinham dado o telemóvel.
O tribunal
a quo
a este respeito motivou a sua convicção do seguinte modo: “…os factos não provados n.ºs 1 e 6 decorrem da total ausência de prova dos mesmos. Na verdade, embora o Autor tenha salientado tal ponto, não houve qualquer testemunha que tenha assistido a reuniões da Direcção e que tenha presenciado tais autorizações, sendo que igualmente inexiste qualquer documento junto aos autos que demonstre tal facto. Neste particular, embora OO tenha salientado que existiam autorizações da Direcção, o mesmo não assistiu a quaisquer reuniões.
No mais, os legais representantes da Ré, GG e HH, referiram que o antigo Presidente da Direcção entregou o telemóvel quando instado para o efeito, o que igualmente mitiga o depoimento do Autor”.
Ouvida a gravação da prova, concorda-se inteiramente com a decisão que considerou não provado o facto em causa, tanto mais que o referido depoimento de II na verdade o que revela é que o mesmo não sabe se o telemóvel foi ou não doado ao sogro.
Improcede, pois, a impugnação do A. quanto a este ponto 1 dos factos não provados.
O
ponto 5 dos factos não provados
– “Que a utilização dos Bungalows pelo Autor e pela sua família não tenha privado a sua utilização por terceiros” - entende o A. recorrente que deve passar a constar entre os factos provados.
A este respeito pode ler-se na sentença recorrida que “O facto não provado n.º 5 encontra-se em directa oposição com o facto provado n.º 17, remetendo o Tribunal para os fundamentos aí indicados”.
Os factos contemplados nesse ponto 17 foram agora considerados não provados porquanto, pelas razões expostas, da prova produzida não se colhe que a utilização dos Bungalows pelo Autor e esposa tenha impedido a realização de reservas e a ocupação dos mesmos por outros sócios. Tampouco, acrescenta-se agora, permite tal prova a afirmação do contrário, ou seja que a utilização dos Bungalows pelo Autor e pela esposa não tenha privado a sua utilização por terceiros. Na verdade, apesar de ter resultado praticamente unânime que na época de Inverno, ou seja de Outubro a Março, o parque de campismo tem pouca afluência (veja-se os depoimentos indicados pelo A.: o seu, o de NN e o de II), nem por isso deixa de ser possível que a utilização de um bungalow pelo A. nesse período tenha impedido a sua ocupação por outras pessoas, sobretudo no fim de ano que, segundo as testemunhas KK e LL, volta a ser de grande procura das instalações do parque de campismo.
Improcede, portanto, a pretensão recursiva quanto a este ponto.
O
ponto 6 dos factos não provados
tem a seguinte redacção: “que a anterior Direcção tenha autorizado o Autor a utilizar os Bungalows”. O A. defende que este facto ficou provado com base no depoimento do próprio e nos depoimentos das testemunhas NN, II, OO e LL.
Sobre este ponto o tribunal recorrido disse o que já em parte se transcreveu a propósito do ponto 1 dos factos não provados e que agora se transcreve na íntegra: “os factos não provados n.ºs 1 e 6 decorrem da total ausência de prova dos mesmos. Na verdade, embora o Autor tenha salientado tal ponto, não houve qualquer testemunha que tenha assistido a reuniões da Direcção e que tenha presenciado tais autorizações, sendo que igualmente inexiste qualquer documento junto aos autos que demonstre tal facto.
Neste particular, embora OO tenha salientado que existiam autorizações da Direcção, o mesmo não assistiu a quaisquer reuniões.
No mais, os legais representantes da Ré, GG e HH, referiram que o antigo Presidente da Direcção entregou o telemóvel quando instado para o efeito, o que igualmente mitiga o depoimento do Autor.
Por outro lado, pese embora LL ter referido que a anterior Direcção sabia que o Autor utilizava os Bungalows, nunca foi informada de qualquer expressa autorização para o efeito”.
Ouvida a gravação do julgamento, este tribunal formou uma convicção idêntica à do tribunal recorrido. Na verdade, além das declarações do A, nenhuma prova existe, documental ou testemunhal, que demonstre a alegada autorização da direcção para o A. utilizar os Bungalows. A testemunha OO, associado da R. e amigo do A., limitou-se a dizer que achava que a utilização do bungalow por este tinha sido consentida pela Direcção e a testemunha II, dizendo que essa autorização existia, não sendo ele elemento da Direcção, antes um mero associado, por sinal, genro do A., nem revelando ter qualquer informação privilegiada a esse respeito, não foi, porque inidóneo para o efeito, relevante do ponto de vista probatório. Finalmente, o facto de a utilização dos bungalows pelo A. ter sido pública, como afirmaram as testemunhas OO e LL, não equivale nem revela autorização da Direcção.
Este ponto permanece, assim, como não provado e improcede a correspondente impugnação.
Por último
o ponto 7 dos factos não provados
: “Que o Autor, durante todo o tempo que estava a residir nas instalações da Ré, designadamente nos Bungalows, se dedicasse integralmente à sua actividade de zelador do parque de campismo”.
Entende o A. que este facto devia ser dado como provado através das declarações do Recorrente e do depoimento das testemunhas II, OO e LL.
O que a respeito da decisão deste ponto da matéria de facto foi escrito na sentença foi o seguinte: “No que concerne ao facto não provado n.º 7, ainda que o Tribunal tenha aceitado que a residência permanente do Autor no parque tenha auxiliado a que o mesmo exercesse as suas funções, não ficou minimamente convicto que o Autor as exercesse constantemente, independentemente da afirmação de tal facto pelo próprio Autor e pela sua testemunha II.
Por um lado, não é crível que tal ocorresse, já não é normal que uma pessoa trabalhe todos os dias, sem excepção, sobretudo sem receber qualquer contrapartida monetária (ainda que reformado, como o Autor se encontrava).
Porém, as testemunhas KK, LL e NN, trabalhadores da Ré, confirmaram que nem sempre o Autor se encontrava a trabalhar”.
A convicção deste tribunal quanto a este facto coincide também com a do tribunal recorrido, em cuja motivação se revê. Efectivamente, não se nega que o A. estivesse todos os dias, ou praticamente todos os dias, no parque de campismo, como referiram as testemunhas ora indicadas pelo A., II, OO e LL. Todavia, não existe qualquer prova que afaste a normalidade inerente ao exercício de qualquer actividade idêntica à que era exercida pelo A. de zelador do parque a título gratuito, enquanto vogal da Direcção, e, portanto a dedicação do A., admitindo-se que fosse equivalente à empregada numa função laboral comum, haveria de coexistir com tempo para descanso e afazeres pessoais.
Improcede, assim, nesta parte a pretensão recursória, mantendo-se como não provada a matéria deste ponto 7.
Em face das alterações à decisão da matéria de facto efectuadas por este tribunal, o elenco dos factos provados passará ser o seguinte:
1. A Ré é uma instituição de utilidade pública que não tem por fim o lucro económico dos seus associados, tendo por principal objectivo “fazer conhecer, viver, amar as montanhas, serras, campos e praias e, em particular, a prática de desporto ao ar livre, colectiva ou individual, nomeadamente, montanhismo, alpinismo, campismo e caravanismo”.
2. No âmbito das suas finalidades, a Ré é detentora do parque de campismo sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de Vila do Conde, o qual se encontra à disponibilidade de ser utilizado pelos seus associados.
3. O artigo 8.º dos Estatutos da Ré estabelece, nomeadamente, que é direito dos Associados usufruir dos serviços, actividades e benefícios prestados pelo Clube; eleger órgão sociais, ser eleito para os órgãos sociais, participar e votar nas Assembleias Gerais, requerer a convocação de Assembleias Gerais extraordinárias, examinar relatórios, contas e outros documentos, no período que antecede à Assembleia Geral Ordinária anual, nos termos e condições ficados pela Mesa da Assembleia Geral, desde que o requeiram por escrito, com a antecedência mínima de 15 dias e o fundamentem com um interesse legitimo, directo e pessoal; ser esclarecido em Assembleia Geral dos motivos e fundamentos dos actos praticados pelos órgãos sociais do clube e Subscrever a admissão
de novos sócios.
4. O art.º 12.º dos Estatutos da Ré, sob a epigrafe “Responsabilidade Disciplinar”, determina que: “Incorrem em responsabilidade disciplinar os associados que violem o consignado nos presentes estatutos, bem como regulamentos, deliberações dos órgãos sociais e legislação aplicável, e nomeadamente: 1) Desrespeitem algum sócio, membro de órgãos sociais, departamentos, comissões ou qualquer individuo nomeado ou contratado pela Direcção para determinado cargo; 2) Pratiquem nas instalações do Clube ... quaisquer atos, ativos ou omitidos contrários á lei, estatutos ou regulamentos; 3) causem dano ao Clube ... e 4) aproveitem o Clube ... para atividades politicas ou religiosas”.
5. O art.º 13.º dos Estatutos da Ré preconiza que: “a) Podem ser aplicadas sanções disciplinares de repreensão, suspensão e expulsão”.
6. Por sua vez, resulta do disposto no art.º 14.º, alínea K), dos mesmos Estatutos, sob a epigrafe “Procedimento Disciplinar”, que: “Até á decisão definitiva do processo disciplinar poderá, o associado, por decisão fundamentada da Direcção, ser suspenso do exercício dos seus direitos”.
7. O art.º 17.º dos Estatutos da Ré especifica que os cargos dos respectivos órgãos sociais são gratuitos.
8. O art.º 18.º, n.º 1, dos Estatutos da Ré refere que a condição de Associado é essencial para pertencer aos respectivos órgãos sociais.
9. Dispõe o artigo 22.º, n.º 1, dos Estatutos da Ré determina que: “A Assembleia Geral é convocada pelo Presidente da Mesa, nos termos dos presentes Estatutos através da convocatória afixada na sede e em todos os locais de estilo do Clube ... com a antecedência mínima de 15 dias, constando obrigatoriamente da mesma o dia, hora, local e respectiva Ordem de Trabalhos.”
10. O art.º 31.º, alínea e), dos Estatutos da Ré estabelece que uma das funções do Vogal da Direcção é zelar pelo parque de campismo.
11. O Autor é associado da Ré há mais de 42 anos, tendo pertencido aos respectivos órgãos sociais durante cerca de vinte anos.
12. O Autor foi, ainda, no período de 2016-2020, eleito Vogal da Direcção da Ré.
13. Durante o exercício de tais funções, foi fornecido ao Autor, pela Direcção da Ré, um telemóvel de marca Samsung, para o uso das suas funções em tal qualidade.
14. “Em tal período, o Autor utilizou regularmente, em proveito próprio e da esposa, e sem o pagamento de qualquer contrapartida, os serviços da Ré de lavandaria e engomadoria.
15. O Autor, conjuntamente com a sua família, utilizavam os Bungalows da Ré sem proceder ao pagamento de qualquer contrapartida monetária, nomeadamente a respectiva taxa de utilização.
16. Tais utilizações ocorriam entre os meses de Outubro e Março de cada ano.
18. A utilização de tais serviços foi motivada pelo facto de o Autor permanecer no aludido parque a tempo inteiro.
19. A residência do Autor no parque de campismo ao longo de todo o ano permitia-lhe melhor exercer as suas funções de zelador, evitando deslocações para a sua habitação, sita em Braga.
20. O custo das deslocações do Autor de e para Braga ascenderiam ao valor aproximado de € 51,00 e poderiam ser cobrados à Ré.
21. Com a permanência do Autor nas instalações da Ré, foi evitado tal custo.
22. O Autor participou e beneficiou em almoços e jantares de forma gratuita, contribuindo para uma despesa em alimentação, conjuntamente com os seus colegas da Direcção aquando das respectivas reuniões, ao longo do quadriénio 2016-2020.
23. O Autor assinou uma confissão de dívida em nome da Ré, titulando pretensos mútuos efectuados à Ré que, na realidade, não existiram.
24. No dia 10 de Junho de 2020, tomou posse uma nova Direcção da Requerida, tendo cessado nessa data as funções do Autor, enquanto vogal, mantendo, após essa data, apenas e tão só a qualidade de Associado da Ré.
25. O Autor não devolveu o telemóvel à Ré após a cessação de funções e após solicitação desta, por entender que o mesmo lhe havia sido oferecido pela Direcção.
26. No dia 5 de Outubro de 2020 foi instaurado um processo disciplinar ao Autor, imputando àquele, ainda que de forma indiciária, a prática de vários factos, enquanto no exercício das funções de Vogal da Ré, factos esses que segundo a Ré fundavam a sua intenção de proceder á expulsão do Autor, nos termos do disposto no artigo 13º, alínea c) dos seus Estatutos.
27. Aquando da instauração do referido processo disciplinar e comunicação da nota de culpa, a Ré comunicou ainda ao Autor que o mesmo, por “decisão da Direcção do Clube ... (Clube ...) se encontrava suspenso do exercício dos seus direitos, nos termos do artigo 14º, alínea k) dos Estatutos”.
28. Em resposta, o Autor apresentou, a título pessoal, a sua defesa, peticionando, a final, que a Ré “revogasse a decisão de suspensão contra ele deliberada”.
29. A Ré, por carta registada com aviso de recepção, datada de 13 de Janeiro de 2021, notificou o Autor da decisão final do procedimento disciplinar em causa, o qual culminaria na decisão de expulsão do Autor, enquanto Associado da Ré, por terem sido dados como provados os factos que constavam da nota de culpa.
30. Para fundamentar a decisão de expulsão do Autor, enquanto Associado da Ré, esta proferiu a seguinte decisão final por si proferida:
“DO PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
Conforme consta da acusação do procedimento disciplinar, no passado dia 4 de setembro, a direção do Clube ... deu conhecimento a todos os associados do Clube ..., via email, os resultados da Due Dilgence/Auditoria que compreendeu o período 2016-2019.
Perante a gravidade dos factos praticados pela anterior direção e aqueles que se apuraram relativamente a V.Exa., a actual direção submeteu à apreciação deste Conselho a abertura do devido procedimento disciplinar.
Foi entendido pelo conselho de disciplina que os factos apurados e relatados na nota de culpa do procedimento disciplinar demonstram uma violação e desrespeito por parte de V/Exa. das regulamentos, estatutos e lei geral, colocando em causa o bom nome e o património do Clube ....
Em reunião do Conselho Disciplinar, ocorrida no passado dia 3 de outubro de 2020, foi deliberada a abertura de instrução de um processo ao referido infrator, nos termos do artigo 14.º dos estatutos do Clube ..., tendo sido nomeado como instrutor o Presidente do Conselho Disciplinar, BB.
Tendo V/Exas. sido notificado na nota de culpa, com direito a apresentar a sua defesa e todos os factos que percecionava como relevantes.
Nestes termos, o Conselho Disciplinar do Clube ... decidiu acusar o Sr. AA de tudo o que infra melhor se exporá.
I - O ENQUADRAMENTO DOS FACTOS:
1º. - Os associados CC, DD, EE, AA e FF, foram membros da Direção do Clube ... no período de 2016 - 2020.
2°. - Tendo V/ Exa. desempenhado funções como Vogal do Clube ....
3°. - No dia 10 de junho de 2020, e depois de eleições realizadas no dia 7 de junho, tomou posse uma nova direção no Clube ....
4º. - Logo no dia de tomada de posse, a atual direção deparou-se com indícios e factos que comprovam a violação dos estatutos, regulamentos do Clube ... e normativos legais por parte da anterior direção de V/Exa. Em concreto.
5º. - Face a tais factos e indícios, a direção do Clube ... deliberou contratar uma Due Dilgence/Auditoria que compreendesse o período 2016-2019.
6º. - Os factos apurados por tal auditoria indiciam à prática de ações (também por V.Ex) com relevância disciplinar (e criminal) face ao mandato da anterior Direção de que V/ Exa. fez parte.
7º. - Como tal, resulta dos indícios apurados que V/Exa. praticou atos que prejudicaram o bom nome e o património do Clube ....
8º. - A direção do Clube ... informou igualmente o Conselho Disciplinar, que perante a gravidade dos factos que resultaram da Auditoria, decidiu intentar Queixa-Criminal, procurando desta forma o ressarcimento dos danos e julgamento de todos os factos com relevância criminal nas instâncias competentes.
II - DOS ACTOS PRATICADOS NO DESEMPENHO DAS FUNÇÕES COMO VOGAL DO Clube ...:
9.º A atual direção do Clube ... comunicou ao conselho disciplinar indícios e situações que desrespeitam o bom nome e património do clube;
10.º Logo após a tomada de posse dos novos órgãos sociais do Clube ..., verificou a nova direção do Clube ..., que existia faturas emitidas pela A..., Lda, já liquidadas pela Contabilidade do Clube ..., na qual a direção anterior adquiriu equipamento digital (telemóveis e computado) no valor de 6 743,93€ (seis mil setecentos e quarenta e três euros e noventa e três cêntimos).
11.º Sendo certo, que a direção verificou que nenhum destes equipamentos se encontrava nas instalações do clube.
12.º Chegou ao conhecimento da direção do Clube ... que os mesmos estavam na posse de V/ Exa. e ex-diretores.
13.º Depois de interpelado (via presencial, email e por carta registada de mandatário), V./ Exa. Continua sem devolver o equipamento que é pertença do Clube ....
14.º Contudo, não foi apenas material digital que foi comprado pelos exdiretores do Clube ... para uso próprio ou de terceiros a expensas do Clube ....
15.º A direção em exercício deparou-se com várias faturas cuja materialidade não existe no Clube ....
16.º Nomeadamente, matérias adstritas à atividade de construção civil, material de decoração, material para casas de banho, entre outro tipo de aquisições.
17.º Até hoje, a direção do Clube ... continua por identificar o destino destes materiais.
18.º Sendo certo, que os mesmos não se encontram nas instalações do clube.
19.º Acresce a isto, que funcionários e associados do Clube ... já confirmaram à atual direção do Clube ... que os mesmos foram aplicados, usados e comprados para proveito próprio dos ex-diretores, familiares e amigos dos mesmos, na qual descreveram situações em que os mesmos se destinavam para uso pessoal do associado e seus familiares.
20.º Tendo referido inclusivamente, que existem materiais pagos e faturados em nome do Clube ... que foram aplicados pelos funcionários do clube nas residências e terrenos dos ex-diretores do Clube ....
21.º Aliás, ex-diretores referiram à direção do Clube ..., que algumas destas aquisições eram adquiridas com o objetivo de conceder benesses a associados do Clube ...;
22.º Para além destas aquisições indevidas, tomou conhecimento a direção do Clube ... que os funcionários do clube prestavam durante o horário de trabalho, em prejuízo do clube (não existia remuneração), serviços aos exdiretores, familiares e amigos (onde V. Exª se inclui), nomeadamente:
- Serviço de lavandaria;
- Serviço de engomadoria;
- Serviço de manutenção e reparação de residências, roulottes, casas, quintas, entre outros locais de ex- diretores;
- Serviço de recolha de lixo
23.º Tendo o associado usufruído de todas estas condições, que prejudicaram o clube.
24.º Todas estas situações podem ser comprovadas por funcionários e associados, que já se disponibilizaram para testemunhar no presente processo;
25.º Esta situação revela um abuso desmedido das prerrogativas e poderes dos ex-diretores e de V. Exª em concreto.
26.º Aquando da tomada de posse dos novos órgãos sociais a atual direção do Clube ... verificou que “desapareceram” grande parte dos documentos com elevada importância para o apuramento da real situação do Clube ..., nomeadamente:
- Comprovativos dos cheques;
- Processo disciplinares movidos contra associados;
- Atas da anterior direção;
27.º Até hoje, apesar de interpelado para o efeito, V/ Exa. não indicou quais atuais diretores o porquê desta situação e o local onde os mesmos se encontram.
28.º Acresce a tudo isto, que V/ Exa. e familiares usaram as instalações de aluguer do Clube ... (Bungalows) de forma gratuita e sem nunca proceder ao pagamento a que estavam obrigados.
29.º Tendo ficado reservado durante muitos fins-de-semana, semanas e meses, estas instalações para uso próprio e proveito de V/ Exa. e seus familiares, tendo o Clube ... ficado prejudicado no seu património com estas ações que configuram verdadeiras formas de abuso de poder.
30.º Estes factos aconteceram de forma reiterada.
31.º Destarte, V/ Exa. no âmbito das suas funções enquanto vogal do Clube ..., desrespeitou e violou os estatutos, regulamento do Clube ..., tendo ainda praticado atos que pela sua gravidade estão a ser apreciados em sede própria, uma vez que, todos estes factos podem ter relevância criminal.
III – DA AUDITORIA
32.º No decorrer de auditoria realizada ao Clube ..., referente aos anos de 2016, 2017, 2018, 2019, por uma entidade externa independente, foram identificados os seguintes indícios de violação dos regulamentos e estatutos do Clube ... e da lei Portuguesa por parte da Direção na qual V. Exa. Desempenhou funções:
- Adulteração dos relatórios de contas apresentados aos associados do Clube ... em Assembleia Geral;
- Adulteração dos resultados contabilísticos do Clube ...;
- Montantes reclamados por fornecedores que, segundo a contabilidade do Clube ..., e documentos de quitação e suporte, o Clube ... já terá liquidado, ou seja 206.000,00€ (duzentos e seis mil euros) que foram pagos pelo Clube ... foram levantados por terceiros que não fornecedores, sempre em montantes superiores aos autorizados por lei;
- Tendo alguns destes levantamentos sido efetuados por ex-diretores;
- Foram ainda liquidados 25.000€ (vinte e cinco mil euros) sem que seja identificado o destinatário;
- Verificaram-se gastos com despesa de alimentação não justificada, mais de 260.000,00 (duzentos e sessenta mil euros) em apenas quatro anos. Este valor revela-se consideravelmente desproporcional a uma instituição desta dimensão, por comparação com organizações semelhantes;
- No total, para uma organização desta dimensão, podermos considerar normal o valor de 60.000,00€ para gastos de alimentação durante 4 anos. Bem assim, temos o valor de 200.000,00€ (duzentos mil euros) de despesa não justificada;
- Verificaram-se valores retirados por caixa sem justificação;
- Foram ainda levantados, por elementos da direção, valores superiores a 6.000,00€ (seis mil euros) sem que, até ao momento, se tenham apresentado os respetivos fins para que foram usados;
- Constata-se a existência de despesas cuja aplicabilidade não foi para a atividade do Clube ..., mas sim para fins não justificados;
- No acumulado dos últimos 4 anos, verificaram-se um conjunto de compras, sobretudo de matéria-prima, que não foi aplicada no Clube ..., nem ao seu fim se adequa à atividade do mesmo. Tudo num valor superior a 38.000,00 (trinta e oito mil euros);
- Foram adiantados a fornecedores 235.000,00€ (duzentos e trinta e cinco mil euros), estando esse montante refletido no balanço da instituição como “outras contas a receber”. Esta alteração contabilística não deveria ter ocorrido, pois para além de tecnicamente não ser aceitável, camufla as contas apresentadas.
- Contratação de supostos financiamentos não autorizados segundo os Estatutos do Clube ...;
Destarte, do relatório da Auditoria resultam as principais Conclusões:
"Pela análise das peças financeiras disponibilizadas em confrontação com os demais documentos disponibilizados é possível aferir, de forma categórica, as peças financeiras apresentadas não representam, nem a situação operacional da instituição, nem a situação patrimonial da mesma. De referir que foram encontradas, no decorrer da autoria, violações ao que está plasmado nos estatutos da instituição, desde logo com a contração de financiamentos não autorizados.
Foram constatadas práticas de gestão que prejudicam a ação do Clube ..., práticas essas revestidas de ações que não estão justificadas desde logo pela orientação para registos contabilísticos que omitem a verdadeira natureza das operações e que enviesam a análise correta da situação do Clube ....
Foram, recorrentemente, utilizadas práticas financeiras que não se compadece com ação do Clube ..., nomeadamente o pagamento excessivo de despesas de alimentação que ainda que numa interpretação abusiva poderiam ser referentes a uma espécie de remuneração, mas que ainda assim não foram autorizadas conforme previsto nos estatutos.
Através da amostra analisada, a contabilidade do Clube ... recorrentemente não espelha a verdadeira situação com os fornecedores, como por exemplo utilização massiva letras para pagamentos, levantamento de cheques por terceiros à operação, adiantamentos a fornecedores superiores no montante do RL do período entre outros.
Conclui-se que não são cumpridas as normas contabilísticas e de relatos exigidas a uma qualquer organização, verificando-se a reiterada existência de processos sem suporte documental.”
IV - DA PROVA APRESENTADA POR V/EXA:
33º. - Através de missiva datada de 13 de outubro de 2020 V/Exa. afirmou que a maioria dos Factos relatados na acusação do procedimento disciplinar em apreço, não estava diretamente relacionada com o desempenho das suas funções;
34º. - Confessando inclusivamente o uso abusivo dos bungalows do Clube ..., os ditos "serviços de lavandaria" e a apropriação do telemóvel do clube, referindo uma vez mais que este tinha sido oferecido.
35º. - Relativamente aos outros factos, V/Exa. optou por não referir nada e nem apresentar prova em contrário, nomeadamente face aos factos resultantes da auditoria realizada ao Clube ...;
V - Dos Factos Provados
36º. - Consideramos como provados os factos resultantes dos articulados 9.º ao 31.º e ainda o referido nos artigos 32.º e 33.º;
37º. - A defesa apresentada por V/Exa. não suscita qualquer elemento de dúvida, nem prova contraria perante a acusação;
38º. - Tendo confessado os factos descritos nos artigos 9.º a 31.°;
VI - DECISÃO FINAL
39º. - Foi instaurado processo disciplinar ao Associado AA, associado n. 236, nos termos artigo 12.º dos Estatutos do Clube ....
40º. - Uma vez que «Incorrem em responsabilidade Disciplinar os associados que violem o consignado nos presentes estatutos bem como regulamentos, deliberações dos órgãos sociais e legislação aplicável e, nomeadamente: 1) Desrespeitem algum sócio contratado pela direção para determinado cargo. 2) Pratiquem nas instalações do Clube ... quaisquer atos, ativos ou omitidos, contrários à lei, estatutos ou regulamentos”, nos termos do art. 12º dos estatutos do Clube ....
41º. - Destarte, os factos relatados e os comportamentos adotados consubstanciam-se na violação do artigo 10.º, n.°s 1, 4 e 5 dos Estatutos do Clube ..., nomeadamente "Constituem deveres dos associados:
1) Respeitar os Estatutos, regulamentos e deliberações dos orgãos sociais do Clube ......
4) Contribuir com todo o seu empenho e com todos os meios ao seu alcance para melhoria das Condições e desenvolvimento do Clube .... 5) Desempenhar com zelo as funções para as quais for eleito ou nomeado.”
42º. - Tendo em conta, que V/Exa. praticou os seguintes atos, entre outros:
- Adulteração dos relatórios de contas apresentados aos associados do Clube ... em Assembleia Geral;
- Gastos com despesa de alimentação não justificada;
- Aquisição de bens, pagos a expensas do Clube ..., cuja materialidade não existe no clube e foram usados em seu proveito;
- Uso indevido dos funcionários, equipamentos e instalações do Clube ...;
- Compra de equipamentos tecnológicos para proveito próprio a expensas do Clube ... sem devolução dos mesmos (apesar de interpelado para o fazer);
- Montantes reclamados por fornecedores que, segundo a contabilidade do Clube ..., e documentos de quitação e suporte, o Clube ... já terá liquidado, ou seja 206.000,00€ (duzentos e sais mil euros) que foram pagos pelo Clube ... foram levantados por terceiros que não os fornecedores, sempre em montantes superiores aos autorizados por lei;
- Contratação de supostos financiamentos não autorizados segundo Estatutos do Clube ...;
43º. - Nos termos do artigo 13.º dos Estatutos do Clube ..., podem ser aplicadas sanções disciplinares de repreensão, suspensão e expulsão.
44º. - Face aos factos relatados e às normas violadas, este Conselho decidiu aplicar a sanção de expulsão, nos termos do c) do artigo 19° dos Estatutos do Clube ....
45º. - Desta forma, "A sanção de expulsão será aplicada nos associados que, de forma grave e culposa, violem o consignado na lei, estatutos, regulamento e deliberações dos órgãos sociais, bem como aqueles que pratiquem atos que prejudiquem gravemente o Clube ....”
31. Não se conformando com a decisão em causa, o Autor apresentou, por carta registada de 2 de Fevereiro de 2021, recurso da mesma para a Assembleia Geral da Ré.
32. Tal Assembleia Geral veio a ser realizada a 14 de Agosto de 2021, tendo resultado aprovada a expulsão do Autor enquanto sócio da Ré.
33. O Autor, em 07/10/2021 viria a instaurar acção declarativa cível comum que correu os seus termos no Juiz 2 do Juízo Local Cível de Vila do Conde, Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este sob o processo n.º ....
34. Em tal acção o Ré formulou os seguintes pedidos:
“A) Ser a deliberação constante do ponto 2 da ordem de trabalhos -“votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo 14º alínea j) dos Estatutos do Clube ...” – declarada nula;
OU CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, o que não se admite e apenas por mera hipótese teórica se coloca,
A.1) Ser a deliberação constante do ponto 2 da ordem de trabalhos -“votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo 14º alínea j) dos Estatutos do Clube ...” – ser anulada; E
B) Ser declarado o uso indevido do procedimento disciplinar, devendo o mesmo ser arquivado quanto ao Autor, com a posterior anulação de todos os actos praticados posteriormente ao mesmo;
C) Ser declarada a ilicitude da decisão de expulsão do Autor por se verificar a nulidade da Nota de Culpa por falta de circunstanciação;
OU CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, o que não se admite e apenas por mera hipótese teórica se coloca,
C.1)Ser anulada a nota de culpa por falta de circunstanciação e consequentemente ser declarada a ilicitude da decisão de expulsão do Autor; E
D) Ser a decisão de expulsão do Autor enquanto associado da Ré ser declarada nula e consequentemente ser o Autor readmitido como associado da Ré, mantendo o seu número de associado anteriormente atribuído e bem assim com os direitos inerentes á qualidade de associado; OU CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, o que não se admite e apenas por mera hipótese teórica se coloca,
D.1)Ser declarada a anulabilidade da decisão de expulsão do Autor enquanto associado da Ré e consequentemente ser o Autor readmitido como associado da Ré, mantendo o seu número de associado anteriormente atribuído e bem assim com os direitos inerentes á qualidade de associado; E
E) Ser revogada a decisão de expulsão do Autor enquanto associado da Ré e consequentemente ser o Autor readmitido como associado da Ré, mantendo o seu número de associado anteriormente atribuído e bem assim com os direitos inerentes á qualidade de associado; por não se ter verificado por parte do Autor a prática de qualquer infracção disciplinar;
Caso assim não se entenda, o que não se concede e apenas por mera hipótese teórica se admite,
E.1)Deve a decisão de expulsão aplicada ao Autor ser substituída por outra sanção disciplinar menos gravosa por a mesma ser abusiva e desproporcional e em consequência ser o Autor readmitido como associado da Ré, mantendo o seu número de associado anteriormente atribuído e bem assim com os direitos inerentes á qualidade de associado. E
F) Deve ainda a Ré ser condenada a pagar ao A. a titulo de danos não patrimoniais a quantia de 5.000,00 euros, acrescida de juros de mora contabilizados desde a citação da R. até efectivo e integral pagamento de tais danos; E
G) Ser a Ré condenada no pagamento das custas processuais.”
35. A Ré, regularmente citada, não contestou a aludida acção.
36. O Tribunal, em 19 de Maio de 2022, no âmbito processo judicial supra citado, proferiu sentença, já transitada em julgado, que
“a) declarou procedente o pedido principal de anulação da deliberação constante do ponto 2 da ordem de trabalhos- “votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo 14º alínea j) dos Estatutos do Clube ... da Assembleia Geral Ordinária do Ré de 14-08-2021;
b)condenou o Ré a pagar ao Autor a quantia de 400,00€ a titulo de indemnização pelos danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora á taxa legal desde a presente data e até efectivo e integral pagamento, absolvendo o Ré do demais peticionado a esse titulo (…)”.
37. Não obstante a aludida decisão, a Ré não permitiu do Autor no parque de campismo a partir do dia 23/05/2022.
38. Consequentemente, a Ré, em 3 de Junho de 2022, decidiu proceder à convocatória de uma nova Assembleia Geral Extraordinária com a seguinte ordem de trabalhos: “(…)
Ponto 1: Tomada de conhecimento da sentença decretada no âmbito do processo nº … que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível de Vila do Conde – Juiz 2;
Ponto 2: Discussão e Votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo14º alínea j) dos estatutos do Clube ...”.
39. A convocatória para a referida Assembleia, para além de ter sido colocada nos lugares comuns, foi efectuada via e-mail remetido para os Associados daquela e foi agendada para o dia 18/06/2022.
40. Para garantir que o Ré tomava conhecimento da aludida Convocatória, foi-lhe ainda enviado, para o e-mail por si anteriormente indicado ..........@....., um segundo e-mail contendo tal convocatória.
41. No dia 18 de Junho de 2022, a Ré realizou a aludida Assembleia Geral Extraordinária.
42. No decurso da Assembleia, aos associados presentes foi questionado se tinham tido acesso a toda a documentação relevante e se algum deles desejava, naquele momento, o acesso a qualquer documento ou informação a que não tivessem tido acesso, não tendo nenhum deles se manifestado, tendo ainda todos os associados tido a oportunidade de, previamente à votação sobre a expulsão do Autor, discutir o que entendessem por pertinente acerca de tal facto.
43. De seguida, procedeu-se à discussão e deliberação mediante votação dos presentes, que se decidiram, novamente e em larga escala, pela rejeição do recurso e consequente expulsão do requerente da qualidade de associado do Clube ..., com a seguinte deliberação: “ (…) quanto ao ponto dois da Ordem dos Trabalhos, votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA nº ..., nos termos do disposto no artigo 14º alínea j) dos Estatutos do Clube ... foi obtido o seguinte resultado:1. Votos Não: 372, 2. Votos Sim: 57, Nulos:1 (…), pelo que, de acordo com a vontade dos associados expressa em tal votação não foram aprovados o recurso e a revogação da expulsão do sócio AA, nº ..., isto é, foi aprovado por maioria a confirmação da sua expulsão, perdendo assim os seus direitos como sócios do Clube ...”.
44. Por carta dirigida ao Ilustre Mandatário da Ré, bem como através de requerimento remetido ao proc. crime que corre termos com o n.º 1794/18.2T8VCD, veio o Autor propor o pagamento de € 300,00 como forma de compensar o facto de não ter devolvido o telemóvel à Ré.
45. Até ao procedimento disciplinar em causa, nunca havia sido aplicado ao Autor qualquer sanção.
46. O Autor sente-se triste, humilhado e revoltado perante a decisão de expulsão.
*
3.2.2 Reapreciação da decisão de mérito da acção
3- Da revogação da decisão de anular a deliberação social em causa (recurso da R.).
Os pedidos formulados pelo A. na presente acção, em face da factualidade apurada, têm na sua origem a decisão da R., que, no âmbito de um processo disciplinar, lhe aplicou a sanção disciplinar de expulsão enquanto seu associado, aprovada, em recurso interposto por aquele, por deliberação da Assembleia Geral. Como esta deliberação foi, através da sentença proferida no processo n.º ..., anulada, a R. decidiu proceder à convocatória de uma nova Assembleia Geral Extraordinária para 18/06/2022, em que, voltando a estar na ordem de trabalhos, como ponto 2, justamente, a discussão e votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo14º alínea j) dos estatutos do Clube ..., foi uma vez mais deliberado: “ (…) quanto ao ponto dois da Ordem dos Trabalhos, votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA nº ..., nos termos do disposto no artigo 14º alínea j) dos Estatutos do Clube ... foi obtido o seguinte resultado:1. Votos Não: 372, 2. Votos Sim: 57, Nulos:1 (…), pelo que, de acordo com a vontade dos associados expressa em tal votação não foram aprovados o recurso e a revogação da expulsão do sócio AA, nº ..., isto é, foi aprovado por maioria a confirmação da sua expulsão, perdendo assim os seus direitos como sócios do Clube ...”.
Não estando em causa, nesta sede recursória da R., a possibilidade de esta fazer uso da renovação de deliberação prevista no art. 62.º do CSC, passível de aplicação por analogia às pessoas colectivas civis, a verdade é que o efeito substitutivo da deliberação anterior pressupõe a validade da própria deliberação renovatória. Neste sentido se pronunciou a RG em acórdão de 26/10/2023 (Proc. 487/22.0T8VCT.G1; rel. Rosália Cunha) em que se pode ler que “A renovação da deliberação prevista no art. 62.º do CSC tem, na generalidade dos casos e como regra, um efeito substitutivo da deliberação anterior, com ressalva das situações legalmente previstas em que se admite a hipótese de uma renovação de deliberação sem eficácia retroativa, hipóteses em que não haverá uma (total) substituição, mas antes uma sucessão de deliberações (cf. acórdão do STJ de 22.09.2021, Relator António Barateiro Martins, Proc. 675/10.2TBPTS.L1.S1 in
www.dgsi.pt)
... Mas, para que assim seja, é requisito essencial a validade da própria deliberação renovatória, pois se a deliberação renovadora for inválida não se produz o efeito substitutivo da deliberação inicial…” (
in
www.dgsi.pt
).
Ora, de acordo com o art. 177.º do CC, que, por força do art. 157.º do mesmo diploma legal, se aplica às associações que, como sucede com a R., não tenham por fim o lucro económico dos associados, as deliberações da assembleia geral contrárias à lei ou aos estatutos seja pelo seu objecto, seja por virtude de irregularidades havidas na convocação dos associados ou no funcionamento da assembleia, são anuláveis. No caso, os estatutos da R./recorrente, no seu art. 22.º, n.º 1, determinam que a assembleia geral seja convocada pelo Presidente da Mesa, nos termos dos Estatutos através da convocatória afixada na sede e em todos os locais de estilo do Clube ... com a antecedência mínima de 15 dias, constando obrigatoriamente da mesma o dia, hora, local e respectiva ordem de trabalhos.
No caso, este procedimento foi adoptado, porquanto a convocatória para a referida assembleia foi colocada nos lugares comuns, ou seja, na sede, coincidente com a morada do parque de campismo, e em todos os locais de estilo, depreende-se.
Sucede que o art. 174.º do CC, no seu n.º 1, determina que a assembleia geral é convocada por meio de aviso postal, expedido para cada um dos associados com a antecedência mínima de oito dias, e no seu n.º 2, dispensa a expedição do aviso postal referido no número anterior sempre que os estatutos prevejam a convocação da assembleia geral mediante publicação do respectivo aviso nos termos legalmente previstos para os actos das sociedades comerciais, ou seja em sítio da Internet de acesso público, regulado por portaria do Ministério da Justiça, no qual a informação objecto de publicidade possa ser acedida, designadamente por ordem cronológica. Na situação dos autos, não se colhe que os estatutos do R./Recorrente prevejam a convocação da assembleia geral mediante publicação do respectivo aviso nos termos legalmente previstos para os actos das sociedades comerciais, e, portanto, a expedição do aviso postal para a convocação das assembleias gerais do R./recorrente não está dispensada. A este respeito, a RP em acórdão de 19/12/2023 (Proc. 1556/22.2T8MTS.P1; rel. Anabela Morais), citando Manuel Vilar de Macede, escreve que “As associações podem valer-se da publicação do aviso convocatório nos mesmos termos dos actos societários, i. e, por publicação na página da Internet destinada a esse fim. Esta forma de convocação, porém, só pode ser usada pela associação se estiver prevista nos estatutos. Se os estatutos da associação não contemplarem a convocação por via electrónica, as deliberações tomadas numa assembleia convocada por esse meio serão anuláveis, por força do disposto no artigo 177º” (in www.dgsi.pt). E igualmente serão anuláveis as deliberações tomadas numa assembleia convocada por qualquer outro meio que não seja pela via postal que o mencionado art. 174.º, n.º 1 do CC - com a excepção da situação, que não se verifica, prevista no n.º 2 do mesmo preceito legal - impõe.
Note-se que não se trata de declarar a nulidade da norma estatutária que contraria um preceito legal de interesse e ordem pública, mas tão-somente de, por imposição do art. 177.º do CC, anular uma deliberação social contrária à lei, no caso ao art. 174.º, n.º 1, por virtude de irregularidades havidas na convocação do A. enquanto associado.
De onde, também nesta parte o recurso da R. tem de ser julgado improcedente.
4.
Da nulidade da deliberação de 18/06/2022 (recurso do A.).
Recuperemos o que, em síntese, anteriormente se disse a respeito do caso dos autos no sentido de que os pedidos formulados pelo A. na presente acção têm na sua origem a decisão da R., que, no âmbito de um processo disciplinar, lhe aplicou a sanção disciplinar de expulsão enquanto seu associado, aprovada, em recurso interposto por aquele, por deliberação da Assembleia Geral, e que tendo esta deliberação, através da sentença proferida no processo n.º ..., sido anulada, a R. decidiu proceder à convocatória de uma nova Assembleia Geral Extraordinária para o dia 18/06/2022, em que, voltando a estar na ordem de trabalhos, como ponto 2, justamente, a discussão e votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA, nº ..., nos termos do disposto no artigo14º alínea j) dos estatutos do Clube ..., foi uma vez mais deliberado: “ (…) quanto ao ponto dois da Ordem dos Trabalhos, votação do recurso interposto da decisão de expulsão do sócio AA nº ..., nos termos do disposto no artigo 14º alínea j) dos Estatutos do Clube ... foi obtido o seguinte resultado:1. Votos Não: 372, 2. Votos Sim: 57, Nulos:1 (…), pelo que, de acordo com a vontade dos associados expressa em tal votação não foram aprovados o recurso e a revogação da expulsão do sócio AA, nº ..., isto é, foi aprovado por maioria a confirmação da sua expulsão, perdendo assim os seus direitos como sócios do Clube ...”.
Ora, a renovação da deliberação anulável mediante outra deliberação é, justamente, uma possibilidade conferida aos sócios pelo art. 62.º, n.º 2 do CSC, que, na ausência de regulamentação correspondente no Código Civil, se aplica, face à necessidade e semelhança dos interesses em causa, por analogia, às pessoas colectivas civis. Assim o acórdão da RP de 14/11/2022 (rel. Fátima Andrade; proc. 4424/21.1T8PRT.P1), em que, com citação de jurisprudência variada assim como de doutrina, se pode ler: “Neste sentido se decidiu no Ac. TRL de 17/12/2009, nº de processo 1541/08-2, invocando na doutrina e no mesmo sentido Menezes de Cordeiro in “Tratado de Direito Civil Português - Parte Geral” – 2004, III p.566 que justifica tal recurso com a proximidade dos valores se “tivermos em conta um fenómeno capital (…): o de boa parte das regras relativas a associações e fundações ter tido a sua origem no regime das sociedades anónimas. Nestas condições, não há obstáculos de princípio à aplicação analógica, no campo civil, das regras relativas a sociedades comerciais. O recurso ao Direito Comercial implica, todavia, a presença dos diversos requisitos de que depende a analogia: o caso omisso; o facto de esse caso dever ter, à luz do sistema, uma solução jurídico normativa; a analogia de situações; a presença de uma norma comercial aplicável ao caso análogo. Verificadas as condições, as pessoas coletivas civis podem recorrer ao inesgotável manancial representado pelo Direito das sociedades comerciais. E como estas, a título subsidiário, também podem recorrer às sociedades civis e ao Direito das pessoas coletivas, fecha-se o círculo: mais uma vez, reforçada fica a unidade do Direito privado português”. Em idêntico sentido, Ac. TRE de 17/01/2019, nº de processo 3275/17.2T8STR.E1” (
in
www.dgsi.pt
).
A RC em acórdão de 13/12/2022 (proc. 1279/22.2T8LRA.C1; rel. Maria João Areias) diz-nos que “A renovação de uma deliberação consiste, em regra, na
substituição
desta por outra de
conteúdo idêntico
, mas sem os vícios, reais ou supostos, que torna aquela inválida ou de validade duvidosa
[1]
. A deliberação renovatória do artigo 62.º é uma distinta e
autónoma
deliberação social, que se conclui
ex novo
na vida societária, podendo ter, ou não, eficácia retroativa, tendo por objetivo primordial sanar o vício de que padece a deliberação precedente, colocando-se no lugar dela, ou invés dela
[2]
. A renovação deliberativa envolverá geralmente, uma
substituição
, não pretendendo o código manter, purificada, a própria legitimidade da primeira liberação, ou restaurá-la, mas reconhecer a legitimidade da adoção de
outra
que, liberta do pecado da anterior,
ocupe o lugar dela
[3]
. Com a renovação faz-se incidir
ex novo
sobre um mesmo objeto uma
nova
deliberação, à qual
são de imputar
em exclusivo os
efeitos jurídicos
pretendidos, tratando-se de substituir a anterior deliberação (pela posterior) enquanto fonte geradora de efeitos. Havendo renovação, os efeitos jurídicos passam a imputar-se unicamente à deliberação renovatória
[4]
. Não se tratando de uma deliberação confirmatória, tendente a assegurar eficácia à primeira declaração inválida, o facto de a anterior deliberação viciada já ter sido declarada nula ou anulada pelo tribunal, não obsta a que a assembleia volte a tomar nova deliberação sobre o mesmo conteúdo. Aliás, a renovação de uma deliberação coenvolve necessariamente a revogação da anterior, quando esta deliberação, por não ser nula, for apta à produção dos efeitos jurídicos por ela visados (ou seja, não há revogação quando a deliberação antecedente era nula ou sendo anulável, tenha sido proferida sentença de anulação), e a revogação seja decretada com efeitos retroativos. Quanto à possibilidade de renovação de deliberações sociais, operadas, sem repetição do vício, depois de as mesmas haverem já sido anuladas, Lobo Xavier afirma nenhum obstáculo existir a tal renovação
[5]
. Segundo Manuel Carneiro da Frada uma deliberação anulada por sentença é de equiparar à nulidade da deliberação, tendo-se os seus efeitos excluídos
ab inicio.
Nessa sequência considera admissível, não só, a renovação de uma deliberação já anulada por sentença, mas ainda a renovação de deliberação declarada nula por sentença
[6]
. É o que Pinto Furtado denomina de
renovação corretiva
ou
ex post
(por contraposição com a renovação preventiva) – quando a sociedade, sendo confrontada com uma decisão judicial declaratória de nulidade ou de inexistência jurídica, ou com a anulação de uma deliberação sua, “pretende ainda recuperar a anterior regulamentação de interesses, reeditando uma nova deliberação, com o mesmo conteúdo fundamental, mas corrigido do vício em que se fundou o tribunal para cassar a deliberação
[7]
”. Questão distinta seria definir se, em tal caso, ainda nos encontraríamos perante uma deliberação renovatória, ou se uma sucessão de deliberações
[8]
, o que para a questão a apreciar sempre se mostraria irrelevante. O que se pode é afirmar que, a circunstância de alguma ou de algumas das anteriores deliberações ter já sido declarada anulada por decisão com trânsito em julgado, não obstaria, por si, à emissão de nova deliberação renovando ou reproduzindo o conteúdo das anteriores mas, agora, sem os vícios de que as mesmas se viram afetadas e que levaram à declaração de anulação. Concluindo, a circunstância de a primeira deliberação ter sido declarada anulada por decisão transitada em julgado e o facto de contra a deliberação renovatória se encontrar pendente ação de anulação, não obstaria à tomada de nova deliberação renovatória, com vista a sanar os vícios apontados pelo autor às anteriores deliberações” (
in
www.dgsi.pt
).
No mesmo sentido se havia pronunciado o STJ em acórdão de 8/07/1999, reconhecendo que “o caso julgado material consiste na imodificabilidade das decisões judiciais que incidem sobre uma determinada relação material controvertida, impondo que aquelas sejam observadas dentro e fora do respectivo processo”, acrescenta, citando Pinto Furtado que, “em caso de renovação, estamos em presença de uma nova e distinta deliberação que substitui a primeira e assim inutiliza o pedido e a causa de pedir duma acção que tenha sido exclusivamente dirigida contra a deliberação primitiva. A oposição que pretenda agora mover-se contra a deliberação renovadora envolve um novo e distinto pedido, voltado unicamente para esta e fundado, evidentemente, numa específica e diferente causa de pedir” (
in
CJ, Ano XXIV – 1999, Tomo IV, pág. 196).
De onde, não estava a R. impedida de renovar a deliberação social anulada pela sentença proferida no proc. n.º 1428/21 por uma outra, como veio a suceder em assembleia geral de 18/06/2022, cuja deliberação, assim sendo, não é nula à luz do art. 56.º, n.º 1, al. d) do CSC.
Para mais, a deliberação renovatória, como vimos, está sujeita à exigência de os requisitos de que depende a sua validade, designadamente os requisitos de procedimento, como seja os relativos à convocatória dos associados, serem observados.
Ora, na situação dos autos, a deliberação de 18/06/2022 também foi anulada, desta feita, no âmbito dos presentes autos, por o A., na qualidade de associado da R., não ter sido convocado nos termos que são impostos por lei, o que inviabiliza a apreciação neste processo das irregularidades invocadas pelo A. relativamente ao processo disciplinar que a precedeu, assim como impede que aqui se conheça do mérito da decisão da R. de aplicar ao A. a sanção disciplinar de expulsão.
Na verdade, a anulabilidade da deliberação de 18/06/2022 por vício de procedimento não permite
,
tal como já havia sucedido com o deliberação renovada, a avaliação da validade do processo disciplinar e do mérito da decisão de expulsão, que foi impugnada pelo A. junto da Assembleia Geral, e de cuja deliberação válida depende a necessidade ou interesse da intervenção do tribunal.
Confirma-se, pois, a decisão do tribunal recorrido de se abster de conhecer dos demais pedidos do A. relativos ao procedimento disciplinar e ao mérito da respectiva decisão.
5.
Da decisão de absolvição da R. do pedido de indemnizar o A. (recurso do A.)
Através da presente acção, o A., além dos pedidos relativos à deliberação da Assembleia Geral da R. realizada em 18/06/2022, formulou um pedido indemnizatório de 5.000,00 € com seguintes fundamentos:
“250. A expulsão do A. como associado da Ré alicerçada em falsidades e meias verdades inventadas pela Ré, causaram danos ao A. quer de ordem patrimonial quer de ordem não patrimonial.
251. A direcção da A. alicerçada em falsidades e meias verdades conseguiu manipular os associados por forma a que estes de forma massiva votassem pela expulsão do A. de associado da Ré.
252. A R. acusou o A. de pessoa desonesta, vigarista e aproveitadora.
253. A R. denegriu a imagem e o bom nome do A. perante os restantes associados da R. por forma a que estes votassem pela sua expulsão tal como veio a suceder.
254. O A. sente-se triste, humilhado, revoltado por ter sido expulso de associado da R., a qual conseguiu lograr tal desiderato através de falsidades e calúnias.
255. A Ré conseguiu através de falsidades convencer a maioria dos Associados a votarem pela expulsão do A. e de que este era uma pessoa desonesta e aproveitadora.
256. O A. é uma pessoa séria e impoluta e sente-se profundamente injustiçado, o que lhe causa um grande sofrimento e angustia.
257. Por causa desta situação o A. não consegue dormir, está sempre amargurado e triste, tem vergonha de sair á Rua e de falar com os seus amigos.
258. O A. entende que está a ser vitima de injustiças e calúnias que sofreu danos dificilmente reparáveis à sua honra, bom nome e imagem.
259. Assim em face do exposto, a R. deverá pagar ao A. a título de danos não patrimoniais a quantia de 5.000,00 euros”.
Da alegação do A. resulta que o comportamento lesivo dos seus direitos por si imputado à R. consiste na manipulação da vontade dos associados por via do recurso a falsidades sobre a sua actuação enquanto vogal. Esta a factualidade trazida pelo A. para preencher a ilicitude como requisito da responsabilidade civil da R.
Discorda-se, nesta parte, do tribunal recorrido quando, como se colhe da sentença recorrida, considera que a anulação aqui determinada da deliberação social de 18/06/2022 torna a conduta da R. ilícita. Na realidade, nem o pedido indemnizatório do A. assenta em danos provenientes da anulação da deliberação, nem a anulação da deliberação por vício procedimental, como foi o caso, comporta qualquer juízo sobre os fundamentos da sanção disciplinar de expulsão aplicada pela R. ao A.. São razões de ordem procedimental que impedem, neste momento, um juízo sobre a ilicitude do comportamento imputado ao A. enquanto vogal, e, consequentemente, sobre o mérito da sanção disciplinar de expulsão, e, mais ainda, sobre um possível, e, ao menos por ora, hipotético abuso de direito da sua parte, cujos contornos estão por definir.
Na realidade, a razão que, nesta fase, não permite, no dizer do tribunal
a quo,
a apreciação “das demais invalidades invocadas pelo Autor relativamente à aludida Assembleia, bem como os possíveis vícios procedimentais ocorridos no processo disciplinar”, é a mesma que, sustando a um juízo sobre a licitude ou ilicitude do comportamento do A. e sobre o mérito da sua expulsão, não permite concluir pelo abuso de direito do A.. Em suma, à apreciação do abuso de direito do A. e à apreciação do fundamento para a sua expulsão pela R. são os mesmos factos que importam – os relativos ao seu comportamento enquanto vogal.
Neste conspecto, a reacção do A. contra a decisão do tribunal de 1.ª Instância relativa ao abuso de direito por o considerar “inexistente” (Conclusão CV) é uma impugnação dirigida ao juízo negativo efectuado para aquele efeito sobre os factos correspondentes ao seu comportamento enquanto vogal, que, porém, são, do mesmo passo, fundamento da expulsão, aqui não apreciado por a isso obstar a anulação da deliberação social que sobre ela incidiu.
Ora, nesta fase, sem prévia deliberação social válida sobre a expulsão do A., não é admissível apreciar da (i)licitude do seu comportamento, nem, consequentemente, dos demais pedidos que dele dependem, inclusive do pedido indemnizatório que o mesmo formulou neste processo, sem prejuízo, se for o caso, da sua ulterior renovação, nos termos do art. 621.º do CPC.
Conclui-se desta forma pela improcedência do recurso da R. e pela procedência parcial do recurso do A., mantendo-se a sentença recorrida, para além da parte não recorrida (al. c) do segmento decisório), na parte em que anulou a deliberação relativa ao ponto 2 da Ordem de Trabalhos da Assembleia Geral do R. de 18/06/2022 (al. a) do segmento decisório) e revogando-se na parte em que absolveu a R. do pedido de condenação em montante indemnizatório.
As custas do recurso da R. são da responsabilidade desta por ter ficado vencido e do recurso do A. são por A. e R. na proporção do respectivo decaimento que se fixa em 20% para o primeiro e em 80% para a segunda (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663.º, n.º 7 do CPC):
………………………………
………………………………
………………………………
*
IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação da R. e parcialmente procedente a apelação do A. e, por consequência, em manter a al. a) e revogar a al. b) do respectivo segmento decisório da sentença recorrida, sem prejuízo, em relação a esta, se for o caso, da renovação do respectivo pedido.
As custas do recurso da R. são da responsabilidade desta por ter ficado vencida e do recurso do A. são da responsabilidade do A. e da R. na proporção do respectivo decaimento que se fixa em 20% para o primeiro e em 80% para a segunda (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Notifique.
Porto, 26/5/2025
Carla Fraga Torres
Eugénia Cunha
Teresa Pinto da Silva
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/cabe0755194611e380258ca1003350ff?OpenDocument
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1,762,646,400,000
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REVOGADA A SENTENÇA
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14731/24.6T8PRT.P1
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14731/24.6T8PRT.P1
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FRANCISCA MOTA VIEIRA
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I - Numa típica acção declarativa condenatória que tem por objecto averiguar se a carteira de fundos associada à conta bancária titulada pela autora e outro, é propriedade exclusiva da autora, a causa de pedir e o pedido revelam estarmos perante um conflito entre cotitulares de uma conta bancária coletiva solidária, no qual um dos cotitulares pretende condenar o Banco a ré a reconhecer que a autora é a única proprietária da carteira de títulos associada à conta em causa e, em consequência, condenar a mesma a autorizar a respetiva movimentação.
II - O direito de crédito de que é titular cada um dos depositantes solidários contra o banco – que se traduz num poder de mobilização do saldo – não se confunde com o direito real que incide sobre o dinheiro depositado, que pode pertencer a um só ou apenas a alguns dos titulares da conta ou até a um terceiro.
III - No contrato de depósito bancário, o tipo de conta releva apenas nas relações externas entre os seus titulares e o banco (quanto à legitimidade da sua movimentação a débito), nada tendo a ver com o direito de propriedade das quantias depositadas - este direito de propriedade releva apenas no âmbito das relações internas (entre os seus cotitulares) e que aqui não está em causa.
IV - Assim, a questão colocada em sede de acção de reivindicação da propriedade ou compropriedade da carteira de títulos associada à conta bancária solidaria, teria de ser esgrimida entre todos os contitulares dessa conta e só entre eles, porque, para que a decisão a obter possa produzir o seu efeito útil normal seria necessária a intervenção de todos os cotitulares da mencionada conta.
V - Estamos na presença dum caso de litisconsórcio necessário emanado da própria natureza da relação jurídica litigada, sob pena de a repartição dos vários interessados por acções distintas ser de molde a impedir uma composição definitiva do litígio entre as próprias partes na causa, além de que só assim se logrará uma solução uniforme entre todos os cotitulares sobre a propriedade da carteira de títulos associada à referida conta bancária.
VI - A exceção dilatória da ilegitimidade, quando fundada na preterição de litisconsórcio necessário, não se encontra sujeita a preclusão em fase inicial do processo.
VII - Com efeito, resulta dos arts. 316.º, n.º 1, e 318.º, n.º 1, al. a), do CPC, em conjugação com o disposto no art. 261.º, do mesmo diploma, que a omissão de litisconsorte necessário pode ser sanada mesmo em momento avançado da tramitação processual, inclusive após a prolação de decisão de mérito pela 1.ª instância e durante a pendência do recurso.
VIII - A revelar que a lei adjectiva permite ao autor ou reconvinte chamar ao processo a parte em falta até ao trânsito em julgado da decisão que tenha julgado ilegítima alguma das partes por ausência do necessário litisconsorte.
IX - A gestão processual, consagrada no art. 6.º do CPC, impõe que se conceda à autora a possibilidade de sanar a irregularidade, chamando ao processo os sujeitos indispensáveis à regular composição da instância.
|
[
"CONTRATO DE DEPÓSITO BANCÁRIO",
"QUANTIAS DEPOSITADAS",
"TITULARIDADE",
"ILEGITIMIDADE PLURAL PASSIVA",
"SANÇÃO",
"GESTÃO PROCESSUAL"
] |
Processo: 14731/24.6T8PRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível do Porto - Juiz 4
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
I.RELATÓRIO
A Autora AA, NIF ..., residente na Rua ..., ... Vila Nova de Gaia, representada pela sua tutora BB, NIF ..., residente na Rua ..., ... Vila Nova de Gaia instaurou a presente ação declarativa sob a forma comum contra Banco 1..., S.A, NIPC ..., com sede na Praça ..., ... Porto, pedindo:
a) condenar-se a ré a reconhecer que a autora é a única proprietária da carteira de títulos associada à conta com o IBAN pt50. ... e, em consequência, condenar a mesma a autorizar a respetiva movimentação.
Alega:
.Por decisão proferida em 2017 no processo nº 911/16.1T8VNG da (então) Instância Local Cível de Vila Nova de Gaia, atual Juízo Local Cível – Juiz 5, foi decretada a incapacidade da Autora por anomalia psíquica e nomeada sua legal representante e tutora BB -
.A interdita AA abriu uma conta bancária no antigo Banco 2..., e nesta subscreveu uma poupança, designada “..., onde foram colocadas as poupanças da sua vida .
.Com a extinção do Banco 2..., todos os ativos passaram para o Banco 1... (Banco 1... S.A.) – Cfr. Doc. nº 3 que aqui de junta esse dá por integralmente reproduzido para todos os devidos efeitos legais.
.A poupança de AA, passou a ser gerida por um fundo de investimento mobiliário aberto, passando a designar-se “Fundos de investimento”, agregado à conta de títulos nº ..., com o valor mobiliário preenchido por 1567.0330 unidades de ..., e o valor depositado de 15.204,14 euros – Docs. nº 4 a 6, que aqui se juntam e se dão por integralmente reproduzidos para todos os devidos efeitos legais.
.Ficando este investimento, por sua vez, agregado à conta bancária identificada com o IBAN nº ..., da agência de ..., Vila Nova de Gaia, do Banco 1..., na qual CC é segundo titular.
.A conta de títulos e valor nessa conta de títulos depositado, no montante de 13.235,32€, são propriedade exclusiva de AA. – Vide Docs. 4 a 6.
.Sucede que, após o óbito do segundo titular CC, ocorrido em 24.2.2014 (Cfr. Doc. nº 7, que aqui de junta esse dá por integralmente reproduzido para todos os devidos efeitos legais), a Ré bloqueou o acesso à conta, na qual estavam depositados, à última data conhecida:
a) À ordem: €763,44;
b) A prazo: €5.022,31;
c) Na carteira de títulos: €15.204,14
.Se quanto aos saldos à ordem e a prazo a Autora reconhece que terá de dirimir a questão com os restantes herdeiros, por forma a poderem movimentar os saldos, já quanto à carteira de títulos de que a Autora é a única proprietária, inexiste qualquer fundamento para que a Ré limite o direito da Autora.
. O Banco -Réu contestou e alegou que a conta de títulos referida está associada à conta à ordem com a identificação interna ..., da titularidade da A. e do Sr. CC, e tem os mesmos titulares desta última e por isso, quando lhe foi comunicado o óbito do Sr. CC, procedeu ao bloqueio do correspondente à quota-parte do mesmo, com arredondamento por excesso.
.Findos os articulados, foi convocada audiência prévia, na qual, além do mais, foi fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova, aqui reproduzindo-se o que releva:
“Identificação do objecto do litígio
Através da presente acção, a A. pretende que a R. reconheça que é a única proprietária da carteira de títulos associada à conta com o IBAN PT50. ... e, em consequência, que a autorize a movimentar esses títulos.
A R. contrapõe que a conta de títulos referida está associada à conta à ordem com a identificação interna ..., da titularidade da A. e do Sr. CC, e tem os mesmos titulares desta última e por isso, quando lhe foi comunicado o óbito do Sr. CC, procedeu ao bloqueio do correspondente à quota-parte do mesmo, com arrendondamento por excesso.
Temas de prova
Considerando o teor dos articulados das partes, apresentam-se como temas de prova apurar:
1)- se a conta de títulos e valor nessa conta de títulos depositado, no montante de € 13.235,32€, pertencem em exclusivo a AA; ou
2)- se a mesma conta e o valor de títulos depositado pertencem também a CC;
3)- se em 16.02.2007, a A. efectuou um pedido de manutenção da conta à ordem ... no sentido de a mesma passar a incluir um 2.º titular, o Sr. CC;
4)- se a R. aceitou essa alteração, passando a figurar como co-titulares da conta à ordem com a identificação interna ... a A. e o referido Sr. CC;
5)- se, de acordo com a da Cláusula 2.ª das Condições Gerais em vigor no momento das alterações referidas, a conta de títulos associada à conta à ordem com a identificação interna ..., passou a os mesmos titulares desta última, ou seja, a A. e o Sr. CC;
6)- se a cláusula referida em 3) foi lida e explicada à A. e ao Sr . CC;
7)- se a A. sabia, caso quisesse manter os valores mobiliários na sua exclusiva titularidade, teria de fazê-lo com base numa conta à ordem de que fosse a única titular;
8)- se, não o tendo feito, a A. conformou-se com a ideia de que a sua conta de títulos passaria, à semelhança da conta à ordem, a ser titulada, também, pelo Sr. CC."
.Agendada data para a audiência de julgamento as partes prescindiram da inquirição das testemunhas arroladas.
E de seguida foi proferida sentença que julgou a ação procedente e, em consequência, condenou a Ré:
“1. a reconhecer que a Autora é a única proprietária da carteira de títulos associada à conta com o IBAN PT50. ... e;
2. a autorizar a respectiva movimentação pela Autora.”
Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação e concluiu nos termos a seguir reproduzidos:
A. Em face da factualidade provada, é forçoso concluir que a titularidade da conta de títulos corresponde à da conta ..., ou seja, a conta de títulos tem como titulares a Apelada e o Sr. CC, possuindo registo e contabilização próprios.
B. A esta altura, não restam dúvidas de que o Apelante mantém registo dos titulares de direitos relativos a valores mobiliários, nomeadamente da conta de títulos associada — mas distinta — da conta com o IBAN ..., cujos titulares são a Apelada e o Sr. CC.
C. Deste modo, está estabelecida a presunção legal de que o direito pertence à Apelada e ao Sr. CC, a qual pode ser ilidida mediante prova em contrário; No caso concreto, para ilidir a presunção legal a favor do Sr. CC, competia à Apelada alegar e demonstrar que os títulos lhe pertenciam exclusivamente.
D. Na sua Petição Inicial, a Apelada alega, nos arts. 2.º e 4.º, que na conta de títulos foram “colocadas as poupanças da sua vida”, sendo esta a única factualidade alegada relativamente à propriedade dos títulos; o tribunal a quo considerou esses factos não provados.
E. Ora, não tendo a apelada provado que naquela conta depositara as “poupanças de uma vida”, o tribunal a quo não devia considerar ilidida a presunção legal apenas e só com base no facto de o cotitular ter entrado na conta sete meses após a sua abertura; esta última circunstância não nos permite concluir absolutamente nada sobre a propriedade dos títulos.
F. Se a Apelante não logrou provar o que alegou, é forçoso concluir que a Apelada não demonstrou nem provou que a metade dos títulos associados à conta em causa, os quais permanecem bloqueados desde que o Apelante teve conhecimento do falecimento do Sr. CC, lhe pertence; logo, a presunção legal dos arts. 516.º do CC e 74.º, n.º 1 do CVM não está ilidida.
G. Como tal, o Apelante não pode ser condenado a reconhecer a Apelada como única proprietária da conta de títulos, e muito menos a permitir que esta a movimente, sob pena de violar as obrigações assumidas perante o Sr. CC e de vir a ser responsabilizado perante os seus sucessores, devendo julgar-se o recurso procedente, revogando-se a sentença proferida pelo tribunal a quo e absolvendo-se o Apelante dos pedidos.
Foram, apresentadas contra-alegações.
Admitido o recurso no tribunal recorrido e recebidos os autos neste tribunal da Relação a relatora proferiu despacho cujo teor se reprodiz.
“Tendo presente que a autora peticiona o reconhecimento da sua qualidade de titular exclusiva de uma carteira de títulos associada a conta bancária titulada conjuntamente com terceiro entretanto falecido, cumpre apreciar se a presente instância se encontra regularmente constituída, face à eventual existência de litisconsórcio necessário passivo.
Nos termos do artigo 33.º nº2 do Código de Processo Civil, é necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal, o que, pode ser o caso se os herdeiros do co-titular falecido forem titulares de interesses juridicamente relevantes na definição da titularidade dos referidos ativos financeiros.
Assim sendo, importa assegurar o contraditório (artigo 3.º, n.º 3 do CPC) antes de qualquer decisão .
Pelo exposto, notifiquem-se as partes para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem sobre a eventual existência de litisconsórcio necessário passivo, designadamente quanto à necessidade de intervenção dos herdeiros do co-titular falecido na presente ação.
As partes não se pronunciaram.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
II. OBJECTO DO RECURSO.
Das conclusões recursórias que delimitam o objecto recursório resulta que a questão a decidir é a seguinte:
Da titularidade exclusiva da carteira de títulos associada à conta bancária titulada conjuntamente pela autora-recorrida e por existente no Banco 1..., S.A .
Todavia, antes dessa questão, atendendo ao teor do despacho proferido pela relatora no dia 09.06.2025, impõe-se apreciar e decidir se no caso dos autos está verificada uma situação de preterição de litisconsórcio necessário passivo.
III.FUNDAMENTAÇÃO.
3.1 Factos Provados e Não provados.
Na primeira instância foi proferida a seguinte decisão de facto:
A) Factos provados
1)Por decisão proferida em 2017 no processo nº 911/16.1T8VNG da (então) Instância Local Cível de Vila Nova de Gaia, actual Juízo Local Cível – Juiz 5, foi decretada a incapacidade da Autora por anomalia psíquica e nomeada sua legal representante e tutora BB;
2)A interdita AA abriu a conta bancária referida em 5) no antigo Banco 2..., e nesta subscreveu em
02/10/2003 uma
poupança, designada “..., onde colocou € 5.000,00;
3)Ficando este investimento, agregado à conta bancária identificada com o IBAN nº ..., da agência de ..., Vila Nova de Gaia, do Banco 1..., na qual CC é segundo titular;
4)Após o óbito do segundo titular CC, ocorrido em 24.2.2014, a R. bloqueou o acesso à conta, na qual estavam depositados, à última data conhecida: a) À ordem: €763,44; b) A prazo: €5.022,31; c) Na carteira de títulos: €15.204,14, correspondente a 1567.0330 unidades de ...;
5)Em 01.10.2003, a A. abriu uma conta individual, à ordem, junto do Banco 2..., entretanto incorporado no R., com a identificação interna ...;
6)Em 07.07.2006, a A. promoveu a abertura de uma conta de títulos, com a mesma titularidade da conta à ordem referida em 5) e com a mesma numeração;
7)Em 16.02.2007, a A. efectuou um pedido de manutenção da conta à ordem identificada em 5) no sentido de a mesma passar a incluir um 2.º titular, o Sr. CC, nos termos que constam do doc. 3 junto com a contestação cujo teor se dá aqui por reproduzido;
8)O R. aceitou essa alteração, passando a figurar como co-titulares da conta à ordem com a identificação interna ... a A. e o referido Sr. CC;
9)A conta tornou-se “solidária”, ie, obrigava-se se com a assinatura de qualquer um dos titulares;
10)De acordo com as “Condições Gerais” em vigor no momento das alterações referidas em 7), constantes do doc. 3 junto com a contestação, mais precisamente na Cláusula 2.ª da Parte “B” (“Identidade dos titulares”): “1 - Salvo nos casos previstos no número 2, o Banco 1..., S.A., adiante designado por “Banco”,
só aceita abrir contas de valores mobiliários com titularidade igual à da conta de depósitos à ordem associada, apenas podendo ser diferente a ordenação dos contitulares, designadamente para os efeitos do disposto na cláusula seguinte
.
Querendo um dos contitulares adquirir valores mobiliários apenas para si mesmo, deverá fazê-lo com base em conta de depósitos à ordem de que seja o único titular
. 2 - O Banco pode aceitar registar ou depositar valores mobiliários que por lei não possam ter mais de um titular em conta de valores mobiliários individual associada a conta de depósitos à ordem com mais titulares. Nesse caso, porém, os contitulares desta conta que não sejam titulares de tais valores poderão dar as ordens e instruções relativamente a eles de acordo com as condições de movimentação estabelecidas, como se de procuradores se tratasse. 3 - O Banco não admite indicação de quotas desiguais nas contas de valores mobiliários.”;
11)No que à conta de títulos diz respeito, com o óbito de CC, o R. procedeu ao bloqueio do correspondente a metade -, com arredondamento por excesso, nos termos da Cláusula 6.ª da Parte “B” (“Morte de contitular”) das mesmas Condições Gerais, já mencionadas;
12)Essa conta apresentava, à data do óbito, o seguinte valor na conta de títulos (“TIT ...”): 3134,0660 unid. Part. Fundo de Investimento;
13)Foram, pois, bloqueadas 1567,0330 dessas unidades;
14)Volvidos 10 anos, esse bloqueio permanece em vigor;
15)Alguns dias depois do óbito do Sr. CC, em 27.02.2014, a A. pediu o resgate de 50% das unidades de participação no fundo de investimento, a qual foi concretizada em 07.03.2014, com crédito do valor correspondente na conta à ordem identificada em 5).
B) Factos não provados
a)Na designada “..., a interdita colocou as poupanças da sua vida;
b)Com a extinção do Banco 2..., todos os activos passaram para o Banco 1... (Banco 1... S.A.) – Cfr. Doc. nº 3 que aqui de junta esse dá por integralmente reproduzido para todos os devidos efeitos legais.
c)A poupança de AA, passou a ser gerida por um fundo de investimento mobiliário aberto, passando a designar-se “Fundos de investimento”, agregado à conta de títulos nº ..., com o valor mobiliário preenchido por 1567.0330 unidades de ..., e o valor depositado de 15.204,14 euros;
d)Para esta conta de títulos, não existe documentação de suporte à abertura, uma vez que foi efectuada no aplicativo do R. denominado “TITU”, do qual não se guardam registos;
e)As “Condições Gerais” referidas em 10) foram lidas e explicadas à A. e ao Sr. CC;
f)A A. sabia que, caso quisesse manter os valores mobiliários na sua exclusiva titularidade, teria de fazê-lo com base numa conta à ordem de que fosse a única titular;
g)A A. conformou-se com a ideia de que a sua conta de títulos passaria, à semelhança da conta à ordem, a ser titulada, também, pelo Sr. CC;
h)Cerca de 7 anos mais tarde, em 27.02.2014, o R. tomou conhecimento do óbito do Sr. CC através de comunicação presencial da A., devidamente acompanhada por dois elementos da GNR e pela responsável de acção social de “...”, uma vez que apresentava sinais de alguma incapacidade mental e de condições de autossuficiência da sua vida diária;
i)De imediato, o R. comunicou o óbito à sua “Direcção de operação – habilitação de herdeiros”, que desencadeou os procedimentos habituais nestes casos;
j)Para além dos extratos juntos sob o Doc. 4, o R. envidou esforços no sentido de obter cópia do pedido de resgate dos valores mobiliários assinado pela A., 1.ª titular da conta, mas os documentos já não existem porque foram destruídos, por antigos;
k)A A. sempre agiu na convicção de que só teria direito à meação dos valores depositados à guarda do R., ente os quais os da conta de títulos;
l)A A. esteve sempre convencida de que só tinha direito a 50% do valor em causa;
m)Não foi previamente apresentada qualquer reclamação junto do R. sobre este tema.
3.2 Da Fundamentação Jurídica
3.2.1.
Antes de entrar na apreciação do objeto do recurso e de analisar o invocado erro da sentença recorrida, cumpre apreciar a questão, de conhecimento oficioso, equacionada por este tribunal e comunicada às partes, de poder ser entendido não ser a ré, dotada de legitimidade passiva, por desacompanhada dos herdeiros do outro titular da conta .
Vejamos.
Em causa a legitimidade das partes como pressuposto processual.
A legitimidade processual consiste na suscetibilidade de ser parte num determinado processo jurisdicional, podendo falar-se em legitimidade processual ativa, quando respeitante ao autor, e em legitimidade processual passiva, quando respeitante ao réu.
O Autor será aquele que tem interesse em demandar, intentando o processo em tribunal, fazendo valer o seu direito de ação, e réu será aquele que tem interesse em contradizer, inviabilizando a pretensão do autor.
A legitimidade das partes como pressuposto processual (legitimidade processual) distingue-se da legitimidade material (ou substantiva), das mesmas, que se prende com o mérito da ação. Uma coisa é saber se as partes são os sujeitos da pretensão formulada, admitindo que a pretensão exista; outra coisa, essencialmente distinta, é apurar se a pretensão na verdade existe, por se verificarem os requisitos de facto e de direito inerentes.
O Prof. Castro Mendes in Direito Processual Civil Vol. II, ed. da AAFDUL, 1978/79, a fls. 153 refere que “a legitimidade representa uma posição da parte em relação a certo processo em concreto, melhor, em relação a certo objeto do processo, à matéria que nesse processo se trata, a questão de que esse processo se ocupa” e acrescenta, “a legitimidade é uma posição de autor e réu, em relação ao objeto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objeto do processo”.
E no mesmo entendimento, estatui o art. 30 do CPC que “O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer” e acrescenta o nº 2 que os interesses do autor e do réu se exprimem, respetivamente, da utilidade derivada da procedência ou, do prejuízo que dessa procedência advenha.
E relevante, in casu, é o disposto no nº 3 que indica como titulares do interesse para efeito de legitimidade “os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor”.
O direito positivo vigente consagrou a doutrina dos Profs. Barbosa de Magalhães, Palma Carlos, Castro Mendes e, mais recente, M. Teixeira de Sousa.
Refere este último in A Legitimidade Singular… BMJ nº 292-105 que a legitimidade ”tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da ação possa advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na relação jurídica material controvertida, tal como a apresenta o autor”.
Como todos sabemos, o Código de Processo Civil – na configuração da legitimidade – optou por uma fórmula prática. Ao falar em relação material controvertida aponta para aquilo que o autor tenha querido apresentar em juízo.
A lei, aderindo à solução proposta pela jurisprudência dominante, declara que o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer, interesse que se exprime pelo prejuízo decorrente da procedência da ação e que, na falta de indicação contrária, consideram-se, para efeitos de legitimidade, titulares do interesse relevante, os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor. A intenção do legislador foi, nitidamente, a de desvalorizar a legitimidade enquanto pressuposto processual com o propósito de dar prevalência à decisão de mérito relativamente à decisão de pura forma, circunscrevendo as situações de ilegitimidade àqueles casos em que da própria exposição da situação da situação de facto controvertida, cuja existência tem de pressupor, se exclui a individualização por parte de alguns dos sujeitos presentes na causa – neste sentido, Maria José de Oliveira Capelo, Interesse Processual e Legitimidade Singular nas Acções de Filiação, BFC, Studia Iuridica, 15, pág. 179.
Na maior parte das ações são duas as partes que se defrontam, pelo que a regra, no processo, é a dualidade das partes.
E refere o art. 33º do CPC com a epigrafe “Litisconsórcio necessário” que:
1 - Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.
2 - É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
3 - A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.
Há lugar a litisconsórcio necessário quando a situação em litígio requeira uma pluralidade de interessados sob pena de não se produzirem em toda a sua plenitude os efeitos que o direito substantivo estabelece.
O litisconsórcio
[1]
(ativo se se tratar de mais de um autor e passivo se se tratar de mais de um réu), pode ser voluntário, se na disponibilidade das partes (art.32º) ou necessário, se imposto por lei ou pelo negócio jurídico em apreço (art. 28º) ou, ainda, quando pela própria natureza da relação jurídica, a intervenção de todos os interessados seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal (art. 33º,nº2 do CPC).
Este nº2 do art. 33º diz mais: a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes, relativamente ao pedido formulado.
O litisconsórcio imposto por lei é necessário para assegurar a legitimidade processual e para produzir uma decisão com conteúdo uniforme para todos os titulares (do interesse em demandar ou no de contradizer) e evitar possíveis divergências em possíveis decisões sucessivas sobre o objeto da causa e, desse modo (mesmo que não desenvolvam atividade processual própria) serem abrangidos pela eficácia do caso julgado material.
Por outro lado, nos casos de litisconsórcio necessário, a falta de qualquer interessado determina ilegitimidade
[2]
E “o efeito normal da decisão consiste na ordenação definitiva da situação concreta debatida entre as partes”
Acrescenta-se, porém, haver casos em que a falta de algum interessado na relação material não impede a decisão de regular definitivamente a situação concreta entre os litigantes, embora possa dar lugar a decisões ilógicas, contraditórias nos seus fundamentos, relativamente a situações nascidas da mesma relação
[3]
Como se refere no Novo Código de Processo Civil anotado por Abílio Neto, 4ª ed., anotação ao art. 33, “só existe litisconsórcio necessário quando a lei ou a lógica exijam a presença na lide de todos os interessados para que a decisão produza os efeitos erga omnes por ela exigidas; quando o ordenamento jurídico aceita que a decisão possa produzir efeitos só contra algumas pessoas, de modo que a relação jurídica subsista, ainda que não eficaz face às não partes, não há lugar a litisconsórcio”.
O mesmo será dizer que os intervenientes na acção não têm legitimidade, se desacompanhados dos restantes que nela deviam figurar.
“No caso de litisconsórcio necessário, há uma única ação com pluralidade de sujeitos; no litisconsórcio voluntário, há uma simples acumulação de ações, conservando cada litigante uma posição de independência em relação aos seus compartes” (art. 35º do CPC).
Assim, na determinação do litisconsórcio releva apenas a eventualidade de a sentença não compor definitivamente a situação jurídica das partes, por esta poder ser afectada pela solução dada numa outra acção entre outras partes.
A significar que o litisconsórcio natural verifica-se, seguramente, quando sem a participação de todos os interessados, não é possível uma composição definitiva dos seus interesses.
E o litisconsórcio natural também se impõe quando a presença em juízo de todos os interessados seja necessária para garantir uma decisão uniforme entre eles, isto é, quando a ausência de qualquer dos interessados possibilite uma nova acção sobre a mesma relação e possa originar decisões contraditórias entre eles.
Quer dizer, o litisconsórcio natural é imposto quer por razões de compatibilidade lógico-jurídica, quer por motivos de coerência prática, isto é, o litisconsórcio necessário deve constituir-se não apenas nos casos em que a repartição dos vários interessados por acções distintas impeça uma composição definitiva entre as partes na causa, mas também nas situações em que a repartição dos interessados por acções distintas possa obstar a uma solução uniforme entres todos eles
[4]
E será em função de cada litígio (numa ponderação casuística) que poderá determinar-se se uma projectada sentença de mérito tem ou não virtualidade para, de modo definitivo, resolver o litígio entre as partes, ainda que porventura esteja pendente ou venha a estar instaurada outra acção com outros sujeitos do lado activo ou passivo
[5]
3.2.2
.Feitas estas considerações, nos autos vem formulado o seguinte pedido de condenação da ré:
“a) condenar-se a ré a reconhecer que a autora é a única proprietária da carteira de títulos associada à conta com o IBAN ... e, em consequência, condenar a mesma a autorizar a respetiva movimentação.”
Todavia, como resulta da alegação da petição inicial a pretensão da autora está em conflito com o outro co-titular da conta bancaria à qual está associada a carteira de títulos, co-titular que faleceu no dia 24.2.2014.
É que a autora alega factos que na sua tese permitem provar que ela é titular exclusiva (titularidade económica) da carteira de fundos.
E apesar da autora não ter demandado o outro co-titular, ou os seus herdeiros, face aos termos em que a ação foi proposta têm interesse em contradizer.
É que, como tem sido continuamente assinalado a “ A titularidade das contas solidárias não predetermina a propriedade dos fundos nelas contidos, a qual (a propriedade dos fundos ou valores) pode pertencer apenas a algum ou alguns dos seus titulares ou cotitulares ou mesmo até porventura a um terceiro – Ac. Rel. de Co. de 04-10.2011, no Proc. 1233/09.0TBAVR.C1.”
No caso dos autos, alega a autora-recorrida nos arts. 2.º e 4.º da petição inicial que na conta de títulos foram “colocadas as poupanças da sua vida” para provar a propriedade dos títulos.
E a ré veio alegar que mantém registo dos titulares de direitos relativos a valores mobiliários, nomeadamente da conta de títulos associada — mas distinta — da conta com o IBAN ..., cujos titulares são a Apelada e o Sr. CC.
Ora, da própria configuração da acção na petição, e dos documentos que foram juntos aos autos, a presente acção nunca poderia ter sido intentada e muito menos decidida sem a chamada à acção do outro titular da conta com o IBAN ..., ou dos seus herdeiros, pois que se a acção procedesse nunca teria eficácia contra o outro co-titular da conta que não foi chamado à demanda.
E porque releva importa aportar considerações jurídicas sobre o depósito bancário, seguindo aqui a abordagem jurídica que foi feita em jurisprudência de acórdãos dos tribunais superiores a propósito de casos em que o litígio convoca as contas solidárias, assinalando-se o Ac Relação de Guimarães de 16.11.2023, in proc nº 28/40.4T8MAC.G1.
Como refere José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2017, pp. 495/496, o depósito bancário pode designar-se como a “convenção acessória do contrato de conta bancária através do qual o cliente (depositante) entrega uma quantia pecuniária ao banco (depositário), ficando este investido no direito de dela dispor livremente e no dever de restituir outro tanto da mesma espécie e qualidade nos termos acordados”
E tem sido configurado como um contrato atípico, que reúne elementos comuns da conta corrente mercantil (art. 347.º do C. Comercial) e de contrato de mandato. (art. 1157.º do Código Civil - CC), e cujo objecto se desdobra em actividades próximas do mútuo oneroso (1142.º e ss. do CC) e do depósito (art. 1185.º do CC).
Não corresponde ao típico contrato de depósito, porque transfere para o Banco a propriedade da quantia depositada, ficando o titular da conta com apenas um direito de crédito sobre o Banco
[6]
No fundo, pode dizer-se que o depósito bancário, sendo um negócio indireto, tem a natureza jurídica de um depósito irregular, por ter por objecto coisas fungíveis, pois que em regra é constituído por depósito de dinheiro (art. 1205º do CC).
O depósito bancário está regulado, em geral, pelo Dec. Lei n.º 430/91, de 2/11 (alterado pelo Dec. Lei n.º 88/2008, de 29/05).
E porque releva é sabido e que as contas à ordem podem ser singulares (as que só têm um titular) e colectivas (com mais do que um titular); estas, por sua vez, atendendo à distribuição dos poderes de gestão e movimentação entre os contitulares, podem ser solidárias, (qualquer um dos credores – depositantes ou titulares da conta – tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral), conjuntas (só podem ser movimentada a débito por todos ou com a autorização de todos os seus titulares) ou mistas (sendo solidária quanto a alguns dos titulares e conjunta quanto a outros),
Nas contas coletivas solidárias (as que relevam na situação ajuizada), também chamadas “contas ou”, qualquer um dos credores – depositantes ou titulares da conta – tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral, ou seja, o reembolso de toda a quantia depositada (acrescida dos respetivos juros, se os houver), ficando o banco liberado para com todos eles, contanto que restitua a totalidade dos montantes a um deles (art. 512º do CC)
Nessas contas, que resultam de vontade das partes e a que o Banco é, em regra estranho, permite-se a qualquer o-titular delas poder movimentá-las, total ou parcialmente, independente de ser seu depositante (de fundos), assentando as mesmas normalmente numa relação de confiança (“fidutia”) existente entre os seus co-titulares e é escolhida por estes para facilitar a movimentação da conta em ordem a prosseguir um objetivo comum. Porém, essa solidariedade só se verifica do lado ativo, e já não do lado passivo.
Logo que sejam satisfeitas as condições de mobilização da conta, o Banco terá de cumprir.
A conta solidária tem, assim, um elemento fiduciário bastante vincado, posto que qualquer um dos titulares pode proceder ao levantamento da quantia por inteiro, mesmo quando nas relações internas só parte dela lhe pertencer, como de resto, é salientado na jurisprudência dos tribunais superiores.
Com efeito, a titularidade da conta não predetermina a propriedade dos fundos nela contidos, que pode pertencer apenas a algum ou alguns dos seus titulares ou mesmo até porventura a um terceiro, não havendo, assim, que confundir a titularidade da dita conta com a propriedade dos valores/importâncias nela depositadas.
A revelar que o problema da titularidade do depósito ou conta aberta não se confunde, pois, com o da propriedade do dinheiro depositado, e que poderá ser levantado por qualquer dos meios contemplados na lei, por qualquer dos contitulares da conta à ordem.
O direito de crédito dimanando da relação obrigacional ou creditícia, oriunda do contrato ou acordo de depósito, pode ser exercido por qualquer dos titulares da conta ou depósito contra o Banco, sendo o Banco o devedor, distingue-se do direito real sobre a mercadoria-dinheiro, que fora depositado.
[7]
Uma coisa é legitimidade para movimentação da conta, inerente à qualidade de contitular inscrito no contrato de depósito e dela directamente decorrente, e a legitimidade para dispor livremente das quantias que a integram, esta indissociável do direito de “propriedade” sobre as quantias depositadas.
O direito de crédito de que é titular cada um dos depositantes solidários contra o banco – que se traduz num poder de mobilização do saldo – não se confunde com o direito real que incide sobre o dinheiro depositado, que pode pertencer a um só ou apenas a alguns dos titulares da conta ou até a um terceiro.
E porque releva para o caso porque se trata de conta solidária, importa convocar o regime geral das obrigações solidárias previsto no art 512º e segs. do CC, incluindo o art. 516º do CC, nos termos do qual: «Nas relações entre si, presume-se que os devedores ou credores solidários comparticipam em partes iguais na dívida ou no crédito, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou que um só deles deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do crédito».
Esta norma revela que a questão da repartição da propriedade do dinheiro respeita às relações internas dos titulares da conta bancária ou aos respectivos herdeiros, em caso de sucessão mortis causa, sendo por isso matéria a que o Banco é alheio.
[8]
3.2.3
.No caso, como já adiantamos, estamos perante uma típica acção declarativa condenatória, sob a forma de processo comum, que tem por objecto averiguar se a carteira de fundos associada à conta bancária titulada pela autora e outro, é propriedade exclusiva da autora.
E a ré-apelante na contestação alegou, e bem, que não sabe, nem tem de saber, se tal corresponde à verdade, tanto que impugnou a alegação da autora.
A causa de pedir e o pedido revelam estarmos perante um conflito entre cotitulares de uma conta bancária coletiva solidária, no qual um dos cotitulares pretende condenar o Banco a ré a reconhecer que a autora é a única proprietária da carteira de títulos associada à conta com o IBAN ... e, em consequência, condenar a mesma a autorizar a respetiva movimentação.
Ora, a questão colocada em sede de acção de reivindicação da propriedade ou compropriedade da carteira de títulos associada à conta bancária solidaria, teria de ser esgrimida entre todos os contitulares dessa conta e só entre eles.
É matéria das suas relações internas, enquanto cotitulares da conta bancária. Com efeito, estando em causa uma conta coletiva (solidária), a questão colocada exige que estejam na acção todos os cotitulares da conta
Isto porque, para que a decisão a obter possa produzir o seu efeito útil normal seria necessária a intervenção de todos os cotitulares da mencionada conta.
De outro modo, a sentença proferida poderá ficar numa situação instável em face de outra eventual sentença que venha a ser proferida noutra acção com intervenção de outros interessados, designadamente com a participação do cotitular que não intervém na presente demanda.
A revelar que é no caso é indiscutível a necessidade do litisconsórcio natural, sob pena de a repartição dos vários interessados por acções distintas ser de molde a impedir uma composição definitiva do litígio entre as próprias partes na causa, além de que só assim se logrará uma solução uniforme entre todos os cotitulares sobre a propriedade da carteira de títulos associada à referida conta bancária.
E, como tem sido jurisprudencialmente entendido, em princípio, existe litisconsórcio necessário passivo quando se pretendem exercer direitos relativos a contas solidárias
[9]
Em face das considerações expostas a sentença a proferir não poderá alcançar o seu efeito útil normal, isto é, declarar o direito de modo definitivo, formando caso julgado material, sem estarem em juízo todos os cotitulares inscritos no contrato de abertura de abertura de conta.
Consequentemente, estamos na presença dum caso de litisconsórcio necessário emanado da própria natureza da relação jurídica litigada, no qual, ab initio ou posteriormente, um dos dois cotitulares da conta bancária não foi chamado à acção – no caso, os herdeiros do cotitular CC, falecido a 24/02/2014, de acordo com a petição inicial–, que, assim, não tiveram oportunidade processual de se pronunciarem sobre questão que lhes diz directamente respeito e que afecta as respectivas esferas jurídicas.
A ilegitimidade constitui exceção dilatória (art. 577.º, al. e), do CPC), de conhecimento oficioso (art. 578.º do mesmo Código).
A Relação, ao conhecer do objeto do recurso, tem igualmente de apreciar todas as questões de conhecimento oficioso, entre as quais se inclui a legitimidade das partes, ainda que essa questão não tenha sido suscitada nem decidida pelo tribunal recorrido.
Ora, importa ter presente que a exceção dilatória da ilegitimidade, quando fundada na preterição de litisconsórcio necessário, não se encontra sujeita a preclusão em fase inicial do processo.
Com efeito, resulta dos arts. 316.º, n.º 1, e 318.º, n.º 1, al. a), do CPC, em conjugação com o disposto no art. 261.º, do mesmo diploma, que a omissão de litisconsorte necessário pode ser sanada mesmo em momento avançado da tramitação processual, inclusive após a prolação de decisão de mérito pela 1.ª instância e durante a pendência do recurso.
Assim, nos termos do art. 261.º, n.º 2, se o processo tiver findado por decisão que reconheça a ilegitimidade, o chamamento pode ainda ser requerido nos 30 dias subsequentes ao respetivo trânsito, renovando-se a instância
A revelar que a lei adjectiva permite ao autor ou reconvinte chamar ao processo a parte em falta até ao trânsito em julgado da decisão que tenha julgado ilegítima alguma das partes por ausência do necessário litisconsorte..
Assim, não sufragamos a tese segundo a qual a Relação, uma vez constatada a ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário, ficaria impedida de promover o suprimento do vício.
Pelo contrário, a gestão processual, consagrada no art. 6.º do CPC, impõe que se conceda à autora a possibilidade de sanar a irregularidade, chamando ao processo os sujeitos indispensáveis à regular composição da instância, como resulta de entendimento já consolidado em jurisprudência das Relações.
Reportando-nos ao caso dos autos, autos, verificando-se que a ação foi intentada sem intervenção de todos os litisconsortes necessários, conclui-se pela existência de ilegitimidade passiva, devendo assegurar-se à autora a faculdade de suprir o vício processual através do chamamento da parte em falta, nos termos dos arts. 316.º e seguintes do CPC.
Deste modo, julga-se oficiosamente verificada a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, determinando-se a baixa dos autos ao tribunal recorrido, a fim de que seja promovido o suprimento do vício, convidando-se a autora a fazer intervir na lide os litisconsortes necessários, sob pena de absolvição da instância.
Sumário.
………………………………
………………………………
………………………………
IV. DELIBERAÇÃO:
Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:
-Julgar procedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, decorrente da preterição de litisconsórcio necessário;
-Revogar a sentença recorrida, que havia conhecido do mérito da causa;
-Determinar a baixa dos autos ao Tribunal da Comarca, para que aí seja a autora convidada a promover o chamamento da parte ou partes necessárias, nos termos dos artigos 316.º e seguintes do Código de Processo Civil, sob pena de absolvição da instância;
Custas da acção e da apelação a cargo da Autora/apelada (art. 527º do CPC).
Porto, 11.09.2025
Francisca Mota Vieira
Aristides Rodrigues de Almeida
António Carneiro da Silva
_______________
[1]
Vide para mais desenvolvimentos sobre a distinção entre os casos de litisconsórcio e os casos de coligação, A. Varela e Sampaio da Nova, Manual de Processo Civil, p. 160 e ssg, 2ª ed.
[2]
Ob.cit, p. 165
[3]
Ob cita, p. 168,169.
[4]
Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pp. 161/163, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I - Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, Almedina, p. 63 e o Ac. da RC de 08/11/2011 (relator Henrique Antunes), in www.dgsi.pt.
[5]
Cfr. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª ed., 2017, Almedina, p. 81-82.
[6]
Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Vol. I, Almedina, p. 222.
[7]
Cfr. Acs. do STJ de 4/06/2013 (relator Alves Velho), de 15-03-2012 (relatora Maria dos Prazeres Beleza), de 31/03/2011 (relator Serra Baptista) e de 26/10/2010 (relator Moreira Alves), in www.dgsi.pt; Paula Ponces Camanho, obra citada, p.134/136 (nota 395) e L. Miguel Pestana de Vasconcelos, obra citada, p. 95.
[8]
Cfr., neste sentido, Ac. da RE 23/02/2017 (relator Mário Serrano) in
www.dgsi.pt
, citado no Ac relação de Guimarães de 16.11.2023, in proc nº28/40.4T8MAC.G1
[9]
A propósito, Ac. do STJ de 26/10/2004 (relator Afonso Correia),
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/c6f8950d34b9886a80258d0f00325a51?OpenDocument
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1,762,646,400,000
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IMPROCEDENTE A APELAÇÃO DA 2ª RÉ/PARCIALMENTE PROCEDENTE A APELAÇÃO DA AUTORA
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7779/21.4T8LSB.L1-8
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7779/21.4T8LSB.L1-8
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CARLA MATOS
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Sumário
: (da exclusiva responsabilidade da Relatora):
I.O dano da perda de chance é um dano específico, com contornos próprios, que se prende com o ressarcimento da perda de oportunidade - séria e com significativo grau de probabilidade - de obtenção de uma vantagem.
II.A propósito desse tipo de dano, e especificamente sobre a perda de chance processual, o STJ, em Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 05.07.2021 proferido no Processo 34545/15.3T8LSB.L1.S2-A (Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS), uniformizou Jurisprudência nos seguintes termos: “O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade.”
III.Não é, portanto, algo que se possa invocar ou conhecer na sequência do fracasso da prova do dano correspondentes a lucros cessantes.
IV.Trata-se de um dano específico, cuja invocação haveria de ser feita “ab initio” e não em fase de recurso.
V.Os danos sofridos pela Autora não decorreram de qualquer omissão de vigilância do condomínio relativamente às partes comuns do edifício, em si mesmas, como seria, por exemplo, o caso de danos provocados por um deficiente estado de conservação dessas partes comuns.
VI.Decorrem sim de uma ação concreta - a realização de obras. Ação de terceiro, pois não foi o condomínio que executou as obras. Não se provou sequer que era o dono da obra.
VII.Portanto, não realizou, e nem sequer contratou a obra causadora de dano à A.
VIII.Não decorrendo os danos, em termos de nexo de causalidade adequada, de uma omissão de vigilância do condomínio, mas sim de uma ação na qual aquele não teve intervenção, deverá manter-se a absolvição do condomínio do pedido.
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[
"CONDOMÍNIO",
"OBRAS",
"OBRIGAÇÃO DE VIGILÂNCIA",
"DANO",
"PERDA DE CHANCE"
] |
Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:
Mordomias & Cortesias, L.da,
intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra:
- Condomínio do Prédio sito na ...
- … – Construções Unipessoal, L.da,
- Perfil 21 – Sociedade imobiliária, L.da, e
- AA
Pedindo a condenação dos RR. a pagar à Autora:
a. A indemnização no montante de 129.230,28 pelos danos patrimoniais sofridos na sua fracção;
b. A suportar os custos de reparação dos equipamentos de cozinha designadamente balcão frigorífico e a câmara frigorífica.
c. A quantia de 84.827,00€ a título de lucros cessantes,
d. A indemnizar os danos patrimoniais futuros decorrentes do encerramento do estabelecimento.
Alega para tanto e em síntese que:
Autora dedica-se exclusivamente à exploração de um estabelecimento de restaurante sito na Fracção “A” do prédio sito na ..., a qual tomou de arrendamento. Após o início da atividade foram realizadas obras no prédio que impediram o funcionamento do restaurante e que causaram danos na fração e nos bens móveis que o integravam. Alega que os 2º e 3º RR. não agiram com a diligência exigida ao empreiteiro e dono da obra e que o 4º R. não diligenciou pelo gozo do locado pela A.
Regularmente citados para contestar, no prazo e sob a cominação legal, os Réus fizeram-no em devido tempo.
O R. AA
impugna os fatos alegados referindo que é senhorio da A. sendo que quando adquiriu a fracção já estava prevista a realização de obras no edifício. Nunca foi interpelado pela A. para a realização de obras nem para reposição do locado no estado de utilização para o fim a que se destinava.
Entende que o exercício do direito que a A. pretende exercer corresponde a manifesto abuso de direito dada a desproporção entre o valor dos prejuízos para tornar apto o locado e o valor da renda.
A Ré …,
Construções, L.da defendeu-se por excepção invocando a sua ilegitimidade, e por impugnação referindo que a partir de 2017 apenas interveio no prédio em causa como empreiteiro. Refere que existiram danos na fracção da 4ª Ré em data que o estabelecimento se encontrava já encerrado, tendo accionado o seguro que após peritagem pagou ao 4º R.
Requereu a intervenção principal da sua seguradora.
A Ré Perfil 21
deduz excepção de ilegitimidade activa e impugna os factos alegados referindo que é proprietária das fracções B e C do mesmo prédio sendo alheia aos danos referidos pela A. dos quais só teve conhecimento com esta acção.
O contrato de arrendamento previa a realização das obras, tendo a A. aceite a hipótese de tais obras impossibilitarem o gozo da fracção.
*
Realizou-se Audiência prévia, tendo sido elaborado despacho saneador que apreciou as exceções, fixou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
*
Procedeu-se a julgamento, finda a qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, decide-se:
1. Julgar a presente acção parcialmente procedente e consequentemente condenar a Ré … – Construções, Unipessoal, L.da a pagar à A. a quantia de 40.447,10€ a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos.
2. Absolver a 2ª R. dos demais pedidos contra ela formulados.
3. Absolver os 1º, 3º e 4º RR. dos pedidos contra eles formulados.
Custas pela A. e 2ª R. na proporção do decaimento.
Registe e notifique.”
*
Inconformada, a Ré …-Construções Unipessoal, Lda, veio intentar recurso de apelação apresentando alegações, com as seguintes conclusões (cf req. de 16.12.2024):
“I-A Recorrente transferiu a sua responsabilidade civil para a Fidelidade-companhia de seguros S.A, pelo que com o pagamento da indemnização ao R. AA extinguiu-se qualquer responsabilidade da Recorrente.
II-Sem qualquer fundamentação a douta sentença, ora sob sindicância, desconsiderou tal circunstância e sobre a mesma não se pronunciou
III-Destarte, o R. AA foi indemnizado no montante €8.541,00 (Oito mil quinhentos e quarenta e um euros) conforme consta do facto provado 72 e não realizou qualquer reparação no locado, como aliás lhe competia.
IV-A douta sentença em crise, num ápice judicial e não obstante a transferência da responsabilidade da Recorrente para a companhia de seguros, desconsidera e não se pronuncia quer sobre tal transferência quer sobre o recebido da quantia referida no número que antecede.
V-O R. AA locupletou-se indevidamente com o montante €8.541,00 (Oito mil quinhentos e quarenta e um euros).
VI-Situação que é grave e que merece a tutela do Direito
VII-A Recorrente elaborou termo de transacção extra judicial, por forma a proceder-se à reparação do imóvel, o qual não obstante ter sido aceite pelo R. R. AA nunca foi assinado.
VIII-Sendo inequívocas a boa-fé e diligência da Recorrente no intuito de resolver a situação.
IX-Pelo que, com tal matéria de facto e não obstante os critérios de livre apreciação da prova, impunha-se decisão diversa
X-A douta sentença julgou a presente acção parcialmente procedente e consequentemente condenou a Ré … – Construções, Unipessoal, L.da a pagar à A. a quantia de 40.447,10€ a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos
XI-Montante que é claramente desproporcional, porquanto o orçamento junto com a petição inicial sob o documento 75 corresponde ao triplo do valor do orçamento junto com a contestação sob o documento 8
XII-O documento 75 que serviu de fundamento para o ponto 62 dos factos provados, inclui várias reparações do próprio locado, pelo que a haverem que ser liquidadas, haveriam que o ser ao proprietário do locado e não à A.
XIII-Pelo que o montante ali referido não é devido à A.
XIV-Em suma, mal andou o tribunal a quo, na subsunção da factualidade provada ao direito, pois havendo sito feita prova cabal da indeminização recebida pelo Reu AA, e e que o mesmo, por manifesto desleixo e/ou oportunidade, não procedeu á realização das obras que lhe competia, não pode agora a Recorrente, suportar monetariamente tal omissão.
XV – Neste conspecto, e apelando ao acervo probatório assente, caberia ao AA o pagamento e não à recorrente.
Termos em que deve ser revogada in totum a sentença que julgou a acção parcialmente procedente a acção, dando-se provimento ao presente recurso,
Só assim se fazendo sã, verdadeira e manifesta, JUSTIÇA!
*
AA contra-alegou, concluindo nos seguintes termos (cf req. de 31.01.2025):
“A. O recurso interposto pela Recorrente não tem qualquer fundamento válido.
B. Não havendo razões que justifiquem a sua admissibilidade ou procedência.
C. Devendo a decisão recorrida ser integralmente mantida, sem alterações.
D. A Recorrente não cumpriu os ónus impostos pelo art. 640.º do CPC.
E. Não tendo especificado os pontos de facto impugnados nem indicado com precisão os meios probatórios que suportariam decisão diversa.
F. Tendo inclusivamente feito interpretações extensivas do constante das gravações.
G. Assim, não respeitou os requisitos legais para a admissibilidade do recurso.
H. A Recorrente não transcreveu nem indicou, de forma precisa, o início e o termo das provas gravadas.
I. Nem sequer indicou, em que medida o entendimento deveria ter sido outro em face da concreta prova produzida.
J. Essa omissão justifica a rejeição da impugnação da matéria de facto, conforme jurisprudência pacífica dos tribunais superiores.
K. A transferência de responsabilidade para uma seguradora não exonera a empreiteira da obrigação de reparar os danos.
L. O artigo 1207.º do Código Civil prevê essa responsabilidade.
M. A existência de seguro não afasta a obrigação de indemnizar os prejuízos causados pelo
empreiteiro.
N. Pelo contrário, a jurisprudência reafirma que a responsabilidade do empreiteiro persiste mesmo com a existência de seguro.
O. A obrigação de reparar os danos decorre do contrato de empreitada e dos princípios gerais da responsabilidade civil.
P. Os danos causados à Autora resultaram diretamente da execução das obras realizadas pela Recorrente.
Q. A responsabilidade pelos danos resultantes das mesmas é exclusivamente imputável à Recorrente.
R. Não há qualquer facto ou meio de prova que justifique a sua exoneração.
S. O nexo de causalidade entre a conduta da Recorrente e os danos sofridos pela Autora está devidamente demonstrado.
T. Bem como em relação aos danos causados ao Recorrido.
U. Isto porque, não nos podemos esquecer de que a fração danificada pertence ao Recorrido e que este, por conta da atuação da Recorrente, se viu privado do recebimento das rendas durante um extenso período de tempo, o que lhe causa um evidente prejuízo.
V. Não podendo a Recorrente escusar-se ao cumprimento das suas obrigações contratuais
e extracontratuais.
W. Não podendo igualmente transferir a sua responsabilidade para terceiros sem fundamento legal.
X. A jurisprudência tem sido clara: mesmo com a existência de seguro, cabe ao empreiteiro assegurar a eliminação efetiva dos prejuízos.
Y. A simples existência de uma apólice não pode ser usada para se furtar às responsabilidades.
Z. A Recorrente tentou desresponsabilizar-se através da responsabilização do ora Recorrido.
AA. Contudo, baseando-se em argumentos infundados e sem qualquer suporte factual ou jurídico.
BB. O montante pago pela seguradora ao ora Recorrido é claramente insuficiente para cobrir os custos necessários à reparação integral dos danos causados pela ora Recorrente.
CC. Danos estes que só em relação às obras necessárias na fração se contabilizam no valor de € 29.500,00 (vinte e nove mil e quinhentos euros), conforme resulta da Sentença proferida.
DD. Tendo esses danos afetado diretamente o próprio Recorrido, que deixou de auferir rendimentos provenientes das rendas (facto provado 53) e viu o seu imóvel sofrer degradação significativa.
EE. Tal situação foi devidamente comunicada à ora Recorrente, que, apesar disso, não tomou qualquer providência para sanar os prejuízos causados.
FF. No que se refere à compensação recebida pelo Recorrido e à suposta inércia por ele demonstrada, reitera-se que tal alegação não encontra respaldo nos autos e não corresponde à realidade.
GG. Consequentemente, essa questão não tem qualquer relevância para a decisão final do litígio em análise.
HH. Tentando a ora Recorrente, sem qualquer mérito, protelar a efetivação da justiça.
II. As alegações da Recorrente não apresentam elementos novos ou relevantes que justifiquem a modificação da decisão.
JJ. Limitam-se a repetir argumentos já apreciados e afastados pelo Tribunal a quo.
KK. O Tribunal a quo apreciou corretamente a matéria de facto e de direito.
LL. A decisão foi baseada na livre apreciação da prova e nos elementos constantes dos autos, tendo sido aplicada a melhor interpretação do direito.
MM. A sentença recorrida reflete uma análise minuciosa e criteriosa dos factos e das normas aplicáveis.
NN. Não há qualquer erro de julgamento que justifique a sua modificação ou revogação.
OO. Assim, deve ser negado provimento ao recurso.
PP. Devendo a sentença recorrida ser integralmente mantida.
Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., que se dignem a manter a decisão proferida pelo Tribunal a quo, em tudo quanto alegado pelo Recorrente, devendo ser negado provimento ao recurso interposto pelo Recorrente e, em consequência:
a) Julgar a presente ação parcialmente procedente e consequentemente condenar a Ré, … – Construções, Unipessoal, Lda., a pagar à A. a quantia de € 40.447,10 a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos.
b) Absolver a 2ª R. dos demais pedidos contra ela formulados.
c) Absolver os 1º, 3º e 4º RR. dos pedidos contra eles formulados.
como é de Direito e assim se fazendo a costumada,
JUSTIÇA!
*
A Autora também apelou da sentença, apresentando alegações com as seguintes conclusões (cf req. de 15.01.2025):
1. Tem o presente recurso de apelação por objecto a sentença proferida pelo Tribunal a quo que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a 2.ª R. …-Construções Unipessoal, Lda. a pagar à Autora a quantia de €40.447,10 a título de indemnização de danos patrimoniais sofridos, absolvendo a 2.ª R. dos demais pedidos contra ela formulados e os 1.º, 3.ª e 4.º RR. de todos os pedidos contra eles formulados.
2. A ora Apelante não pode conformar-se com a decisão proferida, considerando que a mesma padece de erros materiais, nulidades e ainda de erro de julgamento quer no que se reporta directamente ao juízo decisório sobre a factualidade assente e a factualidade dada como não provada, quer quanto aos danos invocados pela Autora, quer, ainda, no que respeita à responsabilidade dos Réus pela reparação de tais danos, configurando a sentença sob recurso, além do mais, uma decisão que, face às circunstâncias do caso concreto, choca o sentido de Justiça.
3. Assim quanto aos erros materiais constantes da sentença impõe-se a respectiva rectificação, uma vez que a afirmação nela constante de que se terá procedido a julgamento “não tendo sido produzida qualquer prova testemunhal em face da falta de pagamento, pelas partes, das competentes taxas de justiça”, não tem qualquer sentido na presente acção judicial;
4. No caso vertente teve lugar audiência de julgamento que se prolongou por diversas sessões com a produção de extensa prova testemunhal, acompanhada, aliás, por declarações de parte da legal representante da A. e ainda dos legais representantes da 2.ª e 3.ª Rés., como aliás resulta expressamente da motivação do julgamento sobre a matéria de facto dada como provada e não provada.
5. Entende ainda a recorrente que a sentença impugnada padece de nulidade por falta absoluta de fundamentação, nos termos do disposto no n.º 1 alínea b) do artigo 615.º do CPC., no que se reporta directamente à decisão de absolvição do 4.º Réu do pedido de condenação contra ele deduzido pela Autora ora Recorrente.
6. Invocou a Autora ora recorrente haver sofrido graves danos a partir de 2018 que, até hoje, se mantêm por reparar e que a impedem de retomar a exploração do estabelecimento comercial de restauração sito na ..., que lhe pertence.
7. Pediu, entre o mais, a condenação do 4.º R. na indemnização dos danos patrimoniais por ela sofridos, invocando que este Réu, na dupla qualidade de senhorio da Autora e de condómino comproprietário das partes comunsdo prédio é responsável pela reparação dos danos sofridos pela Autora.
8. Alegou que este Réu- com o seu comportamento omissivo – contribuiu, a par dos demais RR., para o encerramento do estabelecimento comercial instalado no locado devido aos gravosos danos sofridos pela Autora, a colocar em perigo a própria segurança dos trabalhadores e dos clientes, não cuidando, até esta data, da sua reparação.
9. A sentença impugnada absolve este Réu do pedido sem, porém, aduzir qualquer fundamentação, deixando por revelar os fundamentos concretos de tal absolvição do pedido.
10.Pelo que no entendimento da Recorrente se verifica a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
11.Co o merecido respeito, afigura-se, ainda, à Apelante que a decisão sob recurso padece de nulidade por omissão de pronúncia nos termos previstos no artigo 615.º, n.º 1 al. d) do CPC.
12.Na verdade, na presente acção judicial, veio a nos artigos 142.º, 143.º, 173.º e 174.º da petição inicial, reclamar a indemnização dos danos futurosa liquidar posteriormente;
13. Referindo pretender ver reconhecido na presente acção o seu direito à indemnização dos danos que viessem a ocorrer a partir da data da entrada da acção judicial em juízo até à data em que se venham a mostrar verificadas as condições para que o estabelecimento comercial de restauração possa reiniciar a respectiva actividade.
14. Face a este pedido afigura-se que, na verdade, a sentença impugnada incorre em nulidade por omissão de pronúncia nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC. ao deixar por decidir esta questão.
15. Entende ainda a Apelante que factos essenciais constitutivos do direito da Autora não foram tomados como relevantes pela Mma Juíza a quo, não tendo sobre eles existido juízo probatório,
16. Omissão que compromete a boa decisão da causa.
17. Invocou a Autora na petição inicial que o edifício sito na ... sofreu obras profundas, que incidiram não apenas no interior das fracções autónomas “B” e “C” mas também nas partes comuns do edifício.
18. E que dessas obras - realizadas sem qualquer oposição por parte do condomínio nem do 4.º RR - resultaram directamente gravosos danos na esfera jurídica da Autora ora Recorrente.
19. Na petição inicial alegou expressamente que existiu uma disparidade entre as obras previstas e licenciadas no âmbito do processo municipal n.º 303/EDI/2016 e as obras que vieram a ser efectivamente realizadas por determinação da 3.ª Ré.
20. E que as obras que foram executadas pela 2.ª Ré não se mostravam em conformidade com as obras previstas e aprovadas no processo municipal n.º 303/EDI/2016,26 afectando todo o prédio, incluindo a própria parede perimetral da fracção “A” (que a separa das escadas do prédio) e a fracção” B”, e não apenas a fracção “C”, situada no 2.º Piso.
21. Alegou que as referidas obras pretendiam dotar o edifício de três fracções habitacionais, uma por cada piso, para além da fracção “A,” situada no nível térreo.
22. E que “na sequência de acção de fiscalização, realizada em 30 de Setembro de 2019, pela Polícia Municipal de Lisboa, foi constatado que a obra se estava a desenvolver em desconformidade com os projectos apresentados e deferidos no âmbito do processo 303/EDI/2017, tendo sido elaborado o auto de notícia PI-4045-2019, no qual é identificada a 3.ª Ré como autora da infracção.
23.Alegou a Autora que, de acordo com a mencionada informação, assistiu- se a intervenções ao nível estrutural nos pisos 0 e 1 que não estavam previstas nos projectos, estava em execução a construção de uma fracção 26 Artigo 38.º da PI por piso, tendo sido anulada a escada interior entre o 2.º e o 3.º piso e
ampliada a escada principal em mais 2 pisos.
24. Tendo para prova destes factos juntado com a petição inicial os documentos 70 (auto de notícia elaborado em 30 de setembro de 2019) e a informação n.º …00/INF/DMURB_DepAGU_DivF/ GESTURBE/2019 da Câmara Municipal de Lisboa, segundo a qual foram detectadas desconformidades ao nível da cobertura, com aproveitamento do sótão, sujeitando o processo a uma ampliação de 4 para 5 pisos, ao nível da escada comum do edifício, ao nível do desvão da cobertura, ao nível da fachada principal (alçado sul), ao nível da fachada posterior (alçado norte), desconformidades ao nível da área de construção, desconformidades no interior das fracções, constatando-se que a obra estava a decorrer nos pisos 0 (apenas no espaço da entrada e escadas) e totalidade dos pisos 1, 2, 3 e cobertura, divergindo com a pretensão anteriormente proposta, constatando-se que a compartimentação interior não corresponde ao representado nos projectos, e, finalmente, desconformidades nas estruturas, conforme ali melhor discriminado27.
25. Tais factos - alegados expressamente na petição inicial - constituem factos essenciais do direito invocado pela Autora.
26. Na verdade, os mesmos reportam-se directamente à actuação da 3.ª Ré, proprietária das fracções autónomas designadas pelas letras “B” e “ C”, empenhada na construção de uma terceira fracção autónoma habitacional ao nível do piso 3 e na criação de um espaço não licenciável e clandestino correspondente ao aproveitamento do desvão do sótão para fins habitacionais.
27. E relevam ainda para a decisão sobre a responsabilidade civil do 1.º e do 4.º Réus na medida em que se trata de intervenção total, realizada não apenas no interior de dada fracção autónoma, mas alargada às partes comuns do prédio de que os condóminos são comproprietários e que ao condomínio cumpre cuidar;
28. Invocou, pois, expressamente a Autora que se assistiu a obras de ampliação do edifício, a obras de alterações interiores e exteriores do mesmo, tendentes à alteração da composição do prédio e incidentes não apenas no interior das fracções “B” e “C”, mas também nas partes comuns do imóvel.
29. Deixou claro que as obras realizadas se apresentavam em desconformidade com o licenciamento camarário, e que foram realizadas sem o cuidado e sem a diligência necessários e exigíveis28, não tendo os Réus observado o dever de cuidado e de diligência que lhes era imposto na execução das ditas obras por forma a evitar a ocorrência de danos na esfera jurídica da Autora.
30. Como se deixou descrito, suportada nesta factualidade, sustentou a Autora a responsabilidade do 1.º R. Condomínio na medida em que aceitou a realização de obras ilegais de ampliação do prédio, não licenciadas, directamente incidentes em partes comuns29, das quais resultou a deterioração dos bens pertencentes à Autora e a paralisação da actividade do seu estabelecimento comercial,
31. Imputou ainda a responsabilidade civil pela reparação dos danos emergentes de tais factos à 2.ª e à 3.ª RR., entendendo que ambas foram
28 Artigo 150.º da PI
29 Sublinha-se que a ampliação do prédio é feita essencialmente pelo aproveitamento do espaço esconso sob a cobertura para nova habitação, .
directamente responsáveis pelas obras em causa e que ambas tiveram directa intervenção na produção dos danos sofridos pela autora;
32. Invocou que a 3.ª R. que comprou as fracções autónomas designadas pelas letras “B” e “C” em 17 de Março de 2017, decidiu realizar obras de intervenção total no prédio, não licenciadas e alargadas a todo o imóvel, visando a ampliação da área de construção pela construção de uma nova fracção autónoma no piso 3 e ainda pretendendo apropriar-se de partes comuns do edifício pelo aproveitando o sótão, através de contrato de empreitada com a 2.ª Ré, tendo assim contribuído decisivamente para a verificação dos danos sofridos pela Autora.
33. Alegou a responsabilidade do 4.º R. na sua dupla qualidade de senhorio e de condómino, na medida em que, em vez de proporcionar à Autora a plena utilização da fracção de acordo com os fins fixados no contrato de arrendamento celebrado, veio anuir à execução de obras estruturais do prédio ilegais, das quais resultaram gravosos danos para a Autora.
34. Entende a Recorrente que estes factos interessam á boa decisão da causa, sendo aliás essenciais para o reconhecimento do direito invocado pela Autora perante os RR.
35. Deixa-se sublinhado que a decisão sobre a responsabilidade do dono da obra depende da ponderação do tipo de obra que esteja em causa e da ponderação se da execução dessa obra decorreriam necessariamente danos na esfera jurídica de terceiros.
36. Entende a Recorrente que é exactamente essa a situação dos autos;
37. Impondo-se a conclusão de que a matéria de facto deve ser ampliada por forma a permitir a correcta decisão do mérito da causa no que se reporta à responsabilidade do 1.º, 3.ª e 4.º Réus.
38. Reconhecida a relevância desta factualidade, a verdade é que a mesma deve ser julgada provada,
39. Desde logo pelos documentos que sob os n.ºs 70 e 71 foram juntos aos autos;
40. E ainda pela prova testemunhal que foi realizada, da qual se destaca particularmente o depoimento da pela testemunha BB, arquitecto e director de obra, funcionário à data da obra da sociedade …, 2.ª R.,
41. Esta testemunha, no depoimento prestado em 17.01.2023, registado no sistema habilus media studio de minutos 11:59 a 12:34, (com início em 00:00:01 e fim em 00:35:23), esclareceu que era o director da obra para a obra que foi licenciada por iniciativa da dona da obra (a 3.ª R.), e que se manteve como director da obra até fins de 2019 que estava licenciada, e que se tratava inicialmente de um edifício de três pisos, no total de 3 unidades autónomas (minutos 2:30).
42.Referiu, a minutos 12:25 do seu depoimento, que o embargo teve lugar no final de 2019, esclarecendo que este embargo teve a ver com o facto de o alvará ter sido emitido para um determinado tipo de obra que descreveu como “a existência de um duplex”, e estar a ser construído um fogo adicional no último piso, com o prolongamento da caixa de escadas para mais dois lances, explicando que o embargo teve, fundamentalmente, a ver, do ponto de vista urbanístico, com o facto de estarem a ser executadas obras que não tinham sido licenciadas, o aumento do número de fogos, com o aumento do número de pisos, com o aproveitamento do sótão que foi feito.
43.Referiu, expressamente, a minutos 12:55 do seu depoimento, que os projectos estavam todos entregues na Câmara de Lisboa para a intervenção total, mas que à data da fiscalização não tinham ainda sido deferidos.
44.Referiu a minutos 14:45 do seu depoimento que muitas das intervenções que foram feitas no segundo andar e no decurso da obra, no edifício e nas fracções, foi por iniciativa da Perfil 21, dona da obra, afirmou, ainda, que chegou a ser apresentado um projecto de licenciamento da obra tendo por base o que tinha sido feito, tendo a Câmara imposto correcções e que, posteriormente, veio a ser escolhido pelo dono da obra um novo projectista e que acabaram por ser anuladas muitas das intervenções que tinham sido feitas em obra e por repor aquilo que estava no projecto inicial.
45.Esta testemunha, inquirida a minutos 27:30 sobre as obras executadas no prédio descritas no auto de notícia, interpelado para esclarecer a finalidade da construção dos dois lanços de escada, relacionando esta obra com os trabalhos de construção de uma nova fracção independente no piso 3 e ainda com os trabalhos que estavam a ser executados no piso superior ao piso 3, com o aproveitamento da cobertura com a instalação sanitária e tubagens de água e de esgotos, afirmou, a minutos 28:40 do seu depoimento, que estava a ser construída uma fracção autónoma ao nível do segundo andar em que, em vez do duplex, passaria a haver três pisos habitacionais, tal como tinha sido previsto no projecto apresentado na Câmara Municipal de Lisboa e que, com o seu desconhecimento e por iniciativa do dono da obra, foi prolongado um outro lanço de escadas e estavam a ser executadas obras indevidas no desvão de cobertura, tendo a testemunha ideia que depois tais obras terão sido demolidas na totalidade.
46.Reconheceu esta testemunha, a minutos 30:29, que tal construção jamais mereceria o licenciamento, que era clandestina e que foi demolida.
47.Referiu, a minutos 31:17 do seu depoimento, que como director da obra se apercebeu da construção do lanço de escadas mas que “muitas das decisões que foram tomadas em obra são do dono da obra.”
48.Assumiu que sabia que ía ser estendido um lanço de escadas do segundo para o terceiro andar, com vista à construção da nova fracção autónoma no terceiro piso, mas que foi com surpresa que se deparou com o prolongamento do lanço de escadas para a parte superior em direcção ao sótão.
49.Também a testemunha CC, arquitecto, que prestou depoimento no dia 17 de Janeiro de 2024, registado no sistema habilus media studio de minutos 14:12 a 14:30, (início em 00:00:01 e fim em 00:17:11), explicou, a minutos 02:12, que foi chamado a ter intervenção no processo já numa fase final, tendo sido contratado em meados de 2021 (minutos 2:40), numa perspectiva de fazer uma regularização de um projecto que não estava aprovado, tendo a obra sido anteriormente embargada, tendo depois da sua intervenção a obra prosseguido.
50. Explicou, a minutos 4:40, que a obra foi embargada devido à discrepância entre o que estava a ser executado em obra e o que constava do projecto aprovado, esclarecendo que os embargos são decretados porque a obra não cumpre o projecto aprovado.
51.Refere, a minutos 10:46, que no processo inicial de licenciamento, para além da fracção no r/ch, se previam dois fogos habitacionais, o segundo deles em duplex.
52.Declarou ter verificado que tinha sido apresentado um novo projecto que não foi aprovado por questões de urbanismo.
53.Quando a testemunha veio a intervir, já em 2021, foi então aprovado novo projecto, sendo levantado o embargo, referindo, a minutos 12:00, que a obra nessa data estava realizada a 50%, tendo após o levantamento do embargo sido executadas algumas demolições.
54.Também a testemunha DD, que prestou depoimento no dia 17 de Janeiro de 2024, registado no sistema habilus media studio de 09:57 a 10H 43 (gravado de 00:00:01 e fim em 00:46:05), afirmou, a minutos 29:00, que no decurso da execução das obras a própria cobertura do prédio foi retirada e que posteriormente foi retirada a caixilharia do piso 1.
55. Em suma, com base nos meios de prova que nesta sede se deixaram elencados, deverá ser acrescentada aos factos dados como provados a seguinte matéria de facto, dando-se a mesma por provada:
as obras que foram executadas pela 2.ª Ré não se mostraram em conformidade com as obras previstas e aprovadas no Processo Municipal n.º 303/EDI/2016, afectando todo o prédio, incluindo a própria parede perimetral da fracção “A” (que a separa das escadas do prédio) e a fracção” B”, e não apenas a fracção “C”, situada no 2.º Piso
as obras de alteração interior e exterior do prédio, pretendiam, entre o mais, dotar o edifício de três fracções habitacionais, uma por cada piso, para além da fracção “A,” situada no nível térreo;
a 3.ª Ré apresentou, em Abril de 2018, projecto de alterações de arquitectura ao projecto de licenciamento aprovado, que veio a dar origem ao processo 985/EDI/2018;
Na sequência de acção de fiscalização, realizada em 30 de Setembro de 2019, pela Polícia Municipal de Lisboa, foi constatado que a obra se estava a desenvolver em desconformidade com os projectos apresentados e deferidos no âmbito do processo 303/EDI/2017, tendo sido elaborado o Auto de Notícia PI-4045-2019, no qual é identificada a 3.ª Ré como autora da infracção, cfr. Documento n.º 70 junto com a petição inicial”;
Segundo a informação n.º …00/INF/DMURB_DepAGU_DivF/ GESTURBE/2019 da Câmara Municipal de Lisboa, cuja cópia foi junta aos autos com a petição inicial como Doc.71, foram detectadas desconformidades ao nível da cobertura, com aproveitamento do sótão sujeitando o processo a uma ampliação de 4 para 5 pisos, ao nível da escada comum do edifício, ao nível do desvão da cobertura, ao nível da fachada principal (alçado sul), ao nível da fachada posterior (alçado norte), desconformidades ao nível da área de construção, desconformidades no interior das fracções, constatando-se que a obra estava a decorrer nos pisos 0 (apenas no espaço da entrada e escadas) e totalidade dos pisos 1, 2, 3 e cobertura, divergindo com a pretensão anteriormente proposta, constatando-se que a compartimentação interior não corresponde ao representado nos projectos, e, finalmente, desconformidades nas estruturas, conforme ali melhor discriminado.
56.Não se conforma igualmente a Recorrente com o juízo probatório que recaiu sobre a factualidade dada como não provada sob as alíneas b) a h) e k), devendo tais factos ter sido antes dados como assentes.
57. Assim impugna a Recorrente o juízo probatório que recaiu sobre o facto descrito sob a alínea b), a qual tem a seguinte redacção;
b) que devido ao encerramento do restaurante, em Julho de 2018, e às infiltrações posteriormente ocorridas, a Autora viu o seu stock de géneros alimentícios estragado, o que ascende a 5.550,00€.
58.Com efeito sobre este ponto da matéria de facto prestou declarações de parte EE, legal representante da Autora, na sessão de julgamento do dia 16.01.2024, gravadas no sistema Habilus media studio com início às 9:53 e fim às 10:38 (registadas com início a 00:00:01 e fim em 00:44:41), tendo esta declarado quanto à perda do stock a minutos 31:57 “o stock é para esquecer …com as datas de validade…”
59.Àquela data (16 de Janeiro de 2024), encontravam-se já decorridos cerca de cinco anos e meio sobre a data de encerramento do restaurante, pelo que é absolutamente verossímil que o stock de mercadorias não tivesse então qualquer valor relevante dado o período de tempo já decorrido.
60.Ainda hoje já em janeiro de 2025, decorrido já um ano sobre a data doa audiência final, o estabelecimento comercial se mantém destruído – nas condições evidenciadas pelas fotografias juntas aos autos com a petição inicial em Março de 2021 como Documentos 2 a 66, sem condições para retomar a respectiva actividade.
61.Ao invés da afirmação feita na decisão sob recurso, entende-se que a decisão de encerramento tomada pela Autora em nada compromete que tivesse deixado de poder rentabilizar as mercadorias adquiridas até essa data.
62.Também a testemunha FF, sócia titular do capital social, que prestou depoimento logo na 1.ª sessão de julgamento, em 16.01.2024, gravado no sistema Habilus media studio com início às 10:54 e termo às 11:34 (gravadas de 00:00:01 a 00:39:30), apontou o valor de €5500,00 como valor do stock constituído pelos vinhos e mais alguma mercadoria perecível existente no estabelecimento, sendo absolutamente verossímil - até perante as imagens juntas aos autos, a respectiva destruição face ao estado geral em que aquele local ainda hoje se encontra.
63.Pelo exposto deve este facto ser dado como provado.
64. Impugna, ainda, a Recorrente o juízo probatório que recaiu sobre a alínea c) da factualidade não provada com a seguinte redacção “c. Que a A. tem em dívida as retribuições devidas à sua gerente no montante total de €7.392,40 dada a falta de meios económicos da Autora em consequência do encerramento de actividade do seu estabelecimento comercial”.
65.Sobre esta matéria prestou a legal representante da Autora declarações de parte na sessão de julgamento do dia 16.01.2024 gravadas no sistema Habilus media studio com início às 9:53 e fim às 10:38, registadas de minutos 00:00:01 a minutos 00:44:41.
66.Declarou, a minutos 30:03 das suas declarações, que ficou com vencimentos por receber.
67. Também a testemunha GG, contabilista certificada, que prestou depoimento na 1.ª sessão de julgamento do dia 16 de Janeiro de 2024, com início pelas 12h15m e termo às 12h46m, gravado no sistema habilus media studio (gravado de minutos 00:00 a 36:00), afirmou a minutos 08:18 que, em 2018, a empresa tinha uma dívida de retribuições à gerente no montante de €7392,40.
68.Deve, assim, este facto ser dado como provado.
69. Mais impugna a Apelante o facto dado como não provado descrito sob a alínea d) com a seguinte redacção: d. A Autora viu-se forçada nos anos de 2017 a 2019 a recorrer a empréstimos dos sócios na ordem de €78.709,32 para fazer face aos custos fixos e à necessidade de cobertura de tesouraria, decorrentes do encerramento de actividade do estabelecimento comercial.
70.Sobre este ponto da matéria de facto prestou a legal representante da Autora declarações de parte na sessão de julgamento do dia 16.01.2024, gravadas no sistema Habilus media studio com início às 9:53 e fim às 10:38, gravadas de minutos 00:00:01 a minutos 00:44:41, tendo declarado a minutos 30:03 que teve que colocar na sociedade o total de €78.000,00 para cobrir as despesas.
71.Também a testemunha FF, sócia titular do capital social, que prestou depoimento logo na 1.ª sessão de julgamento, em 16.01.2024, gravado no sistema Habilus media studio com início às 10:54 e termo pelas 11:34 (gravadas de minutos 00:00:01 a minutos 00:39:30), esclareceu, a minutos 13:30, que os empréstimos feitos pela sua Mãe EE à sociedade para que esta pagasse as despesas ascenderam a € 78.709,32, conforme afirmou encontrar-se reflectido no balanço a 31.12.2018 e 31.12.2019.
72.Esclareceu, a minutos 12:40, que a Autora foi forçada a despedir pessoas, a pagar os encargos com a Segurança Social, teve que manter os contratos com a NOS (televisão e telefone), com a seguradora, com a luz e a água. Reiterou, a minutos 20:48, que foi a sua Mãe (gerente da sociedade) quem emprestou os €78.000,00 à sociedade.
73.Pelo exposto também este facto deverá ser dado como provado.
74. Impugna ainda a Apelante o juízo probatório que recaiu sobre o facto descrito sob a alínea e) dos Fcatos não provados com a seguinte redacção: e. A Autora foi forçada a pagar diversos encargos como taxas, licenças e prémios de seguros que, naturalmente, significam prejuízo uma vez que são pagos e não existe possibilidade de serem rentabilizados.
75.Com efeito encontra-se provado o encerramento do único estabelecimento comercial detido pela Autora,
76.Encontra-se igualmente demonstrado na presente acção judicial que a Autora foi forçada a fazer cessar os contratos de trabalho dos cinco trabalhadores, provando-se que, não obstante o encerramento do estabelecimento, continuou, nos meses seguintes, a suportar o pagamento das rendas e a pagar outras despesas, encontrando-se privada de qualquer fonte de rendimentos ou proveito na medida em que se tratava do único estabelecimento comercial por ela explorado
77.Ainda sobre esta mesma factualidade prestou declarações de parte a legal representante da Autora na sessão de julgamento do dia 16.01.2024, gravadas no sistema Habilus media studio com início em 00:00:01 e fim em 00:44:41, tendo declarado, a minutos 30:26, que teve que cobrir as despesas com trabalhadores, com a segurança social, com as rendas, com a luz que continuava ligada.
78. Não se vê fundamento para a Mma. Juíza a quo ter colocado em crise a prova deste facto.
79. Entende a Recorrente face ao que deixou exposto que deve assim também este facto ser julgado provado.
80. Entende igualmente a Recorrente que os factos descritos sob as alíneas f) e g) da factualidade não provada deverão antes merecer diferente juízo probatório que dê por assente que f). A Autora apresentou resultados negativos em 2018 no montante de € 69374,76 (sessenta e nove mil trezentos e setenta e quatro euros e setenta e seis cêntimos) e que g) , em 2019, no montante de €5966,02 (cinco mil novecentos e sessenta e seis euros e dois cêntimos).
81.Com efeito inquirida sobre esta matéria FF, sócia titular do capital social, que prestou depoimento logo na 1.ª sessão de julgamento, em 16.01.2024, gravado no sistema Habilus media studio com início às 10:54 e termo pelas 11:34 (gravação com início a minutos 00:00:01 até minutos 00:39:30), a mesma confirmou os resultados líquidos negativos apresentados pela sociedade Autora em 2018 e 2019 e esclareceu a minutos 14:20 que o restaurante apenas teve um mês de funcionamento pleno (Fevereiro de 2018). A partir de março de 2018 e até fecharem as portas tiveram sempre um funcionamento deficiente.
82. Inquirida igualmente sobre estes pontos da matéria de facto, a testemunha GG, contabilista certificada, que prestou depoimento na 1.ª sessão de julgamento, no dia 16 de Janeiro de 2024, com início pelas 12h15m e termo às 12h46m, gravado no sistema habilus media studio (gravado de minutos 00:00 a 36:00), afirmou, a minutos 09:29, socorrendo-se da demonstração de resultados de 2018 que os resultados líquidos negativos de 2018 foram no montante de €69374,76 de prejuízos e os de 2019 foram também negativos no montante de €5966,02 de prejuízos.
83. Esclareceu, ainda, esta testemunha que em 2018 a empresa só teve seis meses de actividade e que em 2019 não houve facturação e só houve custos.
84. Deve, pois, também este facto ser julgado provado.
85. Impugna ainda a Recorrente o juízo probatório que recaiu sobre o ponto de facto descrito sob a alínea h) da factualidade não provada.com a seguinte redacção: h. Sendo o resultado previsional expectável para 2018 de € 36.248,00 (trinta e seis mil duzentos e quarenta e oito euros) e, para 2019, de €48.579,00 (quarenta e oito mil quinhentos e setenta e nove euros).
86. Com efeito sobre tal matéria foram inquiridas as testemunhas FF e GG.
87. A testemunha FF, sócia titular do capital social, que prestou depoimento logo na 1.ª sessão de julgamento, em 16.01.2024, gravado no sistema Habilus media studio com início às 10:54 e termo pelas 11:34 (registada de minutos 00:00:01 a minutos 00:39:30), procurou explicar os cálculos previsionais efectuados.
88.Esclareceu a minutos 16:49 do seu depoimento que os resultados previsionais tiveram por base 146 refeições diárias esperadas (tendo em consideração que o restaurante dispunha de 97 lugares sentados e servia almoços e jantares, afigurando-se verossímil admitir 75% de ocupações ao almoço e ao jantar partindo dos dados recolhidos em Fevereiro de 2018, mês em que o restaurante esteve em pleno funcionamento como refere a testemunha a minutos 17:37), sendo de 12€ o preço médio das refeições.
89. Foi, ainda, tido em conta que, em cada ano, o estabelecimento estaria em laboração 270 dias (excluindo 52 dias de folgas, 30 de férias e 13 feriados).
90.E que com estes dados contavam servir o total de 39285 refeições por ano, atingindo o total de facturação bruta de €471420,00. Deduzidos os custos daria no ano 1 cerca de 40.000,00 de resultados líquidos perdidos e no ano 2 o montante de €48579,00, assumindo uma taxa de crescimento na ordem de 10%.
91.Esclareceu ainda que não tomou em consideração os anos de 2020 e 2021 por causa da pandemia assumindo que nesses anos o estabelecimento teria estado sempre encerrado.
92.Que recorreu a dados da ARESP para calcular a margem média do negócio e a taxa de crescimento esperada.
93.Sustentou que a sociedade autora ao permanecer encerrada perdia por ano valores superiores a 40.000,00
94.Como se referiu, sobre esta mesma matéria prestou, ainda, depoimento a testemunha GG, contabilista certificada, na 1.ª sessão de julgamento, no dia 16 de Janeiro de 2024, com início pelas 12h15m e termo às 12h46m, gravado no sistema habilus media studio (gravado de minutos 00:00 a 36:00).
95.Também esta testemunha esclareceu os cálculos previsionais realizados sobre as perdas sofridas em 2018 e 2019 em virtude do encerramento do estabelecimento,
96.Referiu a mesma v que nesses cálculos se tomou por base o valor do custo médio de refeição (12€), os dias de laboração do estabelecimento em cada ano (270 dias), a lotação do espaço (97 lugares) e a possibilidade de negócio.
97.Esclareceu que recorreram a dados divulgados pela ARESP sobre o sector, designadamente à margem e à taxa de crescimento médio divulgada para o sector da restauração, acompanhada da taxa de crescimento dos custos.
98.Afirmou a minutos 15:53 que se esperava atingir em 2018 resultados positivos na ordem de €36250 e em 2019 na ordem de €48000,00,
99.Afigura-se assim à Recorrente que deveria esta factualidade ter sido dada como provada.
100. Mais entendeu a Mma. Juíza a quo que a Autora não logrou fazer prova de que uma vez demolida a parede perimetral da fracção A não fora ainda edificada uma nova parede, permanecendo a fracção com comunicação aberta entre o escritório e as escadas do prédio, dando assim como não provado o facto descrito sob a alínea
j)
Não foi edificada qualquer parede para dividir a fracção do espaço comum.
101. A verdade, como resulta directamente das declarações de parte prestadas por EE, gerente da Autora, na sessão de julgamento do dia 16.01.2024, gravadas no sistema Habilus media studio com início às 9:53 e fim às 10:38 (gravadas de minutos 00:00:01 a minutos 00:44:41), tal parede veio a ser construída apenas em 2023, isto é, no ano anterior à realização da sessão de julgamento.
102. Estas declarações não foram infirmadas por qualquer prova testemunhal, devendo assim ser dado como provado que demolida a parede em 2018 somente em 2023 veio a ser construída nova parede.
103. Finalmente considera a Apelante haver erro no julgamento da matéria de facto ao dar-se como não provada a factualidade descrita sob a alínea k) com a seguinte redacção: k) Que o balcão frigorífico, a câmara frigorífica e o equipamento de som tenham ficado danificados.
104. Justifica a Mma Juíza a quo o juízo probatório sobre este ponto da matéria de facto referindo que tal juízo se deveu ao facto de não ter sido apresentado qualquer documento.
105. Coos e deixou invocado na alegação de recurso, não se compreende qual a razão para tal exigência, vedando a possibilidade de tal factualidade ser julgada provada com recurso à prova testemunhal.
106. Sobre esta factualidade prestou declarações a legal representante da Autora, na sessão de julgamento do dia 16.01.2024, gravadas no sistema Habilus media studio com início às 9:53 e fim às 10:38, (de minutos 00:00:01 a minutos 00:44:41), afirmando a minutos 30:42 do seu depoimento que em virtude das obras executadas no prédio tudo ficou destruído no interior do restaurante, referindo-se aos vários equipamentos existentes no seu interior.
107. Conjugando este depoimento com o depoimento da testemunha FF e, ainda, com as fotografias constantes dos autos que retratam o interior do restaurante (documentos 24 a 66 juntos com a petição inicial), há que concluir que se evidencia nos autos que os equipamentos do restaurante se encontram há anos soterrados, sendo que os equipamentos, como os autos evidenciam, encontram-se cobertos por pedaços de estuque e outros materiais, danificados, tendo, obviamente, perdido o seu valor.
108. FF, no depoimento prestado no dia 16 de Janeiro de 2024, gravado no sistema Habilus media studio com início às 10:54 e termo pelas 11:34 (registada de minutos 00:00:01 a minutos 00:39:30) foi clara ao afirmar a minutos 12:00 que tudo quanto se encontrava no interior do estabelecimento estava perdido.
109. No entendimento da Recorrente, deve, assim, este facto ser julgado provado.
110. Não se conforma igualmente a Recorrente com a improcedência do pedido de condenação dos RR. No pagamento de indemnização pelos lucros cessantes verificados nos anos de 2018 e 2019.
111. Com efeito, refere a sentença sob recurso que a Autora se terá limitado a dar conta das suas expectativas, não tendo logrado provar de forma realista os lucros cessantes efectivamente sofridos.
112. Ora, entendendo a Mma. Juíza a quo como excessivos ou infundados os resultados previsionais sustentados em juízo pelas testemunhas, sempre cumpriria à Mma. Juíza ter recorrido à aplicação do artigo 566.º n.º 2 do CC., vindo, por recurso à equidade, fixar a extensão dos lucros cessantes.
113. Ao não reconhecer, no caso concreto, tais danos como indemnizáveis, não obstante a prova dos factos descritos sob os n.ºs 69 a 61, 66 a 69 e 73, a sentença impugnada revela-se profundamente injusta, padecendo de erro de julgamento por violação das normas jurídicas aplicáveis, em particular os artigos 562.º, 564.º e 566.º n.º 3 do CC.
114. Não se pode compreender que, face às específicas circunstâncias do caso concreto, e atenta a impugnação que acima se deixou exposta no que respeita à factualidade dada como não provada sob as alíneas b) a h) e k) da sentença, se entenda que não assiste qualquer direito de indemnização à Autora relativamente ao que deixou de poder auferir nos anos de 2018 e 2019 com a normal exploração do respectivo estabelecimento comercial que veio a ser destruído pelos RR.
115. Com o merecido respeito, entende a recorrente que tais danos se apresentam como certos e nessa medida indemnizáveis, sendo que caso se entenda necessário cumprirá ao julgador recorrer à equidade na determinação da extensão do quantum indemnizatório.
116. Acresce que ficou demonstrado que, não obstante a entrada da acção em juízo, o estabelecimento comercial permanece encerrado, sem condições para poder retomar actividade,
117. Entende a Apelante que nessa medida, conjugada a factualidade dada como assente, pode concluir-se que esta situação acarreta para a Autora a verificação de danos futuros certos, ainda que indetermináveis na sua extensão.
118. Atento o pedido de indemnização concretamente deduzido pela Autora na petição inicial no que respeita à indemnização destes danos futuros, cumpria ao Tribunal reconhecer o direito da Autora a ver tais danos devidamente indemnizados, remetendo a respectiva liquidação para momento ulterior nos termos do disposto nos artigos 564.º n. 2 do CC e artigo 609.º n.º 2 do CPC.
119. Finalmente sempre deixa invocado nesta sede a Apelante que, caso o Tribunal tivesse vindo a entender que, atentas as circunstâncias específicas e particulares da situação sub judice, não haveria certeza quanto à ocorrência de dano por lucros cessantes - o que, nesta sede, apenas por cautela de raciocínio se admite-então, fixada a factualidade dada como provada, deveria julgar procedente a indemnização da Recorrente
pela perda de chance.
120. É certo que reclamou a Autora a indemnização pelo dano sofrido a título de lucros cessantes entre 2018 e 2019, entendendo que este dano final decorreu da redução dos proveitos face às condições adversas em que o respectivo estabelecimento comercial teve actividade entre Março e Julho de 2018, tendo ficado paralisado desde então até hoje.
121. Resultando, porém, da factualidade assente que se assistiu antes a uma perda de chance já que a Autora em directa consequência da actuação ilícita e culposa dos Réus, ficou privada de ver cumpridas as respectivas expectativas de crescimento favorável, reunindo o estabelecimento condições sérias e adequadas para as concretizar (evidenciadas nos factos dados como provados sob os n.ºs 59 a 61, 66 a 69 e 73), cumpria ao Tribunal a quo garantir a reparação dos danos apurados, que, não obstante a qualificação jurídica que lhes venha a ser atribuída, se entendem compreendidos no pedido de indemnização apresentado em virtude da responsabilidade civil dos RR, sem prejuízo de dar cumprimento ao disposto no artigo 5.º do CPC para garantia do contraditório.
122. O que se apresenta como profundamente injusto, no caso concreto é, perante a gravidade da factualidade assente, ver negado à Autora o direito a ver reparados os danos sofridos.
123. Finalmente entende a Apelante existir erro de julgamento perante a decisão de absolvição dos 1.º, 3.ª e 4.º Réus do pedido.
124. Entende a Recorrente que todos os Réus demandados na presente acção judicial são solidariamente responsáveis pela reparação dos danos sofridos pela Apelante nos termos previstos no artigo 497.º n.º 1 do CC.
125. E que, ao invés do decidido na sentença impugnada, é solidária a obrigação dos RR., podendo a Autora exigir o cumprimento da obrigação, na sua integralidade, a cada um dos responsáveis da obrigação de indemnizar.
126. O 1.º Reu é responsável na medida em que se encontrava-se adstrito ao dever de zelar e vigiar as partes comuns do imóvel, decorrendo do artigo 493.º n.º 1 do CC a responsabilidade do condomínio pelos danos provocados pelas obras levadas a efeito nas partes comuns do edifício, independentemente de ser ou não o dono da obra.
127. Encontrava-se o condomínio obrigado a prevenir a ocorrência de danos na esfera da A., não podendo, de forma alguma, alhear-se da actuação das 2.ª e 3.ª Rés que levaram a cabo obras não licenciadas, de ampliação da área de construção do imóvel, tendentes à construção de dois novos “espaços habitacionais”, um no piso 3, outro no piso superior a este último, aproveitando o desvão do sótão sob a cobertura do edifício.
128. Trata-se de responsabilidade por omissão do dever de praticar o acto omitido (artigo 486.º do CC), tendo o condomínio o dever de impedir que as obras realizadas nas partes comuns do edifício comportassem danos para a esfera jurídica da Autora ora Apelante;
129. Entende ainda a Apelante que também a 3.ª Ré, dona da obra, é responsável pela reparação dos danos sofridos pela Autora.
130. Os danos descritos na factualidade dada como provada sob os n.ºs 18 a 24, importam a responsabilidade civil do dano da obra,
131. Já que decorreram necessariamente da realização da obra em causa, uma vez que a demolição das paredes interiores dos pisos superiores do prédio, a trepidação constante, o ruído, a queda de entulho, a colocação de andaimes, estão necessariamente associadas à realização das obras contratadas pelo dono da obra.
132. Nesta sede foi dado como assente que “O barulho constante, a trepidação, as poeiras e queda de entulho afectaram directamente a higiene e a salubridade do estabelecimento, criando risco para a segurança dos trabalhadores e dos clientes do restaurante30 e que, em virtude dos constrangimentos decorrentes as obras, a A. encerrou o estabelecimento em 21 de Julho de 2018.
133. O encerramento do estabelecimento da Autora ora Recorrente verificou- se em Julho de 2018, antes da verificação das inundações, que vieram a ocorrer em Outubro e igualmente antes da queda do tecto, que data de 2019.
134. Como resulta do depoimento da testemunha FF o encerramento verificou-se pelos problemas surgidos logo a partir de Março de 2018, tendo o estabelecimento passado a funcionar deficientemente a partir de então até à data do encerramento em Julho de 2018.
135. Assim, entende a Recorrente que a natureza das obras a efectuar sempre implicaria necessariamente a produção de gravosos danos na esfera jurídica da Autora ora Recorrente.
136. Sucede, no entanto, que resultou da prova efectivamente produzida que foram executadas obras nas quais teve directa intervenção o dono da obra, dirigidas à construção de dois espaços habitacionais, não licenciados,
137. Porém resulta da prova efectivamente produzida que os danos ocorreram devido não apenas ao empreiteiro, mas ainda ao dono da obra, tendo ambos concorrido para a produção de gravosos prejuízos no estabelecimento comercial da Autora.
138. E, finalmente, entende a Apelante que também o 4.º Réu é pela reparação dos danos sofridos pela Autora na medida em que, como locador, tem a obrigação de assegurar à inquilina o gozo do prédio arrendado para o fim a que o mesmo se destina, cfr. artigo 1031º, al. b), do CC e como condómino, é, em virtude dessa qualidade, comproprietário das partes comuns, cabendo-lhe garantir que das obras nelas realizadas não decorrerão prejuízos para terceiros.
139. No caso vertente, porém, em vez de proporcionar à Autora a plena utilização da fracção de acordo com os fins fixados no contrato de arrendamento celebrado, o 4.º R. veio anuir à execução de obras estruturais do prédio ilegais, das quais resultaram gravosos danos para a Autora.
140. Tendo pela omissão do seu dever contribuído directamente para a deterioração da fracção “A” dada de arrendamento à Autora, contribuindo para o encerramento do estabelecimento comercial instalado no locado devido aos gravosos danos sofridos pela Autora, a colocar em perigo a própria segurança dos trabalhadores e dos clientes, não cuidando, até esta data, da sua reparação.
141. Sublinha-se que, não obstante ter sido dado como provado que, face aos danos iniciais ocorridos, este Réu veio a receber indemnização da Seguradora no montante de €8.541,00€32 (Facto Provado n.º 72), o mesmo não tomou qualquer medida para devolver à fracção “A” condições mínimas capazes de permitirem o reinício da laboração do estabelecimento comercial da Autora.
142. Acresce que a culpa do 4.º R. se presume legalmente nos termos previstos no artigo 799.º do CC e é apreciada nos termos do disposto no artigo 799.º, n.º 2, do CC, tornando-se responsável pela reparação de todos os prejuízos que a sua conduta ilícita e culposa causou à Autora, assistindo,assim, à Autora, o direito de ser indemnizada pelos danos e prejuízos sofridos, sendo colocada na situação patrimonial em que estaria caso não tivesse sido alvo dos danos decorrentes da conduta ilícita e culposa dos RR.
Pelo exposto e com o douto suprimento do Venerando Tribunal da Relação, que desde já se invoca, deve ser dado provimento à presente apelação e, em consequência, revogada a sentença sob recurso, substituindo-a por decisão que julgue procedentes os pedidos em conformidade com a prova adquirida.
Assim agindo, cumprirão V. Exas. a Lei, fazendo a sã e costumada JUSTIÇA!
*
A Ré Perfil 21 apresentou contra-alegações ao recurso intentado pela Autora, nos seguintes termos (cf req. de 24.02.2025):
“IX
.
CONCLUSÕES:
Da suposta omissão de pronúncia sobre o pedido de condenação dos RR. na indemnização por danos patrimoniais futuros
A) Não é exato que a sentença tenho omitido pronúncia sobre os danos futuros peticionados pela Recorrente.
B) Nas pp. 27 e 28 da sentença posta em crise, expressamente se ajuíza que sobre os lucros cessantes e sobre os danos futuros (
rectius
, lucros cessantes futuros) não conseguiu a Recorrente produzir qualquer prova de que os mesmo se houvessem verificado ou viessem a realizar, pelo que não foi reconhecido o direito à respetiva indemnização.
Da pretendida alteração da matéria de facto através da ampliação da factualidade provada para acolher factos supostamente constitutivos do direito da Autora: a amplitude e finalidade da obra realizada no prédio sito na ...
C) Os factos que a Recorrente pretende ver adicionados à matéria de facto são irrelevantes, sendo certo que alguns desses factos, além de irrelevantes, são, em parte, também falsos.
D) A Recorrente entende que a ora Recorrida deve ser condenada a indemnizá-la por danos sofridos em decorrência da execução negligente de determinadas intervenções em obra. Porém, pretende aditar alegações à matéria de facto que respeitam à conformidade urbanística da obra com o projeto aprovado.
E) São duas as falácias em que incorre. Por um lado, as regras urbanísticas supostamente violadas (que a Recorrente nem sequer invoca) não dispõem sobre os pressupostos e limites de edificação, não integrando no seu escopo a prevenção dos danos sofridos por terceiro na execução da obra. Numa frase: não são as normas de proteção previstas no artigo 483.º/1 CC.
F) Acresce que não existe, nem, em bom rigor, foi concreta e circunstanciadamente estabelecida pela Recorrente qualquer relação causal entre as supostas condutas contrárias às regras urbanísticas aplicáveis à obra em questão e os danos alegados pela Recorrente.
G) Adicionalmente, são, em parte, falsas as alegações de facto que a Recorrente pretende juntar à matéria de facto provada.
H) Finalmente, ficou claramente comprovado que quer a substituição da caixilharia das janelas do edifício quer a reparação da viga ao nível do primeiro piso, ou seja, as intervenções a que a Recorrente atribui os danos que alega estavam perfeitamente licenciadas desde o início da obra.
Da pretendida alteração da matéria de facto: dos danos sofridos pela Recorrente
I) A perda de stock no valor de 5.500€ não foi dada como provada porquanto a Recorrente não produziu prova sobre este facto. Não juntou qualquer documento (
v.g.
faturas de aquisição, inventário, etc.), tendo-se limitado (e nisso se louva a sua impugnação) nas declarações… da representante da Recorrente. A representante da Recorrente não soube precisar produtos, quantidades ou preços. A Recorrente jogou na ação um qualquer valor sem o mínimo suporte probatório. Deve, pois, manter-se não provada esta alegação de facto.
J) A suposta dívida à gerente da Recorrente no montante de 7.392,40€ não só não é um dano sofrido pela Recorrente, como, ainda que fosse, não se encontra minimamente provada. A Recorrente não juntou qualquer prova documental que sustentasse a sua conclusão (
v.g.
recibos, comprovativos de pagamento pretéritos, declarações remuneratórias à segurança social). Baseia-se, essencialmente, nas declarações da sua representante, ou seja, na credora. Esta prova manifestamente insuficiente determinou, e bem, que o Tribunal
a quo
considerasse não provada tal alegação.
K) A Recorrente pretende que seja considerado provado que os respetivos sócios lhe emprestaram 78.709,32€. Porém, não juntou, por exemplo, extratos com as movimentações do dinheiro da conta dos sócios para a conta da sociedade, um contrato de suprimentos, etc. A prova de que se socorre é o depoimento da própria sócia, FF, que veio a Tribunal dizer que quem emprestou o dinheiro à sociedade foi sua mãe, EE, a qual não é sócia da Recorrente.
À parte as contradições e confusões, resulta evidente que nenhuma prova se produziu a este respeito, pelo que não pode este facto ser considerado provado.
L) Deseja também a Recorrente que se provem despesas realizadas, e inutilizadas, em taxas, licenças e prémios de seguros. Supostamente, o empréstimo realizado pela Senhora EE à Recorrente teria servido para fazer face a estas despesas. Como é habitual, a Recorrente não junta um único documento que sustente a sua alegação:
v.g.
faturas, avisos de pagamento, de débito, etc.
De sorte que nada pôde o Tribunal
a quo
senão concluir que o facto em causa se não encontra provado.
M) Quanto aos resultados das contas da Recorrente respeitantes a 2018 e 2019, pretende a Recorrente que os mesmos haveriam de ter sido considerados provados por força dos depoimentos das Senhoras FF (sócia da Recorrente) e GG. Não juntou a Recorrente aos autos, por exemplo, as contas aprovadas em assembleia geral de sócios, prestadas à AT e publicadas em
https://publicacoes.mj.pt/
, conforme era sua obrigação legal. Perante, novamente, a patente falta de prova, o Tribunal
a quo
concluiu, e bem, que esses resultados se não encontram provados.
N) Quanto aos resultados expectáveis para (36.248,00€) e 2019 (48.579,00€), a Recorrente mantém o registo de
whishful thinking
, tomando a expectativa subjetiva por probabilidade objetiva, que trouxe para a petição inicial e manteve na audiência de julgamento. Os cálculos previsionais foram realizados pela Senhora FF (sócia da Recorrente) e pela Senhora GG. Para além das incoerências internas acima identificadas, ficou também claro em audiência de julgamento que as premissas de tais previsões são frágeis, não estando as próprias autoras do “estudo” seguras da respetiva exatidão. Face a tudo isto, não podia o Tribunal
a quo
ter concluído diferentemente do que concluiu: ou seja, de que os lucros alegados se não verificariam, pelo que nunca chegaram a cessar.
O) Querendo atentar nos factos, na realidade, ficamos a saber o seguinte. A Recorrente reportou prejuízo em 2016 (doc. 2 junto à contestação da ora Recorrida), em 2017 (doc. 3 junto à contestação da ora Recorrida) e, aparentemente, em 2018 (é a Recorrida quem o alega no artigo 132.º da petição inicial). Isso é quanto sabemos com rigor. O resto é pura especulação, sem qualquer fundamento.
P) É falso, como a própria representante da Recorrente reconheceu em juízo, que a parede que divide a fração restaurante do espaço comum não houvesse sido reposta, pelo que não poderia o Tribunal
a quo
concluir que a mencionada divisória é inexistente.
Q) Atento o
supra
exposto a respeito da matéria de facto não provada, andou bem o Tribunal
a quo
quando decidiu não arbitrar qualquer indemnização a título de lucros cessantes pretéritos ou futuros.
R) Além do mais, importa ter presente que quanto ao período que vai de abril/2018 a abril/2019, foi a própria Recorrente quem, por contrato, renunciou a qualquer indemnização por danos causados pela realização da obra.
S) E não vale a pena apelar à perda de chance, como se de uma panaceia se tratasse, procurando resolver através de um instituto sofisticado e complexo, destinado a casos muito específicos e delimitados, um problema de falta de prova. A chance que a Recorrente perdeu foi, antes, a de carrear para os autos prova de quanto alegou. Ao invés de pseudoestudos, poderia a Recorrente ter apresentado os concretos dados respeitantes ao período em que laborou, poderia ter solicitado um estudo independente e sério, documentado, demonstrando as premissas, o percurso e a conclusão.
Da responsabilidade do Condomínio
T) A Recorrente parte de um pressuposto fáctico falso para fundar a responsabilidade do condomínio, qual seja o de que as obras eram ilegais. Já vimos,
supra
, que não é assim. Sendo certo e inequívoco que este juízo é integralmente de afastar quanto às intervenções que, segundo a Recorrente, causaram os danos para os quais pretende obter ressarcimento.
U) Numa perspetiva jurídica, a Recorrente funda a responsabilidade do Condomínio no artigo 493.º/1 CC, na parte que respeita aos danos causados por imóveis. Todavia, segundo a própria Recorrente, os danos que pretende ver indemnizados não foram causados pelo imóvel, mas pelas intervenções em obra que nele se realizaram.
V) Finalmente sugere a Recorrente que impendia sobre o Condomínio um dever de fiscalização da obra em curso. Todavia, não funda esse dever em parte alguma do ordenamento jurídico, pelo que não pode construir o juízo omissivo que implicitamente alega (artigo 486.º CC).
Da responsabilidade da ora Recorrida
W) Sem razão, insiste a Recorrente na responsabilização da Recorrida, justificando o seu entendimento nas seguintes linhas argumentativas:
(a)
A mera realização da obra, que, em razão do pó, trepidação, instalação de andaimes e ruído, determinou o encerramento do restaurante, funda a responsabilidade da ora Recorrida;
(b)
A manutenção dos vãos (janelas) abertos ao nível do primeiro piso, durante o período das chuvas, e a intervenção na viga do 1.º piso são causa adequada de danos na fração locada pela Recorrente, pelos quais deve responder a ora Recorrida;
(c)
A ora Recorrida introduziu alterações diretamente em obra.
X) A primeira linha argumentativa não procede, pois foi a Recorrente quem, no contrato de arrendamento ao abrigo do qual ocupava a loja afeta ao restaurante, aceitou a possibilidade de ter de encerrar transitoriamente o estabelecimento em razão das intervenções projetadas e previstas para o prédio, tendo nessa ocasião renunciado a qualquer indemnização pelas perdas que decorressem desse encerramento temporário. Vindo agora com este fundamento peticionar uma indemnização, age em abuso de direito, na modalidade de
venire contra factum proprium
.
Y) A segunda via imputacional é igualmente infrutífera, entrando a Recorrente novamente em contradição. Sabendo e admitindo a Recorrente que a ora Recorrida era uma mera dona de obra, tendo cabido à 2.ª Ré, a empreiteira, a execução da obra, em particular no que toca à substituição de caixilharia e reparação da viga ao nível do primeiro andar, a responsabilidade da ora Recorrida pelos danos causados por estas duas intervenções pressuporia afirmar uma relação de comissão entre dono de obra e empreiteiro. A jurisprudência nega, unanimemente, a existência de semelhante relação. E a própria Recorrente, no recurso que interpõe, refuta a existência desta relação. Posto, para além de não ter razão jurídica, incorre numa clara contradição.
Z) Finalmente, quanto à terceira via imputacional, a Recorrente lavra numa ilegalidade processual, pretendendo introduzir novas alegações de facto no processo. À parte esta impossibilidade processual, tais alegações são irrelevantes ou falsas. Sugere a Recorrente que a ora Recorrida tomou decisões em obra. Até à data, nunca o havia alegado, de modo que não pode fazê-lo em sede de recurso. Ademais, pretende fazê-lo com base no depoimento de uma testemunha que não explicou, concretamente, quais foram as decisões tomadas em obra pela ora Recorrida, com exceção da extensão de um lanço de escadas. Sucede que a extensão do lanço de escadas não figura em parte alguma dos autos como tendo sido causa de um dano sofrido pela Recorrente. Ilegal e irrelevante: é assim que em duas palavras se qualifica este argumentário.
AA) Tudo visto, bem andou o Tribunal
a quo
ao absolver do pedido a ora Recorrida. Ora, não foi neste recurso apresentada qualquer razão para que esta decisão se não mantenha.
Face ao exposto, deve o presente recurso, ao menos contra a ora Recorrida, ser julgado totalmente improcedente.
Assim se fará Justiça
***
O Réu AA também contra-alegou relativamente ao recurso intentado pela Autora, nos seguintes termos (cf req. de 27.02.2025):
A. A. O recurso interposto pela Recorrente, não apresenta qualquer fundamento válido que justifique a alteração da decisão proferida pelo Tribunal a quo.
B. A Recorrente limita-se a refutar as conclusões da sentença sem apresentar elementos novos ou argumentos substanciais que possam contrariar a decisão do Tribunal.
C. Assim, o recurso interposto deve ser integralmente rejeitado, pois a decisão do Tribunal foi suficientemente fundamentada e baseada em provas concretas que a Recorrente não conseguiu refutar.
D. A Recorrente não cumpriu os ónus impostos pelo art. 640.º do CPC.
E. Ao longo das suas alegações, a Recorrente não especifica com a clareza necessária os pontos de discordância em relação à decisão sobre os factos, nem apresenta de forma exata as passagens das provas gravadas que sustentariam uma decisão diversa.
F. A simples menção de que certos factos devem ser dados como provados, sem a devida explicitação das razões e meios de prova, configura um incumprimento dos requisitos legais estabelecidos para a impugnação da matéria de facto.
G. A Recorrente, quando alega a nulidade da sentença com base numa falha na fundamentação dos factos provados, não o fundamenta de forma suficiente.
H. A alegação de que o Tribunal a quo não fundamentou adequadamente a decisão sobre a responsabilidade do ora Recorrido e sobre a reparação de danos futuros é infundada.
I. O Tribunal a quo demonstrou, de forma clara, que a responsabilidade pela realização das obras no prédio recai exclusivamente sobre a 2.ª Ré, … – Construções, Unipessoal, Lda., e não sobre o 4.º Réu.
J. A decisão foi tomada com base na prova prestada, nomeadamente os depoimentos e os documentos apresentados, que sustentam a exclusão do 4.º Réu da responsabilidade pelos danos causados.
K. A Recorrente não apresentou quaisquer elementos novos que possam fundamentar a sua alegação de que o Tribunal a quo teria cometido um erro material ao não reconhecer a responsabilidade do 4.º Réu.
L. A Recorrente argumenta que o ora Recorrido deveria ser responsabilizado pela negligência na execução das obras, mas falha em demonstrar qualquer prova de que o este tenha contribuído para os danos alegados pela Recorrente.
M. O Tribunal a quo andou bem ao concluir que a responsabilidade dos danos causados pela execução das obras recai sobre a empreiteira, ou seja, a 2.ª Ré, … – Construções, Unipessoal, Lda., e não sobre o Recorrido.
N. A Recorrente, ao peticionar a indemnização por lucros cessantes futuros, não apresenta qualquer fundamento factual suficiente para sustentar a sua pretensão.
O. A Recorrente alega que o encerramento temporário do restaurante resultou numa perda de rendimentos futuros, mas não fornece qualquer evidência concreta que demonstre como e em que montante essa perda de rendimentos se concretizaria.
P. A ausência de dados financeiros consistentes e de uma projeção realista das receitas futuras compromete a credibilidade dos cálculos apresentados pela Recorrente.
Q. O Tribunal a quo, de forma acertada, considerou que os lucros cessantes futuros não foram provados e que a Recorrente não demonstrou a viabilidade do seu estabelecimento a longo prazo.
R. Nem forneceu elementos substanciais para justificar a perda de lucros alegada.
S. A Recorrente também falhou em demonstrar que os danos patrimoniais alegados, como a perda de stock de géneros alimentícios e os danos nos equipamentos do restaurante, foram efetivamente causados pelas obras realizadas.
T. A alegação de que o stock de géneros alimentícios foi estragado, no valor de € 5.550,00 (cinco mil, quinhentos e cinquenta euros), carece de prova substancial, uma vez que não foi apresentada qualquer documentação que comprove a existência do stock ou a sua deterioração.
U. A Recorrente não forneceu um inventário atualizado dos produtos que estavam no restaurante na altura do encerramento, nem apresentou relatórios ou outros documentos que confirmassem a perda alegada.
V. De forma semelhante, os danos nos equipamentos do restaurante, como o balcão frigorífico e o sistema de som, também não foram adequadamente provados, limitando- se a Recorrente a apresentar depoimentos de testemunhas que têm interesse direto no desfecho da causa.
W. Relativamente à alegada dívida de € 7.392,40 (sete mil, trezentos e noventa e dois euros e quarenta cêntimos) à gerente da Recorrente, a Recorrente não apresentou qualquer documento que comprove a existência dessa dívida.
X. A única prova apresentada quanto a esta matéria foi o depoimento da própria representante da Recorrente, que é também a credora, o que coloca em causa a imparcialidade e credibilidade do referido depoimento.
Y. O Tribunal a quo, corretamente, concluiu que não havia elementos suficientes para considerar provada a alegada dívida.
Z. A Recorrente também argumenta que os sócios da sociedade lhe emprestaram € 78.709,32 (setenta e oito mil, setecentos e nove euros e trinta e dois cêntimos) para cobrir custos fixos, como taxas e prémios de seguros, mas, uma vez mais, falhou em fornecer provas substanciais que corroborassem essa alegação.
AA. Não foram apresentados documentos que comprovassem os empréstimos ou a sua finalidade e a Recorrente não especificou as datas em que tais empréstimos teriam ocorrido.
BB. A alegação de que os sócios emprestaram dinheiro à sociedade não é suficiente para justificar o pedido de indemnização, especialmente quando não existe documentação adequada que comprove a referida transação.
CC. No que diz respeito aos lucros cessantes de 2018 e 2019, a Recorrente apresentou projeções de rendimentos, sem, no entanto, conseguir justificar de forma clara e objetiva a base dessas projeções.
DD. As previsões de lucros apresentadas foram feitas com base em cálculos internos realizados pela sócia da Recorrente, sem qualquer respaldo técnico ou contabilístico adequado.
EE. O Tribunal a quo corretamente descartou essas projeções, uma vez que não estavam fundamentadas em dados concretos e não apresentavam qualquer viabilidade para o futuro do restaurante.
FF. A Recorrente tenta ainda alegar que o facto de não ter sido construída uma parede para dividir a fração do espaço comum tem relevância para o litígio.
GG. No entanto, como o Tribunal a quo bem observou, tal facto não é relevante para a decisão, pois a parede já se encontrava edificada no momento da prolação da sentença.
HH. Além disso, a Recorrente não demonstrou que a construção ou não construção da parede lhe tenha causado danos diretos ou tenha tido impacto significativo nos prejuízos alegados.
II. O Tribunal a quo andou igualmente bem ao desconsiderar os danos advenientes do equipamento e o stock, com base na insuficiência de provas apresentadas pela Recorrente.
JJ. Tudo quanto alegado quanto aos danos em equipamentos, bem como os danos no mobiliário, não foram substanciadas com prova suficiente.
KK. Assim, o Tribunal a quo, com base na análise da prova documental e testemunhal, andou bem ao concluir pela improcedência dessas alegações.
LL. Quanto à responsabilidade solidária entre os Réus, a Recorrente argumenta que todos os Réus deveriam ser responsabilizados solidariamente pelos danos causados.
MM. No entanto, conforme demonstrado, a responsabilidade está claramente atribuída à 2.ª Ré, … – Construções, Unipessoal, Lda., que foi a responsável pelas obras que resultaram nos danos alegados pela Recorrente.
NN. O Tribunal a quo corretamente não aplicou o regime da responsabilidade solidária, pois a 2.ª Ré foi a única a agir de forma negligente, enquanto os outros Réus, em concreto o Recorrido, não participaram nas obras e não tiveram qualquer responsabilidade nos danos causados.
OO. Assim, a decisão do Tribunal a quo deve ser mantida na íntegra.
PP. Isto porque, a Recorrente não apresentou provas suficientes para sustentar os seus pedidos de indemnização e não conseguiu demonstrar qualquer responsabilidade adicional para além da atribuída à 2.ª Ré.
QQ. A sentença recorrida reflete uma análise minuciosa e criteriosa dos factos e das normas aplicáveis.
RR. Não há qualquer erro de julgamento que justifique a sua modificação ou revogação.
SS. Assim, deve ser negado provimento ao recurso.
TT. Devendo a sentença recorrida ser integralmente mantida.
Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., que se dignem a manter a decisão proferida pelo Tribunal a quo, em tudo quanto alegado pelo Recorrente, devendo ser negado provimento ao recurso interposto pela Recorrente e, em consequência:
a) Julgar a presente ação parcialmente procedente e consequentemente condenar a Ré, … – Construções, Unipessoal, Lda., a pagar à A. a quantia de € 40.447,10 a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos.
b) Absolver a 2ª R. dos demais pedidos contra ela formulados.
c) Absolver os 1º, 3º e 4º RR. dos pedidos contra eles formulados.
como é de Direito e assim se fazendo a costumada,
JUSTIÇA!
***
Os recursos foram admitidos como apelações, com subida imediata e nos próprios autos e efeitos devolutivo (cf despacho de 19.03.2025).
No mesmo despacho o Tribunal a quo exarou o seguinte:
“ Venerandos Desembargadores,
Nada mais se oferece dizer sobre a decisão recorrida que, por isso, se mantém na integra, considerando que a mesma não enferma de qualquer nulidade ou omissão de pronuncia, tendo sido analisadas todas as questões relevantes para a decisão da causa.
Vexas, porém, melhor decidirão, com o que farão a costumada Justiça!”
***
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II -Objeto do recurso
:
Segundo as conclusões apresentadas, as quais delimitam o objecto de cada um dos recursos, as questões a apreciar são as seguintes:
Recurso apresentado pela Ré …,Lda
- Reapreciação do mérito da causa na parte referente à condenação da apelante.
Recurso apresentado pela Autora
- Erros materiais da sentença /Nulidade da sentença;
- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- Reapreciação do mérito da causa na parte referente aos danos sofridos pela Autora e à responsabilização de todos os RR.
***
III – Fundamentação de Facto
:
A 1ª instância considerou provada a seguinte factualidade:
1.
A Autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à ‘‘Actividade de restauração, a exploração de restaurantes de tipo tradicional, a confecção de refeições prontas a levar para casa, assim como o fornecimento de refeições ao domicílio e para eventos (catering)’’ – Cfr. Certidão Permanente com o código de acesso 1875-2343-7247, que se junta como Documento n.º 1.
2. A Autora dedica-se exclusivamente à exploração de um estabelecimento de restaurante sito na Fracção “A” do prédio sito na ....
3. O 1.º R. é o condomínio do prédio urbano sito na ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número … da freguesia de São Sebastião da Pedreira e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de Avenidas Novas, que se encontra submetido ao regime de propriedade horizontal – Cfr. Cadernetas Prediais e Certidões Prediais que se juntam como Documentos n.º 2 a 7.
4. Não existe administração do condomínio regularmente eleita.
5. O prédio é constituído por três fracções autónomas designadas pelas letras A a C, conforme cadernetas prediais e certidões das descrições prediais em anexo como Doc. 2 a 7,
6. A fracção “A “correspondente ao R/CH Loja com entrada pelo n.º 16 da ... do prédio acima melhor identificado no artigo 3.º da petição inicial e encontra-se registada a favor do ora 4º R.– Cfr. Caderneta e Certidão Predial que agora se juntam como Documentos n.º 2 e 3 .
7. A fracção designada pela letra “B” correspondente ao 1.º andar com entrada pelo n.º 14 da ... do prédio urbano acima melhor identificado no artigo 2.º da petição inicial encontra-se registada a favor da 3.ª R. Perfil 21-Sociedade Imobiliária Lda., cfr. caderneta predial e certidão da descrição predial que se junta como Doc. 4 e 5.
8. A fracção autónoma designada pela letra “C” correspondente ao 2.º andar com entrada pelo n.º 14 da ... do prédio acima melhor identificado no artigo 3.º da petição inicial encontra-se igualmente registada a favor da sociedade ora 3.ª R. Perfil 21-Sociedade Imobiliária Lda. – Cfr. Caderneta e Certidão Predial que se juntam como Documentos n.º 6 e 7.
9. Tendo esta sociedade adquirido estas duas fracções autónomas por compra e venda outorgada em17 de Março de 2017 por escritura pública lavrada a fls 138 e seguintes do Livro de Notas para Escrituras Diversas 1102-A do Cartório Notarial de HH, cfr. Doc. 8 que se anexa.
10. A sociedade 2.ª Ré, “…-Construções Unipessoal Lda., é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à ‘‘Compra, construção de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim. Arrendamento e subarrendamento. Gestão de imóveis próprios ou alheios. Gestão de condomínios. Alojamento mobilado para turistas. Comércio de veículos automóveis, motociclos, embarcações e aluguer dos mesmos.’’ – Cfr. Certidão Permanente com o código de acesso 5601-1135-4836 que se junta como Documento n.º 9.
11. A sociedade 3.ª Ré - Perfil 21-Sociedade Imobiliária Lda. - é uma sociedade comercial por quotas cujo objecto social é a ‘‘compra e venda de imóveis, construção civil e exploração agro-pecuária’’ – Cfr. Certidão Permanente com o código de acesso 2730-6846-1485 que se junta sob o Documento n.º 10.
12. Até 2016 as três fracções autónomas pertenciam à sociedade … –Construções Unipessoal Lda.,
13. Em 2016 a fracção ”A” foi vendida à sociedade “ Glorious Clock Comércio Internacional Limitada” que, por sua vez, em 8 de Fevereiro de 2017, a vendeu ao ora 4.º Réu, cfr. certidão que se junta como Doc.12.
14. Por contrato celebrado em 04 de Maio de 2016, deu a 2.ª Ré de arrendamento à sociedade Autora a fracção autónoma designada pela Letra ‘‘A’’, correspondente ao rés-de-chão/loja, com entrada pelo n.º 16 da ..., a fim de que a A. aí exercesse a sua actividade comercial, explorando um estabelecimento comercial de restauração – Cfr. Documento n.º 13 que ora se junta,
15. Ficou estipulado, no referido contrato de arrendamento, que o valor da renda seria de €1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros), cfr. cláusula 5.ª do contrato.
16. À data da celebração do contrato de arrendamento (04.05.2016) estava já prevista a realização de obras no prédio e nas respectivas fracções autónomas, prevendo a cláusula segunda, nos seus números 4, 5 e 6 o seguinte:
“4. A Arrendatária declara conhecer e aceitar que a Senhoria irá realizar diversas obras no prédio onde se insere o Locado, no interior deste e nas restantes fracções autónomas que integram o referido prédio, incluindo a construção de um duplex no seu último piso e a recuperação das suas fachadas, que implicarão necessariamente a colocação de andaimes na respectiva fachada principal e tardoz (conforme consta da planta, cuja cópia se junta como Anexo 4), obras essas cujo prazo de conclusão deverá ocorrer no prazo de um ano após o início das mesmas, não podendo a Arrendatária invocar qualquer prejuízo pela realização das citadas obras, seja a que titulo for, sem prejuízo do previso no número seguinte
5. Se as obras referidas no número anterior impedirem o exercício da actividade da Arrendatária no locado, impedimento esse que terá que implicar o encerramento do restaurante, os períodos de tempo em que esta se encontrar privada de usar o locado são descontados proporcionalmente na renda a pagar no mês seguinte.
6. “As Partes aceitam e declaram que o encerramento do restaurante instalado no Locado, exclusivamente pelo motivo da realização das obras previstas no número 4 antecedente, não constitui incumprimento do presente Contrato por qualquer uma das partes e, por isso, não constitui fundamento para a sua resolução.
7. As disposições aplicáveis nos n.º 5 e 6 da presente cláusula apenas serão aplicáveis caso a Senhoria tenha que realizar quaisquer obras no interior do locado, não constituindo motivo invocável para o não exercício da actividade da Arrendatária, a existência de barulho, poeiras ou qualquer outro constrangimento exterior ao locado.”
17. Após um período de encerramento do estabelecimento comercial detido pela Autora, com novos sócios e alterada a gerência de A. em Novembro de 2017, a sociedade Autora reiniciou, em 29 de Janeiro de 2018, a exploração do estabelecimento de restauração instalado na fracção autónoma locada (fracção autónoma designada pela letra “A”),
18. No final de Março de 2018 iniciou-se a montagem dos andaimes na fachada principal do prédio, tendo as obras no prédio sido iniciadas logo em Abril do mesmo ano.
19. Em virtude da execução das obras, a partir de Abril de 2018, durante o dia, passou a sentir-se no restaurante, de forma constante, o ruído das máquinas,
20. Assistindo-se à queda de pedras na fachada principal,
21. A partir de Abril de 2018 iniciou-se a demolição do interior do prédio, primeiro ao nível do 1.º piso e, depois, do 2.º piso,
22. Foi realizada a demolição das paredes interiores das fracções do 1.º e 2.º andares, que ficaram amplas,
23. Operando-se a retirada de entulho resultante das demolições da estrutura interior das fracções pela fachada principal, em frente à porta de acesso ao restaurante (n.º 16 do prédio).
24. Estando frequentemente estacionada, na ..., em frente à porta do restaurante, uma camioneta para recolha de entulho e estando os andaimes colocados na fachada do prédio.
25. Estas circunstâncias tiveram directo impacto na depreciação da imagem do estabelecimento comercial da Autora.
26. O barulho constante, a trepidação, as poeiras e queda de entulho afectaram directamente a higiene e a salubridade do estabelecimento, criando risco para a segurança dos trabalhadores e dos clientes do restaurante.
27. Em virtude dos constrangimentos decorrentes as obras, a A. encerrou o estabelecimento em 21 de Julho de 2018.
28. Por carta datada de 27 de Julho de 2018, acordou o 4.º R., representado pelos seus mandatários Dr. II e Dra. JJ, com a Autora, a redução da renda de €1.250,00 (mil duzentos e cinquenta euros) para €750,00 (setecentos e cinquenta euros), cfr. Doc. 17,
29. Sendo que mais ali ficou acordado que tal redução da renda vigoraria por um período limitado, isto é, até à data da retirada dos andaimes.
30. Em Agosto de 2018, o representante do Senhorio, Sr. KK, pediu para fechar a porta entre o escritório e a sala de restaurante, uma vez que estava prevista ter lugar, nos dias imediatos, a demolição da parede que separa o escritório das escadas interiores do prédio, e que reduziria a área útil da fracção autónoma e aumentava a área da parte comum da entrada do prédio.
31. Tendo a referida demolição ocorrido ainda nesse mês de Agosto de 2018.
32. Em 13 de Setembro de 2018 a legal representante da A. enviou aos representantes do senhorio o Email junto aos autos como doc. 18 que aqui se dá por reproduzido, solicitando esclarecimentos sobre a obra.
33. À qual veio o representante do Senhorio responder em 15 de Outubro de 2018 que se anexa como Doc. n.º 19, enviando cópia do mapa de trabalhos conforme doc. 20.
34. Tendo a Autora enviado nova carta em 26 de Outubro de 2018 dirigida ao mandatário do Senhorio, Dr. LL, cuja cópia se junta como Documento n.º 21, insurgindo-se pela demora na execução das obras dados os prejuízos daí advenientes, destacando, em particular, a paralisação da sua actividade, a necessidade de despedimento de trabalhadores, a perda de clientela, os estragos na mercadoria e nos equipamentos.
35. Nesse mês de Outubro de 2018, encontrando-se em curso as obras no interior do prédio, este não tinha as caixilharias das janelas colocadas ao nível do 1.º piso, nem apresentava qualquer protecção adequada capaz de impedir a entrada da água proveniente das chuvas pelas janelas,
36. Com as primeiras chuvas, ocorreram infiltrações no pavimento do 1.º piso, caindo água para o piso inferior através do tecto.
37. Em virtude da infiltração o tecto da sala do restaurante e sobre a entrada, na zona do balcão apresentava manchas de humidade que o atravessavam na zona do comprimento.
38. O pavimento da fracção apresenta-se, desde então com manchas
39. As paredes apresentam manchas e pintura empolada.
40. Ficou comprometida a estanquicidade da instalação eléctrica.
41. Em virtude das infiltrações ocorridas, a Autora sofreu danos nos equipamentos eléctricos ali instalados,
42. danos no sistema de som,
43. Os moveis de madeira, cadeiras e armários ficaram danificados.
44. A fracção apresenta um cheiro “nauseabundo”, provocado pela humidade e bolores.
45. As traves em madeira no tecto sobre a sala do restaurante apresentam.se apodrecidas, com sinais de humidade e bolores.
46. a Autora ter interpelado imediatamente os RR. para a reparação dos prejuízos, a mesma não obteve qualquer resposta da parte daqueles.
47. Tendo as obras continuado o seu curso, não obstante se manterem as infiltrações na fracção autónoma do rés-do-chão,
48. Entrando água no interior da fracção “A” através do tecto, o que conduziu ao progressivo agravamento dos danos, levando a Autora a solicitar a intervenção da Câmara Municipal de Lisboa (pedido n.º ...), cfr. Doc. 23.
49. Quando a obra se estendeu ao terraço do prédio, já em 2019, verificaram-se mais danos no interior da fracção ‘‘A’’,
50. Tendo sido efectuada pela 2.ª Ré uma intervenção na viga do piso do 1.º andar junto ao terraço, em consequência desta intervenção deu-se a queda de parte do tecto falso da fracção ”A”, na zona de passagem entre o balcão e a zona das mesas da sala do restaurante,
51. Caindo o tecto falso sobre os móveis e todos os equipamentos que ali se encontravam, como se comprova pelas fotografias juntas sob Documentos n.º24 a 66.
52. Tendo na execução da mesma obra sido danificado o tubo de gás da câmara frigorífica da cozinha do restaurante.
53. Já em Janeiro de 2019, mediante a intervenção dos respectivos mandatários, veio a ser celebrado Aditamento ao contrato de arrendamento, tendo ficado acordado que não era devido o pagamento das rendas correspondentes aos meses de Novembro de 2018 até Abril de 2019, data estimada para a conclusão das obras e reposição das necessárias condições para a retoma de actividade do restaurante. Cfr. Doc. 67.
54. No dia 6 de Maio de 2019 foram retirados os andaimes e, desde então, nenhuma intervenção foi tomada para reparar os danos por forma a permitir o reinício da exploração do estabelecimento de restauração pertencente à Autora.
55. Tendo remetido em 28 de Junho de 2019 a carta cuja cópia se anexa como Doc. n.º 68 na qual descreve a situação degradada em que se encontra a fracção nos seguintes termos:
“Uma parte do tecto está caída, a parte restante está estragada com a humidade, os armários ficaram danificados com cimento, a câmara frigorífica não funciona e tem que ser reparada, o mobiliário tem bolor e o chão ficou também danificado. Acresce que o sistema eléctrico está estragado. Não esquecendo o computador que ficou danificado com a água, o sistema de incêndio que também avariou na queda do tecto e com o excesso de água, entre outros.”
56. Carta de idêntico conteúdo foi enviada por correio registado com aviso de recepção para o I. mandatário do senhorio, Dr. LL, conforme cópia que se junta como Doc. n.º 69 e aqui se dá por reproduzido.
57. No dia 30/09/2019 ocorreu uma inspecção ao prédio sito na ..., na sequência da qual, com data de 22/10/2019, foi determinado o embargo da obra, pelo período de 12 meses- doc. 71.
58. Em Novembro de 2017, através de contrato de cessão de quotas, foi transmitida a totalidade do capital social da Autora pelo preço de €40.000,00 (quarenta mil euros) – doc. 73.
59. Sendo o activo da Autora constituído, nessa data, pelo estabelecimento comercial de restauração, instalado na fracção “A”, dotado de condições de funcionamento, pronto para atingir a plena laboração, com 97 lugares sentados, funcionando para almoços e jantares, numa área útil de cerca de 200 m2.
60. Incluindo, ainda, a possibilidade de rentabilização por meio de take away.
61. No início de 2018, este estabelecimento comercial tinha uma boa imagem, com poder de atracção de clientela, equipamento e mobiliário adequados (doc. 74)
62. A reparação do locado, por forma a repor as condições requeridas para o fim a que se destina e indispensáveis para o exercício de actividade do estabelecimento comercial da Autora ascenderá a €29.500,00 (vinte e nove mil e quinhentos euros) acrescidos de IVA à taxa de 6%. – Documento n.º 75.
63. A reparação dos danos provocados no mobiliário de madeira (mesas e cadeiras, madeiras soltas, sobre o balcão e retro-balcão) ascenderá a € 7.540,00, acrescidos de IVA cfr. doc. 75 junto.
64. Devido às infiltrações verificadas a partir de Outubro de 2018, os equipamentos informáticos ficaram danificados.
65. Sendo que a sua reparação ascenderá a €3.407,10– Cfr. Factura Proforma n.º FPF D19/13, doc. n.º 76.
66. No início de 2018 a Autora tinha uma expectativa de crescimento para os anos seguintes.
67. O preço médio de cada prato servido no restaurante da Autora, sem entrada, bebida nem sobremesa, era de 12€,
68. A Autora, esperava atingir uma ocupação média de 97 lugares x 1,5 x 270 dias/ano.
69. Esperava, assim, a Autora, atingir um volume de negócios em 2018 na ordem de €471.420,00 e, em 2019, de €523.748 (crescimento anual considerado 10% / margem bruta 40%).
70. Em Setembro de 2018 o 4º R. enviou à 2ª Ré o email que se encontra junto como doc. 2 da contestação do 4º R. e que aqui se dá por reproduzido.
71. No final de 2019 houve uma tentativa de acordo entre o 4º R. e a 2ª R., tendo sido agendada visita ao locado –doc. 4 a 15 da cont. do 4ª R.
72. O 4º R. recebeu a quantia de €8.541,00€ por parte da seguradora da 2ª R. – doc. 18 da cont. do 4º R.
73. Em Janeiro de 2018, a A. tinha cinco trabalhadores.
74. Em Julho de 2018, viu-se forçada a cessar os contratos de trabalho, em virtude da impossibilidade de usar o locado.
75. A parede que separava o escritório das partes comuns do prédio foi demolida porque uma parte do estabelecimento ocupava uma parte comum do prédio sendo necessário proceder à rectificação e acordo com os desenhos constante na CML.
E julgou não provada a seguinte factualidade:
a. Que o custo de substituição das duas impressoras ascenderá a pelo menos €500,00.
b. Que devido ao encerramento do restaurante, em Julho de 2018, e às infiltrações posteriormente ocorridas, a Autora viu o seu stock de géneros alimentícios estragado, o que ascende a 5.550,00€.
c. Que a A. tem em dívida as retribuições devidas à sua gerente no montante total de €7.392,40 dada a falta de meios económicos da Autora em consequência do encerramento de actividade do seu estabelecimento comercial.
d. A Autora viu-se forçada nos anos de 2017 a 2019 a recorrer a empréstimos dos sócios na ordem de €78.709,32 para fazer face aos custos fixos e à necessidade de cobertura de tesouraria, decorrentes do encerramento de actividade do estabelecimento comercial.
e. A Autora foi forçada a pagar diversos encargos como taxas, licenças e prémios de seguros que, naturalmente, significam prejuízo uma vez que são pagos e não existe possibilidade de serem rentabilizados.
f. A Autora apresentou resultados negativos em 2018 no montante de € 69374,76 (sessenta e nove mil trezentos e setenta e quatro euros e setenta e seis cêntimos)
g. E, em 2019, no montante de €5966,02 (cinco mil novecentos e sessenta e seis euros e dois cêntimos).
h. Sendo o resultado previsional expectável para 2018 de € 36.248,00 (trinta e seis mil duzentos e quarenta e oito euros) e, para 2019, de €48.579,00 (quarenta e oito mil quinhentos e setenta e nove euros).
i. A A. tinha conhecimento que uma parte do estabelecimento da A. estava a ocupar uma parte comum do prédio, sendo necessário proceder à sua rectificação.
j. Não foi edificada qualquer parede para dividir a fracção do espaço comum.
k. Que o balcão frigorífico, a câmara frigorífica e o equipamento de som tenham ficado danificados.
***
IV-Fundamentação de Direito:
Comecemos por apreciar o recurso da Autora, atenta a invocação, que nele é apresentada, de erro material e de nulidade da sentença.
Recurso apresentado pela Autora:
- Erro material da Sentença
:
Considera a Autora/apelante que a sentença recorrida enferma de erros materiais, impondo-se a respetiva retificação, uma vez que a afirmação nela constante de que se terá procedido a julgamento “
não tendo sido produzida qualquer prova testemunhal em face da falta de pagamento, pelas partes, das competentes taxas de justiça
”, não tem qualquer sentido na presente ação judicial, onde teve lugar audiência de julgamento que se prolongou por diversas sessões com a produção de extensa prova testemunhal.
Assiste efetivamente razão à Autora, atento o notório lapso material que consta na seguinte frase que integra o Relatório da sentença:
“Procedeu-se a julgamento com a observância de todas as formalidades legais, não tendo sido produzida qualquer prova testemunhal em face da falta de pagamento, pelas partes, das competentes taxas de justiça.”
É que, conforme circunstanciadamente resulta da motivação da decisão sobre a matéria de facto, foram, em sede de julgamento ouvidas testemunhas, e prestadas declarações de parte.
Dispõe o art. 614 do CPC que:
1 - Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
2 - Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação.
3 - Se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo.
Conforme se refere no Acórdão do TRG de 25.06.2025 proferido no processo 2462/20.0T8BCL-A.G2 (Relator: PEDRO MANUEL QUINTAS RIBEIRO MAURÍCIO), “Em face do disposto no nº2 do art. 614º, havendo recurso, o Tribunal de 1ª Instância apenas pode corrigir/rectificar os erros materiais da sentença, seja a requerimento, seja oficiosamente, até ao momento da subida do recurso, sendo que, a partir desse momento, competirá ao Tribunal da Relação, e enquanto o recurso se mantiver em curso, o poder de determinar (ou não) a rectificação, seja a requerimento, seja oficiosamente.”
Cabe, pois, a este Tribunal da Relação retificar o lapso em causa.
O que ora se faz, eliminando-se a segunda parte da frase
“Procedeu-se a julgamento com a observância de todas as formalidades legais, não tendo sido produzida qualquer prova testemunhal em face da falta de pagamento, pelas partes, das competentes taxas de justiça
” de forma a que tal frase fique apenas com a seguinte redação “
Procedeu-se a julgamento com a observância de todas as formalidades legais.”
- Nulidade da sentença
:
Defende a apelante que a sentença recorrida é nula por falta absoluta de fundamentação, nos termos do disposto no n.º 1 alínea b) do artigo 615.º do CPC, no que se reporta diretamente à decisão de absolvição do 4.º Réu do pedido de condenação contra ele deduzido pela Autora ora Recorrente.
Resulta do art 615 nº1 al. b) do CPC que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Como tem sido comummente entendido pela jurisprudência, só a absoluta falta de fundamentação (e não a fundamentação alegadamente errada, incompleta ou insuficiente) origina a nulidade da sentença – veja-se, entre outros, o AC do STJ de 03.03.2021 proferido no Proc. 3157/17.8T8VFX.L1.S1 ou o Ac. do ST de 18.02.2021 proferido no Proc. 1695/17.1T8PDL-A.L2.S1 - esclarecendo-se aliás neste último que só a falta absoluta de fundamentação que torne de todo incompreensível a decisão é que releva para efeitos da sobredita nulidade.
Tal absoluta falta de fundamentação pode-se reportar à especificação dos fundamentos de facto ou aos de direito.
Em causa está a falta de fundamentação jurídica relativamente à decisão de absolvição do pedido do 4º Réu.
E, efetivamente, percorrendo a parte da fundamentação de direito da sentença não se descortina qualquer fundamentação, ainda que incipiente, que sustente a decisão de absolvição do pedido do 4º Réu.
Veja-se que nessa fundamentação de direito se refere especificadamente que:
“A A. formula os vários pedidos contra todos os RR. de forma solidária, solidariedade que não existe. Vejamos, então, se existe responsabilidade de algum ou alguns do RR.”
Todavia, nos subsequentes parágrafos da referida fundamentação de direito nada se diz quanto ao 4º Réu, sendo depois, sem mais, exarada decisão de absolvição daquele do pedido.
Do exposto decorre que a sentença proferida pelo tribunal de 1ª instância enferma, nessa parte, de nulidade por falta de fundamentação.
Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer o objeto da apelação – art. 665º nº1 do CPC -, o que se mostra obviamente possível, uma vez que está em falta apenas fundamentação jurídica.
É a regra da substituição ao Tribunal recorrido.
Impõe-se, pois, na reapreciação do mérito da ação- questão que integra o objeto do recurso -, apreciar a responsabilidade imputada pela Autora àquele Réu.
Apreciação a efetuar após a análise da impugnação da decisão da matéria de facto, questão que pode influir naquela.
- Impugnação da matéria de facto
:
Dispõe o art. 640º do CPC, com a epigrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, que:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”
O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido pelo STJ em 17.10.2023 no proc. 8344/17.6T8STB.E1-A.S1 uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:
“Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”
Assim, embora tenha que constar nas conclusões do recurso a indicação dos concretos factos incorretamente julgados, já não tem necessariamente que constar nas mesmas a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, do corpo das alegações do recurso. E também não tem que constar nas conclusões a indicação dos meios probatórios de suporte à pretendida decisão alternativa, podendo tal indicação ser efetuada no corpo das alegações.
Para além do cumprimento dos ónus referidos no art 640º do CPC, o recurso da decisão sobre a matéria de facto pressupõe ainda a utilidade ou pertinência da pretendida alteração da matéria de facto, de acordo com a regra prevista no art 130º do CPC, aplicável a todos os atos processuais, segundo a qual
“Não é lícito realizar no processo atos inúteis.”
Ou seja, a alteração pretendida deverá ser relevante para a decisão da causa.
Veja-se, a este propósito, o Ac. do STJ de 19.05.2021 proferido no Proc. 1429/18.3T8VLG.P1.S1, onde se sumaria que: “
O Tribunal da Relação pode recusar-se a conhecer do recurso de impugnação da matéria de facto relativamente àqueles factos concretos objeto da impugnação, que careçam de maneira evidente de relevância jurídica à luz das diversas soluções plausíveis da questão de direito, evitando, de acordo com o artigo 130.o do CPC, a prática de um ato inútil.”
Uma última nota:
Conforme referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa in CPC Anotado, Vol. I, Almedina, 3ª ed., pag. 858, na anot. 5 ao art. 662º, desde que se mostrem cumpridos os requisitos formais que constam do art. 640º, a Relação não está limitada à reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes, devendo atender a todos quantos constem do processo, independentemente da sua proveniência (art 413º) sem exclusão sequer da possibilidade de efetuar a audição de toda a gravação se esta se revelar oportuna para a concreta decisão. Mais acrescentam os referidos Autores que tendo a Relação reapreciado os meios de prova indicados relativamente aos pontos de facto impugnados pelo recorrente, não está o Tribunal da Relação impedido de alterar outros pontos da matéria de facto, cuja apreciação não foi requerida, desde que essa alteração tenha por finalidade ou por efeito evitar contradição entre a factualidade que se pretendia alterar e foi alterada e outros factos dados como assentes em sede de julgamento.
Feito este enquadramento, passemos a apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto que integra o objeto do recurso.
Pretende a Autora/apelante, antes de mais, que seja acrescentada aos factos dados como provados a seguinte matéria, dando-se a mesma por provada:
“as obras que foram executadas pela 2.ª Ré não se mostraram em conformidade com as obras previstas e aprovadas no Processo Municipal n.º 303/EDI/2016, afectando todo o prédio, incluindo a própria parede perimetral da fracção “A” (que a separa das escadas do prédio) e a fracção” B”, e não apenas a fracção “C”, situada no 2.º Piso
as obras de alteração interior e exterior do prédio, pretendiam, entre o mais, dotar o edifício de três fracções habitacionais, uma por cada piso, para além da fracção “A,” situada no nível térreo;
a 3.ª Ré apresentou, em Abril de 2018, projecto de alterações de arquitectura ao projecto de licenciamento aprovado, que veio a dar origem ao processo 985/EDI/2018;
Na sequência de acção de fiscalização, realizada em 30 de Setembro de 2019, pela Polícia Municipal de Lisboa, foi constatado que a obra se estava a desenvolver em desconformidade com os projectos apresentados e deferidos no âmbito do processo 303/EDI/2017, tendo sido elaborado o Auto de Notícia PI-4045-2019, no qual é identificada a 3.ª Ré como autora da infracção, cfr. Documento n.º 70 junto com a petição inicial”;
Segundo a informação n.º …00/INF/DMURB_DepAGU_DivF/ GESTURBE/2019 da Câmara Municipal de Lisboa, cuja cópia foi junta aos autos com a petição inicial como Doc.71, foram detectadas desconformidades ao nível da cobertura, com aproveitamento do sótão sujeitando o processo a uma ampliação de 4 para 5 pisos, ao nível da escada comum do edifício, ao nível do desvão da cobertura, ao nível da fachada principal (alçado sul), ao nível da fachada posterior (alçado norte), desconformidades ao nível da área de construção, desconformidades no interior das fracções, constatando-se que a obra estava a decorrer nos pisos 0 (apenas no espaço da entrada e escadas) e totalidade dos pisos 1, 2, 3 e cobertura, divergindo com a pretensão anteriormente proposta, constatando-se que a compartimentação interior não corresponde ao representado nos projectos, e, finalmente, desconformidades nas estruturas, conforme ali melhor discriminado.”
Quanto ao primeiro segmento, correspondente ao alegado nos arts 38º/ 39º da p.i., verifica-se que o mesmo apresenta carater conclusivo.
Efetivamente, a alegada desconformidade constitui, no fundo, uma comparação entre duas realidades fácticas: as concretas obras aprovadas e as concretas obras realizadas.
Só os factos materiais (as concretas obras aprovadas e as concretas obras realizadas) é que podem integrar a matéria de facto dada como provada, e não os juízos comparativos.
“Só os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objecto de prova.” – cf. Ac. do TRP de 27.09.2023 proferido no Processo 9028/21.6T8VNG.P1.
“No âmbito da vigência do actual CPC, a decisão sobre a matéria de facto deve estar expurgada de afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito.” – cf Ac. do TRE de 28-06-2018 proferido no Processo nº 170/16.6T8MMN.E1 “ Sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, o mesmo deve ser eliminado.” – cf. Ac do TRE de 28.06.2018 supra mencionado.
Quanto ao segundo segmento, emergente do alegado no art 58º da P.i., verifica-se que não corresponde exatamente ao alegado nesse artigo, porquanto o que se mostra alegado é que “(…)os RR. prosseguiram com as obras de alteração interior e exterior do prédio, pretendendo dotar o edifício de três fracções habitacionais, uma por cada piso, para além da fracção “A,” situada no nível térreo”. E não que “as obras de alteração interior e exterior do prédio, pretendiam, entre o mais, dotar o edifício de três fracções habitacionais, uma por cada piso, para além da fracção “A,” situada no nível térreo”, conforme a Autora ora pretende ver aditado.
Ou seja, a alegação reporta-se à pretensão dos RR, até porque, como é evidente, só as pessoas é que têm pretensões/intenções, no caso, a de dotar o edifício de mais frações habitacionais.
A apelante alheia-se ora dessa alegação, que, repete-se, se reporta a uma pretensão dos RR, e acaba por, numa espécie de personificação, atribuir às obras a referida pretensão.
Portanto, o que a Autora/apelante pretende ver aditado diverge do alegado, o que desde logo inviabiliza o referido aditamento.
Assim sendo, improcede o pedido de aditamento à matéria de facto dada como provada dos dois primeiros segmentos acima aludidos.
Quanto ao pedido de aditamento do terceiro segmento (correspondente ao alegado no art 59 da p.i.), desde já se diz que o mesmo não procede, atenta a ausência de prova documental comprovativa de apresentação de projecto de alterações de arquitetura ao projeto de licenciamento aprovado, e da numeração de processo que lhe veio a ser dada. Estamos perante alegação referente a documentos apresentados em processo camarário, pelo que a respetiva prova tem que ser necessariamente documental, não sendo relevante para o efeito a prova testemunhal ou por declarações de parte.
Quanto aos dois últimos segmentos, alegados, respetivamente, nos arts. 96 e 97 da p.i., os mesmos, reportando-se ao conteúdo de documentos juntos aos autos (cf docs 70 e 71 juntos a 01.04.2021), resultam provados com base nesses documentos, sem necessidade de recurso a outros meios de prova. Sem prejuízo de se alterar a identificação da entidade que realizou a ação de Fiscalização, que não é a Policia Municipal de Lisboa, mas sim a Divisão de Fiscalização da Camara Municipal de Lisboa - conforme resulta quer do Documento 70 quer do 71, subscritos pelas mesmas pessoas, aludindo-se neste último à inspeção realizada a 30.09.2019, ou seja à fiscalização a que alude o doc. 70.
Assim, aditam-se à matéria provada os seguintes factos:
Na sequência de acção de fiscalização, realizada em 30 de Setembro de 2019, pela Divisão de Fiscalização da Camara Municipal de Lisboa, foi constatado que a obra se estava a desenvolver em desconformidade com os projectos apresentados e deferidos no âmbito do processo 303/EDI/2017, tendo sido elaborado o Auto de Notícia PI-4045-2019, no qual é identificada a 3.ª Ré como autora da infracção, cfr. Documento n.º 70 junto com a petição inicial”; (art 96)
Segundo a informação n.º …00/INF/DMURB_DepAGU_DivF/ GESTURBE/2019 da Câmara Municipal de Lisboa, cuja cópia foi junta aos autos com a petição inicial como Doc.71, foram detectadas desconformidades ao nível da cobertura, com aproveitamento do sótão sujeitando o processo a uma ampliação de 4 para 5 pisos, ao nível da escada comum do edifício, ao nível do desvão da cobertura, ao nível da fachada principal (alçado sul), ao nível da fachada posterior (alçado norte), desconformidades ao nível da área de construção, desconformidades no interior das fracções, constatando-se que a obra estava a decorrer nos pisos 0 (apenas no espaço da entrada e escadas) e totalidade dos pisos 1, 2, 3 e cobertura, divergindo com a pretensão anteriormente proposta, constatando-se que a compartimentação interior não corresponde ao representado nos projectos, e, finalmente, desconformidades nas estruturas, conforme ali melhor discriminado. (art 97)
Pretende também a apelante/autora a alteração do decidido relativamente à factualidade dada como não provada sob as alíneas b) a h) e k), pugnando que tais factos devem ser dados como assentes. E também do decidido quanto à alínea J) da mesma matéria de facto não provada, nos termos que adiante se analisarão.
As referidas alíneas da matéria de facto não provada têm a seguinte redação:
b. Que devido ao encerramento do restaurante, em Julho de 2018, e às infiltrações posteriormente ocorridas, a Autora viu o seu stock de géneros alimentícios estragado, o que ascende a 5.550,00€.
c. Que a A. tem em dívida as retribuições devidas à sua gerente no montante total de €7.392,40 dada a falta de meios económicos da Autora em consequência do encerramento de actividade do seu estabelecimento comercial.
d. A Autora viu-se forçada nos anos de 2017 a 2019 a recorrer a empréstimos dos sócios na ordem de €78.709,32 para fazer face aos custos fixos e à necessidade de cobertura de tesouraria, decorrentes do encerramento de actividade do estabelecimento comercial.
e. A Autora foi forçada a pagar diversos encargos como taxas, licenças e prémios de seguros que, naturalmente, significam prejuízo uma vez que são pagos e não existe possibilidade de serem rentabilizados.
f. A Autora apresentou resultados negativos em 2018 no montante de € 69374,76 (sessenta e nove mil trezentos e setenta e quatro euros e setenta e seis cêntimos)
g. E, em 2019, no montante de €5966,02 (cinco mil novecentos e sessenta e seis euros e dois cêntimos).
h. Sendo o resultado previsional expectável para 2018 de € 36.248,00 (trinta e seis mil duzentos e quarenta e oito euros) e, para 2019, de €48.579,00 (quarenta e oito mil quinhentos e setenta e nove euros).
j. Não foi edificada qualquer parede para dividir a fracção do espaço comum.
k. Que o balcão frigorífico, a câmara frigorífica e o equipamento de som tenham ficado danificados.
Alicerça a sua pretensão quanto à alínea b) nas declarações de parte de EE, legal representante da Autora, e no depoimento da testemunha FF, sócia titular do capital social.
Todavia, não foi apresentada qualquer documentação que comprove a existência e composição do stock, designadamente qualquer inventário dos produtos que estavam no restaurante na altura do encerramento.
A ora invocada mera declaração da legal representante da Autora de que…“o stock é para esquecer …com as datas de validade…” é vaga e abstrata, não discriminando sequer os produtos a que se reporta, e muito menos as respetivas quantidades e valores.
Quanto ao depoimento da testemunha FF, na parte em que apontou o valor de €5500,00 como valor do stock constituído designadamente por vinhos, importa considerar que o mesmo não se encontra suportado em documentação de inventário, ou sequer em faturas de aquisição, documentos que teriam que existir na posse da Autora e não foram apresentados por esta.
Não há, pois, prova bastante do facto, improcedendo a pretensão da Autora relativamente à al. b) dos factos não provados.
Quanto à alínea c) da matéria de facto não provada, entende a Autora que a respetiva factualidade deveria ter sido dada como provada, com base nas declarações de parte da legal representante da Autora, que referiu ter ficado com vencimentos por receber, e no depoimento da testemunha GG, que afirmou que em 2018, a empresa tinha uma dívida de retribuições à gerente no montante de €7392,40.
Também aqui não foi apresentada qualquer prova documental, designadamente contabilística, que sustentasse tal facto; aliás, não foi sequer junto qualquer documento que comprovasse o montante das remunerações da referida gerente.
Razão pela qual as declarações da gerente da autora e o depoimento da testemunha GG são insuficientes para a prova da factualidade em causa. Trata-se de questão que tem que estar refletida em documentação contabilística e financeira. Logo, a confirmação em juízo, ainda que por contabilista, de factos com relevo contabilístico sem que mostre junta a documentação de suporte, é claramente insuficiente para a prova do facto. Logo, também as declarações da gerente, não alicerçadas em prova documental, não são suficientes para a respetiva prova.
Improcede a pretensão da Autora relativamente à al. c) dos factos não provados.
Passemos à alínea d) da matéria não provada, defendendo a Autora a prova da respetiva factualidade com base nas declarações da legal representante da Autora, que referiu que teve que colocar na sociedade o total de €78.000,00 para cobrir as despesas e no depoimento da sócia, FF, que referiu que os empréstimos feitos pela sua Mãe EE à sociedade para que esta pagasse as despesas ascenderam a € 78.709,32, conforme afirmou encontrar-se refletido no balanço a 31.12.2018 e 31.12.2019.
Todavia, não foi junto pela Autora o aludido balanço, nem qualquer outro documento contabilístico que reflita o aludido empréstimo, ou sequer documentação bancária que espelhe o correspondente movimento financeiro, documentos sem os quais não se mostra curial a prova do facto.
Trata-se de valor elevado que necessariamente teria que constar nas contas da empresa e cuja movimentação se deverá mostrar refletida em documento bancário, pelo que as declarações de parte e depoimento suprarreferidos, por si só, não permitem, com a necessária segurança, a prova do facto.
Improcede a pretensão da Autora relativamente à al. d) dos factos não provados.
Quanto à alínea e), invoca a apelante que nas suas declarações a legal representante da Autora disse que teve que cobrir as despesas com trabalhadores, com a segurança social, com as rendas, com a luz que continuava ligada.
A factualidade que integra a alínea e) reporta-se a taxas, licenças e prémios de seguros. Não foi junta documentação, designadamente recibos, que comprove o pagamento de taxas, licenças e seguros; por outro lado, as declarações da sua legal representante invocadas pela Autora referem despesas, mas não especificamente despesas com seguros ou com taxas e licenças.
Improcede a pretensão da Autora relativamente à al. e) dos factos não provados.
Relativamente às alíneas f) e g), invoca a Autora o testemunho de FF, sócia titular do capital social, que confirmou os resultados líquidos negativos apresentados pela sociedade Autora em 2018 e 2019 e esclareceu que o restaurante apenas teve um mês de funcionamento pleno (Fevereiro de 2018), e que a partir de março de 2018 e até fecharem as portas tiveram sempre um funcionamento deficiente; e o testemunho de GG, contabilista, socorrendo-se da demonstração de resultados de 2018, que referiu que os resultados líquidos negativos de 2018 foram no montante de €69374,76 de prejuízos e os de 2019 foram também negativos no montante de €5966,02 de prejuízos, esclarecendo que em 2018 a empresa só teve seis meses de actividade e que em 2019 não houve facturação e só houve custos.
Os factos que estão em causa são os resultados da empresa (autora) nos anos de 2018 e 2019.
AS contas da Autora têm necessariamente que estar refletidos em documentação contabilística, sendo certo que não consta do processo a documentação referente aos anos de 2018 e 2019.
Mais uma vez se refere que a confirmação em juízo, por contabilista, de factos com relevo contabilístico sem que mostre junta ao processo a documentação de suporte, é claramente insuficiente para a prova do facto. Como também o é a confirmação pelo sócio.
Improcede a pretensão da Autora relativamente às als. f) e g) dos factos não provados.
Relativamente à alínea H), apoia-se a Autora nas declarações e depoimento, respectivamente, de FF e GG. Referiu a apelante que a primeira procurou explicar os cálculos previsionais efectuados, esclarecendo que estes tiveram por base 146 refeições diárias esperadas (tendo em consideração que o restaurante dispunha de 97 lugares sentados e servia almoços e jantares, afigurando-se verossímil admitir 75% de ocupações ao almoço e ao jantar partindo dos dados recolhidos em Fevereiro de 2018, mês em que o restaurante esteve em pleno funcionamento como refere a testemunha a minutos 17:37), sendo de 12€ o preço médio das refeições; tendo ainda em conta que, em cada ano, o estabelecimento estaria em laboração 270 dias (excluindo 52 dias de folgas, 30 de férias e 13 feriados).E que com estes dados contavam servir o total de 39285 refeições por ano, atingindo o total de facturação bruta de €471420,00. Deduzidos os custos daria no ano 1 cerca de 40.000,00 de resultados líquidos perdidos e no ano 2 o montante de €48579,00, assumindo uma taxa de crescimento na ordem de 10%. Esclareceu ainda que não tomou em consideração os anos de 2020 e 2021 por causa da pandemia assumindo que nesses anos o estabelecimento teria estado sempre encerrado; que recorreu a dados da ARESP para calcular a margem média do negócio e a taxa de crescimento esperada; sustentou que a sociedade autora ao permanecer encerrada perdia por ano valores superiores a 40.000,00.
Mais considerou a Autora que a testemunha GG, contabilista, esclareceu os cálculos previsionais realizados sobre as perdas sofridas em 2018 e 2019 em virtude do encerramento do estabelecimento, referindo que nesses cálculos se tomou por base o valor do custo médio de refeição (12€), os dias de laboração do estabelecimento em cada ano (270 dias), a lotação do espaço (97 lugares) e a possibilidade de negócio, e que recorreram a dados divulgados pela ARESP sobre o sector, designadamente à margem e à taxa de crescimento médio divulgada para o sector da restauração, acompanhada da taxa de crescimento dos custos. E ainda que a mesma testemunha afirmou que se esperava atingir em 2018 resultados positivos na ordem de €36250 e em 2019 na ordem de €48000,00.
Ora, desde já cumpre referir que tendo os cálculos, segundo FF, resultado dos dados recolhidos em Fevereiro de 2018, não se compreende como não foram juntas aos autos pela Autora as faturas referentes às refeições servidas durante esse mês, de forma a comprovar esses dados.
Já a testemunha GG aludiu a dados dos seis meses de faturação, sendo certo que também não foi junto pela Autora aos autos qualquer documento contabilístico oficial que ateste tais dados.
Sem documentação de suporte dos dados que serviram de base aos cálculos, ficam obviamente por demonstrar quer os dados quer os cálculos.
Por outro lado, consta do processo a documentação referente às contas da Autora referentes aos anos 2016 e 2017 (documentação junta com a contestação da Ré Perfil 21).
Ora, as demonstrações de resultados que integram essas contas apresentam resultados líquidos negativos nos valores de €3138,28 em 2016 e €42.718,41 em 2017.
Ou seja, não existiram nos anos anteriores quaisquer lucros, mas antes perdas, sendo que em 2017 estas foram significativas.
O que objetivamente gera dúvidas quanto à previsibilidade de ocorrência de resultados líquidos positivos em 2018 e 2019, seja nos montantes projetados pelas duas testemunhas, seja noutros.
Assim, em face da falta de documentação que ateste os dados de base utilizados para os cálculos projetados pelas testemunhas, e tendo em conta os resultados negativos de 2016 e 2017, particularmente deste último ano, não existe prova segura da factualidade descrita na al. h) da matéria não provada.
Improcede a pretensão da Autora relativamente à al. h) dos factos não provados.
Quanto à al j) dos factos não provados, entende a Autora apelante que, com base nas declarações de parte prestadas por EE, gerente da Autora, no sentido de que tal parede veio a ser construída apenas em 2023, isto é, no ano anterior à realização da sessão de julgamento, deveria ter sido dado como provado que demolida a parede em 2018 somente em 2023 veio a ser construída nova parede.
Ora, não é essa a redação da al j) da matéria não provada.
A redação é: “
Não foi edificada qualquer parede para dividir a fracção do espaço comum.”
E, segundo as próprias declarações de parte ora invocada pela Autora, a parede veio a ser edificada em 2023 (ano anterior ao julgamento), pelo que aquando do encerramento da discussão da causa, o facto contido na al. j) já não se verificaria, o que leva à não prova do facto, atenta a necessidade de assegurar a atualidade da sentença, conforme decorre do disposto no art 611º do CPC.
O que a Autora/Apelante ora pretende é, no fundo, aditar um facto novo, o de que em 2023 veio a ser construída nova parede, situação que não pode ser tutelada.
Improcede a pretensão da Autora relativamente à al. j) dos factos não provados.
Por último, considera a Apelante haver erro no julgamento da matéria de facto ao dar-se como não provada a factualidade descrita sob a alínea k), baseando-se no depoimento da testemunha FF, que afirmou que tudo quanto se encontrava no interior do estabelecimento estava perdido, e nas fotografias constantes dos autos que retratam o interior do restaurante (documentos 24 a 66 juntos com a petição inicial), havendo que concluir que se evidencia nos autos que os equipamentos do restaurante se encontram há anos soterrados, sendo que os equipamentos, como os autos evidenciam, encontram-se cobertos por pedaços de estuque e outros materiais, danificados, tendo, obviamente, perdido o seu valor.
Efetivamente, conjugado o depoimento de FF com as fotografias que foram juntas aos autos - que mostram o estado de deterioração do interior do locado, com detritos e poeiras em cima de equipamentos – entende-se existir prova bastante da factualidade em causa.
Assim, elimina-se a al k) da matéria não provada, passando a factualidade nela descrita para a matéria provada, num novo ponto com a seguinte redação:
“O balcão frigorífico, a câmara frigorífica e o equipamento de som ficaram danificados.”
Consequentemente, procede apenas parcialmente a impugnação sobre a decisão da matéria de facto.
- Da reapreciação do mérito na parte referente aos danos sofridos pela Autora e à responsabilização de todos os RR:
Em face do resultado da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, na parte que aos danos respeita, impõe-se considerar, para além dos danos já ponderados pelo Tribunal a quo, os correspondentes aos custos de reparação do balcão frigorífico, da câmara frigorífica e do equipamento de som, em valor não concretamente apurado.
Assim, o(s) responsável(eís) pelo pagamento de indemnização deverá ser condenado a pagar, para além da quantia já fixada pela 1ª instância, o valor do custo de reparação do balcão frigorífico, da câmara frigorífica e do equipamento de som, a apurar em liquidação de sentença (arts 564 nº2 do CC e 609 nº2 do CPC).
No mais, não foram apurados outros danos indemnizáveis.
Uma palavra particular para os alegados lucros cessantes da Autora:
Entende a apelante que sempre cumpriria ao Tribunal a quo ter recorrido à aplicação do artigo 566.º n.º 2 do CC., vindo, por recurso à equidade, fixar a extensão dos lucros cessantes, pelo que, ao não reconhecer como tais danos indemnizáveis, não obstante a prova dos factos descritos sob os n.ºs 69 a 61, 66 a 69 e 73, a sentença impugnada revela-se profundamente injusta, padecendo de erro de julgamento por violação das normas jurídicas aplicáveis, em particular os artigos 562.º, 564.º e 566.º n.º 3 do CC.
Como resulta do acima exposto, não se provou que “
o resultado previsional expectável para 2018 de € 36.248,00 (trinta e seis mil duzentos e quarenta e oito euros) e, para 2019, de €48.579,00 (quarenta e oito mil quinhentos e setenta e nove euros)”.
Ou seja, não se provaram os lucros cessantes alegados.
É certo que se provou que:
59. Sendo o activo da Autora constituído, nessa data, pelo estabelecimento comercial de restauração, instalado na fracção “A”, dotado de condições de funcionamento, pronto para atingir a plena laboração, com 97 lugares sentados, funcionando para almoços e jantares, numa área útil de cerca de 200 m2.; 60. Incluindo, ainda, a possibilidade de rentabilização por meio de take away.;61. No início de 2018, este estabelecimento comercial tinha uma boa imagem, com poder de atracção de clientela, equipamento e mobiliário adequados (doc. 74); 66. No início de 2018 a Autora tinha uma expectativa de crescimento para os anos seguintes.;67. O preço médio de cada prato servido no restaurante da Autora, sem entrada, bebida nem sobremesa, era de 12€;68. A Autora, esperava atingir uma ocupação média de 97 lugares x 1,5 x 270 dias/ano;69. Esperava, assim, a Autora, atingir um volume de negócios em 2018 na ordem de €471.420,00 e, em 2019, de €523.748 (crescimento anual considerado 10% / margem bruta 40%).
Mas tais factos não são suficientes para demonstrar a verificação de lucros cessantes.
A área, o número de lugares sentados e equipamento de um estabelecimento comercial não são, por si só, garantia de lucro. O mesmo se diga do horário. E até da boa imagem do estabelecimento e poder de atração de clientela.
O lucro depende do encontro entre receitas e despesas. Pelo que para se demonstrar a ocorrência de lucros cessantes teria que se demonstrar que o estabelecimento apresentava uma média de efetiva receita (faturação) superior à média da despesa.
Ora, os factos provados não aludem sequer a qualquer efetiva faturação.
As expectativas da Autora são coisa diferente da efetiva demonstração de lucros cessantes.
Sem a prova da ocorrência de lucros cessantes, não faz sentido apelar ao disposto no art. 564.º n. 2 do CC e no artigo 609.º n.º 2 do CPC (liquidação de sentença), pois não se trata apenas de uma falta de prova do quantum do dano, mas antes da falta de prova da verificação do próprio dano.
E isso inquina tanto o pedido relativo a lucros cessantes alegadamente já verificados aquando da propositura da ação (no valor alegado de 84.827,00€) como o pedido de indemnização dos danos patrimoniais futuros decorrentes do encerramento do estabelecimento.
Tal como já se disse, não se trata apenas de uma questão de quantificação, mas sim de verificação do próprio dano, seja ele passado ou futuro.
Finalmente, considera a Autora apelante que ainda que o Tribunal a quo entendesse não haver certeza quanto à ocorrência de dano por lucros cessantes, deveria, com base na matéria de facto fixada, julgar procedente a indemnização da Recorrente pela perda de chance, já que a Autora em directa consequência da actuação ilícita e culposa dos Réus, ficou privada de ver cumpridas as respectivas expectativas de crescimento favorável, reunindo o estabelecimento condições sérias e adequadas para as concretizar (evidenciadas nos factos dados como provados sob os n.ºs 59 a 61, 66 a 69 e 73).Assim, cumpria ao Tribunal a quo garantir a reparação dos danos apurados, que, não obstante a qualificação jurídica que lhes venha a ser atribuída, se entendem compreendidos no pedido de indemnização apresentado em virtude da responsabilidade civil dos RR, sem prejuízo de dar cumprimento ao disposto no artigo 5.º do CPC para garantia do contraditório.
Todavia, ao contrário do defendido pela Autora, não estamos aqui perante uma mera diferente qualificação jurídica dos factos.
O dano da perda de chance é um dano específico, com contornos próprios, que se prende com o ressarcimento da perda de oportunidade - séria e com significativo grau de probabilidade - de obtenção de uma vantagem.
A propósito desse tipo de dano, e especificamente sobre a perda de chance processual, o STJ, em Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 05.07.2021 proferido no Processo 34545/15.3T8LSB.L1.S2-A (Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS), uniformizou Jurisprudência nos seguintes termos: “O dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade.”
Não é, portanto, algo que se possa invocar ou conhecer na sequência do fracasso da prova do dano correspondentes a lucros cessantes.
Trata-se de um dano específico, cuja invocação haveria de ser feita “ab initio” e não em fase de recurso.
Consequentemente, por configurar questão nova, não suscitada perante o Tribunal a quo, não pode ser conhecida por este Tribunal ad quem, já que não integra matéria de conhecimento oficioso. O recurso é um meio de impugnação de uma decisão judicial, pelo que apenas pode incidir sobre as questões apreciadas nessa decisão, e não sobre questões novas, sem prejuízo do conhecimento daquelas que sejam de conhecimento oficioso.
Escreve a propósito Abrantes Geraldes in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. Atualizada, Almedina, pag. 140, que:
“Na verdade os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis.”
Também no Ac. do STJ de 07.07.2016 proferido no Proc. 156/12.0TTCSC.L1.S1, se refere que:
“Não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.”.
Avaliemos agora a responsabilidade que é imputada pela apelante aos 1º, 3º, e 4º RR solidariamente com a 2ª R.
Considera a apelante que o 1.º Réu (Condomínio) é responsável na medida em que se encontrava adstrito ao dever de zelar e vigiar as partes comuns do imóvel, decorrendo do artigo 493.º n.º 1 do CC a responsabilidade do condomínio pelos danos provocados pelas obras levadas a efeito nas partes comuns do edifício, independentemente de ser ou não o dono da obra. Logo, encontrava-se o condomínio obrigado a prevenir a ocorrência de danos na esfera da A., não podendo, de forma alguma, alhear-se da actuação das 2.ª e 3.ª Rés que levaram a cabo obras não licenciadas, de ampliação da área de construção do imóvel, tendentes à construção de dois novos “espaços habitacionais”, um no piso 3, outro no piso superior a este último, aproveitando o desvão do sótão sob a cobertura do edifício. Trata-se de responsabilidade por omissão do dever de praticar o acto omitido (artigo 486.º do CC), tendo o condomínio o dever de impedir que as obras realizadas nas partes comuns do edifício comportassem danos para a esfera jurídica da Autora ora Apelante.
Vejamos.
Dispõe o invocado nº1 do art. 493 do CC que
“ Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.”
Ora, os danos sofridos pela Autora não decorreram de qualquer omissão de vigilância do condomínio relativamente às partes comuns do edifício, em si mesmas, como seria, por exemplo, o caso de danos provocados por um deficiente estado de conservação dessas partes comuns.
Decorrem sim de uma ação concreta - a realização de obras. Ação de terceiro, pois não foi o condomínio que executou as obras. Não se provou sequer que era o dono da obra.
Portanto, não realizou, e nem sequer contratou a obra causadora de dano à A.
Não decorrendo os danos, em termos de nexo de causalidade adequada, de uma omissão de vigilância do condomínio, mas sim de uma ação na qual aquele não teve intervenção, deverá manter-se a absolvição do condomínio do pedido.
Entende ainda a Apelante que também a 3.ª Ré, dona da obra, é responsável pela reparação dos danos sofridos pela Autora, pois os danos descritos na factualidade dada como provada sob os n.ºs 18 a 24 importam a responsabilidade civil do dano da obra, decorrendo necessariamente da realização da obra em causa, uma vez que a demolição das paredes interiores dos pisos superiores do prédio, a trepidação constante, o ruído, a queda de entulho, a colocação de andaimes, estão necessariamente associadas à realização das obras contratadas pelo dono da obra. Assim, entende a Recorrente que a natureza das obras a efectuar sempre implicaria necessariamente a produção de gravosos danos na esfera jurídica da Autora ora Recorrente. E ainda que resultou da prova efectivamente produzida que foram executadas obras nas quais teve directa intervenção o dono da obra, dirigidas à construção de dois espaços habitacionais não licenciados, pelo que resulta da prova efetivamente produzida que os danos ocorreram devido não apenas ao empreiteiro, mas ainda ao dono da obra, tendo ambos concorrido para a produção de gravosos prejuízos no estabelecimento comercial da Autora.
O Tribunal a quo, recorde-se, considerou responsável pelos danos a 2ª Ré, empreiteira, mas não a 3ª Ré, na qualidade de dona da obra, considerando inexistir relação de comissão.
A propósito desta matéria (relação de comissão e contrato de empreitada) veja-se o Ac do STJ de 22.06.2021 proferido no Proc. 600/04.0TBSTB.E1.S1 (Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES), com o seguinte sumário:
“I. A responsabilidade da Ré, empreiteira, sustentada pelas instâncias no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, não se comunica à Ré Lisnave, dona da obra: estando a direção da obra a cargo exclusivamente da Ré não existe co-autoria, para efeito do disposto no artigo 490.º, do Código Civil, ou relação jurídica de comissão (que responsabilize o comitente pelos atos do comissário).
II. Não se provando uma relação de comissão, significa que a construtora que estava a executar a obra, como empreiteira, surge, aqui, não como mandatária do dono da obra/concessionária, mas antes agindo, diversamente, com inteira autonomia na respetiva execução, escolhendo os meios e utilizando as regras de arte que tenha por próprias e adequadas para cumprimento da exata prestação correspondente ao resultado contrato, sem qualquer vínculo de subordinação ou relação de dependência.
III. Face à perigosidade da obra que estava a ser executada, revela-se pertinente e adequado invocar o artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil.
IV. A dona da obra não assumiu, no contrato de empreitada, a responsabilidade civil extracontratual da empreiteira Somague perante terceiros por atos decorrentes da execução da obra.
V. A dona da obra podia ser responsabilizada por faltas ao nível da conceção da obra, ou por inobservância dos seus deveres de fiscalização, nomeadamente ao nível da segurança.
VI. Não se provando da parte da dona da obra matéria que integre da sua parte uma atuação culposa para o dano, nem que tenha tido qualquer outra intervenção que por alguma forma tenha concorrido culposamente para o acidente, não pode a mesma ser responsabilizada na base da presunção do n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil e, isto, porque a presunção legal de culpa constante do artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil não se lhe aplica.
VII. A interpretação literal, e coerente com a inversão do ónus da prova aí consagrado, do disposto na segunda parte do n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil, comporta o sentido de fazer recair sobre a parte presumidamente culpada o ónus de alegar e provar as providências concretamente adotadas e adequadas à prevenção dos danos associadas ao perigo da atividade desenvolvida e, por consequência, de afastar a culpa – artigos 342.º e 343.º, ambos do Código Civil, não havendo como desviar para o Tribunal a tarefa, complementar à conclusão da não elisão da presunção, de elencar as medidas específicas a adotar no caso.
VIII. A mera prova de que “A obra em causa nos autos encontrava-se dotada de um plano de segurança” mostra-se insuficiente para concretizar a elisão da presunção de culpa, porque se desconhecem em absoluto as medidas concretas, previstas e executadas ao abrigo de tal plano, aptas a prevenir a eclosão de danos comummente associados ao perigo da atividade perigosa.
IX. Não sendo de convocar o regime do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel e tratando-se de obrigações solidárias, a lesada pode exigir o cumprimento a qualquer dos devedores (demandando-os, como fez, em litisconsórcio voluntário), sendo que a seguradora apenas responderá até ao limite do seguro”.
No caso dos autos, não foi alegado nem provado que a 3ª Ré tenha assumido contratualmente a responsabilidade por danos causados a terceiro por virtude da realização das obras a cargo da 2ª Ré. Também não foi alegado nem provado que a direção da obra estivesse também a cargo da 3ª Ré ou que esta tenha dado à 2ª Ré qualquer especifica instrução para uma concreta ação em obra da qual tenham, em termos de causalidade adequada, decorrido os danos.
E ainda que a natureza das obras a efetuar implicasse necessariamente a produção de gravosos danos na esfera jurídica da Autora ora recorrente, tal dá azo a responsabilidade da empreiteira nos termos do art. 493 nº2 do CC, a qual não se comunica à dona da obra, por inexistir relação de comissão.
Considera especificamente a recorrente que resultou da prova efetivamente produzida que foram executadas obras nas quais teve direta intervenção o dono da obra, dirigidas à construção de dois espaços habitacionais não licenciados.
Isso não resulta da matéria de facto dada como provada, inexistindo qualquer facto provado que substantivamente contenha uma efetiva ação de concreta intervenção da 3ª Ré na obra, designadamente em obras de construção de dois espaços habitacionais não licenciados.
Os factos acima aditados à matéria provada apenas atestam a existência de uma ação de fiscalização camarária, e a subsequente imputação feita pelos serviços camarários, no auto de notícia, de uma infração à 3ª Ré, com base na situação aí referida. E bem assim a existência de uma informação camarária onde se refere determinada factualidade relativa à obra.
A imputação, pelos serviços camarários, de uma infração à Ré (e dos factos que a sustentam) é coisa diferente da prática efetiva, pela 3ª Ré, dos correspondentes atos.
Não há, portanto, matéria provada que sustente a invocada intervenção direta do dono da obra em obras de construção de dois espaços habitacionais não licenciados.
E tanto basta para improceder a imputação de responsabilidade à 3ª Ré pelos danos sofridos pela Autora.
Passemos a analisar a responsabilidade imputada ao 4º Réu.
Considera a Autora que o 4.º Réu é responsável pela reparação dos danos sofridos pela Autora na medida em que, como locador, tem a obrigação de assegurar à inquilina o gozo do prédio arrendado para o fim a que o mesmo se destina, e como condómino, é, em virtude dessa qualidade, comproprietário das partes comuns, cabendo-lhe garantir que das obras nelas realizadas não decorrerão prejuízos para terceiros. E que no caso vertente, porém, em vez de proporcionar à Autora a plena utilização da fracção de acordo com os fins fixados no contrato de arrendamento celebrado, o 4.º R. veio anuir à execução de obras estruturais do prédio ilegais, das quais resultaram gravosos danos para a Autora. E ainda que pela omissão do seu dever contribuíu directamente para a deterioração da fracção “A” dada de arrendamento à Autora, contribuindo para o encerramento do estabelecimento comercial instalado no locado devido aos gravosos danos sofridos pela Autora, a colocar em perigo a própria segurança dos trabalhadores e dos clientes, não cuidando, até esta data, da sua reparação, não obstante ter sido dado como provado que, face aos danos iniciais ocorridos, este Réu veio a receber indemnização da Seguradora no montante de €8.541,00€.
Invoca que a culpa do 4.º R. se presume legalmente nos termos previstos no artigo 799.º do CC e é apreciada nos termos do disposto no artigo 799.º, n.º 2, do CC, tornando-se responsável pela reparação de todos os prejuízos que a sua conduta ilícita e culposa causou à Autora.
Vejamos.
Aquando da celebração do contrato de arrendamento com o anterior senhorio (cuja posição o 4º Réu ora ocupa) estava já prevista a realização de obras no prédio e nas respetivas frações autónomas, prevendo a cláusula segunda, nos seus números 4, 5 e 6 o seguinte:
“4. A Arrendatária declara conhecer e aceitar que a Senhoria irá realizar diversas obras no prédio onde se insere o Locado, no interior deste e nas restantes fracções autónomas que integram o referido prédio, incluindo a construção de um duplex no seu último piso e a recuperação das suas fachadas, que implicarão necessariamente a colocação de andaimes na respectiva fachada principal e tardoz (conforme consta da planta, cuja cópia se junta como Anexo 4), obras essas cujo prazo de conclusão deverá ocorrer no prazo de um ano após o início das mesmas, não podendo a Arrendatária invocar qualquer prejuízo pela realização das citadas obras, seja a que titulo for, sem prejuízo do previso no número seguinte
5. Se as obras referidas no número anterior impedirem o exercício da actividade da Arrendatária no locado, impedimento esse que terá que implicar o encerramento do restaurante, os períodos de tempo em que esta se encontrar privada de usar o locado são descontados proporcionalmente na renda a pagar no mês seguinte.
6. “As Partes aceitam e declaram que o encerramento do restaurante instalado no Locado, exclusivamente pelo motivo da realização das obras previstas no número 4 antecedente, não constitui incumprimento do presente Contrato por qualquer uma das partes e, por isso, não constitui fundamento para a sua resolução.
7. As disposições aplicáveis nos n.º 5 e 6 da presente cláusula apenas serão aplicáveis caso a Senhoria tenha que realizar quaisquer obras no interior do locado, não constituindo motivo invocável para o não exercício da actividade da Arrendatária, a existência de barulho, poeiras ou qualquer outro constrangimento exterior ao locado.”
Ou seja, a própria arrendatária aceitou a realização de obras no prédio onde se insere o locado, e, mais, aceitou que não poderia invocar qualquer prejuízo pela realização das citadas obras, seja a que titulo for. E aceitou ainda que o encerramento do restaurante instalado no locado por via da realização das obras no locado não constituiria incumprimento do contrato de arrendamento por qualquer uma das partes. Mais aceitou que não constituiria motivo invocável para o não exercício da actividade da Arrendatária, a existência de barulho, poeiras ou qualquer outro constrangimento exterior ao locado (o que necessariamente implica que os constrangimentos resultantes das obras exteriores ao locado não justificaria o encerramento do estabelecimento).
Tais estipulações fazem colapsar a imputação de responsabilidade ao 4º Réu por, enquanto senhorio, não proporcionar à arrendatária o gozo do locado, ao anuir na realização de obras que provocaram danos à Autora.
É que o senhorio anuiu na realização das obras nos termos em que a Arrendatária também o fez, os termos descritos no contrato de arrendamento. Esta inclusivamente prescindiu da invocação de qualquer prejuízo que as mesmas viessem a causar-lhe.
A realização de obras no prédio encontra-se prevista e aceite no contrato de arrendamento, e as respetivas implicações e consequências foram também contratualizadas; logo, a anuência do senhorio à realização de tais obras não configura incumprimento contratual, designadamente incumprimento da obrigação de proporcionar ao arrendatário o gozo do locado.
Vejamos agora a imputação de responsabilidade ao 4º Réu, enquanto condómino/ comproprietário das partes comuns, por não ter garantido que das obras nelas realizadas não decorreriam prejuízos para terceiros.
Tal como já se disse a propósito da apreciação da responsabilidade ao Réu Condomínio, os danos sofridos pela Autora não decorrem, em termos de causalidade adequada, das partes comuns do edifício, em si mesmas, mas sim de uma ação concreta - a realização de obras. Trata-se de ação de terceiro, pois não foi o 4ºReu que executou as obras, nem sequer as contratando.
Não tendo intervenção na referida ação, não lhe cabe garantir o modo como a mesma foi feita, designadamente que aquela não provocaria danos, e como tal não pode ser responsabilizado pelos danos verificados.
Não há, pois, fundamento para responsabilizar o 4º Réu pelo pagamento da indemnização à Autora.
O recebimento por aquele de indemnização da Seguradora da 2ª Ré, no valor de €8.541,00 também não releva para o efeito, uma vez que se desconhecem os concretos danos pelos quais a Seguradora ressarciu o 4º Réu, e não se pode esquecer que ele próprio foi prejudicado com a realização das obras, na medida em que deixou de receber a integralidade da renda do locado (cf. factos provados).
Por todo o exposto, procede apenas parcialmente a apelação apresentada pela Autora.
Referindo-se tal procedência parcial a um pedido ilíquido que foi desde logo formulado na p.i. como tal - um dos quatro pedidos formulados na p.i. -, as custas da apelação serão suportadas pela Autora e pela 2ª Ré, na proporção de ¾ para a primeira e ¼ para a última (art. 527º do CPC).
Recurso apresentado pela Ré …, Lda:
Está em causa a reapreciação do mérito na parte referente à condenação da apelante.
Esta invoca, para se eximir à condenação, a transferência da sua responsabilidade civil para a Fidelidade-companhia de seguros S.A e o pagamento por aquela de indemnização ao R. AA, defendendo que com tal pagamento se extinguiu qualquer responsabilidade da Recorrente, sendo aquele Réu quem se locupletou com a respetiva quantia, não realizando qualquer reparação no locado, como aliás lhe competia. Mais invoca a desproporcionalidade da indemnização que foi condenada a pagar.
O réu AA, em contra-alegações, discordou.
Provou-se que no sob o ponto 72 da matéria dada como provada que o 4º R. recebeu a quantia de €8.541,00€ por parte da seguradora da 2ª R. – doc. 18 da cont. do 4º R.
Todavia, dos autos não consta sequer a apólice de seguro com base na qual a ora apelante invoca a transferência da responsabilidade para a Seguradora, desconhecendo-se designadamente a sua extensão, ou seja, o capital seguro e os concretos danos segurados. Veja-se que no despacho de 31.05.2022 que indeferiu a intervenção principal provocada da Ré Companhia de Seguros Fidelidade, sa , foi expressamente salientado que “ tão pouco o Réu juntou a respectiva apólice do invocado contrato de seguro.”
Logo, sem juntar a apólice de seguro que permita aferir a extensão da correspondente cobertura, não pode a Ré ora apelante demonstrar a existência de um seguro que cubra a sua responsabilidade pelos concretos danos sofridos pela autora que foram dados como provados.
E consequentemente não pode prevalecer-se da invocada transferência de responsabilidade para a Seguradora.
O facto provado número 72 não altera esta realidade.
Desconhecem-se quais os concretos danos pelos quais a Seguradora ressarciu o 4º Reu, e qual a especifica cobertura do seguro em causa.
E assim sendo, não se pode concluir nem no sentido de que os danos sofridos pela Autora estariam abrangidos pela cobertura de tal seguro, como se disse acima, nem no sentido de que o pagamento de indemnização de €8.541,00€ ao 4º Réu pela Seguradora extinguiu qualquer responsabilidade da Ré Apelante.
Por outro lado, também não se pode concluir no sentido de que o 4º Reu se locupletou indevidamente com o valor de tal indemnização.
Por último, sustenta a apelante/2ª Ré a desproporcionalidade da indemnização que foi condenada a pagar.
Tal argumentação não procede, uma vez que o valor da indemnização (€40447,10) corresponde ao valor necessário para o ressarcimento dos danos sofridos pela Autora que foram dados como provados nos pontos 62 a 65 da matéria de facto provada (valor ao qual acrescerá, nos termos acima expostos, o valor do custo de reparação do balcão frigorífico, da câmara frigorífica e do equipamento de som, a apurar em liquidação de sentença).
A apelação da Ré improcede, com custas pela apelante (art 527 nºs 1 e 2 do CPC).
Quanto às custas em 1ª instância, mantêm-se o que foi decidido, uma vez que o valor da ação, fixado por decisão transitada em julgado, corresponde, como se constata por simples calculo aritmético, à soma dos pedidos líquidos, e quanto a esses, a responsabilidade pelas custas corresponderá à proporção matemática dos decaimentos da Autora e da 2ª Ré.
*
V. DECISÃO:
Pelo exposto acordam os Juízes desta 8ª seção do Tribunal da Relação de Lisboa em: a)- julgar improcedente a apelação da 2ª Ré … – Construções, Unipessoal, L.da, e, consequentemente, mantêm a condenação da mesma a pagar à Autora a quantia de 40.447,10€ a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos;
b) - julgar parcialmente procedente a apelação da Autora, e consequentemente condenam a 2ª … – Construções, Unipessoal, L.da a pagar à Autora, para além da quantia de €40.447,10€ referida na alínea a) supra, o valor do custo de reparação do balcão frigorífico, da câmara frigorífica e do equipamento de som, a apurar em liquidação de sentença (art. 609 nº2 do CPC).
- No mais, mantêm a sentença recorrida.
As custas da apelação intentada pela 2ª Ré serão suportadas por aquela.
As custas da apelação intentada pela Autora serão suportadas pela Autora e pela 2ª Ré, na proporção de ¾ para a primeira e ¼ para a última.
As custas em 1ª instância serão suportadas pela Autora e pela 2ª Ré nos termos definidos pela sentença recorrida.
Notifique.
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Lisboa, 11 de setembro de 2025
Carla Matos
Carla Figueiredo
Ana Paula Olivença
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8c726896fba28a5180258d0d00328087?OpenDocument
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1,756,944,000,000
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CONFIRMADA A DECISÃO RECORRIDA
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16/20.0T8CCH.E1
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16/20.0T8CCH.E1
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MARIA JOÃO SOUSA E FARO
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Sumário:
I. De acordo com o nº2 do art.º34º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho o pedido de pedido de escusa do patrono nomeado , formulado nos termos do número anterior e apresentado na pendência do processo, interrompe o prazo que estiver em curso, com a junção aos respectivos autos de documento comprovativo do referido pedido, aplicando-se o disposto no n.º 5 do artigo 24.º do qual decorre que o prazo interrompido se inicia a partir da notificação ao novo patrono nomeado da sua designação.
II. Tais normas estão pensadas para os casos em que está a decorrer um prazo peremptório, i.e. cujo decurso extingue o direito de praticar certo acto (n.º 3 do artigo 139.º do C.P.C.) – v.g. prazo para contestar, para recorrer; só nesses casos se justifica que o mesmo se interrompa por via da escusa do patrono e que volte a correr de novo após a nomeação do novo.
III. No caso, nenhum prazo desse jaez estava a decorrer já que, em consequência do certificado óbito de uma interessada no inventário, a instância estava suspensa, por força da conjugação do 1091º com o 269º, nº 1, al. a), do CPC, sendo a única cominação existente para ausência do impulso devido pela parte, i.e. pelo cabeça de casal, a deserção da instância.
IV. Mas isto não significa que não se atribua relevância ao período que decorre entre o pedido de escusa de um patrono e a nomeação do outro para efeitos de aferição da (in) existência de negligência da parte em promover os termos do processo: não pode ser imputável à parte a paragem do processo nesse período em que está privado de patrono e, por consequência, o mesmo não pode ser computado no prazo de seis meses a que alude o nº1 do art.º 281ºdo CPC, já que a parte esteve impedida de o impulsionar por esse motivo.
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[
"APOIO JUDICIÁRIO",
"PATROCÍNIO JUDICIÁRIO",
"PRAZO",
"INTERRUPÇÃO DO PRAZO EM CURSO",
"SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA",
"NEGLIGÊNCIA"
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16/20.0T8CCH.E1
ACÓRDÃO
I- RELATÓRIO
AA, cabeça de casal nos autos de inventário à margem identificados, inconformado com a decisão que julgou a instância extinta por deserção, dela veio interpor recurso, que rematou com as seguintes conclusões:
- Por despacho de 27-10-2023 do Tribunal a quo, o patrono então nomeado ao cabeça de casal, foi notificado para: “ Atento o teor da certidão de óbito junta aos autos, fica prejudicado o determinado no despacho anterior, razão pela qual se dá sem efeito.
Notifique o Cabeça de Casal para dar cumprimento ao disposto no artigo 1089.º, n.º 1 do Código de Processo Civil”.
- Em 12 de Janeiro de 2024, o então Patrono nomeado, apresentou pedido de escusa, na Ordem dos Advogados, informando o Tribunal a quo, mediante requerimento, que juntou via Citius com a ref.ª 47633765.
- Em 18 de Janeiro de 2024, a aqui patrona recebeu via mail a nomeação da Ordem dos Advogados;
- Não tendo a Ordem dos Advogados, comunicado a nomeação ao processo , a aqui patrona submeteu pedido para o efeito, 04-03-2024, com a ref.ª n.º 48161247, junta aos autos, data a partir da qual teve acesso ao processo;
- Em 27 de Junho de 2024, a patrona foi notificada da Sentença, com a ref.ª Citius 96861842, que julga deserta a instância, por se encontrar a aguardar impulso processual há mais de seis meses, da qual se recorre.
- A concessão do apoio judiciário é da competência do Instituto da Segurança Social, tratando-se de um procedimento administrativo, autónomo, regulado nos art.s 19º a 38º da Lei n.º 34/2004, de 20.7;
- Quanto deduzido na pendência de procedimento judicial «e o requerente pretende a nomeação de patrono, o prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo da apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo» – art.º 24ºn.º 4.;
- O prazo interrompido renova-se «conforme os casos: a) a partir da nomeação ao patrono nomeado da sua designação; b) A partir da notificação ao requerente da decisão de indeferimento do pedido de nomeação de patrono» – art.º 24º n.º 5;
- Assim, o prazo interrompeu, na data da apresentação do pedido de escusa em 12 de Janeiro de 2024;
- E, a contagem inicial, do prazo de seis meses, só poderá iniciar na data em que a patrona teve acesso ao processo, ou em 18 de Janeiro de 2024, com a nomeação da aqui patrona e à data em que foi proferida a Sentença, não havia ainda decorrido o prazo de seis meses.
Face ao exposto, a sentença recorrida deve ser revogada ou reformada, ordenando - se a final a prossecução dos autos.”.
2. Não houve contra-alegações.
3. OBJECTO DO RECURSO
Ponderando que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil - a única questão que importa dirimir consiste em saber se ocorreu, por parte do cabeça de casal, negligência em promover os ulteriores termos do processo susceptível de desencadear a prolatada deserção da instância à luz do disposto no art.º 281º nº1 do CPC.
II- FUNDAMENTAÇÃO
4. Os factos a considerar no âmbito deste recurso são os que se deixaram exarados no antecedente relatório e, bem assim, os seguintes perante a documentação consultada no
citius
:
1. Mediante requerimento de 20.10.2023 o cabeça de casal, então patrocinado pelo senhor Advogado, Dr. BB, informou os autos do falecimento da interessada, sua mãe, CC, juntando o competente assento de óbito;
2. Foi então prolatado em 27.10.2023 o seguinte despacho: “Atento o teor da certidão de óbito junta aos autos, fica prejudicado o determinado no despacho anterior, razão pela qual se dá o mesmo sem efeito.
Notifique o Cabeça-de-Casal para dar cumprimento ao disposto no artigo 1089º, nº 1 do Código de Processo Civil.”.
3. Tal despacho foi notificado ao senhor advogado referido em 4.1. mediante ofício de 3.11.2023;
4. E, em 12.12.2023 foi proferido o seguinte despacho: “Aguardem os autos impulso processual, sem prejuízo do disposto no artigo 281º, nº 1 do Código de Processo Civil.”.
5. Tal despacho foi notificado ao senhor advogado referido em 4.1. por ofício de 13.12.2023;
6. Mediante requerimento de 12.1.2024 o senhor advogado referido em 4.1, deu conhecimento aos autos de que havia requerido, nessa mesma data, escusa do patrocínio junto da O.A.;
7. Mediante requerimento de 4.3.2024, a Dra. DD, nomeada patrona ao cabeça de casal em substituição do antecedente, expôs o seguinte:
“DD, advogada, nomeada patrona do Cabeça de Casal, AA, nos autos acima melhor identificados, vem requer a sua associação ao processo, o que faz com base nos seguintes factos:- a patrona recebeu a nomeação efectuada pela OA, para efeitos de Inventário/ Partilha de Bens em casos Especiais, sem que da mesma constasse a indicação de N.º de Processo; DOC. 1
- Contactado o Beneficiário, veio este informar que o pedido formulado à OA, foi para substituição de Patrono no presentes autos de inventário;
- a patrona criou vicissitude no sistema SINOA, expondo a questão, e requerendo a rectificação da nomeação; DOC. 2
- em resposta veio a OA, informar a patrona para que efectuasse a inserção dos dados do processo no SINOA, o que foi efectuado. DOC. 3
- Assim, requer-se a V. Ex.ª se digne mandar associar a patrona ao processo em curso, para que o possa consultar e tramitar.”
4.8. Só em 28.2.2024 é que a O.A. informou a patrona que a sua nomeação se destinava a prosseguir com o processo e não a instaurar uma acção.
4.9. Em 21.6.2024 foi proferido o despacho recorrido com o seguinte teor:
“Refere o artigo 281º, nº 1 do Código de Processo Civil que “(…) considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.”.
Pelo exposto, uma vez que o processo se encontra a aguardar impulso processual há mais de 6 meses, julga-se deserta a presente instância.
Custas pelo requerente (artigos 527.º e 537.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil).
Notifique e oportunamente arquive-se.”.
5. Do mérito do recurso
Estatui a alínea c) do art. 277.º do CPC que a instância se extingue com a deserção.
Como nos dá conta Paulo Ramos de Faria
1
“o instituto da deserção da instância foi introduzido no nosso ordenamento jurídico através do Código de Processo Civil de 1939, pela mão de MANUEL RODRIGUES, tendo logo um conteúdo distinto daquele que tinha a antiga perempção (art. 202.º do CPC de 1876). O fundamento invocado pelo então Ministro da Justiça foi objectivo: não interessa à boa ordem dos serviços que os processos pendam em tribunal, parados indefinidamente. Para além de facilitar a gestão administrativa do tribunal, esta modalidade de extinção da instância promove a celeridade processual –sempre perseguida pelo sistema de justiça –, tendo um claro escopo compulsório. Não assumiu relevo genético o fundamento subjectivo da deserção da instância – a presunção de renúncia à lide (vontade de abandono).
Actualmente, o bom funcionamento burocrático dos serviços poderia ser conseguido através do arquivamento do processo (e do seu encerramento estatístico) com a mera interrupção, figura não prevista no novo Código, pelo que o principal fundamento da deserção da instância residirá hoje no seu efeito compulsório com vista à tutela da celeridade processual.”.
Pressupostos da deserção da instância são: a paragem do processo por mais de seis meses em razão da omissão da parte, sobre quem recai o ónus de impulso subsequente do processo, em praticar o acto necessário a esse desiderato e que tal omissão lhe seja imputável.
Aliás, como explica Paulo Ramos de Faria
2
negligente significa aqui imputável à parte (causalmente imputável), e não a terceiro – como a uma conservatória que se atrasa na entrega de uma certidão – ou ao tribunal.
Por conseguinte, estando o processo parado durante mais de seis meses sem que a parte pratique o acto adequado ao seu andamento ou justifique adequadamente a sua “inércia”, esta presume-se negligente.
Evidentemente que a deserção da instância só pode ter lugar quando “tal impasse não possa (não deva) ser superado oficiosamente pelo tribunal. Assim, determina a lei que a paragem do processo que empresta relevo ao decurso do tempo deve ser o efeito, isto é, o resultado (causalmente adequado) de uma conduta típica integrada por dois elementos: a omissão de um acto que só ao demandante cabe praticar (…) Num processo cada vez mais marcado pelo impulso oficioso do juiz (art. 6.º, n.º 1), deverá ser (desejadamente) cada vez mais rara a efectiva ocorrência da deserção da instância, por mais raros serem os actos que só aparte pode (deve) praticar e que importam a paragem do processo. A promoção da habilitação de herdeiros ou a constituição de novo advogado pelo autor, após a renúncia do anterior, são casos emblemáticos de impulso processual que só à parte cabe
3
.”.
Revertendo ao caso
subjudice,
não há quaisquer dúvidas que na sequência do despacho que determinou a notificação do Cabeça-de-Casal para dar cumprimento ao disposto no artigo 1089º, nº 1 do Código de Processo Civil, e que foi notificado ao então patrono do Autor, mediante ofício de 3.11.2023, este deveria ter indicado os sucessores do falecido e juntado os documentos necessário como aí se prevê.
Era, pois, sobre o cabeça de casal que impendia o dever de praticar o acto necessário ao prosseguimento da instância.
Mas poder-se-á entender, considerando as vicissitudes ocorridas em razão da escusa do patrono nomeado, que a paragem do processo durante mais de seis meses lhe foi
integralmente
imputável ?
Cremos que não.
O recorrente invoca em seu abono a Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho que prevê no seu art.º 34ºo seguinte:
1 - O patrono nomeado pode pedir escusa, mediante requerimento dirigido à Ordem dos Advogados ou à Câmara dos Solicitadores, alegando os respectivos motivos.
2 - O pedido de escusa, formulado nos termos do número anterior e apresentado na pendência do processo, interrompe o prazo que estiver em curso, com a junção aos respectivos autos de documento comprovativo do referido pedido, aplicando-se o disposto no n.º 5 do artigo 24.º
3 - O patrono nomeado deve comunicar no processo o facto de ter apresentado um pedido de escusa, para os efeitos previstos no número anterior.
4 - A Ordem dos Advogados ou a Câmara dos Solicitadores aprecia e delibera sobre o pedido de escusa no prazo de 15 dias.
5 - Sendo concedida a escusa, procede-se imediatamente à nomeação e designação de novo patrono, excepto no caso de o fundamento do pedido de escusa ser a inexistência de fundamento legal da pretensão, caso em que pode ser recusada nova nomeação para o mesmo fim.”.
Por seu turno, decorre do nº5 do art.24º da mesma Lei que o prazo interrompido se inicia a partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação.
Porém, é nosso entendimento de que estas normas estão pensadas para os casos em que está a decorrer um prazo peremptório, i.e. cujo decurso extingue o direito de praticar certo acto (n.º 3 do artigo 139.º do C.P.C.) – v.g. prazo para contestar, para recorrer
4
.
Só nesses casos se justifica que o mesmo se interrompa por via da escusa do patrono e que volte a correr de novo após a nomeação do novo.
No caso, nenhum prazo desse jaez estava a decorrer já que, em consequência do certificado óbito de uma interessada, a instância estava suspensa, por força da conjugação do 1091º com o 269º, nº 1, al. a), do CPC.
5
Por isso, sendo a única cominação existente para ausência do impulso devido pela parte, i.e. pelo cabeça de casal, a deserção da instância, a interrupção prevista naquelas normas não é (nem pode ser) aplicável, sob pena de um injustificado protelamento do processo.
Mas isto não significa que não se atribua relevância ao período que decorre entre o pedido de escusa de um patrono e a nomeação do outro para efeitos de aferição da (in) existência de negligência da parte em promover os termos do processo.
É que não pode ser imputável à parte a paragem do processo nesse período em que está privado de patrono.
E, por consequência, o mesmo não pode ser computado no prazo de seis meses a que alude o nº1 do art.º 281º, já que a parte esteve impedida de o impulsionar por esse motivo.
Assim, e considerando que a notificação ao patrono do despacho referido em 4.2. ocorreu em 6.11.2023 mas que decorreram 47 dias entre a data da escusa do anterior patrono e a data da nomeação da nova patrona para prosseguir o processo no período que decorreu entre a instância só poderia ser considerada deserta em 18.6.2024.
Vindo a sê-lo apenas em 21.6.2024, não temos como não imputar à parte –
in casu
ao cabeça de casal – uma conduta negligente omissiva adequada à paralisação do processo.
E é, por isso, que a decisão recorrida se mantém.
III. DECISÃO
Por todo o exposto, acorda-se em julgar o recurso de apelação improcedente e, em consequência, se mantém a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Évora, 9 de Abril de 2025
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Filipe César Osório
Sónia Moura
________________________________________
1. In revista Julgar“ on line “ 2015.
↩︎
2. Estudo cit.
↩︎
3. Idem, Paulo Ramos de Faria in estudo citado.
↩︎
4. Aliás, Salvador da Costa Salvador da Costa (Apoio Judiciário, 11ª ed., 2024, pp. 93-95) comenta o art. 24º, 4, LAJ, aludindo sempre a prazo para contestar ou deduzir oposição.
↩︎
5. Assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa in CPC Anotado, vol. II, 2ª ed., 2024, p. 575.
↩︎
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/46913f52e9aaab3280258c7c0034cd2f?OpenDocument
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1,759,536,000,000
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PARCIALMENTE PROCEDENTE
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4769/20.8T8LRS.L1-2
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4769/20.8T8LRS.L1-2
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PEDRO MARTINS
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I\ A conjugação dos artigos 609/2 do CPC e 566/3 do CC faz-se assim: se os factos dados como provados não permitem averiguar o valor exacto dos danos, mas é previsível que a situação se altere se se relegar para liquidação a fixação deles, é a condenação ilíquida que se impõe.
II\ Por outro lado, o art. 609/2 do CPC impõe que o tribunal condene logo os devedores no crédito que já seja líquido.
III\ Quanto ao crédito líquido são devidos juros desde a citação (porque esse valor já era líquido e a citação representa a interpelação para o pagamento: artigos 805/1 do CC e 610/2-b do CPC).
IV\ Juros que são os juros comerciais legais do §5 do art. 102 do Código Comercial (artigos 102.º, corpo e §3º, e 2.º ambos do CCom, Portaria 277/2013, de 26/08, e DL 62/2013, de 10/05) visto que esta divida emerge de uma transacção comercial.
V\ Quanto ao crédito ilíquido só serão devidos juros a partir da data da liquidação (e não do trânsito) e os juros são civis.
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[
"CONDENAÇÃO ILÍQUIDA",
"JUROS"
] |
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
S-SA intentou uma acção comum contra F-SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe
66.959,24€, valor remanescente ainda em dívida pela ré pela entrega da produção de pêra adquirida à autora, acrescidos de juros moratórios vencidos e vincendos, à taxa legal supletiva, desde a data da citação até pagamento integral.
Alegou para tanto, em síntese, que:
forneceu à ré 280.221kg de pêra rocha, no valor de 91.959,24€ e a ré só lhe pagou, ainda, 25.000€ com IVA; “tem direito ao valor peticionado, na sequência de a ré ter indevidamente considerado, como refugo, 73.908 kg das pêras; de ter comercializado em intervalos superiores a 5mm de dimensão 115,9 toneladas das pêras; de ter comercializado 15,1 toneladas de pêras de categoria 75/80 por valor muito inferior ao preço que obteve pelas categorias 65/75 mm; e por ter comercializado sem calibragem 75 toneladas, todas das pêras por si produzidas, tudo em prejuízo da autora.”; sendo a ré responsável pelos prejuízos provocados à autora, nos termos dos artigos 483 e seguintes do Código Civil.
A ré foi citada a 01/07/2020 e contestou; na parte que ainda interessa, impugnou
parte dos factos alegados pela autora;
no art. 118 da contestação “admite dever à autora
não o montante pela mesma solicitado na acção, mas
54.544,15€ mais IVA
– correspondente ao valor da produção de pêras – 2019 – da autora, que comercializou, deduzida de 25.000€ mais IVA que por conta daquele montante já foi adiantado.”
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença a julgar a acção procedente e, consequentemente, a condenar a ré a pagar à autora a quantia que se vier a liquidar,
com o limite máximo de 66.959,24€ referente ao valor dos prejuízos causados pela venda de parte da produção a FPV sem calibração (75.005,11 kg), por ter considerado como refugo sem qualquer discriminação das concretas quantidades e motivos (73.908 kg) e desvalorização da restante produção por não proceder à calibragem de 5mm em 5mm.
A autora recorreu desta sentença
– para que seja revogada na parte em que considera não liquidado o pedido da autora, substituindo-se por outra em que se condene a ré a pagar à autora a totalidade do valor peticionado, acrescido de juros desde a data da citação, ou caso assim não se entenda e seja confirmada a sentença, então deverá considerar-se procedente o disposto na conclusão 7, condenando-se desde logo a ré a pagar à autora o montante líquido provado, acrescido de juros desde a citação, prosseguindo os autos para liquidação do restante.
A ré contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.
*
Questão que importa decidir:
(como decorre das conclusões que se transcreverão mais à frente) se deve ser aditado um facto aos provados; se a condenação da ré devia ter sido liquidada na sentença; se a ré devia ter sido condenada logo no valor do crédito que reconheceu que a autora tinha sobre si; e se a condenação devia ter incluído juros.
*
Estão dados como provados os seguintes factos:
A\ A ré é uma organização de produtores, da qual a autora é membro produtor e accionista da mesma, reconhecida pelo Ministério de Agricultura, sob o n.º […] para o sector de frutas e produtos hortícolas.
B\ A ré recebeu 24 carregamentos de pêra rocha, entre as datas de 08/08/2019 e 10/09/2019, entregues pela autora, no total de 280.221 kg, em ordem a que a mesma fosse comercializada no mercado por intermédio da ré.
C\ A autora encontra-se, estatutariamente, obrigada a entregar a sua produção de fruta à ré, para que esta proceda à sua comercialização no mercado e ao melhor preço e de acordo com as melhores condições, não o podendo fazer sem que seja por intermédio desta.
D\ A ré remeteu à autora, em Dezembro de 2019, uma comunicação/quadro, no qual informava os preços e quantidades, por dimensão de pêra e outros critérios, pelos quais realizara a comercialização do produto, enquanto organização de produtores e sociedade comercial.
E\ A ré considerou 73.908 kg de pêras da quantidade referida em B, como refugo, por considerar que apresentavam “carepa” excessiva, “estenfiliose” e baixo calibre.
F\ A autora emitiu e enviou à ré, factura 2020/6, no valor de 91.959,24€ respeitante à pêra rocha referida em B.
G\ A pêra rocha referida em B tinha o valor de pelo menos, 54.544,15€.
H\ A ré procedeu ao pagamento à autora, a título de adiantamento, de 25.000€ com IVA incluído.
I\ Da fruta referida em E, a considerada pequena foi doada ao Banco Alimentar.
J\ Em 18/02/2020, a ré foi notificada judicialmente, a solicitação da autora, com vista à obtenção de resposta às seguintes informações: a) A justificação para que a pêra em apreço não tivesse sido objecto da operação necessária à sua divisão por calibres; b) A identificação do(a) responsável ao serviço da ré que validou tal qualificação; c) A justificação para a comercialização da pêra produzida pela autora agrupada em categorias englobando pêras de diversos calibres e em intervalos de 15 e de 10mm, em vez de intervalos de 5, bem como a integração da pêra de 60 a 65 na categoria de pêras pequenas; d) A justificação para que a pêra de maior calibre tivesse sido vendida a um preço muito mais baixo do que a pêra de calibres intermédios: e) A identificação da entidade ou entidades a quem e quando foram vendidas, quer a citada quantidade de pêra sem medição específica, quer as restantes categorias/calibres, e as respectivas condições contratuais; f) Todos os documentos, sem excepção, que suportaram todos os procedimentos descritos.
L\ Por carta datada de 27/02/2020, a autora enviou à ré a factura referida em F, solicitando o remanescente do valor não pago.
M\ De acordo com o contrato de sociedade civil sob a forma de sociedade anónima da ré esta tem por objecto o apoio à produção, à concentração e à comercialização das produções dos seus associados e o comércio por grosso de frutas e produtos hortícolas dos seus associados.
N\ Consta do regulamento interno da ré vigente à data dos factos e aprovado em Assembleia Geral de 16/03/2017 que:
Artigo 19/2 - Calibração (Mecânica ou Manual) O produto que passou no controlo de qualidade é posteriormente calibrado por diâmetro.
Artigo 24 (Calibres mínimos e refugo) 1\ Consideram-se como calibres mínimos fixados pela lei da normalização, salvo deliberação em contrário pelo Conselho de Administração (p. ex. para a uva de mês considera-se como peso mínimo do cacho 0,3 kg e comprimento mínimo do bago 17-18 mm). 2\ Será considerado refugo todo o produto que não possua as características mínimas exigidas pela categoria inferior para comercialização em fresco, segundo a lei da normalização referenciada no número anterior. 3\ Todo o produto classificado como refugo, não comercializável em fresco ou para transformação, não é objecto de pagamento aos Associados.
O\ Autora e ré não estabeleceram nenhum preço da pêra na árvore.
P\ As pêras da autora consideradas como refugo pela ré tiveram o seguinte destino: 3.235kg, com calibre 50+ para o Banco Alimentar, tendo a ré as valorado em 0,20€ o kg; 32.348kg para FPV, em que 30.636kg foram considerados “quebras” e 1.712kg consideradas com diferença de peso; 38.325kg para compostagem.
Q\ A ré entregou 105.641kg de pêras a FPV entre 26/10/2019 e 05/10/2019, que considerou 29% como “quebras”.
R\ As pêras entregues a FPV não foram calibradas antes da entrega [e] foram vendidas a 0,30€/kg.
S\ A ré aceitou que o volume de perdas indicado pela FPV era correcto.
T\ FPV não devolveu as 30t de pêra rocha que considerou como perdas, ficando-se sem saber que destino tiveram.
U\ FPV indicou à
ré
, sem referir porquê, e esta aceitou, que teria existido uma quebra de peso de 1.712 kg.
V\ A autora não foi consultada na doação da sua pêra ao Banco Alimentar.
W\ As 38t de pêra da autora que foram para compostagem não seguiram com guia de transporte ou de remessa por terem sido depositadas em propriedade contígua às instalações da ré.
X\ As 38 toneladas de pêra da autora foram entregues à R-Lda., pela ré, sem conhecimento da autora e sem emissão de quaisquer documentos contabilísticos de carácter oficial.
Y\ À data a R-Lda tem como gerentes MR, MR e PR, enquanto que a ré tem como presidente do conselho de administração MR e como vogal PR.
Z\ Pelo menos a pêra rocha da autora entregue a FPV ficou à guarda da ré durante mais de um mês, o que causou a sua degradação.
AA\ A ré nunca quantificou que problemas tinham os 73.908kg de pêra.
AB\ Se a pêra rocha da autora tinha estenfiliose, competia à ré pesar e avaliar com exactidão as quantidades afectadas.
AC\ A quinta onde a autora explora o seu pomar de pêra rocha encontra-se isolada relativamente a outros pomares, e situa-se no concelho de Alenquer.
AD\ A ré nunca recebeu instruções da autora para dispor como quisesse de qualquer quantidade da sua fruta.
AE\ Quer na colheita da fruta, quer já com a mesma nas instalações da ré, esta, nem pela sua técnica, Eng.º I, nem por outras pessoas ou meios, reportou à autora qualquer problema na pêra rocha em apreço.
AF\ A carepa é perfeitamente visível com a pêra na árvore para um técnico, assim como os danos provocados pela estenfiliose.
AG\ As boas práticas em uso no mercado estabelecem que as pêras são comercializadas em intervalos dimensionais de 5 mm.
AH\ As pêras produzidas pela autora e entregues à ré foram comercializadas em intervalos dimensionais de 15mm (50/65) em 57,7t; de 10mm (65/75) em 58,2t; e de 5mm (75/80) em 15,1t.
AI\ Foi atribuído pela ré o preço de 0,40€/kg da categoria 65/75 e de 0,25€ na categoria 75/80.
*
Da impugnação da decisão da matéria de facto
A autora pretende o aditamento de um facto aos factos provados, qual seja:
AJ\ A factura emitida pela autora referida em F corresponde ao valor dos prejuízos sofridos pela mesma autora, relativos aos factos E, I, P, Q, R, S, T, U, V, W, X, Z, AA, AB, AD, AE.
Fundamenta a sua pretensão no seguinte:
1\ A autora, no art. 135 da sua PI, refere o seguinte: […O] valor da produção de pêra entregue pela autora à ré correspondia a 91.959,24€, cf. factura 2020/06, do mesmo valor, emitida pela autora para pagamento pela ré, documento que se junta como doc.9, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e é justificativo dos números e critérios ora apresentados pela ora autora no seu pedido.
2\ E no art. 136 da PI refere: Para liquidação do referido valor, a autora considera, apenas, o preço médio por kg de 0,33€, considerando 260.543kg de pêras comercializáveis no mercado e 19.678kg de refugo, cf. mapa justificativo de preços e quantidades por dimensões, de acordo com o que se encontra regulamentado e que é o usual das boas práticas no mercado da pêra rocha, junto como doc.10.
3\ Finalmente, no art. 137 da PI esclarece: Sendo que os preços e quantidades relativas por dimensão da pêra rocha constantes do citado mapa, que se dão aqui por devidamente reproduzidas, resultam das médias respectivas que a autora contabilizou rigorosamente nos anos de 2017 e 2018, anos em que a produção obtida teve as mesmas características do ano de 2019, quer ao nível das percentagens na produção total de cada tipologia/dimensão de pêra, quer ao nível de refugo.
4\ Pelo doc. 4 junto com a contestação, verifica-se que a ré respondeu à carta contendo a factura 2020/06 e o mapa anexo de forma genérica e sem refutar fundamentadamente as quantidades e valores apresentados pela autora, de boa fé e sujeitas a eventual correcção da ré.
[…]
8\ A ré, no controlo de todos os procedimentos relativos à comercialização e armazenagem da pêra, foi transmitindo apenas parcialmente a informação sobre os negócios que conduzira supostamente em benefício da autora, não tendo propositadamente produzido prova documental que atestasse muitas das irregularidades, omissões e incumprimentos da sua função de Organização de Produtores na relação com a ré.
9\ Num processo com este contexto, em que todo o produto é controlado, em todas as suas dimensões, quantidade, dimensão, qualidade e preço, por uma das partes que, por sua vez, não emite uma nota, um memorando, um papel qualquer que seja sobre 26% de produto dado como lixo, evitando que haja qualquer memória documental sobre o que conduziu a tal descalabro, dificulta o apuramento rigoroso do prejuízo, mas não se pode beneficiar o próprio infractor por esse motivo.
10\ A ré nem um documento para efeitos fiscais emitiu sobre os 26% desperdiçado – para onde foi, com quem ficou, para que serviu, quem o transportou.
11\ A ré não calibrou a maior parte da produção de pêra que lhe foi entregue, impedindo a autora de saber exactamente quantas toneladas de cada calibre produziu, e por quanto foi vendida a pêra por calibre.
12\ A ré entregou dezenas de toneladas de pêra a uma empresa do ramo sem cuidar de saber o que entregou, ficando à espera que a própria empresa lho dissesse – com isto foram mais 30 toneladas de pêra alegadamente para lixo – mas de que não se conhece o exacto destino.
13\ Da prova gravada e documental produzida, designadamente do depoimento da testemunha F e do doc.9 junto com a PI, decorre que se mostra justo e adequado aditar o facto
referido.
A ré contrapõe a isto o seguinte:
5\ Quanto à pretendida alteração da matéria de facto, os únicos elementos convocados pela autora e a apreciar para convencer da sua tese são o doc.9 (factura), 10 (mapa justificativo) e o depoimento da testemunha F. E analisados os mesmos concluímos que bem andou o tribunal ao decidir que não tinha elementos para quantificar o prejuízo.
6\ Desde logo atente-se ao referido na sentença: "A autora não logrou provar com segurança os factos sob os pontos a, b, c, d, f, g, h, na medida em que apenas apresentou como prova depoimentos de trabalhadores seus e umas facturas de vendas anteriores, sem muito mais suporte documental, o que seria possível. Na verdade, em face dos factos em questão a prova, para suportar com segurança tais factos, teria de ter mais suporte documental e não apenas baseada quase na opinião dos seus trabalhadores, principalmente quando são dados quantificáveis e, em alguns casos, nem sequer respeitantes à própria autora."; atente-se ainda às declarações de parte do representante da ré e de uma testemunha […]
7\ Em conclusão, da análise do conjunto da prova produzida nunca se poderia concluir que o prejuízo que a autora sofreu foi o montante que facturou, pois limitou-se a socorrer-se dos montantes e valores da produção dos dois anos anteriores para tentar demonstrar que no ano de 2019 a sua produção foi exactamente igual, o que não logrou fazer e é impossível de se ter verificado; tal como resulta inequivocamente das passagens supra referidas e das declarações e testemunho supra transcrito. Incumprindo o que se lhe impunha.
8\ Mas, mais grave, para justificar as próprias falhas o único argumento que utiliza é o facto de a ré ter incumprido os seus deveres. Note-se, toda a produção da pêra, acompanhamento da mesma, colheita, e preparação para entrega foi unicamente da responsabilidade da autora. Por outro lado, podia e devia ainda a autora ter-se socorrido de dados oficiais que são públicos e que descrevem a produção da pêra rocha no ano em causa e na zona geográfica do pomar da autora, bem como nos vários anos anteriores.
9\ Por último, a matéria alegada pela autora como forma de cálculo do valor peticionado por ser conclusiva, não foi considerada, devendo os cálculos ser apurados dos factos, e que no caso em apreço era manifestamente impossível. De onde se conclui que o problema não se cinge ao que a autora quer fazer crer, mas é prévio.
Apreciação
O valor que a autora quer que seja aditado como o valor de todos os prejuízos sofridos, corresponde a três operações: primeira, à aplicação de uma taxa de 7% de refugo ao total das 280.221kg; segunda, a divisão proporcional das pêras por uma série de calibres de 5mm em 5mm e ainda dentro deles em C II, Cat II e C+; e, terceira, a aplicação de um valor por cada uma daquelas divisões e subdivisões, com o resultado final médio de 0,33€/kg.
Todas estas operações foram feitas pela testemunha que a autora indicou, com o resultado demonstrado no mapa anexo à factura referida no facto F.
Mas, como resulta daquele mapa e do que foi dito pela testemunha, os valores aplicados correspondem a preços pelos quais as pêras seriam vendidas pela ré a terceiros, preços que a testemunha foi buscar aos preços pelos quais as pêras foram vendidas no ano anterior, ou seja, 2018, por si a um terceiro, sem que haja razões para aceitar que em 2019 a ré tenha conseguido, ou devesse ter conseguido, o mesmo preço.
E as divisões proporcionais em calibres e outras subdivisões, foram feitas pela testemunha da autora alegadamente com base nos calibres e outras subdivisões pelas quais as pêras foram vendidas por ela em 2017 e 2018 a terceiros, tendo a testemunha aplicado a média das duas vendas daqueles anos. Por exemplo, na C60/65, em 2018 esse calibre ocupou 23% de toda a fruta e em 2017 ocupou 19,7%. A autora somou os 23 + 19,7 e dividiu o resultado por dois: 21,3%. Ora, também quanto a estas divisões e subdivisões, falta a demonstração de que, em 2019, a ré conseguiu, ou devia ter conseguido, vender toda a fruta com base nelas, em vez de apenas nas 3 divisões em que diz tê-lo feito; bem como que, conseguindo-o, a proporção que cada divisão e subdivisão teria seria a mesma que nos anos anteriores. Para além de que, ao contrário do que a autora sugere, as divisões e subdivisões só ocorreram em 2018 (num total de 11 preços diferentes), já que em 2017 também só ocorreram 3 preços diferentes.
Por fim, também não se vê razão para que, tendo em 2017 havido uma percentagem de refugo de 9,1% e em 2018 uma percentagem de 5%, se aplique, sem mais, a média das duas em 2019, como foi feita pela testemunha.
Assim, os elementos de prova indicados pela autora não provam o que a autora quer que seja aditado aos factos provados.
Pelo que improcede esta impugnação, sem prejuízo da consideração das razões da autora também a nível de direito, já a seguir.
*
Recurso sobre matéria de direito
A autora recorre contra a decisão de relegar para mais tarde a liquidação do valor a que tem direito, pelas razões que indicou na impugnação da decisão da matéria de facto.
O art. 609/2 do CPC dispõe que: Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado […].
Como os factos provados não permitem fixar nem o objecto nem a quantidade, a condenação ilíquida impor-se-ia sem mais.
Mas a decisão condenatória inclui a referência a ‘indemnização’.
Ora, se se fala numa indemnização tem de se invocar também a norma do art. 566/3 do CC: Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.
A aplicação desta norma depende, como se vê, do juízo que se fizer de não poder ser averiguado o valor exacto dos danos.
Pelo que a conjugação destas normas faz-se assim: se os factos dados como provados não permitem averiguar o valor exacto dos danos e não é previsível que a situação se altere se se relegar para liquidação a fixação deles, os danos terão que ser fixados equitativamente dentro dos limites que o tribunal tiver por provados (a aplicação desta norma vem amplamente discutida no ac. do STJ de 20/11/2012,
176/06.3TBMTJ.L1.S2
).
Dito de outro modo:
“A conjugação entre o art. 566/3 [do CC] e o art. 609/2 do CPC, parece revelar a natureza subsidiária da apreciação equitativa dos danos a respeito da averiguação desse valor em liquidação ulterior, pressupondo que os factos provados indiciem a possibilidade de uma quantificação certa dos prejuízos. Neste sentido, por exemplo, os acs. do STJ de 20/11/2012, e do TRL de 06/04/2017 [proc.
519/10.5TYLSB-H.L1-2
].” (Henrique Sousa Antunes, Comentário ao CC, Dtº das Obrigações, UCP, 2018, págs. 571-572).
Em suma, como se diz no ac. do STJ de 28/10/2010, proc.
272/06.7TBMTR.P1.S1
:
3\ O apelo a juízos equitativos para obter uma exacta e precisa quantificação de danos patrimoniais […] – consentido pelo art. 566/3 do CC – desempenha uma função meramente complementar e acessória, representando um instrumento para suprir possíveis insuficiências probatórias relativamente a um dano, inquestionavelmente sofrido pelo lesado, mas relativamente indeterminado quanto ao seu exacto montante - pressupondo que o «núcleo essencial» do dano está suficientemente concretizado e processualmente demonstrado e quantificado, não devendo o juízo equitativo representar um verdadeiro e arbitrário «salto no desconhecido», dado perante matéria factual de contornos manifestamente insuficientes e indeterminados.
4\ Neste caso, - ocorrendo uma essencial indefinição acerca dos montantes pecuniários […] - considera-se que não é adequado o apelo à equidade, devendo antes proferir-se condenação genérica, ao abrigo do preceituado no art. 661/2 [hoje 609/2] do CPC, por não haver elementos factuais suficientemente consistentes para quantificar a indemnização devida, sem prejuízo de se manter a condenação do réu na parte líquida do pedido.
No caso dos autos, não se vê que não seja possível, se necessário com o recurso a uma perícia (art. 360/4 do CPC), apurar quais foram os preços a que a pêra rocha foi, em geral, vendida em 2019, relativamente a que calibres e em que proporção e qual a percentagem de refugo, tudo em relação a produções com as características das da autora.
Pelo que, estando transitada em julgado a condenação da ré numa indemnização, pois que só se discute se ela deve ser ilíquida ou líquida, considera-se como correcta a consideração de que ainda será possível apurar aqueles elementos necessários à fixação da indemnização que não se revele uma simples arbitrariedade, não devendo, por isso, ser fixada já com recurso à equidade.
*
Parte já líquida da dívida
A autora diz que:
5\ A ré confessa que – pelo menos - o valor da pêra da autora era de 54.544,15€ (facto G).
6\ Nos termos do disposto no art. 609/2 do CPC “se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida”. Ora o tribunal
a quo
aplicou erroneamente esta norma, ao não condenar desde logo a ré a pagar à autora o valor descrito na conclusão 7.
7\ Tendo a ré confessado que a pêra que recebera da autora valia [pelo menos, diz a autora] 54.544,15€, mais IVA, do que já tinha pago 25.000€ mais IVA, então a sentença ré, na aplicação do art. 609/2 do CPC, tendo entendido que o valor a indemnizar a autora teria de ser apurado em liquidação de sentença, deveria ter condenado desde logo a ré a pagar à autora os 29.544,15€, mais IVA, da diferença entre o que já fora pago e o que faltava pagar. Este valor mínimo está provado e consta do facto G. E o resto do valor a indemnizar seria então apurado em execução de sentença.
A ré contrapõe a isto o seguinte:
4\ A condenação da ré conforme pretendido pela autora no pagamento imediato do montante de 29.544,15€, não se impunha ao tribunal a quo, pois tal montante corresponde à diferença não paga do valor da totalidade da pêra, no montante de 54.544,15€, e nunca aceite pela autora. Entendemos que, não se pode pretender a condenação da ré na sentença no referido montante pois não se refere à quantificação de uma parte concreta dos danos, mas à quantificação da totalidade da produção da pêra. Ao decidir como pretende a autora, pergunta-se em concreto quais os danos incluídos neste montante, e quais os danos que ainda faltará liquidar. Em concreto, quais as pêras que tinham o mencionado valor, e quais as pêras que ainda faltará valorizar.
Apreciação:
Como diz a autora, o art. 609/2 do CPC, impõe que o tribunal condene logo os devedores na parte do crédito que já seja líquida.
A autora forneceu à ré 280.221kg de pêra (facto B) e a ré reconheceu que a pêra tinha pelo menos o valor de 54.544,15€ (facto G) [que não tem o iva incluído, como resulta do teor do facto e do artigo 118 da contestação da ré]. Apesar disso, a ré só procedeu ao pagamento, a título de adiantamento, de 25.000€ com iva incluído (facto H), estando, pois, em dívida de 29.544,15€ mais iva. Aquele valor (54.544,15€) é líquido – é-o mesmo antes da acção -, já que é uma quantia certa em dinheiro, representando o mínimo denominador comum entre as posições da autora e da ré.
Não consta dos factos provados que autora se tenha recusado a receber a diferença (dos 25.000€ para os 54.544,15€), tal como que tenha recusado receber os 25.000€. Só a diferença entre os 54.544,15€ e os 91.959,24€ é que está em disputa e representa os prejuízos da autora, independentemente da construção jurídica que esta tenha feito e só esse valor é que é ilíquido.
Logo, o tribunal devia ter condenado a ré nos 29.544,15€, mais o IVA respectivo, em dívida.
A pergunta colocada pela ré tem resposta simples: a liquidação dos danos deve fazer-se entre os valores de 54.544,15€ e os 91.959,24€, ou seja, entre os limites de 0€ e 37.415,09€.
*
Juros
A autora diz que:
14\ Certamente por lapso, o tribunal
a quo
não se pronunciou sobre o pedido de pagamento de juros vencidos e vincendos a partir da data da citação e a ser suportado pela ré, violando o disposto no art. 608/2 do CPC, pelo que deverá a sentença ser alterada em ordem a pronunciar-se sobre tal pedido.
15\ O tribunal
a quo
violou o disposto no art. 609/2 do CPC, dado que os autos continham todos os elementos necessários para fixar o quantum da indemnização em que a ré devia ser condenada para compensar a autora dos prejuízos que a sua conduta culposa lhe causou.
A ré contrapõe a isto o seguinte:
10\ Quanto aos juros moratórios reclamados, a questão é simples e basta atentar no seguinte, o tribunal a quo decidiu que não tinha elementos para liquidar o valor dos danos causados. Ora, dispõe o artigo 805/3 do CC que se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor. De onde se conclui que, e uma vez que o crédito é ilíquido, e essa iliquidez não é imputável à ré, não há mora enquanto o crédito não se tornar líquido. De onde, não poderia o tribunal a quo condenar a ré no pagamento de juros de mora conforme pretendido pela autora, sob pena de flagrante violação do disposto no artigo 805/3 do CC.
Apreciação:
A autora pediu juros à taxa legal.
A ré entende que não os tem de pagar porque o valor em dívida ainda não está liquidado, sem culpa sua (art. 805/3 do CC).
Mas já se viu acima que há um crédito líquido (29.544,15€, mais o IVA respectivo), e há um crédito ilíquido (indeterminado entre 0€ e 37.415,09€).
Quanto ao crédito líquido são devidos juros desde a citação (porque esse valor já era líquido e a citação representa a interpelação para o pagamento: artigos 805/1 do CC e 610/2-b do CPC) e a ré não invoca nenhuma razão para não o ter pago antes.
Juros que são os juros comerciais legais do §5 do art. 102 do Código Comercial (artigos 102.º corpo e §3º e 2.º ambos do Código Comercial, Portaria 277/2013, de 26/08, e DL 62/2013, de 10/05) visto que esta divida emerge de uma transacção comercial.
Quanto ao crédito ilíquido só serão devidos juros a partir da data da liquidação (e não do trânsito – por exemplo, ac. do STJ de 01/06/2004, proc.
04A1526
: […] Se a obrigação é ilíquida, por não estar ainda apurado o montante da prestação, também a mora não se verifica, por não haver culpa do devedor no atraso do cumprimento. Em situação de iliquidez, os juros moratórios são devidos apenas desde a data da sentença em 1ª instância.”) e os juros são civis (porque a dívida emerge de responsabilidade civil: art. 483 do CC).
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Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, alterando-se para o seguinte: condena-se a ré a pagar à autora (i) 29.544,15€, mais o IVA respectivo, com juros de mora à taxa legal comercial (do §5 do art. 102 do CCom) vencidos desde 02/07/2020 e vincendos até integral pagamento e ainda (ii) a quantia que se vier a liquidar, com o limite máximo de 37.415,09€ referente ao valor dos prejuízos causados pela venda de parte da produção a FPV sem calibração (75.005,11 kg), por ter considerado como refugo sem qualquer discriminação das concretas quantidades e motivos (73.908 kg) e desvalorização da restante produção por não proceder à calibragem de 5mm em 5mm, nesta parte com juros de mora civis vincendos a partir da decisão que os liquidar.
Custas, na vertente de custas de parte, do recurso pela autora em 55,48% e pela ré em 44,12%
Lisboa, 10/04/2025
Pedro Martins
Higina Castelo
Paulo Fernandes da Silva
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/defde67dcde59f2380258c6e0036724f?OpenDocument
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1,759,795,200,000
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REVOGAÇÃO
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171/23.8T8AMT.P1
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171/23.8T8AMT.P1
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MANUEL DOMINGOS FERNANDES
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I – Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.
II -
Num
contrato
de prestação de serviços celebrado entre a progenitora de uma criança e a entidade titular da creche, existe culpa efetiva desta sob a forma de negligência se na sala afeta a crianças com cerca de três anos de idade existe um armário didático que não está fixo ou preso e, na decorrência da sua queda parcial, uma menor sofreu a amputação parcial da polpa da 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito), ainda que essa queda parcial esteja relacionada com o comportamento ou a movimentação da criança em causa.
III - Esse contrato tem como partes igualmente os progenitores da criança, cuja responsabilidade a creche substitui no respetivo período laboral, pelo que estes têm igualmente direito de indemnização pelos danos não patrimoniais próprios derivados das lesões sofridas pela filha.
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[
"CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS",
"CRECHE",
"INDEMNIZAÇÃO POR DANOS DECORRENTES DE LESÃO SOFRIDA POR CRIANÇA"
] |
Processo nº 171/23.8T8AMT.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Central Cível ...
Relator:
Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr.ª Maria Fernandes de Almeida
2º Adjunto Des. Dr.ª Teresa Sena Fonseca
5ª Secção
Sumário:
…………………………………………….
…………………………………………….
…………………………………………….
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
Os autores
AA e mulher BB,
por si e em representação da filha menor de ambos,
CC,
instauraram
a presente ação comum, contra as rés
“Infantário Creche–A..., IPSS” e “B...–Companhia de Seguros, S.A
.”, pedindo a sua condenação a pagarem-lhe solidariamente:
a) À 3.ª autora CC, a quantia de € 6.000 euros, a título de indemnização dos morais sofridos em consequência do sinistro, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação e até integral pagamento;
b) Aos 1.º e 2.ª autores AA e mulher BB, a quantia de € 844,83 euros, a título de indemnização pelos danos patrimoniais em consequência do sinistro, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação e até integral pagamento;
c) A cada um dos 1.º e 2.ª autores AA e mulher BB, a quantia de € 2.000 euros, a título de indemnização dos morais sofridos em consequência do sinistro, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação e até integral pagamento.
Em respaldo da sua pretensão, traçaram os autores a seguinte narrativa fáctica:
- A 3.ª autora CC, nasceu em ../../2017 e é filha do 1.º autor AA e da 2.ª autora BB.
- Em 1 de Setembro de 2020 os pais da menor ajustaram com a 1.ª ré “Infantário-Creche A...” a prestação de serviços de jardim-de-infância para a menor;
- Entre a 1.ª ré “Infantário-Creche A...” e a 2.ª ré “B...–Companhia de Seguros, S.A.” foi ajustado um acordo de seguro do ramo de Acidentes Pessoais–Seguro Escolar, titulado pela apólice n.º ...01, com início de produção de efeitos em 25/10/2006 e em vigor à data de 12/07/2021, nos termos e com as coberturas resultantes das Condições Particulares, Gerais e Especiais e as seguintes coberturas e capitais máximos: a) Invalidez permanente: € 25.000 euros; b) Despesas de tratamento: € 2.500 euros; c) Responsabilidade civil dos alunos: € 1.500 euros; d) Responsabilidade civil do estabelecimento de ensino: € 5.000 euros. A este acordo aplica-se a Condição Especial 001– Seguro Escolar, com as respetivas cláusulas e tinha como pessoa segura, a menor, CC;
- Acontece que, o dia 12 de julho de 2021, pelas 10 horas, nas instalações do “Infantário-Creche A...”, um armário tombou sobre a mão direita da menor;
- Em consequência da queda, a menor sofreu a amputação parcial da polpa da 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito), tendo sido transportada para o Hospital 1... e reencaminhada para a Urgência Pediátrica do Hospital 2..., onde foi efetuado o diagnóstico de “esfacelo do 5.º dedo da mão direita, com amputação parcial da polpa do 5.º dedo da mão direita, com pequena exposição da falange óssea, sem atingimento ósseo nem ungueal”;
- Nessa decorrência sofreram os Autora danos patrimoniais e não patrimoniais.
*
Citada a 1.ª ré “Infantário Creche–A..., IPSS”, a mesma contestou e defendeu-se, por exceção dilatória de ilegitimidade passiva, a qual, foi julgada improcedente e, por impugnação por contraversão do acidente, preconizando a improcedência da ação e formulou reconvenção dependente da procedência da ação, impetrando que, seja operada a compensação e limitar-se a obrigação de indemnização da 1.ª ré ao pagamento da quantia que exceder os valores recebidos pelos autores por parte da seguradora 2.ª ré e por parte da Segurança Social e cujos valores serão apurados em liquidação de sentença.
Mais apresentou uma diferente versão do acidente, invocando que:
- A menor encontrava-se no interior da sala correspondente à sua idade, juntamente com os demais colegas e educadora;
- A menor estava junto ao local denominado “espaço faz de conta” onde está instalado um conjunto de peças em miniatura, que simbolizam a “cozinha tradicional”, nas quais se encontra um “combinado”;
- A dada altura, a educadora detetou a existência de sangue no piso da sala que emanava da mão da menor;
- Já que a menor abrira a porta do “combinado” e, ao fechar, trilhou o dedo mínimo na ranhura da referida porta;
- A menor foi de imediato socorrida pela educadora presente na sala, sendo de seguida, conduzida ao Hospital pela 1.ª ré;
- O “combinado” foi adquirido pela 2.ª ré há mais de três anos, a entidade vendedora está devidamente certificada e é especialista em material didático e o objeto está homologado para o fim didático.
*
Citada a 2.ª ré “B...–Companhia de Seguros, S.A.” a mesma contestou, confessando parcialmente o pedido, na medida em que aceita que a 2.ª ré deve ser condenada a pagar aos autores a quantia de € 227,50 euros relativa a despesas com medicamentos e transportes, contudo, sem juros de mora, por já ter oferecido aos autores tal pagamento, antes da propositura da ação por mera impugnação.
*
Foi realizada a audiência prévia e efetuada perícia de avaliação do dano corporal sofrido pela menor.
*
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento que decorreu com observância do legal formalismo aplicável.
*
A final foi proferida decisão com a seguinte parte dispositiva:
“Em consequência do acima recenseado, julgo a ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência:
a) Condeno a 2.ª ré “B...–COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.” a pagar aos autores a soma de € 374,17 euros (trezentos e setenta e quatro euros e dezassete cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da citação e até efetivo e integral do pedido;
b) Absolvo as rés do restante pedido;
Fica prejudicada a apreciação da reconvenção formulada pela 1.a ré, nos termos do art.º 266 n.º 6 do CPC, por a mesma ser dependente da procedência
da ação, absolvendo-se os autores/reconvindos da instância reconvencional.
*
Não se conformando com o assim decidido vieram os Autores interpor o presente recurso, rematando com as seguintes conclusões:
(…)
*
Devidamente notificada contra-alegou a Ré B... concluindo pelo não provimento do recurso.
*
Corridos os vistos legais cumpre decidir.
*
II- FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cf. artigos 635.º, nº 3, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.Civil.
*
No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- decidir em conformidade face à pretendida alteração factual, ou sendo julgada improcedente a pretendida alteração, saber se o tribunal fez ou não uma correta subsunção jurídica dos factos que nos autos se mostraram assentes.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que o tribunal recorrido deu como provada:
Provenientes do Saneador
A- 3.ª autora CC, nasceu em ../../2017 e é filha do 1.º autor AA e da 2.ª autora BB.
B- Em 1 de Setembro de 2020 os pais da menor ajustaram com a 1.ª ré “Infantário-Creche A...” a prestação de serviços de jardim-de-infância para a menor.
C- Entre a 1.ª ré “Infantário-Creche A...” e a 2.ª ré “B... – Companhia de Seguros, S.A.” foi ajustado um acordo de seguro do ramo de Acidentes Pessoais – Seguro Escolar, titulado pela apólice n.º ...01, com início de produção de efeitos em 25/10/2006 e em vigor à data de 12/07/2021, nos termos e com as coberturas resultantes das Condições Particulares, Gerais e Especiais e as seguintes coberturas e capitais máximos: a) Invalidez permanente: € 25.000 euros; b) Despesas de tratamento: € 2.500 euros; c) Responsabilidade civil dos alunos: € 1.500 euros; d) Responsabilidade civil ensino: € 5.000 euros. A este acordo aplica-se a Condição Especial 001 – Seguro Escolar, com as respetivas cláusulas e tinha como pessoa segura, a menor, CC.
No que respeita a invalidez permanente, aplica-se a Tabela de Desvalorização por Invalidez Permanente anexa às Condições Gerais da apólice–cf. Cláusula 23ª, n.º 1, das Condições Gerais da apólice.
Para que seja atribuída alguma incapacidade será necessário que a pessoa segura apresente alguma lesão com enquadramento na Tabela de Desvalorização, sendo, depois, determinada a percentagem de desvalorização da pessoa segura com base nessa tabela, sendo nesta cobertura, o capital máximo de € 25.000 euros aplicado aos casos de incapacidades de 100%, nos restantes casos, a indemnização será calculada com base na percentagem de incapacidade sobre o valor máximo do capital.
No que respeita à cobertura de “Despesas de tratamento” – compreendendo-se nestas as “relativas a honorários médicos e internamento hospitalar, incluindo assistência medicamentosa e de enfermagem, que forem necessários em consequência do acidente” e, ainda, no caso de ser necessário tratamento clínico regular e durante o período de duração do mesmo, “as despesas de deslocação da pessoa segura ao médico, hospital, clínica ou posto de enfermagem, desde que o meio de transporte utilizado seja adequado à gravidade lesão”–responde a 2.ª ré. até ao capital máximo contratado de 2.500,00€. (– Cláusula 26ª, n.ºs 1 e 3).
A cobertura de “Responsabilidade Civil do Estabelecimento de Ensino” garante a responsabilidade civil do tomador do seguro, 1.ª ré, “relativamente à reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais causados a terceiros, em consequência de acidentes que ocorram nas instalações do estabelecimento de ensino, até ao quantitativo máximo global indicado nas Condições Particulares da apólice”, no caso 5.000,00€. (Condição Especial 001, Cláusula 2ª, n.º 3) e nos termos do disposto na Condição Especial 001, Cláusula 3ª, n.º 3, al. b), para efeito da cobertura de responsabilidade civil referida no artigo anterior, não são considerados terceiros entre si as pessoas com qualquer vínculo ao tomador do seguro, nomeadamente os alunos.
Provenientes da audiência de julgamento
1- No dia 12 de julho de 2021, pelas 10 horas, nas instalações do “Infantário-Creche A...”, um armário (frigorífico de brincar) tombou parcialmente, ficando apoiado nas portas;
2- A menor sofreu a amputação parcial da polpa da 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito);
3- O armário não estava fixado à parede;
4- A menor foi transportada para o Hospital 1... e reencaminhada para a Urgência Pediátrica do Hospital 2...;
5- Onde foi efetuado o diagnóstico de “esfacelo do 5.º dedo da mão direita, com amputação parcial da polpa do 5.º dedo da mão direita, com pequena exposição da falange óssea, sem atingimento ósseo nem ungueal”;
6- Após limpeza e desinfeção foi realizada cirurgia segundo a técnica de Atasoy, com regularização dos bordos e plastia de encerramento com retalho em V-Y e anestesia troncular;
7- Após o que teve alta com prescrição de Benuron 40;
8- A menor ficou impedida de frequentar o infantário desde 12 de julho de 2021 até 31 de julho de 2021;
9- Tendo a 2.ª autora de recorrer a baixa-médica para assistência à família nesse período;
10- A menor frequentou as consultas na especialidade de cirurgia pediátrica no Centro Hospitalar do Porto, nos dias 14/07/2021; 19/07/2021; 21/07/2021; 23/07/2021; 28/07/2021 e 21/09/2021;
11- Percorrendo os pais, 756 km em viatura própria;
12- A menor, na última consulta de revisão, em 21/09/2021 recebeu alta clínica, tendo as lesões sido dadas como consolidadas, com a polpa da 5.ª falange distal da mão direita, alvo da cirurgia, bem cicatrizada, com bom volume de polpa e, leito ungueal uniforme;
13- A menor sentiu dores e mal-estar generalizado;
14- Tendo ficado com a mão direita totalmente imobilizada durante 2 semanas e 3 dias;
15- Sofrendo ansiedade, angústia, inquietação e tristeza, por não conseguir pegar em objetos, escrever ou desenhar;
16- Ficou com ligeira cicatriz polpar e atrofia na almofada da polpa digita, classificável de 2 em 7 (relatório do IML);
17- De quantum doloris de grau 4 em 7 (relatório do IML);
18- A 2.ª autora é contabilista certificada, auferindo o vencimento mensal de € 800 euros;
19- Entre 14 e 31 de julho de 2021, aquando da prestação de assistência à filha menor, deixou de auferir € 124,79 euros;
20- Os pais despenderam € 400 euros no relatório de avaliação médica;
21- Nas deslocações ao Centro Hospitalar, em portagens e estacionamento os pais despenderam € 320,04 euros;
22- Os pais sentiram pânico e temeram pela vida e integridade física da menor;
23- Sofrendo abalo com a perspetiva da filha ficar a sofrer de uma deformidade física e vir a sofrer baixa autoestima e diminuída auto-percepção;
24- Os pais sofreram nervosismo, mágoa, angústia, insónias e falta de apetite;
25- A menor encontrava-se no interior da sala correspondente à sua idade, juntamente com os demais colegas e educadora;
26- A menor estava junto ao local denominado “espaço faz de conta” onde está instalado um conjunto de peças em miniatura, que simbolizam a “cozinha tradicional”, nas quais se encontra um “combinado”;
27- A dada altura, a educadora detetou a existência de sangue no piso da sala que emanava da mão da menor;
28- A menor trilhou o dedo mínimo numa porta do armário;
29- A menor foi de imediato socorrida pela educadora presente na sala, sendo de seguida, conduzida ao Hospital pela 1.ª ré;
30- O “combinado” foi adquirido pela 2.ª ré há mais de três anos, a entidade vendedora está devidamente certificada e é especialista em material didático e o objeto está homologado para o fim didático;
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Factos Não Provados
Tema 1, parte “Que o armário/frigorífico de brincar tombasse sobre a mão direita da menor, ficando provado apenas que o armário tombou parcialmente, ficando apoiado nas portas abertas;
Tema 2 parte, isto é, que a amputação fosse consequência da queda;
Tema 4 parte segmento “em consequência da queda”;
Tema 8 parte segmento “em consequência da queda”;
Tema 13 parte segmento “em consequência da queda”;
Temas 16 e 18 (o relatório do IML não o sufraga, na medida em que afirma que não há lesões nem sequelas permanentes);
Tema 24 parte, segmento “em consequência da queda”;
Tema 30 Provado apenas que a menor trilhou o dedo mínimo na ranhura da porta do armário.
*
III. O DIREITO
Como supra se referiu, a primeira questão que no recurso vem colocada prende-se com:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respetivas conclusões o Réu/apelante abrange, com o recurso interposto, a impugnação da decisão da matéria de facto, não concordando com a resenha de algum dos factos dados como provados e não provados, sendo que, observa, de forma satisfatória, os ónus que sobre si recaem, pelo que deve ser conhecida a impugnação da decisão da matéria de facto nos moldes alegados.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.
Efetivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância.
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
“
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado
”.
[1]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetividade, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.
[2]
Impõe-se-lhe, assim, que “
analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada
”.
[3]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão ao Ré recorrente, neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele pretendidos.
Os pontos 1-, 2-, 4-, 8-, 13-, 24- e 28-dos factos provados tem a seguinte redação:
1.No dia 12 de julho de 2021, pelas 10 horas, nas instalações do “Infantário-Creche A...”, um armário (frigorífico de brincar) tombou parcialmente, ficando apoiado nas portas;
2- A menor sofreu a amputação parcial da polpa da 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito);
4- A menor foi transportada para o Hospital 1... e reencaminhada para a Urgência Pediátrica do Hospital 2...;
8- A menor ficou impedida de frequentar o infantário desde 12 de julho de 2021 até 31 de julho de 2021;
13- A menor sentiu dores e mal-estar generalizado;
24- Os pais sofreram nervosismo, mágoa, angústia, insónias e falta de apetite;
28. A menor trilhou o dedo mínimo numa porta do armário;”
*
Os Temas 1, 4, 8, 13, 24, 28 e 30, constantes dos factos não provados tem a seguinte redação:
“Tema 1, parte: Que o armário/frigorífico de brincar tombasse sobre a mão direita da menor,
ficando provado apenas que o armário tombou parcialmente, ficando apoiado nas portas
abertas;
Tema 2 parte, isto é, que a amputação fosse consequência da queda;
Tema 4 parte segmento “em consequência da queda”;
Tema 8 parte segmento “em consequência da queda”;
Tema 13 parte segmento “em consequência da queda”;
(…)
Tema 24 parte, segmento “em consequência da queda”;
Tema 30 Provado apenas que a menor trilhou o dedo mínimo na ranhura da porta do armário.”
*
Pretendem os apelantes que os citados pontos passem, respetivamente, a ter a seguinte redação:
1- No dia 12 de julho de 2021, pelas 10 horas, nas instalações do “Infantário-Creche A...”, um armário (frigorífico de brincar) tombou, tendo a menor CC sofrido ferimentos provocados pelo armário e associados a tal tombo;
2- Em consequência do acidente sofrido com o armário, a menor sofreu a amputação parcial da polpa da 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito);
4- Em consequência do acidente sofrido com o armário, a menor foi transportada para o Hospital 1... e reencaminhada para a Urgência Pediátrica do Hospital 2...;
8- Em consequência do acidente sofrido com o armário, a menor ficou impedida de frequentar o infantário desde 12 de julho de 2021 até 31 de julho de 2021;
13- Em consequência do acidente sofrido com o armário, a menor sentiu dores e mal-estar generalizado;
24- Em consequência do acidente sofrido pela menor com o armário, os pais sofreram nervosismo, mágoa, angústia, insónias e falta de apetite;
28. A menor decepou a polpa do dedo mínimo em decorrência do acidente sofrido com o armário que tombou.
*
Pretendem ainda os apelantes que seja aditado aos factos provados o seguinte:
“A Educadora estava sozinha na sala com um grupo de treze crianças, não estando presente qualquer auxiliar de educação”.
*
Para o efeito convocam as suas declarações, as declarações de parte do representante legal da 1ª Ré e os depoimentos das testemunhas DD, EE e FF.
Analisando.
Relativamente ao aditamento do facto supra, alegam os apelantes que se trata de um facto essencial para se aquilatar do cumprimento do dever de vigilância, bem como da ilegalidade da atuação da Primeira Ré, sendo que,
tal facto terá resultado do depoimento da testemunha DD
.
Acontece que, os factos essenciais têm de ser alegados/articulados pela parte (cf. artigo 5.º, nº 1 do CP Civil), apenas sendo lícito ao juiz considerar outros, não alegados, se forem complementares instrumentais, notórios ou que sejam do seu conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Nestes termos, não pode este tribunal aditar o facto à fundamentação factual ainda que tal facto tenta resultado da instrução da causa.
*
Da leitura das alegações recursivas e respetivas conclusões e no que tange à impugnação da matéria de facto o nó górdio reside em se apurar o que esteve na origem das lesões sofridas pela Autora CC na 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito) que, como vem provado
,
sofreu a amputação parcial da sua polpa.
Como emerge da decisão recorrida o tribunal
a quo
deu como provado que a menor trilhou o dedo mínimo numa porta do armário (cf. ponto 28- dos factos provados).
Mas, salvo o devido respeito, não se pode sufragar tal entendimento.
Na verdade, a única testemunha-DD-que estava na sala quando o armário (combinado) tombou não soube explicar como terá ocorrido a lesão sofrida pela menor CC.
Efetivamente, ouvido o seu depoimento o que dele se retira
são meras suposições
do que terá acontecido, sendo que, no seu entender a lesão terá ocorrido na dobradiça da porta.
Ora, não tendo sido feita prova direta da circunstância em que ocorreu a lesão, como o tribunal, baseado apenas nas regras da experiência, pôde concluir que a menor trilhou o dedo mínimo numa porta do armário/combinado?
Em primeiro lugar analisando as fotografias juntas com a petição inicial que retratam a lesões sofridas pela menor na 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito), elas não são compatíveis com qualquer trilhamento.
Na verdade, o trilhamento, em princípio, causa esmagamento sem ferida aberta, ora o que se vê na imagem é que houve laceração e perda de tecido e, portanto, a lesão dificilmente pode ter sido provocada por trilhamento.
O que se verifica é a perda da unha e exposição da polpa, sendo que, a ausência clara de estrutura ungueal e tecido irregular, com possível perda tecidual,
sugere amputação parcial
.
Aliás, diga-se, que não se divisa como, dada a configuração do móvel em causa
[4]
, podia ter ocorrido o trilhamento do dedo antes do armário/combinado ter tombado, como parece sugerir o tribunal recorrido na sua motivação da decisão da matéria de facto, além de que só um trilhamento extremo podia causar a referida lesão.
Diante do exposto a única conclusão segura, para além de toda a dúvida razoável, que se pode retirar de toda a prova produzida sob este conspecto, é que o armário/combinado tombou e que, nessa decorrência, a menor apresentava as lesões supra descritas na 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito).
*
Desta forma, altera-se a redação dos pontos impugnados pela seguinte forma:
1- No dia 12 de julho de 2021, pelas 10 horas, nas instalações do “Infantário-Creche A...”, um armário (frigorífico de brincar) tombou parcialmente
,
ficando apoiado nas portas;
2- Na decorrência do referido tombo a menor sofreu a amputação parcial da polpa da 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito);
4- Em consequência dessa amputação a menor foi transportada para o Hospital 1... e reencaminhada para a Urgência Pediátrica do Hospital 2...;
8- Em consequência dessa amputação, a menor ficou impedida de frequentar o infantário desde 12 de julho de 2021 até 31 de julho de 2021;
13- Em consequência dessa amputação, a menor sentiu dores e mal-estar generalizado;
24- Em consequência dessa amputação os pais sofreram nervosismo, mágoa, angústia, insónias e falta de apetite.
*
E, face à redação do ponto 2. elimina-se dos factos provados o ponto 28-.
*
Alterada pela forma descrita a fundamentação factual a segunda questão que importa dilucidar é:
b)- saber se a subsunção jurídica operada pelo tribunal recorrido deve ser mantida ou alterada.
Como se evidencia da decisão recorrida aí exclui a existência de responsabilidade da 1ª na produção dos danos sofridos pelos Autores.
Será assim?
Analisando.
A relação que se estabeleceu entre os Autores AA e BB e a primeira Ré é uma relação contratual, a confiança da autora CC aos cuidados da ré no âmbito do funcionamento da respetiva creche tem na sua origem um negócio jurídico oneroso, nos termos do qual a ré se obrigou a determinadas prestações em benefício da autora referida CC e dos respetivos progenitores (substituindo-os no exercícios das responsabilidades parentais durante o período laboral destes) relacionadas com a exploração da creche e o desenvolvimento das atividades próprias de uma estrutura e organização com essa valência, mediante o pagamento por parte dos pais de uma determinada contrapartida monetária (cf. ponto dos factos provados e doc. nº 2 junto com a petição inicial).
Literalmente o referido contrato vincula a primeira Ré aos seguintes deveres de prestação:
*
É verdade que nele não está aqui incluído qualquer dever de vigilância sobre a criança de modo a zelar pela respetiva saúde e integridade física e evitar lesões de qualquer natureza.
Todavia, parece evidente que não apenas a Ré está vinculada a esses deveres, como os mesmos são absolutamente essenciais num contrato desta natureza.
Não é com efeito imaginável ou concebível sequer que os pais possam entregar uma criança de três anos numa creche sem esta assumir o dever, que qualificamos mesmo como dever primário por excelência equivalente, aliás, ao dever que os próprios pais tinham para com a criança caso continuassem a tê-la sob a sua guarda em vez de a entregar na creche, de cuidar da criança, assegurar a segurança desta, evitar que esta sofra lesões seja de que natureza for e/ou tratá-la em caso de doença.
Aliás, o desenvolvimento integral de uma criança de três anos não pode em circunstância alguma prescindir desse dever de vigilância, atenção e ensino sobre os perigos e os modos de os evitar.
Deveres que, aliás, resultam da Portaria n.º 262/2011, de 31 de Agosto, que estabelece as normas reguladoras das condições de instalação e funcionamento das creches e que no seu artigo 3.º dispõe:
“a creche é um equipamento de natureza socioeducativa, vocacionado para o apoio à família e à criança, destinado a acolher crianças até aos 3 anos de idade, durante o período correspondente ao impedimento dos pais ou de quem exerça as responsabilidades parentais
”, assinalando, portanto, que se trata de uma instituição que visa substituir os pais no pleno exercício das responsabilidades destes.
Por sua vez no artigo 4.º do mesmo diploma estabelecem-se como objetivos da creche, designadamente, os seguintes:
“(…) colaborar com a família numa partilha de cuidados e responsabilidades em todo o processo evolutivo da criança; assegurar um atendimento individual e personalizado em função das necessidades específicas de cada criança; prevenir e despistar precocemente qualquer … situação de risco; proporcionar condições para o desenvolvimento integral da criança, num ambiente de segurança física e afetiva (…)”.
E no artigo 5.º, quanto às atividades e serviços a prestar pela creche, o mesmo diploma prevê, entre outras coisas, os cuidados adequados à satisfação das necessidades da criança, entre os quais se contarão evidentemente as necessidades de segurança.
Devemos, assim, concluir que ao celebrar com os pais da Autora CC o contrato de prestação de serviços ao abrigo da qual passou a acolher na sua creche a criança, a primeira Ré vinculou-se, perante aqueles, a zelar pela saúde e integridade física da criança, ou seja, a possuir instalações e equipamentos compatíveis com a idade das crianças, a sua falta de destreza, a sua curiosidade e ingenuidade naturais e a sua falta de perceção do perigo, de modo a eliminar a possibilidade de os movimentos e comportamentos comuns da criança a colocarem em situações de risco e lhes provocarem lesões da integridade física.
Tratando-se de uma responsabilidade contratual, presume-se a culpa do devedor (artigo 799.º do Código Civil), razão pela qual, para afastar a respetiva culpa na produção das lesões sofridas pela criança, a ré devia ter demonstrado que no caso tinha adotado todos os cuidados e desenvolvido todas as ações destinados a evitar os riscos previsíveis para a criança e que o acidente apenas se deu por razões de força maior ou incontroláveis.
Ora, não apenas não se fez essa prova, como se demonstrou a culpa efetiva da ré, sob a forma de negligência.
Com efeito, está provado que as lesões sofridas pela menor CC ocorreram porque quando ela estava na creche ocorreu a queda de um armário (frigorífico de brincar
)
na decorrência da qual a menor sofreu a amputação parcial da polpa da 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito), armário esse não estava fixo à parede (cf. ponto 3- dos factos provados).
Ora, à luz de um dever de cuidado que tenha especialmente em conta que a criança tinha três anos de idade e o estado de desenvolvimento próprio dessa idade, afigura-se-nos absolutamente exigível que, na sala onde as crianças estão na creche, não existam móveis ou equipamentos soltos com peso suscetível de causar lesões físicas e que possam cair e atingir alguém que se encontre no local.
E isso, deve ser assim, mesmo que a queda resulte de um contacto da própria criança, uma vez que esta não tem ainda consciência do perigo nem condições para se autodeterminar em função dele, pelo que quem dirige, orienta e determina a ocupação e gestão do espaço tem de prevenir comportamentos incautos da criança e adotar as medidas para obviar às respetivas consequências.
Nessa medida, entendemos que a ré incorreu em incumprimento ou cumprimento defeituoso dos deveres de prestação a que está vinculado pelo contrato de prestação de serviços e, consequentemente, demonstrada a respetiva culpa e o nexo de causalidade com os danos sofridos pelos Autores, está obrigada a indemnizar tais danos (artigo 798.º do Código Civil).
[5]
E contra isso não se argumento que
O “combinado” foi adquirido pela 1.ª ré há mais de três anos, a entidade vendedora está devidamente certificada e é especialista em material didático e o objeto está homologado para o fim didático”
(cf. ponto 30- dos factos provados).
É que uma coisa é o objeto em causa estar homologado para o fim didático e ter sido adquirido a empresa certificada, outra coisa é ele não estar fixado para impedir que tombe, como aqui sucedeu.
*
Analisemos agora os montantes indemnizatórios.
Da responsabilidade da segunda Ré.
Na sentença recorrida foi a referida Ré condenada a pagar aos Autores a quantia de € 374,17 euros (trezentos e setenta e quatro euros e dezassete cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da citação e até efetivo e integral do pedido.
Relativamente a tal condenação nada temos a censurar à decisão recorrida.
Com efeito, a referida Ré à luz da alínea C) e do seguro de acidentes pessoais, só é contratualmente responsável pelos danos verificados relativos a despesas de tratamento (sendo elas, assistência médica, medicamentosa e despesas de deslocação para os tratamentos) até ao capital seguro de € 2.500 euros tomando em consideração que, não existe qualquer invalidez permanente.
Efetivamente, a responsabilidade civil da 1ª Ré não se encontra, no caso dos autos, garantida pelo contrato de seguro celebrado entre as Rés, razão pela qual não fazem, assim, qualquer sentido as conclusões dos Autores, na parte em que vêm pugnar pela condenação da referida Ré no pagamento de uma quantia superior à suprarreferida, nomeadamente no pagamento da quantia de 10.844,83€.
*
Da responsabilidade da primeira Ré.
Danos sofridos pela Autora CC
.
A titulo de danos não patrimoniais reclama esta Autora a quantia de € 6.000,00 (seis mil euros).
Como é consabido, para a cabal compreensão da problemática da ressarcibilidade deste tipo de danos há a considerar que, como deflui do art.º 70º do Cód. Civil, na personalidade humana há uma organização somático-psíquica, cuja tutela encontra tradução na ideia de personalidade física ou moral.
Essa organização como refere Capelo de Sousa
[6]
“(...) é composta não só por bens ou elementos constitutivos (v.g. a vida, o corpo e o espírito), mas também por funções (v.g. a função circulatória e a inteligência), por estados (p. ex., a saúde, o prazer e a tranquilidade) e por forças, potencialidades e capacidades (os instintos, os sentimentos, a inteligência, o nível de educação, a vontade, a fé, a força de trabalho, a capacidade criadora, o poder de iniciativa, etc.)”.
E mais adiante
[7]
, afirma o referido autor “
dado que a personalidade humana do lesado não integra propriamente o seu património, acontece que da violação da sua personalidade emergem direta e principalmente danos não patrimoniais ou morais, prejuízos de interesses de ordem biológica, espiritual ou moral, não patrimonial que, sendo insuscetíveis de avaliação pecuniária, apenas podem ser compensados que não exatamente indemnizados, com a obrigação pecuniária imposta ao agente
.”
Como a este propósito postula o nº 1 do art.º 496.ºdo Código Civil “
[N]a fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito
”, estipulando o seu nº 3 que “
[O] montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em conta, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º”.
O legislador fixou, assim, como critérios de determinação do
quantum indemnizatur
por danos não patrimoniais: a equidade (artigo 496.º, nº 3); o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado, e as demais circunstâncias do caso (art.º 494.º
ex vi
da primeira parte do nº 3 do art.º 496.º).
A respeito deste tipo de responsabilidade a doutrina vem sublinhando
[8]
que a mesma assume uma dupla função: compensatória e punitiva.
Compensatória porquanto o
quantum
atribuído a título de danos não patrimoniais consubstancia uma compensação, uma satisfação do lesado, porque se atende à extensão e gravidade dos danos (art.º 496.º, nº 1).
A função punitiva advém da circunstância da lei enunciar que a determinação do montante da indemnização deve ser fixada equitativamente, atendendo ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso.
O art.º 496.º, nº 1 do Código Civil confia, deste modo, ao julgador a tarefa de determinar o que é equitativo e justo em cada caso, não em função da adição de custos ou despesas, mas no intuito de arbitrar à vítima a importância dos valores de natureza não patrimonial em que ela se viu afetada. Daí que os danos não patrimoniais não possam sujeitar-se a uma medição, mas sim a uma valoração.
A gravidade do dano dever aferir-se por um padrão objetivo e não por um padrão subjetivo derivado de uma sensibilidade requintada ou embotada. Na fixação do montante da compensação deve também atender-se aos padrões adotados pela jurisprudência, à flutuação do valor da moeda, à gravidade do dano tendo em conta as lesões, as suas sequelas e o sofrimento físico-psíquico experimentado pela vítima bem como outras circunstâncias do caso que se mostrem pertinentes.
Isto dito, importa agora ponderar o quadro factual que nos autos se mostra assente a este respeito.
Está provado que:
- No dia 12 de julho de 2021, pelas 10 horas, nas instalações do “Infantário-Creche A...”, um armário (frigorífico de brincar) tombou;
- Na decorrência do referido tombo a menor sofreu a amputação parcial da polpa da 5.ª falangeta da mão direita (dedo mindinho direito);
- Em consequência dessa amputação a menor foi transportada para o Hospital 1... e reencaminhada para a Urgência Pediátrica do Hospital 2...;
- Em consequência dessa amputação, a menor ficou impedida de frequentar o infantário desde 12 de julho de 2021 até 31 de julho de 2021;
- A menor frequentou as consultas na especialidade de cirurgia pediátrica no Centro Hospitalar do Porto, nos dias 14/07/2021; 19/07/2021; 21/07/2021; 23/07/2021; 28/07/2021 e 21/09/2021;
- A menor, na última consulta de revisão, em 21/09/2021 recebeu alta clínica, tendo as lesões sido dadas como consolidadas, com a polpa da 5.ª falange distal da mão direita, alvo da cirurgia, bem cicatrizada, com bom volume de polpa e, leito ungueal uniforme;
- Tendo ficado com a mão direita totalmente imobilizada durante 2 semanas e 3 dias;
- Em consequência dessa amputação, a menor sentiu dores e mal-estar generalizado;
- Sofrendo ansiedade, angústia, inquietação e tristeza, por não conseguir pegar em objetos, escrever ou desenhar:
- Ainda hoje se queixa de dores na polpa do 5.º dedo da mão direita;
- Ficou com ligeira cicatriz polpar e atrofia na almofada da polpa digita, classificável de 3 em 7;
- Ficou a padecer de dores ligeiras ao utilizar o dedo na preensão;
- De quantum doloris de 3 a 4 em 7”.
*
Ponderando os referidos danos, a idade da menor (três anos), onde a dor se revele mais intensa que num adulto, afigura-se equitativo,
adequado e justo o valor peticionado, mas fixado por referência o momento atual
.
*
Danos sofridos pelos progenitores da menor.
A nível de
danos patrimoniais
para além dos que incumbe à 2ª Ré ressarcir e que acima se aludiu vem provado que:
“- Entre 14 e 31 de julho de 2021, aquando da prestação de assistência à filha menor, deixou de auferir € 124,79 euros;
- Os pais despenderam € 400 euros no relatório de avaliação médica
”.
*
Danos não patrimoniais
A este nível pedem os apelantes a quantia de € 4.000,00, ou seja, a quantia de € 2.000, 00, para cada um deles.
A questão que agora se coloca é a de saber se os pais da menor CC, também Autores, são titulares de qualquer direito a este nível sobre a demandada, porquanto não se trata de um direito próprio,
mas sim meramente reflexo
, uma vez que tem a sua origem na violação do direito de uma outra pessoa que é o verdadeiro lesado, a menor CC.
[9]
O AUJ nº 6/2014, de 09/01
[10]
, relativo aos danos não patrimoniais sofridos pelo cônjuge de vítima sobrevivente, veio uniformizar jurisprudência nos seguintes termos:
“Os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave.”.
Sucede, contudo, que no caso, a responsabilidade da ré não advém do instituto da responsabilidade civil, mas sim do incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços ao abrigo do qual a ré acolhia e cuidava da autora CC na sua creche.
Ora no domínio das relações negociais vigora entre nós o regime da relatividade (artigo 406.º, nº 2, do Código Civil), por oposição aos direitos absolutos ou subjetivos que já são dotados de eficácia
erga omnes.
A natureza relativa das obrigações prende-se com o seu aspeto estrutural e significa que os contratos apenas produzem efeitos entre as partes, que apenas o credor tem o direito de exigir do devedor o cumprimento da obrigação e que o devedor só está vinculado a esse cumprimento perante o credo–“
res inter alios acta nec nocet nec prodest
”–.
A consequência lógica da relatividade da obrigação é a de que o devedor só responde pelas consequências do não cumprimento ou do cumprimento defeituoso da prestação causadas ao credor e só este lhe pode exigir a reparação das consequências danosas.
Por força disso temos de perguntar quem são afinal as partes no contrato de prestação de serviços em causa, se é apenas a criança, embora o contrato tenha sido celebrado pela sua mãe em sua representação, ou é afinal de contas a família da criança.
A nosso ver a resposta vai para a última das alternativas.
Embora seja a criança a beneficiária direta da prestação de serviços porque é ela que vai frequentar a creche e usufruir dos respetivos serviços e cuidados, este contrato tem por objeto a substituição do exercício das responsabilidades parentais no período em que os pais são obrigados a desenvolver a sua atividade profissional e não podem ocupar-se direta e pessoalmente da educação, alimentação, desenvolvimento e cuidados de que a criança necessita e que é obrigação sua proporcionar-lhe.
As creches são assim uma resposta social de apoio às famílias com crianças e o contrato celebrado para o aproveitamento dessa valência social visa o estabelecimento de um modo de colaboração com a família através da partilha com esta dos cuidados e responsabilidades do processo evolutivo da criança. Conforme já antes se escreveu o artigo 3.º da Portaria n.º 262/2011, de 31 de agosto, assinala que
“a creche é um equipamento de natureza socioeducativa, vocacionado para o apoio à família e à criança, destinado a acolher crianças até aos 3 anos de idade, durante o período correspondente ao impedimento dos pais ou de quem exerça as responsabilidades parentais”
.
Concluímos, pois, que os pais da autora CC são igualmente partes no contrato, ainda que este formalmente tenha sido subscrito apenas pela progenitora.
Logo, os pais podem exigir igualmente uma indemnização pelos danos que o incumprimento do contrato pela 1ª Ré lhes causou, não obstante esses danos tenham na origem falhas nos cuidados que eram devidos diretamente à autora sua filha.
*
Isto dito, vem provada, sob este conspecto, a seguinte factualidade:
“- Os pais sentiram pânico e temeram pela vida e integridade física da menor;
- Sofrendo abalo com a perspetiva da filha ficar a sofrer de uma deformidade física e vir a sofrer baixa autoestima e diminuída auto-percepção;
Como assim, atendendo a todas as circunstâncias do caso que não relevam uma gravidade e repercussão temporal significativas, nem se revestiram de incerteza que pudesse prologar a angústia, e sendo certo que do outro lado temos uma instituição com a natureza IPSS que oferece uma resposta social relevante carecida de financiamento público, afigura-se-nos que o valor de 4.000€ de indemnização a favor do conjunto dos pais é excessivo e que se justifica no máximo o valor de 3.000,00 (€ 1.500,00), fixado por referência ao momento atual.
*
Procedem, assim, em parte, as conclusões
1ª a 19ª
formuladas pelos apelantes e, com elas, respetivo recurso.
*
Na sua contestação a 1ª Ré requereu que fosse operada a compensação e, consequentemente, limitar-se a sua responsabilidade e obrigação ao pagamento da quantia que exceder o valor do contrato de seguro que celebrou com a 2ª Ré deduzidos que forem todos os montantes entretanto recebidos pelos Autores no âmbito do referido contrato de seguro, e da Segurança Social, cujos valores deverão ser apurados em liquidação.
Acontece que, não há que proceder a qualquer compensação tendo em conta os valores peticionados pelos Autores que em nada contendem com quaisquer outros que eventualmente a Segurança Social lhe tenha pago, sendo que, a 2ª Ré ainda nada pagou aos Autores no âmbito do contrato de seguro nem os valores que a recorrente terá de pagar aos mesmos se encontram cobertos pelo referido contrato.
*
IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, consequentemente, revogando a decisão recorrida condenam a 1ª Ré;
a)- a pagar aos Autores AA e mulher BB a quantia de € 524,79 (quinhentos e vinte e quatro euros e setenta e nove cêntimos) a titulo de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora vincendos, contabilizados à taxa legal, desde a data da citação até integral e efetivo pagamento;
b)- a pagar aos mesmos Autores a quantia de € 3.000,00 (três mil euros) (mil e quinhentos para cada um deles) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora contados desde a data do presente acórdão até integral pagamento;
c)- a pagar à Autora CC a quantia de € 6.000,00 (seis mil euros), a título de danos não patrimoniais acrescida de juros de mora contados desde a data do presente acórdão até integral pagamento.
*
No mais mantém-se a decisão recorrida.
*
Custas da apelação por apelantes e apelados na proporção do decaimento (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
*
Porto, 10 de junho de 2025.
Des. Dr. Manuel Fernandes
Des. Dr.ª Maria Fernandes de Almeida
Des. Dr.ª Teresa Sena Fonseca
____________________________________
[1]
Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, p. 348.
[2]
Cr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1. S1, disponível em www.dgsi.pt.
[3]
Cf. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4]
Cf. fotografias juntas em audiência de julgamento.
[5]
Cf. neste sentido Ac. desta Relação de 14/07/2021-Processo nº 454/19.1T8OBR.P1, consultável em www. dgsi.pt, e que aqui seguimos de perto.
[6]
In O Direito geral da personalidade
, Coimbra Editora, 1995, pág. 200.
[7]
Ob. citada, pág. 458.
[8]
Cf., sobre a questão e por todos, Paula Meira Lourenço
in A função punitiva da responsabilidade civil
, Coimbra Editora, 2006, págs. 283 e seguintes.
[9]
A responsabilidade por este tipo de danos, quando a sua gravidade o justifique, também ocorre no âmbito do ilícito contratual, como vem sendo decidido, tanto quanto se sabe, de forma unânime pelos tribunais superiores.
[10]
Publicado no Diário da República, I série, de 22.5.2014, com vários votos de vencido.
|
TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/452b5dea9fa343d380258cd7004a72a3?OpenDocument
|
1,745,971,200,000
|
IMPROCEDENTE
|
1123/23.3T8ABT.L1-8
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1123/23.3T8ABT.L1-8
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CARLA FIGUEIREDO
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(artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)
- As declarações de parte, proferidas ao abrigo do art.º 466º, nº s 1 e 2 do CPC quanto aos factos favoráveis estão sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova -nº 3 do mesmo artigo.
- Apesar da necessária prudência na valoração das declarações de parte, tendo em conta o natural interesse directo no desfecho favorável da causa, nada impede que o juiz, na avaliação global dos meios de prova, à luz do objecto do processo, com recurso, se necessário, a presunções judiciais, em conformidade com as regras da lógica e da experiência normal de vida, forme a sua convicção atendendo a essas declarações, na parte em que não constituem confissão.
- Deve ser em sede de fundamentação da matéria de facto que as declarações de parte devem ser valoradas, ponderando-se o seu conjunto com os demais elementos de prova que existam, sem prejuízo da eventual confissão que ocorra.
- O concreto juízo final ficará dependente da criteriosa apreciação da factualidade sub judice, da forma como em concreto foram prestadas as declarações de parte e da análise de outros eventuais elementos de prova que possam existir e que, ainda que de forma indirecta, permitam alcançar no julgador aquele grau de convicção exigível no caso em apreço.
- Não procede o argumento do recorrente de que, tendo os Autores vivido em vários países da América Latina em alojamentos de Airbnb, não se pode concluir por uma vivência análoga às dos cônjuges, por ausência de uma residência que se possa considerar como lar ou de uma coabitação contínua, ou que as despesas suportadas com esses alojamentos possam corresponder a despesas do “lar”.
- Esta argumentação não acompanha a tendência actual dos jovens (ou não tão jovens) casais que se adaptaram às vantagens trazidas pelas novas tecnologias de comunicação que permitiram que as pessoas trabalhem a partir de vários pontos do mundo, com deslocações frequentes, indo de encontro às aspirações que muitos nutrem de, assim, poderem conhecer vários países do mundo. São os chamados nómadas digitais, que trabalhando à distância, podem escolher qualquer destino para viver e trabalhar, uma vez que só precisam de uma ligação à net e de um computador.
- A transitoriedade dos países por onde passaram e o tipo de alojamento onde ficaram não é demonstrativa da ausência de uma coabitação contínua e estável ou que as despesas com o tipo de alojamento não podem corresponder a “despesas do lar”
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[
"DECLARAÇÕES DE PARTE",
"VALOR PROBATÓRIO",
"UNIÃO DE FACTO",
"NÓMADAS DIGITAIS",
"COABITAÇÃO CONTÍNUA E ESTÁVEL"
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I – RELATÓRIO
S... e E... intentaram a presente acção contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, pedindo seja declarado que vivem em união de facto, com vista à obtenção de nacionalidade portuguesa por parte da autora, nos termos e para os fins da Lei nº 7/2001 e da Lei nº 37/81.
Para tanto alegam que vivem juntos, como marido e mulher desde Março de 2020, partilham cama, refeições e habitação.
O Ministério Público, em representação do Estado Português, apresentou contestação, na qual impugnou os factos alegados, por desconhecer os mesmos.
Foi dispensada a realização de audiência prévia e foi proferido despacho saneador, no qual foi fixado o objecto do litígio e os temas da prova.
*
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que terminou com o seguinte dispositivo:
“
Em face do exposto, julgo a ação procedente por provada e, em consequência, reconheço que os autores S... e E...vivem há mais de três anos em união de facto.
Sem custas face à isenção do réu (artigo 4º, n.º 1, alínea a) do Regulamento das Custas Processuais)
”.
*
Inconformado com a sentença, veio o MºPº, em representação do réu Estado Português, interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):
“
A. O presente recurso incide sobre a douta sentença proferida em 27-06-2024, através da qual o Tribunal a quo julgou a presente ação por provada e, em consequência, decidiu reconhecer que os autores S... e E...vivem há mais de três anos em união de facto.
B. O Tribunal a quo, no ponto 4 dos factos provados, julgou incorretamente que: “Os Autores nutrem uma relação familiar, social e afetiva, tendo iniciado a vida em comum, na mesma casa, situada na Freguesia de Abrantes (S. Vicente e S. João) e Alferrarede, na Rua…, em Março de 2020”.
C. Os factos mencionados, dados como provados, constituem uma interpretação conclusiva sobre a natureza da relação dos Autores, e não constituem factos objetivos e concretos demonstrativos da coabitação e vida em comum entre os mesmos.
D. Não obstante, a suposta vivência em comum tenha tido lugar, durante cerca de dois anos na casa da mãe da Autora, tal como alegado pelos Autores, não deixa de ser surpreendente que não foi arrolada qualquer testemunha que tenha corroborado tal versão dos factos, nem mesmo a mãe da Autora S..., proprietária da casa onde ambos residiram, e com quem terão convivido durante esse período.
E. A união de facto é uma relação que deve ser assumida como pública e exteriorizada, pelo que, in casu, podiam e deviam ter sido apresentadas testemunhas da vivência comum dos Autores, não tendo sido apresentada nenhuma justificação para o não terem sido.
F. Não se demonstrou uma partilha de vida entre os Autores, não sendo suficiente a existência do registo da mesma morada para concluir que os Autores têm uma vida em comum, sendo que tal facto fica seriamente colocado em dúvida, atendendo a que a coabitação não ocorreu exclusivamente entre os mesmos, com a autonomia e independência que se exige numa união de facto, mas sim com a presença de um terceiro elemento (a mãe da Autora), proprietária da casa.
G. Segundo as regras de experiência comum, podem ser várias as circunstâncias de vida que levam duas pessoas a declarar habitar na mesma morada, ou optar pela declaração conjunta de rendimentos em sede de IRS, sem que entre as mesmas se verifique uma coabitação efetiva ou vivência comum.
H. Atentando para o DOC. 7 junto com a P.I., denominado “Registo Central de Contribuinte”, verifica-se que, sem prejuízo, de o Autor E… ter registada como morada de residência “R…, Abrantes”, nesse mesmo documento se refere como “Data de Produção de Efeitos: 2022-02-04”, ou seja, quase dois anos depois do início da vivência na referida morada, e em momento temporal próximo da deslocação dos Autores para o estrangeiro, nomeadamente para países da América do Sul.
I. Resultou evidenciado que a deslocação e manutenção do Autor E... para a casa da mãe da Autora, não se tratou de uma decisão conjunta, tomada no sentido de estabelecimento de uma vida em comum, mas “imposta” pelas circunstâncias vividas em período de confinamento, na sequência das restrições de deslocações e paralisação da atividade económica.
J. Evidencia-se que a deslocação do Autor para Abrantes, casa da mãe da Autora, foi uma decisão extraordinária, tomada na sequência das medidas de contenção do Covid-19, que obrigou ao “confinamento”, e nunca visou o estabelecimento de uma vida em comum, como fica patente quando a Autora S... refere que “supostamente [a residência em Abrantes] era uma coisa temporária” e “Com o Covid, a situação estendeu-se mais do que nós estávamos à espera, e ficámos a morar em Abrantes durante mais de dois anos até”.
K. A tese da deslocação exclusivamente motivada pelo confinamento decorrente do Covid-19 é consentânea com o facto de ambos ali se terem mantido durante todo o período em que vigoraram as medidas de contenção epidemiológica, tendo se deslocado para o estrangeiro, logo que foram levantadas as medidas de restrição às deslocações (maio de 2022).
L. Os Autores reconhecem que, aquando da deslocação para Abrantes, nem mesmo a mãe da Autora, os via como namorados, pelo que se afigura que os mesmos nunca tiveram uma intenção genuína e permanente de constituir uma união de facto, estável e duradoura, sendo que a coabitação em Abrantes foi “artificialmente” determinada pela situação epidémica vivida à data.
M. A Autora S... manifestou dificuldade em descrever a vida de casal que, no dia-a-dia, mantém com o Autor E..., justificando-se “Estamos muito tempo a trabalhar, na verdade, essa é a maior parte da nossa vida, e passamos quase todo o dia a trabalhar”.
N. Pelo exposto, o aludido ponto 4 dos factos provados, deveria ter sido julgado como não provado, tendo o mesmo sido incorretamente julgado como provado.
O. No ponto 5 dos factos provados o Tribunal a quo, julgou incorretamente como provado que: “Vivem em economia comum, ambos contribuindo para o sustento do lar, mediante mútuo auxílio no pagamento das despesas”.
P. O ponto 5 dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo, constitui um juízo meramente conclusivo, não mencionando os concretos factos donde resulte que os ambos os Autores tenham contribuído para o sustento do lar, ou o mútuo auxílio no pagamento das despesas.
Q. Segundo alegam os Autores, os mesmos terão residido, num primeiro momento (até meados de 2022), em casa da mãe da Autora, e num segundo momento (a partir de fevereiro de 2022), nos vários alojamentos contratados em regime de Airbnb, em vários países da América do Sul, como seja Colômbia, Perú, Chile e Brasil.
R. Assim, a única residência comum que mantiveram com alguma estabilidade (cerca de dois anos), foi a que mantiveram em Abrantes (casa da mãe da Autora), e face ao contexto em que ocorreu, como atrás ficou explanado, afigura-se que apenas subsistiu devido à obrigação de confinamento que vigorava na época.
S. Foi a mãe da Autora S... que pediu, aquando da implementação das medidas de contingência e mitigação do Covid-19, para que esta regressasse a sua casa, em Abrantes, tendo a Autora pedido autorização a sua mãe para levar consigo o Autor E....
T. Segundo as regras da experiência comum, também se depreende que terá sido a mãe da Autora a ter efetuado os pagamentos das despesas, não só na qualidade de mãe da Autora, mas de igual modo, porque sendo a casa sua, é natural que as despesas, por exemplo, da eletricidade, água, gás ou telecomunicações, se encontrassem em seu nome, e não em nome dos Autores.
U. Pelo que a obrigação jurídica de pagamento dessas mesmas despesas incidiria exclusivamente sobre a proprietária da casa (mãe da Autora S...), e não sobre os Autores, que a terem efetuado qualquer pagamento, que também não ficou demonstrado, o fizeram, esporadicamente, a título de “ajuda”, em resultado de um mero dever moral.
V. Logo em maio de 2022, quando a nível interno e internacional, levantadas as restrições às deslocações, os Autores decidem embarcar por um “périplo” pela América Latina, residindo em alojamentos alugados em regime de Airbnb, o que permite concluir que inexistência, neste período, de uma residência estável que possa ser considerada como “lar”.
W. Ora, a transitoriedade dos locais (e países) onde residiram durante um longo período de tempo é demonstrativa de ausência de uma coabitação contínua e estável, pelo que o pagamento de despesas a ter ocorrido, nesse contexto, não se poderá afirmar corresponder a “despesas do lar”, mas sim a despesas de serviços de alojamento local prestados por terceiros.
X. Os contratos de arrendamento, emitidos em nome dos Autores nada demonstram no que se refere ao efetivo alojamento em comum, e designadamente quanto concretos períodos em que tais ocorreram, e à partilha das respetivas despesas.
Y. Os Autores alegaram que, em 29 de agosto de 2023, foram residir temporariamente em Santiago do Chile, juntando como meio de prova, cópia do respetivo contrato de arrendamento (DOC. 21 junto com a Petição Inicial). No referido contrato, redigido em língua espanhola, constata-se que as partes outorgantes do contrato, que o assinam, são apenas Carlos …., de nacionalidade chilena, na qualidade de senhorio, e E..., na qualidade de arrendatário, não sendo a Autora S... sequer parte do mesmo, não obstante no mesmo se referir que “el arrendador entrega en arriendo al Arrendatario, acompanhado por S... (…)”.
Z. Pelo exposto, o aludido ponto 5. dos factos provados, deveria ter sido julgado como não provado, tendo o mesmo sido incorretamente julgado como provado.
AA. Nos pontos 7 e 8 dos factos provados, julgou o Tribunal a quo provado que: “Residiram em diversos países, enquanto viajavam e trabalhavam, uma vez que trabalham remotamente” e “Em 29 de agosto de 2023, foram residir temporariamente para Santiago do Chile, durante cerca de cinco meses”.
BB. A formulação genérica de que os Autores residiram em “diversos países”, sem especificar quais, e os respetivos períodos, é demasiadamente ambígua para constituir um facto provado, que possa constituir pressuposto para reconhecimento da união de facto.
CC. Relativamente às viagens e deslocações aos países da América do Sul (Colômbia, Perú, Chile ou Brasil), não foi produzida prova testemunhal nem foram juntos quaisquer documentos que tenham a virtualidade probatória de demonstrar que os Autores fizeram várias viagens de trabalho, de lazer ou de turismo.
DD. Mesmo a admitir a vivência dos Autores em diferentes alojamentos locais durante as viagens realizadas pelos países da América do Sul, tal facto não é demonstrativo de uma coabitação duradoura, nem de uma residência estável, como pressuposto da união de facto, pelo que não poderia assumir a relevância de facto provado.
EE. A Autora S... indicou como morada o local de residência de sua mãe, mesmo que, logo de seguida, tenha admitido que não reside em Portugal, mencionando “Residimos no Brasil. Na verdade, acabámos um contrato de arrendamento agora no Brasil, viemos a Portugal, e vamos começar agora outro contrato de arrendamento”.
FF. Nenhuma prova documental foi junta que demonstrasse que os Autores trabalhassem remotamente a partir dos países da América do Sul onde terão vivido, nem foi inquirida nenhuma testemunha que declarasse no sentido de aqueles trabalharem remotamente a partir daí.
GG. O Autor E..., nas declarações de rendimentos que apresentou em Portugal, nunca declarou rendimentos, e em audiência, referiu que, pelo menos enquanto se encontrava em Portugal, vivia de “poupanças”.
HH. Os aludidos pontos 7. e 8. dos factos provados, deveriam ter sido julgados como não provados, tendo o mesmo sido incorretamente julgados como provados.
II. No ponto 10 dos factos provados, a sentença recorrida considerou incorretamente como provado que os Autores “Atualmente, encontram-se a residir no Brasil”.
JJ. Entendeu o Tribunal a quo, julgar como provado que os Autores residem, atualmente, no Brasil, sem, contudo, especificar em que morada, ou sequer, em que cidade ou estado, e desde que data.
KK. A Autora S..., em audiência de julgamento, ao identificar-se tenha indicado como morada de residência, a sua morada em Portugal, nomeadamente a casa de sua mãe (em Abrantes), não obstante tenha depois referido só está em Portugal, durante quinze dias, para um casamento.
LL. Já o Autor E..., quando questionado sobre a sua morada atual, indicou a morada de um imóvel referente a um “novo” contrato de arrendamento celebrado no Brasil, necessitando de consultar o telemóvel, de modo a poder indicar a morada completa.
MM. O aludido ponto 10. dos factos provados, não deveria ter sido julgado como provado, devendo o mesmo ser expurgado.
NN. Fundamentou a sentença recorrida que “(…) independentemente das circunstâncias que determinaram o início da vida em comum, ficou demonstrado que, desde Março de 2020, os autores vivem juntos, em comunhão de mesa, leito e habitação. E, desde essa data, tal união e vivência em comum mantém-se, pelo que se encontra suficientemente verificada a relação de união de facto desde essa data”. Concluiu o Tribunal a quo que, assim, “há que reconhecer que os autores vivem em união de facto há mais de três anos, julgando-se a acção totalmente procedente”.
OO. No entanto, não ficaram demonstrados quaisquer factos concretos demonstrativos que, desde Março de 2020, os Autores vivem juntos, em comunhão de mesa, leito e habitação, tal como exigida pela Lei da União de Facto, antes pelo contrário.
PP. Conforme ensina FRANÇA PITÃO, “Não basta uma relação fugaz, uma aventura amorosa ou encontros esporádicos para que possa falar-se de união de facto. É necessário que a relação adquira contornos tais que seja ou possa ser vista, não só pelos intervenientes, mas também pelas pessoas que os rodeiam e com eles convivem como uma relação em tudo igual ao casamento, em que as pessoas sejam como tal vistas e tratadas. Em resumo, tem de haver uma «ficção de casamento»”.
QQ. A ausência total de testemunhas que corroborassem a existência de uma vida comum estável dos Autores, e a falta de prova produzida referente a uma partilha efetiva de responsabilidades, reforçam a ideia que o relacionamento se configurou mais, durante este período, como uma relação de namoro do que de uma união de facto.
RR. Os Autores, em declarações de parte, vieram mesmo reconhecer que a mãe da Autora, pelo menos, em março de 2020, nem os via como namorados, desconhecendo-se o momento em que os viu como tal, e desconhecendo-se se alguma vez os tratou como se vivessem numa relação «em tudo igual ao casamento».
SS. No caso dos autos, não se demonstrou uma partilha de vida, não sendo suficiente a existência do registo da mesma morada para concluir que os Autores têm entre si uma relação análoga à dos cônjuges. Acresce que, segundo as regras de experiência comum, a coabitação não tem como única explicação a conjugalidade, podendo ser várias as circunstâncias de vida que levam duas pessoas a declarar habitar na mesma morada.
TT. Discorda-se da sentença recorrida quando argumenta que, para o reconhecimento da união de facto, não relevam as circunstâncias que determinaram o início da vida em comum, pois é de entender que, pelo menos, deve evidenciar-se um projeto de vida comum dos autores.
UU. Conforme refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 22-03-2024, relatora Rosa Tching, processo n.º 6380/16.9T8CBR.C1.S1: «A vivência em “condições análogas às dos cônjuges” deve ser aferida segundo critérios de normalidade e de vulgaridade, inseridos na cultura a que pertencemos».
VV. Conforme os Autores reconheceram que ambos residiam em Lisboa, onde se conheceram em janeiro de 2020, tendo começado a relação de namoro em 21 de fevereiro de 2020, e “quase imediatamente começámos a viver juntos”. Reconheceram os Autores que foi, na sequência do decretamento de medidas extraordinárias de resposta à epidemia do Covid-19, em 12-03-2020, que a mãe da Autora pediu que esta voltasse para casa, “para ficar junto com a família”.
WW. A Autora S... declarou em audiência que questionou à mãe, se o Autor E... podia ir consigo “porque ele estava sozinho”, o que mais se coaduna com um pedido de autorização para que aquele fosse viver consigo.
XX. Resulta evidenciado que a deslocação do Autor E... para a casa da mãe da Autora, não se tratou de uma decisão conjunta, tomada no sentido de estabelecimento de uma vida em comum, mas imposta pelas circunstâncias vividas em período de confinamento, na sequência das restrições da liberdade ambulatória, nomeadamente de deslocações, e da paralisação quase total da atividade económica.
YY. A deslocação dos Autores para Abrantes, foi uma decisão extraordinária e transitória, tomada na sequência das medidas de contenção do Covid-19, como fica patente quando a Autora S... mencionou que “supostamente era uma coisa temporária”, e “Como o Covid, a situação estendeu-se mais do que nós estávamos à espera, e ficámos a morar em Abrantes durante mais de dois anos”.
ZZ. A Autora S... é perentória referindo que “(…) para a minha mãe não era uma relação, era um amigo”, visão confirmada pelo Autor E... ao mencionar que “A mãe dela não sabia que nós namorávamos”, e que “A mãe não dizia que era namorado, dizia que era amigo”.
AAA. A decisão de viajar por vários países, a partir de maio de 2022, e as constantes mudanças de domicílio, de idêntico modo, não podem ser enquadradas num propósito de manter uma vida comum estável, mas demonstrativas da ausência de plano comum para fixar um lar estável, e da falta do correspondente compromisso comum necessário para esse efeito.
BBB. As viagens realizadas pelos Autores, que percorreram vários países e cidades da América Latina, vivendo em alojamentos temporários, e sem estabelecer, até ao presente, uma residência fixa, são mais consentâneas com a busca de “aventuras” ou experiências de vida temporárias e transitórias.
CCC. A própria Autora S... admitiu que “gosta muito de viajar” e que mesmo a atual permanência do Brasil também poderá ser transitória.
DDD. O cerne de uma união de facto reside numa coabitação que, na medida do possível, se deve apresentar estável, contínua e duradoura num determinado lar, com a correspondente partilha de responsabilidades. Não ficaram demonstrados factos de que resultasse a coabitação dos Autores, em comunhão de mesa, leito e habitação, nem a existência de um projeto de vida comum, pelo que não é possível concluir que os mesmos vivam em união de facto.
EEE. Ao decidir como decidiu violou a douta sentença recorrida, entre o mais, o disposto nos artigos 1.º, n.º 2. e 2.º-A, ambos da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, na redação dada pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro.
FFF. A douta sentença não deverá ser mantida, devendo ser revogada, substituindo-se por outra que julgue a ação totalmente improcedente, por não provada
”.
*
Os autores não apresentaram contra-alegações.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC).
No caso vertente, as questões a decidir que ressaltam das conclusões do Recurso interposto são as seguintes:
- Se deve ser modificada a decisão proferida sobre a matéria de facto;
- Se deve ser alterada a decisão de mérito.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. Os factos
Na 1ª instância, foi a seguinte a decisão quanto à matéria de facto:
“
A – Matéria de Facto Provada
Com relevância para a presente decisão, mostram-se provados os seguintes factos:
1. A autora nasceu em 03.09.1996, é solteira e tem nacionalidade portuguesa.
2. O autor nasceu em 25.12.1991, é solteiro e tem nacionalidade russa.
3. O autor tem Título de Residência em Portugal, tem Identificação Fiscal portuguesa, com o n.º, encontra-se inscrito na Segurança Social, com o n.º.
4. Os Autores nutrem uma relação familiar, social e afetiva, tendo iniciado a vida em comum, na mesma casa, situada na Freguesia de ….. e …., na Rua…, em Março de 2020.
5. Vivem em economia comum, ambos contribuindo para o sustento do lar, mediante mútuo auxílio no pagamento das despesas
6. Optam pela tributação conjunta dos seus rendimentos em sede de IRS desde 2021.
7. Residiram na morada indicada em 4), casa da mãe da autora durante cerca de 2 anos, após o que se mudaram para a América do Sul.
8. Residiram em diversos países, enquanto viajavam e trabalhavam, uma vez que trabalham remotamente.
9. Em 29 de agosto de 2023, foram residir temporariamente para Santiago do Chile, durante cerca de cinco meses.
10. Actualmente encontram-se a residir no Brasil.
*
B – Matéria de Facto Não Provada
Não ficaram por provar factos com relevância para a decisão da causa”.
*
3.2. O Direito
3.2.1. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto
O MºPº recorre da sentença, impugnando a decisão da matéria de facto, defendendo que deveriam ter sido dados como não provados os pontos 4, 5, 7, 8 e 10.
O artigo 640º do CPC, impõe ao recorrente o ónus de:
a) especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Entendemos que o recurso interposto, no que respeita à impugnação da matéria de facto cumpre o ónus imposto pelo art.º 640º do CPC, pelo que passaremos à análise da referida impugnação.
Como se referiu, o Apelante põe em causa os pontos 4, 5, 7, 8 e 10, entendendo que os mesmos não deveriam ter sido considerados como provados.
Quanto aos dois primeiros pontos, defende que os factos descritos no ponto 4
“constituem uma interpretação conclusiva sobre a natureza da relação dos Autores, e não constituem factos objetivos e concretos demonstrativos da coabitação e vida em comum entre os mesmos
”, e que apesar de a suposta convivência em comum possa ter existido não foi arrolada qualquer testemunha que pudesse corroborar o alegado, sendo que a união de facto “
é uma relação que deve ser assumida como pública e exteriorizada
”. Por outro lado, defende que a existência de registo da mesma morada ou a apresentação da declaração de rendimentos em comum não é suficiente para concluir pela vida em comum. Por outro lado, argumenta que a deslocação do Autor para casa da mãe da Autora não resultou de uma decisão conjunta, no sentido de estabelecer uma vida em comum, mas “
imposta pelas circunstâncias vividas em período de confinamento
”, para ser uma situação temporária, como referido pela Autora. No que respeita ao ponto 5 dos factos provados, alega o Apelante que o mesmo constitui um juízo meramente conclusivo, por não mencionar factos concretos de onde resulte que ambos os Autores contribuam para o sustento do lar, sendo certo que nos dois anos que residiram em casa da mãe da Autora, as despesas da casa eram pagas por aquela. Depois do período de dois anos, em que terão residido em Abrantes, residiram em vários países da América Latina em alojamentos de Airbnb, sem que se possa concluir, nesse período, por uma residência estável que se possa considerar como lar, nem nada foi demonstrado de onde se possa concluir que nesse período os Autores partilharam despesas, não sendo de considerar para esse efeito o contrato de arrendamento celebrado no Chile, em que apenas aparece como arrendatário o Autor.
No que respeita aos pontos 7 e 8, alega que a referência genérica à residência em “
diversos países
” é “
demasiado ambígua
” para que possa constituir pressuposto para o reconhecimento de uma união de facto. Da mesma foram, insiste que não foi produzida prova testemunhal, nem documental quanto a esse facto e mesmo que o fosse o tipo de vida e alternância de alojamentos locais não permite concluir por uma coabitação duradoura e residência estável. Por outro lado, não foi junta qualquer prova testemunhal ou documental quanto ao facto de os Autores trabalharem remotamente a partir de países de África do Sul.
Quanto ao ponto 10, defende o Apelante que as declarações dos Autores não foram convincentes, pelo que também devia ser dado como não provado.
Na fundamentação da decisão da matéria de facto, escreveu a Sr.ª Juiz
a quo
:
“
A convicção do Tribunal alicerçou-se nas declarações de parte prestadas por ambos os autores, as quais se mostraram espontâneas, isentas e credíveis, conjugadas com os documentos juntos aos autos, concretamente as certidões de nascimento dos autores, atestado de residência, declaração de união de facto, comprovativo de residência fiscal, declarações de IRS conjuntas, contratos de arrendamento.
Ambos os autores descreveram as circunstâncias e data em que iniciaram a relação e começaram a viver juntos, inicialmente, durante a pandemia, em casa da mãe da autora, em Abrantes, posteriormente, durante alguns meses em vários países da América do Sul, enquanto viajavam e trabalhavam remotamente, e actualmente no Brasil, onde celebraram contrato de arrendamento em conjunto para os próximos anos.
(…)
Entendemos, assim, que a prova por declarações de parte, ainda que sujeita a livre apreciação do Tribunal, é insuficiente para, sem qualquer outro elemento probatório, sustentar a sua convicção.
No caso, contudo, as declarações de parte, ainda que não coadjuvadas por prova testemunhal, encontram-se suficientemente suportadas pela prova documental junta, permitindo, em conjunto, corroborar a vivência comum dos autores, enquanto casal, desde Março de 2020
”.
Uma vez que a prova produzida resultou das declarações de parte dos autores e da análise documentos juntos aos autos, este tribunal ouviu integralmente aquelas declarações.
Assim, a Autora S..., de forma espontânea, coerente e sem contradições, narrou de que forma iniciou o seu relacionamento amoroso com o Autor E..., referindo que se conheceram em Janeiro de 2020, começaram a namorar em Fevereiro do mesmo ano e, em Março, quando o país entrou em confinamento devido à pandemia do Covid, a mãe convenceu-a a ir para casa, em Abrantes, altura em que pediu a esta para que o Autor também a pudesse acompanhar, pois pensavam que seria uma situação que se manteria por 10 dias. Comentou, sem qualquer subterfúgio, que a mãe inicialmente via o E... como um amigo, mas depressa percebeu que era mais do que isso. Acabaram por ficar a viver juntos em Abrantes em casa da mãe, por dois anos, até que em Maio de 2022, porque trabalhavam os dois à distância, foram viver para a América do Sul, passando pela Colômbia, Peru, Chile, permanecendo um mês em cada país, depois viveram em Agosto de 2022 em São Paulo, Curitiba e Santos, no Brasil (sempre em alojamentos locais ou AirB&B), e voltaram para o Chile onde passaram mais 5 meses, tendo arrendado uma casa. Actualmente residem no Brasil, onde também arrendaram uma casa. De forma igualmente espontânea e credível, referiu que desde que iniciaram o namoro e passaram a viver juntos nunca mais estiveram separados, dormem juntos, têm uma boa relação afectiva/amorosa, referindo que contribuem os dois para as despesas do dia a dia, dos arrendamentos (inicialmente, em casa da mãe, apenas contribuíam com as despesas de supermercado, pois a mãe não aceitava ajuda nas despesas da casa (o que se compreende), explicou que é o Autor que faz o pequeno almoço e ela o jantar, tendo em conta os horários de trabalho de ambos e o facto de trabalharem à distância para diferentes países, passeiam juntos e têm actividades de lazer e amigos em comum no Brasil, sendo que à data em que se realizou o julgamento se encontravam em Portugal, onde iam ficar por 15 dias, pois vão ao casamento de uma amiga.
Por sua vez, o Autor E..., confirmou a forma como conheceu a Autora S..., em Janeiro de 2020, afirmando que começaram a namorar quase de imediato, sendo que esta ficava muitas vezes a dormir consigo num quarto que tinha no espaço de CoWorking em Lisboa. Por causa do confinamento imposto pelo Covid, mudaram-se para casa da mãe de S..., em Março de 2020, porque não se queriam separar. Inicialmente era considerado por pela mãe da S... como amigo da filha. Nas suas palavras, “depois correu bem” e ficaram a residir naquela morada, em Abrantes, por dois anos. Dormiam juntos, faziam as refeições juntos e ajudavam nas despesas, com a compra de “comida”, não com as despesas da casa que eram suportadas pela mãe da S.... Apesar de não ter rendimentos em Portugal, pois o trabalho que fazia era digital e a startup para que trabalhava não tinha lucros, tinha as suas poupanças. Depois foram para a América Latina, onde viveram por uns tempos na Colômbia, Peru, Chile e Brasil, onde vivem actualmente, em São Paulo, há quase dois anos. Afirmou categoricamente que desde 18/3/2020 sempre viveram juntos, fazem tudo juntos, têm amigos, já visitaram a sua mãe na Holanda por duas vezes e conhece toda a família da S..., avós, irmã, cunhado, tios, sendo que ainda no dia anterior tiveram um almoço de família.
Como se sabe a prova, através do depoimento de parte, visa alcançar a confissão dos factos naturalmente desfavoráveis ao depoente e obedece ao regime adjectivo previsto nos arts. 452º a 465º do CPC.
As declarações de parte, proferidas ao abrigo do art.º 466º, nº s 1 e 2 do CPC quanto aos factos favoráveis estão sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova -nº 3 do mesmo artigo.
Apesar da necessária prudência na valoração das declarações de parte, tendo em conta o natural interesse directo no desfecho favorável da causa, nada impede que o juiz, na avaliação global dos meios de prova, à luz do objecto do processo, com recurso, se necessário, a presunções judiciais, em conformidade com as regras da lógica e da experiência normal de vida, forme a sua convicção atendendo a essas declarações, na parte em que não constituem confissão.
A valoração das declarações de parte tem suscitado divisão na doutrina e jurisprudência, sendo possível diferenciar três posições.
Uma posição defende que as declarações de parte constituem uma forma de o juiz esclarecer, clarificar o resultado das demais provas produzidas em audiência (neste sentido, cfr. Ac. da RC de 8/7/21, proc. 5281/19.3T8VIS.C1).
Uma segunda tese defende que as declarações de parte, não sendo suficientes para, de per si, sustentar a prova de factos favoráveis ao depoente, permitem quando conjugadas com outros meios de prova que as corroborem, sustentar a convicção do juiz quanto à prova de tais factos (neste sentido, cfr. os Acs.
da RP
de da RP de 20/11/14, p. 1878/11; de 26/6/14, p. 216/11; de 23/4/18, p. 482/17de 4/2/19, p. 999/15;
da RE
de 17/1/19, p. 800/17;
da RG
de 18/1/2018, p. 294/16; de 3/5/18, p. 4891/17;
da RL
de 13/10/2016, p. 640/13; de 1/3/18, p. 1770/16, todos disponíveis em
www.dgsi.pt
).
Por fim, uma terceira posição sustenta que o juiz pode formar a sua convicção quanto à prova dos factos nas declarações de parte sem recurso a outros meios probatórios, é a tese da auto-suficiência das declarações de parte. Segundo António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2018, pág. 539 e ss., em anotação ao citado art.º 466º do CPC, as declarações de parte estão ao mesmo nível que os demais meios de prova, sendo valoradas de forma autónoma e integrada, sem que se estabeleça qualquer hierarquia entre os vários elementos probatórios. Significa isto que é em sede de fundamentação da matéria de facto que as declarações de parte devem ser valoradas, ponderando-se o seu conjunto com os demais elementos de prova, sem prejuízo da eventual confissão que ocorra. Conforme se pode ler no Ac. da RL de 26/4/2017, p. 18591/15, relatado por Luís Filipe Pires de Sousa, “
repudiamos o pré-juízo de desconfiança e de desvalorização das declarações de parte, sendo infundada e incorreta a postura que degrada – prematuramente - o valor probatório das declarações de parte.
Em primeiro lugar, a prova testemunhal, a prova pericial e a prova por inspeção estão também sujeitas à livre apreciação do tribunal (Arts. 389, 391 e 396 do Código Civil), sem que se questione que o juiz possa considerar um facto provado só com base numa dessas provas singulares, no limite, só com base num depoimento.
Em segundo lugar, desde há muito que se enfatiza que o interesse da testemunha na causa não é fundamento de inabilidade, devendo apenas ser ponderado como um dos fatores a ter em conta na valoração do testemunho. Assim, «Nada impede assim que o juiz forme a sua convicção com base no depoimento de uma testemunha interessada (até inclusivamente com base nesse depoimento) desde que, ponderando o mesmo com a sua experiência e bom senso, conclua pela credibilidade da testemunha.» (Ac. da RP de 15/3/2012, Deolinda Varão, 6584/09). Ou seja, o interesse da parte (que presta declarações) na sorte do litígio não é uma realidade substancialmente distinta da testemunha interessada: a novidade é relativa e não absoluta, a diferença é de grau apenas. Elizabeth Fernandez enfatiza pertinentemente que «se as partes podem passar a declarar a seu pedido o que viram, ouviram, sentiram, cheiraram, tocaram, conversaram, disseram, em suma, o que testemunharam, e porque o testemunharam não faz qualquer sentido conferir a estas declarações proferidas por pessoas que materialmente são testemunhas só porque são partes, um valor diverso do daqueles factos que foram testemunhados por quem é material e formalmente testemunha» (in “Nemo Debet Esse Testis in Própria Causa? Sobre a (in)Coerência do Sistema Processual a Este Propósito”, in Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, p. 23).
Com efeito, amiúde se não na maioria dos casos, quem tem melhor razão de ciência do que a própria parte?
Em terceiro lugar, o texto do Artigo 466º não degradou o valor probatório das declarações de parte, nem pretendeu vincar o seu caráter subsidiário e/ou meramente integrativo e complementar de outros meios de prova. Se esse fosse o desiderato do legislador, o mesmo teria adotado uma formulação diversa à semelhança, por exemplo, do que se prevê no § 445 do Código de Processo Civil Alemão.
Em quarto lugar, o julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés confirmatório.
Dito de outra forma, tal equivaleria a raciocinar assim: não acredito na parte porque é parte, procurando nas declarações da mesma, detalhes que corroborem a falta de objetividade da parte sempre no intuito de confirmar tal ponto de partida. A credibilidade das declarações tem de ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstratas pré-constituídas, sob pena de esvaziarmos a utilidade e potencialidade deste novo meio de prova e de nos atermos, novamente, a raciocínios típicos da prova legal de que foi exemplo o brocardo testis unis, testis nullus (uma só testemunha, nenhuma testemunha)
” – acórdão disponível em
www.dgsi.pt
.
No fundo,
deve ser em sede de fundamentação da matéria de facto que as declarações de parte devem ser valoradas, ponderando-se o seu conjunto com os demais elementos de prova que existam, sem prejuízo da eventual confissão que ocorra.
Tal como referido no citado acórdão da Relação de Lisboa, “
os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente. Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação”
(nestes mesmo sentido cfr. Acs.
do STJ
de 28/1/2020, 287/11, disponível em ECLI; de 7/2/2019, p. 2200/18;
da RG
de 13/9/18, p. 159/17; de 4/4/19, p. 1012/15; de 2/5/19, p. 2319/17; de 28/5/20, p. 5959/16; de 1/10/20, p. 3461/16; de 13/5/21, p. 6364/16;
da RL
de 26/4/17, já citado; de 2/2/21, p.2350/16;
da RP
de 25/3/25, p. 1634/23;
da RC
de 11/2/20, p. 286/17, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Propendemos para aceitar esta tese mais permissiva, tendo presente que na valoração das declarações de parte prestadas não significa que tudo quanto a parte declare deva ser considerado provado, ou - pelo contrário - que tudo o que a parte declare, e justamente porque é parte, deva ser considerado não provado.
O concreto juízo final ficará dependente da criteriosa apreciação da factualidade
sub judice
, da forma como em concreto foram prestadas as declarações de parte e da análise de outros eventuais elementos de prova que possam existir e que, ainda que de forma indirecta, permitam alcançar no julgador aquele grau de convicção exigível no caso em apreço.
Assim, tendo em conta as declarações de parte prestadas nos autos, impõe-se não só fazer a sua apreciação, como conjugá-las com os documentos juntos aos autos, para assim concluir se a convicção a que chegou o tribunal
a quo
é passível de censura, como defende o Apelante.
Em primeiro lugar, começamos por dizer que as declarações de parte dos dois Autores revelaram-se merecedoras de credibilidade, pois foram prestadas de forma segura, espontânea; ambos tiveram um relato autêntico e sem contradições no que respeita a momentos temporais ou espaciais da vivência em comum desde o ano de 2020 e, ao mesmo tempo, sem denotar preocupação em prestar depoimentos idênticos, fazendo sobressair determinados factos que lhes pudessem ser essenciais na perspectiva de fazer valer a sua pretensão, o que evidenciaria uma posição concertada e “trabalhada”.
É certo que os Autores não arrolaram testemunhas, que facilmente poderiam atestar os factos alegados, mas tal não surpreende pelo facto de desde o ano 2022 viverem entre países da América latina, passando pequenos períodos de tempo em cada um, como relataram, porque trabalham os dois à distância e gostam de viajar.
Acresce que os Autores juntaram 21 documentos com a petição inicial, cuja análise, concatenada com aquelas declarações, permitiram à primeira instância e também a este Tribunal chegar ao mesmo grau de certeza para dar como provados os factos impugnados pelo Apelante.
Assim, já em Agosto de 2020 o Autor requeria a Concessão de Autorização de Residência, que lhe concedido foi pelo SEF em 29/9/2020, tendo naquele documento indicado como morada a residência da mãe da Autora (docs. 5 e 6); no mês de Julho do mesmo ano foi-lhe passado um Atestado de residência junta de freguesia de Abrantes (S. Vicente e S. João), com a mesma morada (doc. 10); em 6/5/2021, adquire identificação de utente no centro de Saúde de Abrantes (doc. 12), em 21/6/21, recebe cartão de acesso aos serviços da Altice (doc. 16), em Julho de 2021, o Autor recebe uma comunicação da identificação na Segurança Social (doc. 8), em 5/8/21, recebe um de saúde Europeu (doc. 14), todos estes documentos com a menção da mesma morada (residência da mãe da Autora); em 2022, os Autores apresentaram declaração de rendimentos conjunta relativa ao ano de 2021 e recebem a demonstração de liquidação de IRS, mais uma vez na mesma residência (docs. 17 e 18); no ano de 2022, o Autor apresentou um documento para registo de contribuinte (doc. 7) e, em 19/4/22, recebe uma certidão do seu domicílio fiscal na mesma morada (doc. 9); em 22 de Maio é emitido novo atestado de residência da Junta da Freguesia de Abrantes, com teor idêntico ao já referido (doc. 11); em Abril de 2022 os Autores, perante Notária, declaram sobre compromisso de honra que vivem em União de Facto há mais de 2 anos e, em Maio de 2022, a junta de Freguesia emite uma declaração de União de Facto (docs. 19 e 20). Por fim, o documento nº 21, é o contrato de arrendamento celebrado em 29/8/2023, pelo Autor, “
acompanhado por S..., nº de passaporte….
”, pelo período de 5 meses, daí constando que a residência do Autor é em São Paulo, Brasil.
Ora estes documentos, se por si só, não provam os factos alegados pelos Autores, acrescentam ainda mais coerência e credibilidade às declarações de parte dos mesmos.
Ambos referiram que vivem juntos desde Março de 2020 e que nunca mais se separaram, dormindo juntos, fazendo juntos as refeições, cada um contribuindo para as despesas do casal, comungando dos mesmos interesses e têm amigos em comum.
Ao contrário do casamento, na união de facto não existe um acto fundacional, o que pode dificultar a prova no que respeita ao início do período necessário para que duas pessoas possam invocar juridicamente a união de facto.
Os Autores alegam que esse dia foi em Março de 2020, altura em que ambos foram viver para casa da mãe da Autora. O MºPº contrapõe que esse momento não coincidiu com uma decisão dos Autores no sentido de passarem a viver como casal, não só porque a deslocação para casa da mãe da Autora em Abrantes foi imposta pelo confinamento do Covid, mas também com o argumento (entre outros) de que esta via o Autor como um amigo da filha, como, aliás, foi reconhecido por ambos. No entanto, a verdade é que se assim foi no início, foi esclarecido que a mãe da Autora depressa percebeu que era mais do que um amigo e “depois correu bem”, como referiu o Autor E.... Acresce que o confinamento devido ao Covid, com início no mês de Março do ano 2020, terminou no mês de Maio do mesmo ano, e nem por isso os Autores deixaram de viver juntos e ali permaneceram por dois anos, como por eles foi declarado e cuja prova documental (documentos dos anos 2020, 2021 e 2022) vem confirmar, conferindo um “plus” às já de si credíveis declarações dos Autores.
Assim, senão desde Março, pelo menos desde Maio de 2020 que se pode afirmar que os Autores já viviam, nos moldes por eles referidos, sendo certo que o facto de durante aqueles dois anos apenas ajudarem nas despesas da “comida” e não com as despesas da casa, sendo estas suportadas pela mãe da Autora, não invalida a conclusão a que chegou o tribunal (ponto 5 dos factos provados).
Por outro lado,
não procede o argumento de que, tendo os Autores vivido em vários países da América Latina em alojamentos de Airbnb, não se pode concluir por uma vivência análoga às dos cônjuges, por ausência de uma residência que se possa considerar como lar ou de uma coabitação contínua, ou que as despesas suportadas com esses alojamentos possam corresponder a despesas do “lar”.
Pensamos que
esta argumentação não acompanha a tendência actual dos jovens (ou não tão jovens) casais que se adaptaram às vantagens trazidas pelas novas tecnologias de comunicação que permitiram que as pessoas trabalhem a partir de vários pontos do mundo, com deslocações frequentes, indo de encontro às aspirações que muitos nutrem de, assim, poderem conhecer vários países do mundo. São os chamados nómadas digitais, que trabalhando à distância, podem escolher qualquer destino para viver e trabalhar, uma vez que só precisam de uma ligação à net e de um computador. Ou seja,
a transitoriedade dos países por onde passaram e o tipo de alojamento onde ficaram não é demonstrativa, salvo devido respeito, da ausência de uma coabitação contínua e estável ou que as despesas com o tipo de alojamento não podem corresponder a “despesas do lar”, mas sim a despesas de serviços de alojamento local prestados por terceiros.
Por outro lado, o ponto 8 dos factos provados, não necessita de maior concretização, como propugnado pelo apelante, correspondendo a um mínimo de factos, com relevo para a decisão, sendo que no ponto 9 é referido que em 29 de Agosto foram residir para o Chile, por 5 meses, o que é comprovado por documento e consentâneo com as declarações dos Autores, que afirmaram que viviam no Brasil, quando voltaram ao Chile, por 5 meses, para depois regressarem novamente ao Brasil, onde ainda permanecem. Note-se que o contrato de arrendamento junto com a p.i. como doc. 21 refere que a morada do Autor, arrendatário, é no Brasil e que este estava “
acompanhado por S..., nº de passaporte….
”.
Por seu turno, o ponto 10 dos factos provados, resulta, mais uma vez, das declarações de parte dos Autores, sem que, nesta parte, exista qualquer motivo para contrariar o que até agora foi dito sobre a sua credibilidade.
Assim, tudo considerado, este Tribunal formula uma convicção idêntica à do Tribunal recorrido, cuja argumentação acompanhamos e reforçamos.
É certo que a redacção do ponto 4 dos factos provados, resultando do alegado pelos Autores no art.º 6 da petição inicial, não é a mais feliz. No entanto, entendemos que contém um inquestionável substrato factual (e não meramente conclusivo, como defende o Apelante) e minimamente consistente, devendo ser interpretado com os restantes factos, de forma a demonstrar a coabitação e vida em comum entre os Autores.
No fundo, dizer que os Autores “
nutrem uma relação familiar, social e afectiva, tendo iniciado a vida em comum
” (ponto 4), conjugado com o ponto seguinte de que “
vivem em economia comum, ambos contribuindo para o sustento do lar, mediante mútuo auxílio no pagamento das despesas
” (ponto 5), tem um sentido facilmente apreendido na linguagem comum, correspondendo a factos que qualquer pessoa sem formação jurídica atribuirá a uma coabitação ou a uma vivência íntima, de casal.
Em relação ao ponto 4 dos factos provados entendemos apenas que deve ser alterada a sua redacção, tendo em conta o que foi exposto supra quanto ao início da vida “
em comum
”, passando a ser a seguinte:
“4.
Os Autores nutrem uma relação familiar, social e afetiva, tendo iniciado a vida em comum, na mesma casa, situada na Freguesia de Abrantes (S. Vicente e S. João) e Alferrarede, na Rua …,
pelo menos em Maio de 2020
”.
Quanto ao mais, pelos motivos já expostos, improcede a impugnação da matéria de facto.
*
3.2.2. Da subsunção jurídica
Defende o Apelante a revogação da sentença da primeira instância fundada na alteração da fundamentação de facto por si reivindicada em sede de recurso e que, como vimos, se manteve inalterada nos factos mais relevantes (apenas o ponto 4 dos factos provados sofreu alteração, no que respeito ao início da convivência em comum dos Autores).
Vejamos, pois, se de acordo com a matéria de facto provada a decisão recorrida deverá, ou não, manter-se.
Os Autores intentaram a presente acção peticionando que fosse reconhecida a sua união de facto, nos termos e para os fins da Lei nº 7/2001 e da Lei nº 37/81.
Segundo o nº 3 do art.º 3º da Lei nº 37/81 de 3 de Outubro, “
O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível
”.
A união de facto tem na sua génese a ausência do um contrato com as inerentes formalidades. Por isso, que na sua definição não nos podemos reportar a um acto fundador dessa relação.
A lei vai, então, buscar a caracterização do conceito de união de facto ao tipo de vivência.
A Lei nº 7/2001 de 11/5, define a união de facto como a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, viviam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos (art.º 1º, nº 2).
A utilização da expressão “
condições análogas às dos cônjuges
” pode levantar dificuldades, face à vastidão de tipos de vivência entre os cônjuges. No entanto, a tutela conferida à união de facto não pode deixar de se sustentar numa ideia de normalidade ou vulgaridade na “
vivência conjugal
”. Assim, pensa-se na vivência de dois cônjuges em situação de normalidade ou vulgaridade, inseridos na cultura a que pertencemos e é aí que se há-de encontrar o preenchimento do conceito de “
condições análogas às dos cônjuges
”.
O conceito de “
condições análogas às dos cônjuges
” tem de buscar-se nos deveres que resultam do casamento, nomeadamente os que constam do art.º 1672º do Código Civil, como os deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e de assistência. Estes deveres, tendo diferentes graus de relevância, admitem mais ou menos preenchimento, segundo as concepções culturais concretas e segundo a disposição voluntária de cada cônjuge e as suas condições específicas. O dever que tem um cariz mais objectivo e, desse modo, mais simples de apurar, é o dever de coabitação, ou seja, viver na mesma casa, ou, nas expressões tradicionais, viver em
comunhão de mesa, leito e habitação
.
Como se pode ler no Ac. do STJ de 9/7/2014, p. 3076/11, disponível em
www.dgsi.pt
, “
Pode-se viver na mesma casa, repartir os dinheiros ou as refeições, apoiar-se mutuamente na doença e fora dela, que, se não houver qualquer forma de intimidade, não se poderá dizer que se vive “em condições análogas às dos cônjuges”.
No fundo estamos perante a “comunhão de mesa, leito e habitação” a que tradicionalmente se recorre para caracterizar a relação (cfr. - se Jorge Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 4.ª Ed., 651 e Telma Carvalho, A União de Facto: A Sua Eficácia Jurídica, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, I, 236). Sendo certo que a alusão a “comunhão de leito” é integrada pela comunhão sexual (Jorge Pinheiro, ob. cit. 653 e França Pitão – União de Facto e Economia Comum, 34).
Não cremos, todavia que, apesar da exigência de intimidade, esta seja, em todos os casos, de reportar ao cariz sexual. Sê-lo-á na esmagadora maioria, mas pode haver casos em que a idade, a doença ou a opção pessoal afastem o convívio sexual, mas permitam outras formas de vivência íntima, que são próprias do casamento ou de quem optou por viver “em condições análogas”.
Não se justifica que se subtraiam à união de facto pessoas cuja realidade sexual as não impediria de casar. Aliás, a alusão à convivência sexual não é uma constante. Pamplona Corte-Real e Silva Pereira (Direito da Família, 47) reportam-se a «uma profunda intersubjectividade e interrelacionalidade dos cônjuges e, ou, dos parceiros conviventes: dignidade, liberdade, intimidade, respeito pelo próximo e boa-fé». E Cristina Araújo Dias (Revista Jurídica da Universidade Portucalense n.º 15, 2012, página 40), a propósito da jurisprudência do TEDH, refere que tal tribunal «inclui na noção de vida familiar as relações matrimoniais, mas também as famílias de facto, assentes noutras formas de convivência afectiva constitutivas de laços familiares, sendo relevante, portanto, o critério da efectividade de laços interpessoais».
Em reforço desta ideia de necessidade de convivência íntima, podemos lançar mão do cotejo com a figura das “pessoas que vivam em economia comum há mais de dois anos”, trazida pela Lei n.º 6/2001, de 11.5 e ali definida, nos seguintes termos (artigo 2.º):
Entende-se por economia comum a situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos.
É clara a distinção relativamente à união de facto (cfr. - se os artigos 1.º, n.º 2, 3.º e 4.º, n.º 2) e é a ausência de intimidade que constitui a diferença
”.
Em face da matéria factual apurada, mesmo com a alteração operada no ponto 4 dos factos provados, parece-nos que não podemos deixar de concluir como na primeira instância. Efectivamente, tendo resultado provado que os Autores “
nutrem uma relação familiar, social e afetiva, tendo iniciado a vida em comum
”, na mesma casa, pelo menos em Maio de 2020, vivendo em economia comum, ambos contribuindo para o sustento do lar, mediante mútuo auxílio no pagamento das despesas, não pode deixar de ser entendido que ambos vivem “debaixo do mesmo tecto”, coabitam, mantendo uma relação familiar e íntima, numa relação afectiva e de laços interpessoais, comuns às condições vividas entre cônjuges.
Assim, encontrando-se verificada a situação de união de facto há mais de três anos, o recurso tem de improceder.
*
IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a Apelação, confirmando a decisão recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o Apelante.
Lisboa, 30/4/25
(o presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações/transcrições” efectuadas que o sigam)
Carla Figueiredo
Vitor Ribeiro
Amélia Ameixoeira
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/5f21cb4b852f584c80258c8b0039c8a3?OpenDocument
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1,756,944,000,000
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IMPROCEDENTE
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2392/21.9T8BRR.L1-4
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2392/21.9T8BRR.L1-4
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ALEXANDRA LAGE
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I - No que respeita à matéria atinente à segurança, higiene e saúde no trabalho, não pode deixar de se reconhecer a existência de deveres gerais de cuidado que se aplicam, genericamente a todas as atividades, sem prejuízo dos inúmeros textos normativos que preveem e regulam os riscos próprios de atividades e setores específicos.
II - A culpa da entidade patronal na produção do acidente de trabalho, para além de poder resultar da falta de observação de regras concretas sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, pode também resultar da falta de observação dos deveres gerais de cuidado.
|
[
"ACIDENTE DE TRABALHO",
"CULPA DA ENTIDADE EMPREGADORA",
"VIOLAÇÃO DO DEVER GERAL DE CUIDADO"
] |
Acordam os Juízes da 4ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
1. AA intentou ação emergente de acidente de trabalho contra BB, L.da, pedindo a condenação da ré no pagamento de uma pensão anual, no pagamento de indemnizações por incapacidades temporárias e despesas de deslocação, invocando a ocorrência de acidente de trabalho, com incumprimento de regras de segurança por parte da ré.
2. A ré citada veio contestar sustentando, em síntese, que o autor se deslocou ao sótão do prédio (que não era o seu local de trabalho) quando os trabalhos já estavam concluídos e para buscar objetos pessoais tendo o acidente ocorrido devido a falta de cuidado do sinistrado.
3. Foi proferido despacho saneador, procedeu-se à fixação do objeto do litígio, bem como dos temas de prova.
4. Organizado apenso de fixação de incapacidade para o trabalho foi designado dia para realização de Junta Médica. Realizada a junta médica, em 19.06.2024, os Peritos médicos, responderam, por unanimidade, aos quesitos que foram formulados e consideraram, também por unanimidade, os períodos de incapacidades temporárias e a IPP de que estava afetado o autor.
3. Nesse apenso foi proferida sentença que fixou o período de ITA entre 28/08/2021 e 26/06/2022, a IPP de 2,95 % de que o autor ficou afetada e, ainda, a data da consolidação médico legal das lesões em 26/06/2022.
4. Procedeu-se à realização de julgamento e proferida sentença, tendo a ré sido condenada no pagamento ao autor:
“-
Do capital de remição correspondente a uma pensão anual e vitalícia, obrigatoriamente remível, no valor de € 278,67, acrescido de juros desde 27 de junho de 2022;
- Do valor de € 7.841,97, a título de indemnização por incapacidade temporária, com juros desde 27 de junho de 2022;
- Do valor de despesas de deslocação de € 12,00
.”
5. Inconformada, a ré deduziu recurso desta decisão, apresentando as seguintes conclusões:
“
I. Foram dados como provados os seguintes factos:
“1. No dia 27 de Agosto de 2021, o A., nascido em --/--/1975, trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização de “BB, LDA”.
2. Com a categoria profissional de “pintor”.
3. Auferindo a Retribuição Anual Ilíquida de € 9.446,60 [€ 635,00 (salário base) x 14M+ €2,30 (subsídio de refeição) x 22D x 11M].
4. No dia indicado em 1, depois do almoço, encontrando-se ao serviço da entidade empregadora supra referida, o A., quando estava no sótão para ir buscar os equipamentos de trabalho (mangueira de cabo elétrico e máquina de pressão) utilizados, por si, para lavar o telhado, desequilibrou-se e caiu, no solo, de uma altura de cerca de 10 metros, perdendo os sentidos.
4. Do acidente resultaram para o A. hematomas epicranianos a nível parietal bilateral; fractura das apófises transversas esquerdas entre L1 e L5; fracturas alinhadas de arcos costais esquerdos (terço anterior do 2.º e médio do 3.º); presença de conteúdo hemorrágico na musculatura psoas e ilíaca esquerda, com assimetria em relação à direita; e contusão das partes moles na região glútea e sagrada à direita; bem como, luxação do cotovelo, reduzida de emergência, e de luxação do ombro (sem indicação de lateralidade), com redução incruenta.
5. O autor ficou com IPP de 2,95 %.
6. Teve ITA entre 28/07/2021 e 26/06/2022.
7. A data da consolidação é 26/06/2022.
8. O autor, na altura da queda, encontrava-se no local sozinho não utilizando qualquer equipamento de proteção individual e não existindo qualquer sistema de proteção coletiva que o protegesse contra o risco de queda em altura.
9. O autor recebeu da ré, em 27/08/2021 um capacete, um colete de proteção, botas com biqueira de aço e arnês.
10. O arnês referido em 9 destinava-se à proteção do trabalhador quando se encontrasse no telhado, não tendo condições de utilização quando o trabalhador se encontrava no sótão.
11. A ré não tinha, no momento do acidente, a responsabilidade civil por acidentes de trabalho relativo ao autor transferida para uma seguradora.
12. O legal representante da ré apenas celebrava o contrato de seguro por acidentes de trabalho dos seus trabalhadores, depois de os ver a trabalhar, para, dessa forma, avaliar se lhe interessava mantê-los ao seu serviço.
13. A ré não adotou qualquer medida de segurança relativamente à claraboia, nomeadamente a colocação de guarda corpos ou a colocação de qualquer outro tipo de vedação de acesso adequado.”
II. No caso sub judice entendeu o Tribunal a quo que a entidade patronal violou as regras de segurança e saúde no trabalho nos termos do n.º 1 do artigo 18.º da Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro, agravando a responsabilidade da Recorrente.
III. Isolemos então os factos dados como provados nesta matéria, relevantes para o objeto do recurso:
“4. No dia indicado em 1, depois do almoço, encontrando-se ao serviço da entidade empregadora supra referida, o A., quando estava no sótão para ir buscar os equipamentos de trabalho (mangueira de cabo elétrico e máquina de pressão) utilizados, por si, para lavar o telhado, desequilibrou-se e caiu, no solo, de uma altura de cerca de 10 metros, perdendo os sentidos.
8. O autor, na altura da queda, encontrava-se no local sozinho não utilizando qualquer equipamento de proteção individual e não existindo qualquer sistema de proteção coletiva que o protegesse contra o risco de queda em altura.
9. O autor recebeu da ré, em 27/08/2021 um capacete, um colete de proteção, botas com biqueira de aço e arnês.
10. O arnês referido em 9 destinava-se à proteção do trabalhador quando se encontrasse no telhado, não tendo condições de utilização quando o trabalhador se encontrava no sótão.
13. A ré não adotou qualquer medida de segurança relativamente à claraboia, nomeadamente a colocação de guarda corpos ou a colocação de qualquer outro tipo de vedação de acesso adequado.”
IV. Não consta de nenhum dos factos dados como provados que a queda do trabalhador ocorreu na clarabóia e em consequência de falta de equipamento que protegesse a queda em altura.
V. Nem sequer foi dado como provado onde caiu o trabalhador, mas apenas que caiu.
VI. Concluiu o Tribunal a quo que a Recorrente violou o disposto no n.º 1 e nas alíneas a), e), g), i) e j) do artigo 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro.
VII. Tais normas postulam deveres genéricos e de nenhuma resulta a obrigação de, no caso concreto, e tratando-se de uma zona de passagem, a clarabóia ser protegida com guarda corpos ou outra medida, bem como a utilização de arnês.
VIII. A imputação à Recorrente de violação de deveres genéricos é manifestamente insuficiente para preencher a previsão do n.º 1 do artigo 18.º da LAT.
IX. Por outro lado, não basta só uma queda em altura para preencher uma violação de normas de segurança.
X. Para que haja uma violação de uma norma de segurança que imponha um comportamento ou proíba um comportamento, tem de existir uma previsão normativa expressa.
XI. Para que fosse obrigatório o uso de arnês e cordas de segurança, ou de guarda corpos, ou outra medida de proteção, teria de existir uma norma que impusesse essa obrigação especificamente e no caso concreto.
XII. Não existe qualquer norma concreta que obrigue à aplicação de tais medidas, aliás, o Tribunal a quo apenas refere deveres genéricos. (sublinhado nosso)
XIII. Além da infração, teria de ser alegado e provado o nexo de causalidade entre tal violação e a ocorrência. (sublinhado nosso)
XIV. Dos factos dados como provados não consta o nexo de causalidade, sendo esta matéria de facto.
XV. Teria de ter sido alegado e resultado provado que, no caso concreto, teria de ser aplicada uma medida de proteção específica para proteger o risco e que a causa da queda foi precisamente a falta dessa medida.
XVI. E que se fosse cumprida a medida o acidente não teria ocorrido. (sublinhado nosso)
XVII. Prova essa que não se verificou, aliás, como resulta dos factos dados como provados.
XVIII. As causas da queda não foram apuradas nem dadas como provadas. (sublinhado nosso)
XIX. Nem consta dado como provado que era obrigatório o uso de tais equipamentos de segurança no caso concreto.
XX. Cabia ao Recorrido alegar e provar a violação das normas de segurança e o nexo causal entre essa violação e o acidente.
XXI. O Tribunal a quo violou o disposto no artigo 18.º da Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro e no artigo 342.º do Código Civil, ao decidir nos termos em que consta na sentença.
XXII. Pelo que, terá de concluir-se que a responsabilidade pela ocorrência do acidente não é imputável à Recorrente por violação das regras de segurança e saúde no trabalho, devendo a sentença ser revogada em conformidade, com os devidos reflexos no valor da pensão anual e vitalícia remível, bem como no valor correspondente à indemnização por incapacidade temporária, as quais foram calculadas de forma agravada
.”
6. O Ministério Publico apresentou resposta no sentido de que o recurso não merece provimento devendo a sentença recorrida ser mantida. Refere que “a queda do Sinistrado ocorre no sótão, por via de uma clarabóia ali existente, não se vislumbrando qualquer omissão, por parte do Tribunal “a quo” relativamente ao local da queda, nem ao local onde o Sinistrado veio a cair” e, ainda, que a questão da violação das regras de segurança foi tratada de forma expressa e clara.
II -Delimitação do objeto de recurso
Resulta das disposições conjugadas dos arts. 639.º, n.º 1, 635.º e 608.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis por força do disposto pelo art.º 1.º, n.ºs 1 e 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho (CPT), que as conclusões delimitam objetivamente o âmbito do recurso, no sentido de que o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as questões suscitadas pelas partes (delimitação positiva) e, com exceção das questões do conhecimento oficioso, apenas sobre essas questões (delimitação negativa).
Assim, fixa-se como questão a decidir:
(i) saber se ocorreu violação das regras de segurança por parte da entidade empregadora.
III- Fundamentação de Facto
Nos termos do artigo 663.º, n.º 2 do CPC aplicam-se ao acórdão da Relação as regras prescritas para a elaboração da sentença, entre as quais o artigo 607.º, n.º 4, por força do qual o juiz deve tomar em consideração na fundamentação, os factos admitidos por acordo, os provados por documento ou confessados.
Na contestação apresentada, a ré alegou factos que devem ser considerados conjugados, ainda, com as fotografias juntas aos autos e a que a ré alude, nos artigos 10º e 13º.
Assim, refere-se expressamente, na contestação:
“
Art.º 3, O A. deslocou-se ao sótão do prédio onde tinham sido realizados trabalhos na cobertura, já concluídos, sendo que para o efeito utilizou a escada do prédio,
Art.º 9.º Nem a clarabóia da qual o A. caiu.
Art.º 23º Porém, foi o A. que, voluntariamente, foi para cima dos vidros da clarabóia sem qualquer indicação da R. nesse sentido,
Art.º 25º Os vidros não são adequados nem estão preparados para suportar o peso de pessoas e para servir de travessia
Art.º 26.º Sendo que, o gerente da R., aquando do início dos trabalhos avisou o A. que não poderia pisar tais vidros, como condição de segurança para evitar o risco de queda,
Art.º 27.º Nem passar por cima igualmente por razões de segurança dado que não estão preparados para utilização como passagem.”
Destes factos alegados e das fotografias juntas aos autos – fotografias que a ré invocou como sendo do local do acidente - resulta inequívoco que esta aceitou que, no acidente dos autos, o autor caiu através dos vidros da clarabóia, existente no sótão, que se vieram a quebrar, pelo que se concretizará, nos factos, esta matéria, através da introdução do art.º 4.a), com a seguinte redação: “o autor caiu através dos vidros da clarabóia, existente no sótão, que se quebraram.”
É, assim, a seguinte a factualidade a considerar,
Factos Provados:
“1. No dia 27 de Agosto de 2021, o A., nascido em .../1975, trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização de “BB, LDA”.
2. Com a categoria profissional de “pintor”.
3. Auferindo a Retribuição Anual Ilíquida de € 9.446,60 [€ 635,00 (salário base) x 14M + €2,30 (subsídio de refeição) x 22D x 11M].
4. No dia indicado em 1, depois do almoço, encontrando-se ao serviço da entidade empregadora supra referida, o A., quando estava no sótão para ir buscar os equipamentos de trabalho (mangueira de cabo elétrico e máquina de pressão) utilizados, por si, para lavar o telhado, desequilibrou-se e caiu, no solo, de uma altura de cerca de 10 metros, perdendo os sentidos.
4. a) O autor caiu através dos vidros da claraboia, existente no sótão, que se quebraram.
4.
1
Do acidente resultaram para o A. hematomas epicranianos a nível parietal bilateral; fractura das apófises transversas esquerdas entre L1 e L5; fracturas alinhadas de arcos costais esquerdos (terço anterior do 2.º e médio do 3.º); presença de conteúdo hemorrágico na musculatura psoas e ilíaca esquerda, com assimetria em relação à direita; e contusão das partes moles na região glútea e sagrada à direita; bem como, luxação do cotovelo, reduzida de emergência, e de luxação do ombro (sem indicação de lateralidade), com redução incruenta.
5. O autor ficou com IPP de 2,95 %.
6. Teve ITA entre 28/07/2021 e 26/06/2022. 7. A data da consolidação é 26/06/2022.
8. O autor, na altura da queda, encontrava-se no local sozinho não utilizando qualquer equipamento de proteção individual e não existindo qualquer sistema de proteção coletiva que o protegesse contra o risco de queda em altura.
9. O autor recebeu da ré, em 27/08/2021 um capacete, um colete de proteção, botas com biqueira de aço e arnês.
10. O arnês referido em 9 destinava-se à proteção do trabalhador quando se encontrasse no telhado, não tendo condições de utilização quando o trabalhador se encontrava no sótão.
11. A ré não tinha, no momento do acidente, a responsabilidade civil por acidentes de trabalho relativo ao autor transferida para uma seguradora.
12. O legal representante da ré apenas celebrava o contrato de seguro por acidentes de trabalho dos seus trabalhadores, depois de os ver a trabalhar, para, dessa forma, avaliar se lhe interessava mantê-los ao seu serviço.
13. A ré não adotou qualquer medida de segurança relativamente à claraboia, nomeadamente a colocação de guarda corpos ou a colocação de qualquer outro tipo de vedação de acesso adequado.”
Factos não provados:
“
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa. A matéria constante dos articulados sobre a qual o Tribunal não se pronunciou ou é irrelevante ou é conclusiva, pelo que não pode integrar os factos provados ou não provados.
Nomeadamente, não se provou que a ré não tivesse dado ordens para o autor se deslocar ao sótão.
Não se provou que o sótão não fosse o local de trabalho do autor.
Não se provou que as lesões do autor apuradas tenham decorrido de outro acidente.
Não se provou que o autor não tivesse de se deslocar ao sótão quando caiu.
Não se provou que o autor tenha decidido andar em cima da clarabóia ou pisar voluntariamente a clarabóia.
Não se provou que os objetos que o autor foi buscar ao topo do edifício já se encontrassem no rés do chão do prédio.
Não se provou que o autor tivesse ido ao sótão depois do almoço buscar objetos seus.”
IV- Fundamentação de Direito
4.1.
Nos presentes autos está essencialmente em causa saber se o acidente sofrido em 27 de agosto de 2021 pelo autor se deveu, ou não, a falta de observância das disposições legais sobre segurança, higiene e saúde no local de trabalho, por parte da sua entidade empregadora.
A sentença de 1.ª instância, considerou que há responsabilidade agravada da empregadora, na ocorrência deste acidente, por inobservância do disposto no n.º 1 e 2, alíneas a), e), g), i e j) da lei 102/2009, de 20 de setembro e, ainda, nexo de imputação objetiva entre omissão /violação das regras de segurança e o acidente ocorrido.
A recorrente pretende ver afastada a sua responsabilidade por não resultar provado que a queda do trabalhador ocorreu na clarabóia e em consequência de equipamento que protegesse da queda em altura, pela inexistência de qualquer previsão normativa expressa e, ainda, pela inexistência de nexo causal.
Atenta a data do acidente de trabalho em apreço nos autos, ocorrido em 27 de agosto de 2021, é aplicável a Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, (LAT).
O n.º 1 do art.º 18º da LAT estatui que
“[q]uando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais.”
Como requisitos específicos para funcionamento da estatuição do art.º 18.º da LAT é necessário concluir:
“
1.º - que sobre o empregador (ou seu representante) recaía o dever de observar determinadas regras de comportamento cuja observância, seguramente, ou muito provavelmente, teria impedido a consumação do evento danoso e que o empregador (ou seu representante) faltou à observância dessas regras, não tomando por esse motivo o cuidado exigível a um empregador normal,
2.º - que dessa conduta inadimplente resultou o acidente (entre ambos intercorre um nexo de causalidade adequada - artigo 563.º do Código Civil)
.”
2
Cabe a quem invoca a inobservância das regras de segurança pelo empregador, o ónus da prova dos factos demonstrativos de que houve inobservância das regras de segurança no trabalho por parte do empregador e de que essa inobservância foi causal do acidente, o artigo 342.º do Código Civil.
4.2.
A recorrente, sem se insurgir quanto à matéria de facto dada como provada e não provada, refere que não é dado como provado onde o trabalhador caiu, mas apenas que caiu.
Sucede, porém, que na contestação que apresentou, resultava inequívoco que, a ré aceitava que, no acidente dos autos, o autor caiu através dos vidros da clarabóia, existente no sótão, que se vieram a quebrar, o que, aliás, permitiu a correção oficiosa da matéria de facto por este Tribunal.
A queda do sinistrado ocorreu, assim, no sótão, concretamente em cima de uma clarabóia ali existente, não se verificando a apontada omissão do local onde ocorreu a queda.
4.3.
Defende a recorrente que, para existir uma violação de uma norma de segurança que imponha um comportamento ou proíba um comportamento, tem de existir uma previsão normativa expressa, o que não se verifica no caso dos autos, já que o Tribunal
a quo
ao considerar que violou o disposto no n.º 1 e 2º, alíneas a),e)g) i e j) do artigo 15º da Lei 102/2009, de 10 de setembro limitou-se a referir deveres genéricos.
Vejamos.
No que respeita à matéria atinente à segurança, higiene e saúde no trabalho, não pode deixar de se reconhecer a existência de deveres gerais de cuidado que se aplicam, genericamente a todas as atividades, sem prejuízo dos inúmeros textos normativos que preveem e regulam os riscos próprios de atividades e setores específicos.
Assim importa atentar que se consagram deveres gerais de cuidado, na legislação em geral, uma grande atenção ao desenvolvimento das funções laborais, em condições ótimas em termos de higiene, segurança e saúde, com recurso a legislação ordinária, normas constitucionais e comunitárias, de que servem de exemplos, o disposto nos artigos 127.º « ao nível dos deveres empregador quanto à prevenção de riscos de acidentes ( alíneas c), g), h), i), do n.º 1 », 281º a 284 « referem os princípios norteadores do quadro legal dos acidentes de trabalho e doenças profissionais), todos do CT e, ainda, nos artigos 1.º, 18.º, 59.º, n.ºs 1, als. c) e f) e 2, al. e) da Constituição da República Portuguesa.
E como se refere no Acórdão do STJ, de 27.11.2014
3
“[e]ste vasto, variado e incisivo quadro normativo, que, até por influência do Direito Comunitário, se vai tornando cada vez abrangente e complexo, não implica que só possa existir violação de regras de higiene, saúde e segurança quando elas estão legalmente ou convencionalmente consagradas, mas mesmo quando, numa dada atividade ou setor, ainda não exista uma regulamentação específica.
Não será despiciendo citar, a este propósito, NUNO CALVÃO DA SILVA
[
…
]
, que, com fundamento no direito comunitário (v.g. Diretiva 89/391/CEE, alterada pela Diretiva n.º 2007/30/CE, do Conselho, de 20/06, vertida na Lei n.º 102/2009, de
10/09) alude a uma cláusula geral constante do artigo 6.º, número 1, desse ato comunitário, que consagra uma obrigação genérica de segurança e saúde no trabalho que se impõe ao empregador, alegando que:
«a fixação de regras precisas e absolutas poderia revelar-se insuficiente para proteger os trabalhadores, dada a evolução científica e técnica dos nossos dias (…) Deste modo, o cumprimento das obrigações específicas - primeiros socorros e luta contra incêndios, informação, consulta e participação e formação dos trabalhadores - pelos empresários não os isenta de responsabilidade, no caso de produzirem danos na saúde dos trabalhadores, porquanto a existência de uma obrigação geral impõe a adoção de todas as medidas racionalmente necessárias e tecnicamente possíveis e praticáveis, ainda que não elencadas na lei».
Neste citado acórdão do STJ é, ainda, referida jurisprudência que tem também sufragado esta tese.
4
Aderindo a este entendimento, podemos afirmar que a culpa da entidade patronal na produção do acidente de trabalho, para além de poder resultar da falta de observação de regras concretas sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, pode também resultar da falta de observação dos deveres gerais de cuidado.
Questão diferente, e que iremos enfrentar, é o cumprimento, pela entidade patronal dos deveres de observação dos deveres gerais de cuidado (a que se alude na sentença recorrida)e da alegada ausência de nexo causal.
4.4.
Com relevo apurou-se que:
- no dia [27 de agosto de 2021], depois do almoço, encontrando-se ao serviço da entidade empregadora supra referida, o A., quando estava no sótão para ir buscar os equipamentos de trabalho (mangueira de cabo elétrico e máquina de pressão) utilizados, por si, para lavar o telhado, desequilibrou-se e caiu, no solo, de uma altura de cerca de 10 metros, perdendo os sentidos.
- o autor caiu através dos vidros da claraboia, existente no sótão, que se quebraram.
- o autor, na altura da queda, encontrava-se no local sozinho não utilizando qualquer equipamento de proteção individual e não existindo qualquer sistema de proteção coletiva que o protegesse contra o risco de queda em altura.
- o autor recebeu da ré, em 27/08/2021 um capacete, um colete de proteção, botas com biqueira de aço e arnês.
- o arnês referido em 9 destinava-se à proteção do trabalhador quando se encontrasse no telhado, não tendo condições de utilização quando o trabalhador se encontrava no sótão.
- a ré não adotou qualquer medida de segurança relativamente à claraboia, nomeadamente a colocação de guarda corpos ou a colocação de qualquer outro tipo de vedação de acesso adequado.”
A sentença recorrida entendeu que, a recorrente não implementou as condições necessárias à execução da tarefa desenvolvida pelo trabalhador, no momento do acidente, com base na seguinte argumentação:
“
A ré colocou o autor numa situação de perigo, não tendo adotado quaisquer medidas de proteção, coletiva ou individual. A ré tinha consciência do perigo. Tanto a tinha que disse ao autor para ter cuidado.
É verdade que a ré forneceu ao autor equipamentos de proteção individual, conforme apurado. Contudo, tais equipamentos, conforme referiu, destinavam-se a fazer face ao perigo inerente à permanência no telhado. Ora, para aceder ao telhado, o autor tinha de passar pelo sótão. E essa passagem envolvia igualmente perigos. Perigos que não eram minimizados ou até neutralizados pelos equipamentos fornecidos, pois tais equipamentos tinham uma finalidade diversa. Quanto ao perigo inerente à permanência no sótão, a ré apenas alertou verbalmente o autor para o perigo, para ter cuidado.
Afigura-se manifesto que se impunha a adoção de medidas de proteção, nomeadamente em torno da clarabóia. Se não era possível a linha de vida, então devia ter sido colocado um guarda corpos para neutralizar o risco do qual a ré teve consciência, risco esse que se concretizou no acidente que vitimou o autor. Tenha-se em consideração o disposto, nomeadamente, no artigo 15.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), e), g), i) e j) da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro, disposições legais todas elas violadas pelo comportamento do empregador neste caso.
É verdade que o sótão se encontrava nas condições em que era utilizado (quando o era / se o fosse) pelos moradores. Tal asserção não fundamenta, porém, uma qualquer erosão dos deveres que impendem sobre o empregador. A análise faz-se nos seguintes termos: existia perigo? A resposta é afirmativa. Nessa medida, tinha o empregador de cumprir as suas obrigações. Se esse perigo ameaçava a esfera de outros sujeitos, é questão irrelevante neste contexto, pois a ré não responde pela segurança desses sujeitos. A ré apenas responde perante os seus trabalhadores.
O acidente é, portanto, imputável à ré, uma vez que decorreu da violação de regras de segurança e saúde no trabalho por parte desta nos termos do artigo 18.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro
.”
Aderimos a esta argumentação de falta de observação dos deveres gerais de cuidado.
Acrescentando-se, ainda, que o acidente ocorre, quando o autor se deslocava ao sótão, para recolher equipamentos de trabalho, necessários à atividade por si desenvolvida, tendo-se verificado nas circunstâncias de tempo, modo e lugar proporcionadas pela ré.
Dando-se, a necessidade por parte do autor, de se deslocar ao sótão, em cumprimento de atividade laboral, e comportando aquela deslocação risco, a empregadora tinha de prevenir a existência desse risco, observando os deveres a que aludem os n.ºs 1 e 2, alíneas a), e), g), i) e j) da Lei n.º 102/2009, de 10 de setembro.5
5
Assegurando ao trabalhador condições de segurança para realizar todos os aspetos de seu trabalho, no caso a deslocação ao sótão – onde estava situada uma clarabóia sem colocação de guarda corpos ou outra vedação – para recolher os instrumentos de trabalho necessários, evitando e combatendo os riscos que em concreto esta deslocação importava através de adoção de medidas específicas adequadas a prevenir o risco de apoio ou queda dos trabalhadores sobre a clarabóia e que tivessem em conta a especial fragilidade do material de que era feita essa clarabóia ( vidro) e a abertura da mesma para o interior dum prédio com uma altura de 10 metros.
Impunha-se, assim, que a empregadora tivesse verificado não só as condições do local onde iriam decorrer os trabalhos mas também dos locais, onde, pelo menos, por imposição das tarefas que o trabalhador teria de realizar, este tinha que aceder, dando conta do concreto risco, decorrente justamente da presença de uma clarabóia, com as características que as fotografias junto aos autos documentam, sinalizando-a e protegendo-a, designadamente com a colocação de guarda corpos ou outro tipo de vedação.
E, aludindo-se, agora, a uma previsão normativa expressa, resulta do art.º 45º
6
do
Regulamento de Segurança no Trabalho de Construção Civil
que, para a eventualidade de o trabalhador aceder, a um local em que o trabalhador se apoie inadvertidamente sobre um ponto frágil, o legislador exige as “prevenções necessárias”, a fim de evitar que alguém aceda à mesma. A mesma conclusão se retira do n.º1 do art.º 11.º da Portaria 101/96, de 3 de abril que dispõe que [
s]empre que haja risco de queda em altura, devem ser tomadas medidas de proteção coletiva adequadas e eficazes ou, na impossibilidade destas, de proteção individual, de acordo com a legislação aplicável, nomeadamente o Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil.
Perante, a existência, no local, de uma clarabóia, era exigível que a empregadora tivesse formulado um juízo de prognose em relação ao risco de queda, em caso do trabalhador aceder, como acedeu, ao sótão, afigurando-se evidente que a colocação de guarda corpos ou de qualquer outra vedação à volta da clarabóia eliminaria ou, no limite, reduziria o risco a que o trabalhador estava sujeito sendo, uma medida de segurança idónea, a impedir a verificação do acidente em causa nos autos.
7
Será, ainda, oportuno lembrar que o Tribunal a quo deu como não provado, que a ré não tivesse dado ordens para o autor se deslocar ao sótão, que o sótão não fosse o local de trabalho do autor, que o autor não tivesse de se deslocar ao sótão quando caiu, que o autor tenha decidido andar em cima da clarabóia ou pisar voluntariamente a clarabóia, que os objetos que o autor foi buscar ao topo do edifício já se encontrassem no rés do chão do prédio e que o autor tivesse ido ao sótão depois do almoço buscar objetos seus, não tendo a recorrente impugnado a correspondente decisão.
Conclui-se, assim, tal como na sentença recorrida que a ré desrespeitou as regras de segurança que se lhe impunham face à específica tarefa que o sinistrado realizava (
buscar os equipamentos de trabalho (mangueira de cabo elétrico e máquina de pressão),
necessária à sua atividade profissional de lavagem de telhados.
4.5
A recorrente refere, ainda, que para além da violação da infração, teria de estar alegado e provado o nexo de causalidade entre a violação e a ocorrência e que, dos factos dados como provados não consta esta matéria.
A questão a enfrentar agora prende-se com saber se, em face da factualidade apurada, pode afirmar-se a verificação do requisito do nexo de causalidade.
Sobre a específica questão de saber se, no caso de violação culposa de regras de segurança a imputação do acidente de trabalho exige que a conduta do empregador ou das pessoas indicadas no artigo 18.º da LAT tenha sido condição necessária (
conditio sine qua non
) da ocorrência do dano ou se se basta com a demonstração de que o sinistro é uma consequência normal, previsível da violação das regras de segurança, o acórdão de 17 de Abril de 2024, foi proferido no Processo n.º 179/19.8T8GRD.C1.S1-A(Recurso para Uniformização de Jurisprudência)uniformizou jurisprudência no sentido de que:
«(…) para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador, ou por uma qualquer das pessoas mencionadas no artigo 18º, nº1 da LAT, é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação».
No caso concreto, apurou-se que o autor se desequilibrou e caiu no solo, de uma altura de cerca de 10 metros, perdendo os sentidos e que o equipamento de proteção individual – arnês - não tinha condições de utilização quando o trabalhador se encontrava no sótão e que, não existia relativamente à claraboia, a colocação de guarda corpos ou a colocação de qualquer outro tipo de vedação de acesso adequado.
Ora, apesar de se desconhecer a causa que terá provocado o desequilíbrio do autor, podemos afirmar que a violação das regras de segurança ocorreu, quando existindo perigo de queda, o empregador não colocou como devia – os equipamentos de proteção coletiva - a saber guarda corpos ou qualquer outro tipo de vedação de acesso adequado à clarabóia, o que resulta da matéria de facto provada, factos 8 e 13.
Sendo que, das circunstâncias que se lograram apurar em que o sinistro ocorreu, permitem concluir que, se estivesse colocado um guarda corpos ou qualquer outro tipo de vedação de acesso adequado à clarabóia o acidente não teria ocorrido, sendo o sinistro uma consequência normal, previsível da violação de regras de segurança e, assim, demonstrado o nexo de causalidade entre a violação e o acidente.
A sentença recorrida terá assim de ser confirmada, improcedendo o recurso.
V- Responsabilidade pelas custas
As custas serão da responsabilidade da recorrente por ter ficado vencida, art.º 527º, n.º 2 do CPC.
VI- Decisão
Em face do exposto, acorda-se:
a. em alterar oficiosamente a matéria de facto, aditando o art.º 4.a), nos termos sobreditos;
b. julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 9 de abril de 2025
Alexandra Lage
Maria José Costa Pinto
Leopoldo Soares
______________________________________________________
1. Por manifesto lapso de escrita é repetido a numeração.
2. Ver Acórdão desta Relação de 08.05.2024, proferido no processo n.º 2024/22.8T8PDL.L1, relatado pela Sra. Desembargadora Maria José Pinto, aqui 1ª Adjunta, disponível in www.dgsi.pt.
3. Proferido no processo n.º 1816/18.7T8AGD.P1.S1, disponível in
www.dgsi.pt
.
4. “-
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 31/03/2004, Processo n.º 0440072.dgsi.Net, relatora: Fernanda Soares:
I - A culpa da entidade patronal na produção do acidente de trabalho pode resultar da falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho e da falta de observação dos deveres gerais de cuidado.
II - A não utilização de determinado equipamento de segurança (o cinto de segurança, por exemplo) não configura uma situação de culpa por violação das regras de segurança se existir norma legal que especificamente obrigasse a utilizar tal equipamento.
III - Se tal norma não existir, só há culpa se os deveres gerais de cuidado impusessem o uso daquele equipamento.
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/06/2005, processo 05S1037.dgsi.Net, em que foi relator Fernandes Cadilha:
É imputável à entidade patronal a título de culpa o acidente de trabalho que resulta da violação de um dever geral de cuidado, independentemente de terem ou não sido violadas especificas disposições legais ou regulamentares relativas à segurança no trabalho.
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/01/2006, C.J., 2006, Tomo I, página 143 (Sumário):
Mesmo que o acidente de trabalho se não deva a violação de normas de segurança no trabalho, a entidade patronal age com culpa se o acidente se dever a ato do representante do empregador, por violação do dever geral de cuidado, imputável àquele representante a título de culpa.
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20/04/2006, Processo n.º 477/06.dgsi.Net (Sumário), em que foi relator Serra Leitão:
I – Quando um acidente de trabalho ocorre por violação das regras relativas à segurança, higiene e saúde no trabalho, imputado culposamente à empregadora, devendo notar-se que basta a culpa genérica, passa esta a ser a primeira responsável pela reparação infortunística.
II – O empregador está obrigado a assegurar aos seus trabalhadores condições de segurança, higiene e de saúde em todos os aspetos relacionados com o trabalho, importando o desrespeito desta obrigação a sua responsabilização se se consubstanciar casuisticamente em factualidade donde resulte de modo inequívoco essa violação – art.ºs 1.º, 4.º, n.º 1, e 8.º, n.º 1, do D.L. n.º 441/91, de 14/11.
III – A violação das referidas regras traduz-se na ofensa de normas relativas à segurança no trabalho e que constarão dos diversos diplomas legais que regem para cada tipo de atividade profissional, embora se admita, sem esforço, que na previsão legal cabem quadros fácticos em que ainda não existindo ofensa a um normativo concreto, a conduta da entidade patronal omita deveres tão evidentes de cuidado que não pode deixar de ser integrada na dita previsão legal genérica .
IV- Mas é também necessário, para assacar à entidade patronal a responsabilidade pela reparação infortunística, que fique provado que esse incumprimento foi causa adequada do acidente, ainda que na formulação negativa da teoria da causalidade, que é a que o nosso ordenamento jurídico acolhe (art.º 563.º do C. Civil).”
5. O artigo 15 da Lei 102/2009 estabelece que:
“1 -
O empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspectos do seu trabalho.
2 - O empregador deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da actividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, tendo em conta os seguintes princípios gerais de prevenção:
a) Evitar os riscos;
(…)
e) Combate aos riscos na origem, por forma a eliminar ou reduzir a exposição e aumentar os níveis de proteção;
(…)
g) Adaptação do trabalho ao homem, especialmente no que se refere à conceção dos postos de trabalho, à escolha de equipamentos de trabalho e aos métodos de trabalho e produção, com vista a, nomeadamente, atenuar o trabalho monótono e o trabalho repetitivo e reduzir os riscos psicossociais;
(…)
i) Substituição do que é perigoso pelo que é isento de perigo ou menos perigoso;
j) Priorização das medidas de proteção coletiva em relação às medidas de proteção individual;
(…)”
6. O art.º 45º, do
Regulamento de Segurança no Trabalho de Construção Civil
, Decreto n.º 41821/58, de 11 de agosto, refere que “[n]os telhados de fraca resistência e nos envidraçados usar-se-á das prevenções necessárias para que os trabalhos decorram sem perigo e os operários não se apoiem inadvertidamente sobre pontos frágeis.
7. Seguindo-se o acórdão do STJ, proferido no processo n.
º
855/11.3TTBRG.G1.S1, de 14.01.2016, disponível in
www.dgsi.pt
.
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/0bb5e20b62aa607580258c6d004ce259?OpenDocument
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1,756,944,000,000
| null |
112/23.2T8LGA.E1
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112/23.2T8LGA.E1
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VÍTOR SEQUINHO DOS SANTOS
|
O Administrador da Insolvência não pode, por carecer de legitimidade, desconsiderar qualquer quantia superior ao definido judicialmente como rendimento indisponível. Ele está restringido a cumprir o despacho judicial que define o rendimento indisponível (uma vez o salário mínimo), integrando todo e qualquer valor superior a este o rendimento disponível.
|
[
"EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE",
"RENDIMENTO DISPONÍVEL",
"ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA"
] |
Processo n.º 112/23.2T8LGA.E1
*
(…) apresentou-se à insolvência, tendo formulado pedido de exoneração do passivo restante.
Por sentença proferida em 01.06.2023, a requerente foi declarada insolvente.
Em 24.09.2023, foi proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, o qual determinou que, durante os 3 anos subsequentes ao encerramento do processo, a requerente deveria entregar anualmente, ao fiduciário, as quantias por si auferidas que excedessem o valor correspondente à retribuição mínima mensal garantida por mês.
Em 27.11.2023, a requerente informou o tribunal de que se encontrava a residir e a trabalhar em Angola, descreveu os rendimentos que auferia e as despesas acrescidas que a sua permanência nesse país implicava e pediu que fosse
«alterado o rendimento disponível da insolvente, nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 3, do C.I.R.E., para o valor de € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) mensais, quantia a ser entregue, mensalmente, ao fiduciário.»
Em 06.02.2024, a requerente desistiu do pedido que formulara em 27.11.2023.
Em 18.10.2024, a requerente informou o tribunal de que se encontrava novamente a residir e a trabalhar em Angola e descreveu os rendimentos que auferia e as despesas acrescidas que a sua permanência nesse país implicava. Não formulou, então, qualquer pedido.
Em 21.10.2024, o fiduciário apresentou o primeiro relatório anual, cujo teor transcrevemos parcialmente:
«(…) A devedora, desde que foi notificada do deferimento da exoneração do passivo restante, em 25-09-2023, informou a sua situação laboral bem como os rendimentos mensais auferidos e enviou ao Fiduciário os documentos suscetíveis de o comprovarem, como lhe foi oportunamente solicitado pelo Fiduciário (doc. 1).
Das informações transmitidas pela ilustre mandatária da devedora e da análise aos referidos documentos, foi possível apurar que, desde 01-10-2023 até 30-09-2024, período que corresponde ao 1.º ano da cessão, a devedora esteve sempre a trabalhar em Angola como docente do ensino secundário e auferiu rendimentos anuais suscetíveis de serem cedidos para a fidúcia no montante de € 29.200,83 porque foram superiores ao valor equivalente a 1SMNx12 meses (€ 9.660,00), que lhe foi fixado a título de rendimento indisponível, como se discrimina no mapa que se anexa (doc. 2).
Constatámos, também, que a devedora depositou na conta da fidúcia o montante de € 3.300,00, a fim de amortizar ao montante de € 29.200,83 que devia ter cedido, ficando no final do 1.º ano da cessão com uma dívida à fidúcia de € 25.900,83.
Concluímos, assim, que a devedora, durante o 1.º ano do período da cessão, cumpriu apenas parcialmente com as obrigações, previstas no n.º 4 do artigo 239.º do CIRE, como se comprometeu, por força da concessão da exoneração do passivo restante, porque não depositou na conta da fidúcia todos os montantes apurados como suscetíveis de serem cedidos, não tendo, assim, dado cumprimento ao constante na alínea c) do artigo 239.º do CIRE.
Mais se informa que, com vista ao cumprimento do n.º 2 do artigo 240.º do CIRE, foi dado conhecimento da presente informação aos credores e à mandatária da devedora (docs. 3 e 4).
(…)»
Por despacho proferido em 13.11.2024, foi ordenada a notificação da requerente
«para entregar ao AI o montante em dívida, o qual ascende a € 25.900,83.»
Em 28.11.2024, a requerente pediu a reforma do despacho proferido em 13.11.2024, nos seguintes termos:
«1. A Insolvente encontra-se, tal como no período homólogo do ano transacto, a residir e trabalhar em Luanda (Angola).
2. Com efeito, foi contratada, em Setembro de 2023, para exercer as funções de professora de Filosofia, num estabelecimento de ensino naquela cidade, tendo outorgado contrato de trabalho a termo incerto com a empresa (…) – Gestão de Participações e Investimentos Imobiliários, S.A..
3. Desse mesmo facto, informou o douto tribunal, por requerimento datado de 27.11.2023, sob a referência n.º 11917541.
4. Sucede que, por motivos relacionados com o seu processo de legalização, em Angola, em Janeiro do corrente, a insolvente cessou a relação laboral que mantinha com aquela empresa e outorgou contrato de trabalho com nova entidade, designadamente, com a empresa (…) – Actividades Educativas e Culturais, empresa legalmente conectada com a sua primitiva entidade empregadora – Cfr. Doc. n.º 1, cujo conteúdo se dá por inteiramente reproduzido.
5. Ao abrigo do contrato mencionado em 4 do presente, a insolvente mantém as suas funções de docente do ensino secundário, na área da Filosofia, auferindo uma retribuição mensal de Kw 1.087.500,00, o que equivale, de acordo com a taxa de conversão actual, ao valor aproximado de € 1.087,00 (mil e oitenta e sete euros) mensais – Cfr. Documento n.º 1, ora junto.
6. Nos termos do referido contrato, acresce a este valor mensal base uma compensação por isenção de horário de trabalho, no valor de Kw 141.848,00, o que equivale, com a taxa de conversão actual, a um valor aproximado de € 141,00 (cento e quarenta e um euros) – Cfr. Documento n.º 1, ora junto.
7. Por outro lado, recebe um subsídio de expatriação, de natureza não remuneratória, de montante variável e pago apenas quando verificadas as respectivas condições de atribuição – Cfr. Documento n.º 1, ora junto.
8. Este subsídio de expatriação tem um valor máximo de Kw 1.860.000,00, o que equivale, à taxa de conversão actual, ao montante aproximado de € 1.860,00 (mil oitocentos e sessenta euros) – Cfr. Documento n.º 1, ora junto.
9. A aludida prestação pecuniária tem como propósito exclusivo o de reembolso ou compensação de despesas realizadas pela insolvente, motivadas pela sua deslocação e residência em território não nacional e pela diferença de custo de vida entre Portugal e Angola.
10. Com efeito, Luanda é considerada uma das cidades mais caras do globo, implicando, portanto, um custo de vida muito elevado, que visa ser compensado pela atribuição referida em 7 do presente.
11. Acresce que, o pagamento de tal subsídio não se verifica mensalmente, sendo certo que, quando se encontra em Portugal, em gozo de férias, não lhe é atribuído – o que confirma o seu carácter não remuneratório.
12. Mais se refira que, no que concerne a serviços considerados básicos, existe, na cidade de Luanda, uma oferta muito deficitária, nomeadamente no que respeita a serviços de saúde primários, o que se traduz num recurso regular ao sector privado, importando custos avultados.
13. Também esta questão justifica a atribuição do aludido subsídio de expatriação.
14. O aludido contrato de trabalho renovou-se em Setembro do corrente, mantendo-se em vigor até ao próximo dia 31.08.2025 – Cfr. Documento n.º 2, que ora se junta e cujo conteúdo se dá por inteiramente reproduzido.
15. De tais factos, deu a insolvente conhecimento aos autos, através de requerimento datado de 18.10.2024, sob a referência n.º 12973506.
II -De Direito
16. Entendeu o Exm.º Senhor Administrador de Insolvência nos presentes autos, nos termos do relatório do primeiro ano de cessão elaborado ao abrigo do disposto no artigo 240.º, n.º 2, do C.I.R.E., que a insolvente tinha auferido rendimentos anuais susceptíveis de serem cedidos para a fidúcia, no montante de € 29.200,83 (vinte e nove mil e duzentos euros e oitenta e três cêntimos).
17. Descontado o valor de € 9.660,00 (nove mil e seiscentos e sessenta euros), equivalente a doze vezes o salário mínimo nacional – que havia sido fixado como rendimento indisponível – concluiu o fiduciário que existia uma dívida, no primeiro ano de cessão, à massa insolvente, no valor de € 25.900,83 (vinte e cinco mil e novecentos euros e oitenta e três cêntimos).
18. Sucede que, no entendimento da insolvente, há rendimentos que por si foram recebidos, para além do valor considerado como de rendimento indisponível, que não constituem rendimento disponível, por força da aplicação da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, tendo, no entanto, sido incluídos no cálculo apresentado como rendimento disponível.
19. Com efeito, estipula o dito preceito que se excluem do conceito de rendimento disponível, excepcionalmente, todos os rendimentos que sejam razoavelmente necessários para o exercício pelo devedor da sua actividade profissional.
20. Ora, no caso concreto dos autos, a insolvente recebe um subsídio de expatriação, de natureza não remuneratória, conforme decorre da análise do documento junto como Documento n.º 1.
21. Esse mesmo subsídio de expatriação, que apenas é pago quando se encontra em Luanda (Angola), local onde exerce a sua actividade profissional e onde teve de fixar a sua residência.
22. Tal subsídio tem como função, conforme alegado supra, a compensação das despesas que a insolvente teve com a mudança de residência para aquele país, nomeadamente, a diferença substancial entre o custo de vida em Angola e em Portugal.
23. Nesta conformidade, a atribuição de tal subsídio é indispensável ao exercício da actividade profissional da insolvente, considerando que, sem ele, a mesma não conseguiria, de forma condigna, viver na cidade em que reside.
24. Com efeito, como já aflorado, Luanda é uma das cidades mais caras do mundo, tendo um custo de vida consideravelmente distinto do que se vive em Portugal.
25. Assim, este subsídio, ao abrigo do sobredito preceito legal, enquadra o conceito de rendimento indisponível, para efeitos de cessão, uma vez que é indispensável ao exercício da profissão da insolvente.
26. Na verdade, não fora tal subsídio, a insolvente não poderia trabalhar em Angola e, em consequência, mantinha-se desempregada em Portugal ou, mesmo que empregada, a auferir um rendimento muito inferior e em condições de trabalho muito mais precárias.
27. O que acabaria por prejudicar os próprios credores reconhecidos nos presentes autos, designadamente, beneficiando de um rendimento disponível substancialmente inferior.
28. Na verdade, uma das obrigações impostas à insolvente é a de procurar e manter um emprego, nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 4, alínea b), do C.I.R.E., o que a mesma fez poucos meses após ser decretada a insolvência.
29. Ora, para que possa continuar o cumprimento dessa obrigação – conferindo-lhe, a mesma, possibilidade de amortizar os créditos reconhecidos no âmbito do presente processo – necessita a insolvente do sobredito subsídio de expatriação, indispensavelmente.
30. Neste conspecto, deverá tal valor ser considerado, nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do C.I.R.E. como um rendimento indispensável para o exercício, pela insolvente, da sua actividade profissional, pelo que deverá ser tido como rendimento indisponível para a cessão.
31. Assim sendo, ao valor considerado pelo Ex.º Sr. Administrador de Insolvência como rendimento disponível para cessão, deverá ser deduzido o montante dos subsídios de expatriação percebidos pela insolvente que, no caso concreto, atendendo aos respectivos recibos de vencimento – oportunamente remetidos ao fiduciário – totaliza o valor de € 22.675,51 (vinte e dois mil e seiscentos e setenta e cinco euros e cinquenta e um cêntimos), tendo por base a taxa de conversão actual – Cfr. Documentos n.ºs 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14, que ora se juntam e cujos conteúdos se dão por inteiramente reproduzidos.
32. Este valor deverá ser, portanto, deduzido do valor em dívida à massa insolvente, no primeiro ano de cessão, por consubstanciar um rendimento indisponível, à luz do supra citado preceito legal.
33. Com efeito, é pacífico na jurisprudência que o rendimento indisponível a ser fixado ao insolvente deverá ser arbitrado de acordo com as circunstâncias particulares do caso concreto, nomeadamente, a sua actividade profissional.
34. A título de exemplo, cita-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07.12.2023, Processo n.º: 2107/23.7T8VNF.G1, em cujo sumário se pode ler: “ (…) II – O montante concreto do rendimento indisponível a ser fixado ao devedor terá de ser arbitrado tendo em consideração as particulares do caso concreto, designadamente, idade, saúde, necessidades especiais daquele, incluindo as decorrentes da sua actividade profissional, pessoal e académica, número de pessoas que integram o seu agregado familiar, idade, saúde, necessidades especiais dessas pessoas, (…)” – Cfr. Ac. Tribunal da Relação de Guimarães de 07.12.2023, Processo n.º: 2107/23.7T8VNF.G1, Relator: José Alberto Martins Moreira Dias, disponível para consulta em
www.dgsi.pt
.
35. Ora, no caso concreto dos autos, sempre terá de considerar-se como rendimento indisponível aquele obtido a título de subsídio de expatriação, a acrescer ao valor do salário mínimo nacional, por, conforme anteriormente alegado, se tratar de uma quantia monetária destinada a compensar os custos com a expatriação da devedora insolvente, cuja necessidade surgiu para cumprimento de uma das suas obrigações – a de procurar e manter emprego.
36. Assim, salvo melhor entendimento, não poderia o valor de tais subsídios ser incluído no rendimento disponível da insolvente, o que altera substancialmente o seu valor.
37. Na verdade, deverá, na fixação do rendimento indisponível a considerar, no caso concreto, ter-se em consideração os princípios da adequação, proporcionalidade e equilíbrio entre os interesses contrapostos dos credores e da insolvente, norteados pela imperiosa exigência de se assegurar uma existência condigna a esta última.
38. E, no caso concreto dos autos, afigura-se adequada e proporcional, salvo melhor entendimento, a exclusão dos subsídios de expatriação percebidos pela insolvente, porque necessários e indispensáveis à manutenção do seu vínculo de emprego, atendendo ao custo de vida no país onde teve de fixar a sua residência e demais despesas comprovadas nos autos.
39. Nesta conformidade, deverá a decisão ínsita no despacho de que ora se reclama – no sentido do reconhecimento de uma dívida de € 25.900,00 (vinte e cinco mil e novecentos euros) à massa insolvente – ser reformada, excluindo-se desse valor o montante de € 22.675,51 (vinte e dois mil e seiscentos e setenta e cinco euros e cinquenta e um cêntimos), porquanto se trata de subsídios de expatriação que devem ser tidos como rendimento indisponível da insolvente.
Termos em que:
E nos melhores de Direito, que V.ª Ex.ª, doutamente, suprirá, requer-se seja o douto despacho antecedente reformado, no sentido de ser excluído do valor reconhecido em dívida à massa insolvente, o montante de € 22.675,51 (vinte e dois mil e seiscentos e setenta e cinco euros e cinquenta e um cêntimos), referente a subsídios de expatriação recebidos pela insolvente, por consubstanciarem rendimento indisponível, ao abrigo do disposto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do C.I.R.E.»
Em 05.02.2025, foi proferido o seguinte despacho:
«(…)
Requerimento datado de 28/11/2024, com a referência 13125683:
A requerente veio reclamar do despacho datado 13/11/2024, pretendendo a sua reforma, no que respeita à determinação do valor a entregar à fidúcia – € 25.900,83.
Do objeto:
Admissibilidade da presente reclamação e, suas, consequências se for analisada e decidida.
Cumpre apreciar e decidir:
Nos termos do disposto no artigo 613.º do CPC com a epigrafe “extinção do poder jurisdicional e suas limitações”, “1 – Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
2 – É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes;
3 – O disposto nos números anteriores bem como nos artigos subsequentes aplica-se com as necessárias adaptações aos despachos.”
Por sua vez estabelece o artigo 616.º, n.º 2, do CPC “Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:
a) tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
b) constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa.”
As sentenças ou os despachos assim que proferidos fica esgotado o poder jurisdicional relativamente a eles, significa isto que o juiz que os proferiu ou com a mesma hierarquia não os pode alterar, exceto nos casos especificamente previstos, por a tal impor o princípio da segurança jurídica. De facto, não pode uma mesma questão ter uma ou mais decisões contraditórias entre si, em sucessivos despachos, sob pena da própria validade, autoridade e segurança da sentença ou despacho ficar em crise, pois a todo o tempo, podia vir uma nova decisão do mesmo juiz que seguisse rumo diferenciado. Os despachos e sentenças apenas podem ser alterados por via do recurso, por ser o meio próprio da sua impugnação. Esta é a regra, que se compreende, mas tem exceções, para o que agora interessa – reforma do despacho-, ela pode acontecer de forma muito excecional, sempre que tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, bem como constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa.
Salvo o devido respeito, nenhuma dessas situações está contemplada, no caso vertente, pois as normas em que se estriba o despacho e a reclamação são exatamente as mesmas, ou seja o disposto no artigo 239.º do CIRE, se bem que com interpretações ou olhares diferentes sobre a mesma.
Com efeito, a requerente pretende que depois de fixado por despacho o rendimento indisponível em uma vez o ordenado mínimo, que se cristalizou por não ter sido impugnado, pretende alargar esse rendimento a quantias superiores. Dito de outra maneira, após a prolação do despacho que fixou o rendimento indisponível, pretende que o AI e o Tribunal o desconsidere, sem qualquer alteração judicial posterior, passando também quantias recebidas em montante superior a esse salário mínimo mensal também sejam desconsideradas, mormente a quantia a que se apelida de subsídio de expatriação no valor de € 1.860,00, curiosamente valor superior ao próprio salário, que se refere de natureza não remuneratória, alegadamente destinada ao reembolso ou compensação de despesas da trabalhadora.
Ora, em primeiro lugar, o AI não pode, por carecer de legitimidade, desconsiderar qualquer quantia superior ao definido judicialmente como rendimento indisponível. Ele está restringido a cumprir o despacho judicial que define o rendimento indisponível (uma vez o salário mínimo), integrando todo e qualquer valor superior a este o rendimento disponível. Na verdade, qualquer alteração a tal fixação, tem de ser determinada judicialmente, em sede de alteração do rendimento indisponível, por mudança das circunstâncias, sendo a partir de tal despacho de alteração que a obrigação de entrega se modifica, retroagindo os seus efeitos à data do pedido de alteração formulado, caso venha a ser deferido, não tendo efeitos retroativos a datas anteriores – cfr. Ac. do Trib. da Relação de Guimarães, de 22/6/2023, proferido no processo n.º 1824/20.8T8GMR.G1, in
www.dgsi.pt
..
Esta é a nossa visão sobre a aplicabilidade do artigo 239.º, do CIRE. O rendimento indisponível e, por consequência, o disponível, é fixado por despacho judicial, que tem em consideração os elementos que demonstrem as necessidades básicas do agregado familiar do insolvente, laborais e outras despesas que se considerem essenciais, nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 3, b) i. / ii. e iii do CIRE. Ponderado e fixado esse valor, será o que tem efeitos no processo, até à sua alteração posterior, não servindo essa alteração para retificar períodos anteriores à entrada do requerimento nesse sentido, isentando-o de entregas anteriores. Com efeito, qualquer alteração para produzir efeitos deve ser pedida e devidamente fundamentada. No caso vertente, a requerente pretende que o valor entretanto apurado, o qual se acha conforme ao apurado de acordo com despacho em vigor sobre o rendimento indisponível, seja reduzido com efeitos retroativos, sem que exista um despacho determinativo dessa alteração, o que se vislumbra não ser legalmente possível. Até porque qualquer alteração deve ser devidamente comprovada e ponderada. Não podemos reformar o despacho, porquanto o montante apurado está conforme ao despacho vigente relativo ao valor que fixou o rendimento indisponível, o qual transitou em julgado e não foi entretanto sujeito a qualquer modificação.
De outra banda, mesmo a considerar o alegado para efeitos futuros, temos que para além do contrato de trabalho junto e dos recibos de vencimento (que apenas demonstram o que está a ser entregue à requerente, mas não provam que aqueles montantes sejam ajudas de custo ou que não façam parte do seu vencimento), mesmo, em tese, considerando tal alegado subsídio de expatriamento ajudas de custo, tinha de estar alegado e demonstrado que o recebido se destinou a custear efetivamente as despesas inerentes ao exercício das funções. Tem sido entendido pacificamente na jurisprudência que as ajudas de custo apenas não integram a retribuição na medida em que efetivamente se destinem a ressarcir o trabalhador por gastos efetuados no exercício da atividade laboral. “Quando essas compensações excedem as despesas suportadas, as mesmas devem ser consideradas retribuição, nos termos resultantes do preceituado no mencionado artigo 260.º, n.º 1, do Código do Trabalho” – vide Ac. do STJ de 13/4/2011 e Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 15 de dezembro de 2016, proferido no processo n.º 1270/12.7TBFAF-B.G1, in www.jurisprudência.pt. No caso, não foi demonstrado quais as despesas efetivamente suportadas para o exercício da sua profissão, pelo que desconhecemos em que montante elas se situam ou mesmo se foram feitas. Aliás, temos muitas reservas a que este suplemento integre o conceito de ajudas de custo, abono de viagem, despesas de transporte, abonos motivado por deslocalização das instalações da entidade empregadora e outras equivalentes, devidas por deslocações, novas instalações ou despesas feitas em serviço do empregador, primeiro porque não houve deslocalização ou novas instalações do empregadora, não se tratam de despesas de transporte em serviço, não são abonos de viagem e, principalmente a quantia é fixa e regular e, inclusive superior ao próprio salário, pelo que a vimos como forma de retribuição. Por outro lado, o que se alega é que esta prestação é para suportar o custo de vida em Angola, que se aponta superior (tal facto alegado, também tinha de ser demonstrado, pois não basta assim o referir. Na verdade, desconhecemos em concreto qual o nível de vida lá enfrentado, pois nunca lá vivemos ou estivemos, nem mesmo sabemos o salário mínimo vigente em Angola, o qual refletirá os inerentes custos de vida). Ora, se é para esse efeito – suportar custo de vida -, não nos parece que estejamos perante ajudas de custo, mas sim uma tentativa de equilibrar o salário ao alegado elevado custo de vida. Ora, os salários e os seus aumentos devem acompanhar o aumento do custo de vida, não é por isso que deixam de ter caráter de retribuição e não ajudas de custo.
Por via disso, não temos documento ou prova plena que motive uma reforma do despacho anterior.
Se a requerente pretender uma alteração do valor do rendimento indisponível, por motivos de morar e trabalhar em País estrangeiro deve apresentar requerimento nesse sentido e provar que as suas despesas aumentaram, num dos diferentes fatores a considerar. Não é a primeira vez que alteramos o valor do rendimento indisponível fruto da emigração para outro País (onde não raras vezes o custo de vida é superior e, por essa via, os salários mínimos também o serem. Nessa circunstância, não faz sentido manter como critério norteador o salário mínimo Português, quando a pessoa passa a estar sujeita a outro custo de vida superior. Há que efetivamente ajustar para o salário mínimo de tal País de destino, por ser aquele que oferece o mínimo indispensável para a sobrevivência condigna do trabalhador naquele País), ajustando o rendimento indisponível ao salário mínimo desses países, já que esse salário é o critério norteador para que as pessoas desses países possam viver neles com o mínimo de dignidade.
Termos em que improcede a reforma pretendida.
(…)»
A requerente interpôs recurso de apelação deste despacho, tendo formulado as seguintes conclusões:
«A. A ora Recorrente requereu a reforma do despacho datado de 13.11.2024, sob a referência n.º 134203864, que fixou, na sequência do relatório do primeiro ano de cessão apresentado pelo senhor administrador de insolvência, como estando em dívida à massa insolvente e, portanto, a entregar por aquela primeira, à fidúcia, a quantia de € 25.900,83 (vinte e cinco mil e novecentos euros e oitenta e três cêntimos).
B. Tal reclamação e pedido de reforma foram feitos, nos termos do disposto no artigo 616.º, n.º 2, do C.P.C, com fundamento na existência de elementos no processo que, só por si, implicariam necessariamente decisão diversa da tomada, assim como por erro na qualificação jurídica dos factos.
C. Com efeito, entende a Recorrente existirem nos autos provas que não foram tidas em consideração pelo julgador, aquando da prolação de tal despacho, nomeadamente vários documentos que justificam, por si, as despesas tidas pela insolvente e, bem assim, os seus rendimentos.
D. E que, se tais provas houvessem sido correctamente consideradas e ajuizadas pelo douto tribunal a quo, implicariam, necessariamente, decisão diversa da tomada, ou seja, que não fosse reconhecido tal montante em dívida, a entregar à fidúcia.
E. Por outro lado, da análise da dita prova documental, resulta que a insolvente, ora Recorrente, aufere um subsídio que
não constitui natureza remuneratória
e, portanto, não deveria ter sido entendido – como foi, pelo douto tribunal de primeira instância – como seu rendimento disponível, a entregar à fidúcia.
F. Em bom rigor, aufere a Recorrente um subsídio de expatriação – assim denominado no contrato de trabalho que outorgou e nos respectivos recibos de vencimento, que constam dos autos – que entende não dever ser considerado rendimento disponível, por não constituir retribuição, devendo, portanto, ser excluído do montante global a entregar à fidúcia, nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do CIRE.
G. Tendo sido, porém, a consideração de tal subsídio de expatriação como rendimento disponível – e, portanto, passível de ser entregue à fidúcia - que levou à fixação do montante referido em 1, despacho do qual a ora Recorrente reclamou.
H. Sucede que, entendeu o douto tribunal a quo, em suma, que: a) por um lado, a decisão reclamada não se inseria em nenhuma das situações previstas no artigo 616.º, n.º 2, do CPC – pelo que não seria uma decisão susceptível de reclamação / reforma; b) por outro lado, que, mesmo que se inserisse, seria sempre de manter, pois não constam quaisquer provas do processo que implicassem decisão diversa.
I. Conclui o douto despacho ora recorrido pela manutenção do despacho de que a insolvente reclamou.
J. Inconformada com tal decisão, interpõe a Recorrente o presente recurso de apelação, pretendendo a revogação do despacho datado de 05.02.2025 (que decide pela improcedência da reforma do despacho datado de 13.11.2024), sendo substituído por outro que reforme o anterior despacho (13.11.2024), no sentido peticionado.
Senão, vejamos:
K. Salvo o devido respeito, entende a Recorrente que andou mal o douto tribunal a quo ao decidir no sentido da inaplicabilidade ao despacho, do qual se reclamou, do artigo 616.º, n.º 2, do C.P.C..
L. Isto porque, conforme se deixou antevisto, para além de constar dos autos prova documental, apresentada junto de vários requerimentos realizados pela insolvente, que determinaria uma decisão diversa da tomada, é certo que ocorreu um erro evidente, salvo o devido respeito, na qualificação jurídica dos factos demonstrados.
M. Na verdade, foram juntos aos autos, com os requerimentos sob as referências n.º 11917541 e 12973506, recibos de vencimento da insolvente, bem como vários documentos comprovativos de despesas mensais da mesma, desde que residia em Angola, que, se analisados de forma crítica pelo julgador, imporiam, salvo melhor e mais fundamentada opinião, uma decisão diversa da plasmada no despacho de 13.11.2024.
N. Uma vez que as despesas apresentadas pela ora Recorrente – e que, contrariamente ao afirmado no despacho de que ora se recorre, se encontram demonstradas por documento – são bastante superiores àquelas que a mesma teria caso residisse e trabalhasse em território nacional.
O. Razão de ser da atribuição que lhe é feita, em Angola, de um subsídio de expatriação – assim denominado no contrato de trabalho da insolvente e, bem assim, nos respectivos recibos de vencimento, juntos aos autos – que não poderá ser considerado, para efeitos de obtenção do rendimento disponível da recorrente.
P. Do próprio contrato de trabalho da Recorrente – junto como Documento n.º 1 com o requerimento datado de 18.10.2024 – consta que tal subsídio
não reveste uma natureza remuneratória
.
Q. Ora, também aqui andou mal o douto tribunal a quo ao, corroborando o entendimento do senhor administrador de insolvência, entender que tal subsídio de expatriação deveria constituir rendimento disponível da insolvente, susceptível de ser entregue à fidúcia.
R. E entende-se que andou mal, por um lado, por ter desconsiderado as provas carreadas para os autos que impunham uma decisão diversa – designadamente, os documentos juntos pela insolvente com os seus requerimentos; por outro, por ter qualificado tal factualidade, à luz do disposto no artigo 239.º do CIRE, como rendimento disponível da ora Recorrente, incorrendo, salvo o devido respeito, em manifesto erro.
S. Assim, aplica-se ao despacho reclamado o disposto no n.º 2 do artigo 616.º do Código de Processo Civil, sendo o mesmo digno de reforma.
T. Efectivamente, reitere-se que andou mal o douto decisor ao, concordando com a interpretação apresentada pelo senhor administrador de insolvência, no seu relatório do primeiro ano de cessão, fixar como valor em dívida à fidúcia aquele que fixou.
U. Isto porque, a Recorrente foi contratada, em Setembro de 2023, para exercer as funções de professora de Filosofia, num estabelecimento de ensino na cidade de Luanda (Angola), tendo outorgado contrato de trabalho a termo incerto com a empresa (…) – Gestão de Participações e Investimentos Imobiliários, S.A..
V. Desse mesmo facto, informou o douto tribunal, por requerimento datado de 27.11.2023, sob a referência n.º 11917541.
W. Sucede que, por motivos relacionados com o seu processo de legalização, em Angola, em Janeiro de 2024, a Recorrente cessou a relação laboral que mantinha com aquela empresa e outorgou contrato de trabalho com nova entidade, designadamente, com a empresa (…) – Actividades Educativas e Culturais, empresa legalmente conectada com a sua primitiva entidade empregadora – Cfr. Documento n.º 1 junto com o requerimento datado de 18.10.2024.
X. Ao abrigo do aludido contrato, a Recorrente mantém as suas funções de docente do ensino secundário, na área da Filosofia, auferindo uma retribuição mensal de Kw 1.087.500,00, o que equivale, de acordo com a taxa de conversão actual, ao valor aproximado de € 1.087,00 (mil e oitenta e sete euros) mensais – Cfr. Documento n.º 1 junto com o requerimento datado de 18.10.2024.
Y. Acresce a este valor mensal base uma compensação por isenção de horário de trabalho, no valor de Kw 141.848,00, o que equivale, com a taxa de conversão actual, a um valor aproximado de € 141,00 (cento e quarenta e um euros) – Cfr. Documento n.º 1 junto ao requerimento apresentado em 18.10.2024.
Z. Por outro lado, recebe um subsídio de expatriação,
de natureza não remuneratória
, de montante variável e pago apenas quando verificadas as respectivas condições de atribuição – Cfr. Documento n.º 1 junto ao requerimento apresentado em 18.10.2024.
AA. Este subsídio de expatriação tem um valor máximo de Kw 1.860.000,00, o que equivale, à taxa de conversão actual, ao montante aproximado de € 1.860,00 (mil e oitocentos e sessenta euros) – Cfr. Documento n.º 1 junto ao requerimento apresentado em 18.10.2024.
BB. A aludida prestação pecuniária tem como propósito exclusivo o de reembolso ou compensação de despesas realizadas pela insolvente, motivadas pela sua deslocação e residência em território não nacional e pela diferença de custo de vida entre Portugal e Angola, como bem refere o contrato de trabalho outorgado.
CC. Com efeito, Luanda é considerada, consabidamente, como uma das cidades mais caras do globo, implicando, portanto, um custo de vida muito elevado.
DD. Acresce que, o pagamento de tal subsídio não se verifica mensalmente, sendo certo que, quando se encontra em Portugal, em gozo de férias, não lhe é atribuído – o que confirma o seu carácter não remuneratório.
EE. Mais se refira que, no que concerne a serviços considerados básicos, existe, na cidade de Luanda, uma oferta muito deficitária, nomeadamente no que respeita a serviços de saúde primários, o que se traduz num recurso regular ao sector privado, importando custos avultados.
FF. Também esta questão justifica a atribuição do aludido subsídio de expatriação.
GG. Nesta conformidade, por todos os elementos supra referidos constantes dos autos, sempre o montante a entregar à fidúcia, pela ora Recorrente, teria de ser fixado em valor substancialmente inferior, devendo do mesmo ser excluídos os valores atinentes ao aludido subsídio de expatriação.
HH. Assim, existiam elementos nos autos que implicavam uma decisão diversa da tomada pelo douto tribunal a quo, pelo que se aplicava ao despacho reclamado o disposto no artigo 616.º, n.º 2, alínea b), do C.P.C..
II. Acresce, ainda, que, em face de tais elementos, também se impunha uma interpretação jurídica diferente, por parte do tribunal de primeira instância.
JJ. Com efeito, atendendo à prova documental junta aos autos, nomeadamente, referente aos rendimentos da insolvente, ora Recorrente, seria imperativo, salvo o devido respeito, que o douto tribunal de primeira instância não considerasse o subsídio de expatriação, subsumindo-o ao previsto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do CIRE.
KK. Pelo que, também é ao caso dos autos aplicável o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 616.º do C.P.C., devendo o despacho reclamado ter sido reformado em conformidade com o requerido.
LL. Finalmente, em face de tudo o exposto, fácil será concluir, salvo o devido respeito e mais fundamentada opinião, que o douto tribunal a quo laborou num verdadeiro erro de julgamento na aplicação do direito aos factos, ao proferir o despacho de que ora se recorre.
MM. Destarte, ocorrerá erro de julgamento, nomeadamente na aplicação do direito, quando, dos factos constantes dos autos se retiram conclusões jurídicas distintas das que se deveriam retirar e, portanto, se lhes aplica erradamente, o Direito.
NN. Com efeito, mantendo a decisão reclamada, no despacho de que ora se recorre, não restam dúvidas – salvo o devido respeito – que o tribunal de primeira instância não aplicou a norma ínsita no artigo 616.º, n.º 2, do CPC, por considerar que a mesma não seria aplicável ao despacho reclamado, violando-a pela sua não aplicação.
OO. Ora, atendendo à ausência de consideração dos elementos probatórios das despesas e rendimentos da ora Recorrente, bem como à errada qualificação jurídica dos mesmos – através da inclusão do subsídio de expatriação no rendimento a ceder à fidúcia – bom será de ver que aquela era uma norma a ser aplicada ao caso dos autos, impondo a reforma peticionada do despacho reclamado.
PP. Por outro lado, entendeu o Exm.º Senhor Administrador de Insolvência nos presentes autos, nos termos do relatório do primeiro ano de cessão elaborado ao abrigo do disposto no artigo 240.º, n.º 2, do CIRE, que a Recorrente tinha auferido rendimentos anuais susceptíveis de serem cedidos para a fidúcia, no montante de € 29.200,83 (vinte e nove mil e duzentos euros e oitenta e três cêntimos), existindo uma dívida à massa insolvente no valor de € 25.900,83 (vinte e cinco mil e novecentos euros e oitenta e três cêntimos).
QQ. Sucede que, salvo melhor entendimento, há rendimentos que foram recebidos pela insolvente, ora Recorrente, para além do valor considerado como de rendimento indisponível, que não constituem rendimento disponível, por força da aplicação da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do C.I.R.E, tendo, no entanto, sido incluídos, no cálculo apresentado, como rendimento disponível.
RR. Com efeito, estipula o dito preceito que se excluem do conceito de rendimento disponível, excepcionalmente, todos os rendimentos que sejam razoavelmente necessários para o exercício pelo devedor da sua actividade profissional.
SS. Ora, no caso concreto dos autos, a Recorrente recebe um subsídio de expatriação,
de natureza não remuneratória
, conforme decorre da análise do documento junto como Documento n.º 1 junto com o requerimento de 18.10.2024.
TT. Esse mesmo subsídio de expatriação, que apenas é pago quando se encontra em Luanda (Angola) – local onde exerce a sua actividade profissional e onde teve de fixar a sua residência – tem como função, conforme alegado supra, a compensação das despesas que a insolvente teve com a mudança de residência para aquele país, nomeadamente, a diferença substancial entre o custo de vida em Angola e em Portugal.
UU. Assim, deve ser entendido como indispensável ao exercício da actividade profissional da insolvente, considerando que, sem ele, a mesma não conseguiria, de forma condigna, viver na cidade em que exerce funções laborais.
VV. Destarte, este subsídio, ao abrigo do disposto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do CIRE, enquadra o conceito de rendimento indisponível, para efeitos de cessão, uma vez que é indispensável ao exercício da profissão da Recorrente.
WW. Pois, não fora tal subsídio, a Recorrente não poderia trabalhar em Angola e, em consequência, mantinha-se desempregada em Portugal ou, mesmo que empregada, a auferir um rendimento muito inferior e em condições de trabalho muito mais precárias.
XX. O que acabaria por prejudicar os próprios credores reconhecidos nos presentes autos, designadamente, beneficiando de um rendimento disponível substancialmente inferior.
YY. Na verdade, uma das obrigações impostas à insolvente é a de procurar e manter um emprego, nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 4, alínea b), do C.I.R.E., o que a mesma fez poucos meses após ser decretada a insolvência.
ZZ. Ora, para que possa continuar o cumprimento dessa obrigação – conferindo-lhe, a mesma, possibilidade de amortizar os créditos reconhecidos no âmbito do presente processo – necessita a Recorrente do sobredito subsídio de expatriação, indispensavelmente.
AAA. Neste conspecto, andou mal o douto tribunal a quo ao não ter considerado o aludido subsídio, nos termos do disposto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b) do CIRE, como um rendimento indispensável para o exercício, pela Recorrente, da sua actividade profissional.
BBB. Assim sendo, ao valor considerado pelo Sr. Administrador de Insolvência como rendimento disponível para cessão, deveria ter sido deduzido o montante dos subsídios de expatriação percebidos pela insolvente que, no caso concreto, atendendo aos respectivos recibos de vencimento – oportunamente remetidos ao fiduciário – totaliza o valor de € 22.675,51 (vinte e dois mil e seiscentos e setenta e cinco euros e cinquenta e um cêntimos), tendo por base a taxa de conversão actual – Cfr. Documentos n.ºs 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14 juntos com a reclamação/reforma.
CCC. Com efeito, é pacífico na jurisprudência que o rendimento indisponível a ser fixado ao insolvente deverá ser arbitrado de acordo com as circunstâncias particulares do caso concreto, nomeadamente, a sua actividade profissional.
DDD. Assim, salvo melhor entendimento, não poderia o valor de tais subsídios ser incluído no rendimento disponível da insolvente (sendo subsumido ao disposto no artigo 240.º do CIRE), pelo que laborou o douto tribunal de primeira instância em erro de julgamento, ao tê-lo feito.
EEE. Na verdade, deveria o julgador, na fixação do rendimento indisponível a considerar, no caso concreto, ter tido em consideração os princípios da adequação, proporcionalidade e equilíbrio entre os interesses contrapostos dos credores e da insolvente, norteados pela imperiosa exigência de se assegurar uma existência condigna a esta última.
FFF. E, no caso concreto dos autos, afigura-se adequada e proporcional, salvo melhor entendimento, a exclusão dos subsídios de expatriação percebidos pela insolvente, porque necessários e indispensáveis à manutenção do seu vínculo de emprego, atendendo ao custo de vida no país onde teve de fixar a sua residência e demais despesas comprovadas nos autos.
GGG. Nesta conformidade, atendendo ao erro na interpretação e aplicação do artigo 239.º, n.º 2, do CIRE, que se consubstanciou na não subsunção do subsídio de expatriação auferido pela Recorrente como rendimento indisponível, nos termos daquele preceito, incorreu o douto tribunal a quo num verdadeiro erro de julgamento.
HHH. Em suma, violou o douto tribunal a quo o artigo 616.º, n.º 2, do CPC, pela sua não aplicação ao caso concreto dos autos – mormente, ao despacho do qual se reclamou e cuja reforma não foi procedente – assim como violou o artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do CIRE, também pela sua não aplicação ao caso concreto que, pelos motivos invocados supra, se impunha.
III. Tal violação culminou na tomada de uma decisão injusta, desproporcional e que, salvo o devido respeito, merece a censura da Recorrente e do Direito.
JJJ. Pelo que deverá o douto despacho recorrido ser revogado, reformando-se o despacho anterior e excluindo-se do valor da dívida à massa insolvente o montante de € 22.675,51 (vinte e dois mil e seiscentos e setenta e cinco euros e cinquenta um cêntimos), porquanto constitui a soma dos subsídios de expatriação pagos à Recorrente, que devem ser tidos como seu rendimento indisponível.
Termos em que:
E nos melhores de Direito, que V.ªs Ex.ªs, Venerandos Desembargadores, doutamente, suprirão, requer-se seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e sendo o despacho datado de 13.11.2024 reformado, no sentido de ser excluído do valor reconhecido em dívida à massa insolvente, o montante de € 22.675,51 (vinte e dois mil e seiscentos e setenta e cinco euros e cinquenta e um cêntimos), referente a subsídios de expatriação recebidos pela insolvente, por consubstanciarem rendimento indisponível, ao abrigo do disposto no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), do C.I.R.E.»
*
A recorrente não tem razão, pelas razões que passamos a expor.
1. Resulta do artigo 239.º do CIRE (diploma ao qual pertencem as normas legais doravante referenciadas sem menção da sua origem) que é no despacho inicial de exoneração do passivo restante que o tribunal fixa a parte do rendimento do devedor que fica excluída da cessão prevista no n.º 2.
Feita essa fixação, a mesma vigorará ao longo de todo o período da cessão. Só assim não acontecerá se, em momento ulterior do período da cessão e com fundamento numa alteração relevante das circunstâncias em que a parte do rendimento do devedor excluída da cessão foi fixada, for proferida decisão que modifique a anterior. Esta eventual decisão ulterior terá de ser requerida por quem para o efeito tenha legitimidade e será proferida na sequência de um incidente em que se ofereça, discuta e valore meios de prova da alteração de circunstâncias que tiver sido alegada. A eventual alteração da parte do rendimento do devedor que fica excluída da cessão não terá efeito retroactivo, ou seja, não poderá afectar o que por aquele for devido à fidúcia até ao momento da prolação da decisão modificativa, sob pena de, por via da atribuição desse efeito, o tribunal estar a contrariar a sua decisão anterior, em violação do disposto no artigo 613.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil.
Se e enquanto não for proferida decisão modificativa do despacho inicial, é este que vigora. Em consequência disso, é com referência aos termos em que tal fixação foi feita que se afere se o devedor está a cumprir o dever, previsto no artigo 239.º, n.º 4, alínea c), de entrega da parte dos seus rendimentos objecto da cessão.
Sendo assim, violaria as normas legais que acima referimos uma decisão judicial que avaliasse o cumprimento do dever previsto no artigo 239.º, n.º 4, alínea c), em função de um critério diferente daquele que tivesse sido ficado no despacho inicial, ou noutro que tivesse procedido à alteração deste no que concerne à fixação da parte do rendimento do devedor que fica excluída da cessão. O referido despacho de avaliação do cumprimento do dever previsto no artigo 239.º, n.º 4, alínea c), tem natureza meramente executiva do despacho que fixou os termos desse dever, pelo que tem de se conformar com aquilo que nele foi estabelecido. Não pode afastar-se do despacho executado, seja em sentido favorável, seja em sentido desfavorável ao devedor.
2. O despacho inicial de exoneração do passivo restante determinou que, durante o período da cessão, a recorrente deveria entregar anualmente, ao fiduciário, as quantias por si auferidas que excedessem o valor correspondente à retribuição mínima mensal garantida por mês. Este valor constitui a única parcela dos rendimentos que a recorrente viesse a auferir durante o período da cessão que ficou excluída do rendimento disponível. Todos os restantes rendimentos que a recorrente viesse a auferir durante o período da cessão, fosse a que título fosse (cfr. o n.º 3 do artigo 239.º), integrariam o rendimento disponível, ou seja, seriam objecto da cessão.
Em face disto, o relatório que o fiduciário apresentou em 21.10.2024, de acordo com o qual, durante o primeiro ano da cessão, a recorrente auferiu rendimentos objecto da cessão no montante de € 29.200,83, pelo que, ao entregar apenas € 3.300, ficou a dever € 25.900,83 à fidúcia, está correcto. É precisamente isso que resulta do critério estabelecido no despacho inicial sobre a forma de cálculo do rendimento disponível.
Pela mesma razão, o despacho proferido pelo tribunal
a quo
em 13.11.2024 também está correcto. Ao ordenar a notificação da recorrente
«para entregar ao AI o montante em dívida, o qual ascende a € 25.900,83»
, limitou-se esse despacho a cumprir o decidido no despacho inicial. Não podia ser outra a decisão. Consequentemente, carece de fundamento a pretensão da recorrente de que o mesmo seja reformado.
3. A recorrente argumenta que parte do rendimento que foi notificada para entregar ao fiduciário provém de um
«subsídio de expatriação»
, que não tem natureza remuneratória e, por isso, deve ser excluído do montante a entregar à fidúcia, nos termos do artigo 239.º, n.º 3, alínea b).
Este argumento não procede, por duas razões.
Por um lado, a discussão sobre se determinada parcela do rendimento do devedor deve, ou não, integrar o rendimento disponível, tem a sua sede própria no despacho inicial de exoneração do passivo restante. Eventualmente, tal discussão renovar-se-á em incidente que tenha por objecto a alteração do montante excluído do rendimento disponível no despacho inicial, nos termos que referimos em 1. Porém, não poderá ter lugar a propósito do mero acompanhamento da execução do dever constante da alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º. Nesta sede, o único juízo a fazer incidirá sobre a conformidade da conduta do devedor com aquilo a que ele se encontra obrigado em matéria de entrega de rendimentos ao fiduciário, não havendo lugar para a discussão da bondade daquilo que ficou decidido no despacho inicial ou em eventual despacho ulterior que o tenha modificado.
Com o argumento que agora analisamos, a recorrente pretende suscitar precisamente esta última discussão. Não poderá a mesma ter lugar, pelas razões apontadas.
Por outro lado, a discussão da questão da natureza remuneratória ou não do
«subsídio de expatriação»
, seria inútil, porquanto, nos termos do n.º 3 do artigo 239.º, integram o rendimento disponível e, portanto, constituem objecto da cessão, todos os rendimentos que advenham ao devedor
«a qualquer título»
(entenda-se, remuneratório ou não), com a única excepção daqueles que sejam expressamente excluídos nos termos das diversas alíneas daquele número.
4. A recorrente argumenta que existem, nos autos, meios de prova que não foram tidos em consideração pelo tribunal
a quo
, nomeadamente vários documentos que justificam, por si, os seus rendimentos e despesas. Considera a recorrente que, se esses meios de prova tivessem sido correctamente considerados e ajuizados pelo tribunal
a quo
, necessariamente a decisão teria sido diversa da tomada.
Não é assim.
Como referimos nos pontos anteriores, o despacho cuja reforma foi requerida tinha exclusivamente por objecto verificar se a recorrente cumprira o dever previsto na alínea c) do n.º 4 do artigo 239.º e, concluindo-se negativamente, tomar as providências necessárias para que tal cumprimento ocorresse. O critério de decisão resumia-se à conformidade ou desconformidade das entregas de rendimento efectuadas pela recorrente com aquilo que ficara estabelecido no despacho inicial. Não estava em discussão que parte dos rendimentos da recorrente integram o rendimento disponível, nem para o futuro, nem, obviamente, com efeito retroactivo, como aquela parece pretender. Neste quadro, os meios de prova que a recorrente refere não tinham qualquer relevância para a prolação do despacho cuja reforma foi requerida.
5. A recorrente argumenta que o
«subsídio de expatriação»
enquadra o conceito de
«rendimento indisponível»
, para efeitos de cessão, nos termos da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º, por ser indispensável para o exercício da sua profissão.
Este argumento poderia relevar se estivesse em discussão a fixação da parte do seu rendimento que fica excluída da cessão. Porém, como anteriormente referimos, não era isso que estava em causa aquando da prolação do despacho cuja reforma foi requerida, pelo que aquela discussão não poderia ter lugar. Tratava-se, simplesmente, de ajuizar da conformidade das entregas de rendimento efectuadas pela recorrente com o que, a esse propósito, fora decidido no despacho inicial.
6. Concluindo:
- Ao ordenar a notificação da recorrente para entregar, ao fiduciário, o montante que, de acordo com o critério estabelecido no despacho inicial, se encontrava em dívida, o tribunal
a quo
decidiu bem;
- Daí que o mesmo tribunal também tenha decidido bem ao indeferir o pedido de reforma daquele despacho;
- Pelo que o recurso terá de ser julgado improcedente.
*
Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
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09.04.2025
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
Eduarda Branquinho (1.ª adjunta)
Cristina Dá Mesquita (2.ª adjunta)
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TRE
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https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/3ececc76029ccbd080258c8c0035a249?OpenDocument
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1,742,947,200,000
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CONFIRMADA
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310/17.8GFPNF.C1
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310/17.8GFPNF.C1
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SANDRA FERREIRA
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1. Atento o disposto no art. 295º do CC, o princípio contido no art. 249º do mesmo diploma legal, é aplicável a todos os atos processuais neles se incluindo o requerimento de interposição de recurso.
2. Tais erros de cálculo ou de escrita haverão de ser pontuais, decorrer do texto ou contexto da própria peça processual e a divergência entre a vontade expressa e a que se quis declarar deve ser ostensiva.
3. Não é subsumível ao disposto no art. 249º do Código Civil, o alegado engano no envio de peça processual que seria dirigida a outro processo e, consequentemente, não é possível a sua substituição integral por outra peça processual (motivações de recurso apresentadas após o termo do prazo perentório de recurso) ao abrigo do citado dispositivo legal.
4. As menções exigidas pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP não traduzem um ónus de natureza puramente secundário ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, pelo que não cumprindo o recorrente tal ónus inviabiliza o seu conhecimento.
5. Para que se imponha a aplicação do princípio in dubio pro reo é necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador – e não na do recorrente - alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que há-de ser razoável e insanável, o que não ocorre na situação presente.
6. Tendo o Tribunal a quo determinado as penas concretas e a pena única obedecendo aos respetivos critérios e sendo estas penas proporcionais às necessidades de prevenção geral e especial e suportadas pela culpa da arguida, devem estas manter-se.
(Sumário elaborado pela Relatora)
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[
"ERROS DE CÁLCULO OU DE ESCRITA",
"REQUERIMENTO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO",
"ENGANO NO ENVIO DE PEÇA PROCESSUAL",
"CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTOS",
"ÓNUS DA IMPUGNAÇÃO AMPLA.",
"IMPUGNAÇÃO ALARGADA",
"PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO",
"MEDIDA DA PENA"
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Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I-RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo Comum singular nº 310/17.8GFPNF.C1 que corre termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Local Criminal de Coimbra, Juiz 2, a 23.04.2024, foi proferida sentença, no que agora interessa, com o seguinte dispositivo [transcrição]:
“V. DECISÃO:
Pelo exposto, e decidindo:
A. Julgo a pronúncia parcialmente provada e procedente e, consequentemente:
1. Absolvo a arguida AA, dos crimes de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217º, n.º1, do Código Penal, e de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, n.ºs 1, al.s c) e e) e 3, do Código Penal, de que vinha pronunciada.
2. Condeno o arguido BB, pela prática em concurso real e efetivo e em autoria material de:
a) Um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217º, n.º1, do Código Penal, (factos 3 a 11), na pena de 5 (cinco) meses de prisão;
b) Um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, n.ºs 1, al.s. c) e e) e 3, do Código Penal (factos 3 a 11), na pena de 12 (doze) meses de prisão.
c) Procedendo ao cúmulo jurídico da penas parcelares aplicadas, condeno o arguido na pena única de 13 (treze) meses de prisão,
d) Ao abrigo do disposto nos artigos 50º, nºs 1, 2, e 5 do Código Penal, decido suspender na sua execução a pena de treze meses de prisão, ora imposta ao arguido, pelo período de treze meses, sujeita, a regime de prova, assente num plano de reinserção social, por forma a alcançar os seguintes objectivos:
- Prevenir o cometimento pelo arguido no futuro de factos de idêntica natureza;
- Permitir o confronto do arguido com as suas acções e tomada de consciência das suas consequências, de forma a que o mesmo adquira competências pessoais e sociais tendentes a determinar-se no futuro de acordo com o direito, evitando a reincidência.
3. Condeno a arguida CC, pela prática em concurso real e efetivo e em autoria material de:
a) Um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217º, n.º1 e 218º, n.º1, do Código Penal (factos 12 a 59), na pena de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);
b) Um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, n.ºs 1, al.s c) e e) e 3, do Código Penal (factos 12 a 59), na pena de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);
c) Um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217º, n.º1, do Código Penal (factos 60 a 77), na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);
d) Um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, n.ºs 1, als c) e e) e 3, do Código Penal (factos 60 a 77), na pena de 170 (cento e setenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);
e) Procedendo ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, condeno a arguida na pena única de 520 (quinhentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros); o que perfaz a multa no montante global de € 3.120,00 (três mil cento e vinte euros).
B. Julgo o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante CTT – Correios de Portugal, S.A., contra o arguido BB, improcedente e, consequentemente, absolvo o arguido/demandado do pedido.
C. Julgo o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante DD contra a arguida/demandada CC, parcialmente provado e procedente e, consequentemente, condeno a arguida/demandada a pagar à demandante, a quantia de € 243,35 (duzentos e quarente e três euros e trinta e cinco cêntimos, acrescida de juros de mora legais, desde a presente data até efectivo e integral pagamento, absolvendo a arguida/demandada do demais peticionado.
D. Ao abrigo do disposto no art. 110º, nº 1, al. b) e nº 4, do Código Penal, declaro que a quantia no montante de € 1.641,32 (mil seiscentos e quarenta e um euros e trinta e dois cêntimos) obtida pelo arguido BB com a prática dos ilícitos criminais em que ora foi condenado, consubstancia vantagem obtida com a prática dos aludidos crimes e, consequentemente, declaro a mesma perdida a favor do Estado, condenando o arguido no pagamento de tal quantia ao Estado.
E. Ao abrigo do disposto no art. 110º, nº 1, al. b) e nº 4, do Código Penal, declaro que a quantia de € 7.337,01 (sete mil trezentos e trinta e sete euros e um cêntimo), obtida pela arguida CC com a prática dos ilícitos criminais em que ora foi condenada consubstancia vantagem obtida com a prática dos aludidos crimes e, consequentemente, declaro a mesma perdida a favor do Estado, condenando a arguida no pagamento de tal quantia ao Estado.
F) Condeno os arguidos BB, nas custas criminais, com taxa de justiça, que fixo, para cada um em duas UC.
G) Sem custas nas instâncias civis (art. 4º, nº 1, al. n) do RCP.
***
- A 17.07.2024 (refª Citius 94540758) foi proferido o seguinte despacho [transcrição]:
“Requerimentos de interposição de recurso apresentados pelo arguido BB em 23.05.2024 e 03.06.2024:
No dia 23.05.2024, remeteu aos presentes autos a Il. Defensora do arguido BB um requerimento de interposição de recurso, com o qual juntou a respectiva motivação e conclusões.
Tal requerimento de interposição de recurso, respectiva motivação e conclusões, não se reportam aos presentes autos, como é possível constar da sua leitura.
Por requerimento de 03.06.2024, veio a Il. Defensora do arguido precisamente alegar tal, aduzindo que só agora verificou que, por lapso de escritório, anexou o documento com a motivação e conclusões relativas a outro processo que não o presente.
E, juntou as a motivação e conclusões correctas, requerendo que seja relevado o lapso de escritório que involuntariamente foi cometido e admitidas a motivação e conclusões correctas, requerendo que as mesmas sejam tidas como apresentadas na referida data de 23.05.2024, assim se seguindo os ulteriores termos até final.
*
A sentença condenatória ora sob recurso foi proferida no dia 23.04.2024.
Na assinatura electrónica aposta no depósito da sentença consta como data o dia 24.04.2024.
Dispõe o art. 411º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, que “O prazo para interposição do recurso é de 30 dias e conta-se:
(…)
b) Tratando-se de sentença, do respectivo depósito na secretaria (...)”.
Por sua vez, prescreve o art. 414º, nº 2 do mesmo diploma legal que o recurso não é admitido quando for interposto fora de tempo.
No caso, o prazo para interposição de recurso pelo arguido da sentença proferida nos autos, terminou em 24.05.20204, sendo que o acto podia ser praticado fora do prazo em caso de justo impedimento, ou independentemente de justo impedimento, dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, ou seja, até ao dia 29.05.2024.
O princípio contido no art. 249º do Cód. Civil - rectificação de lapso manifesto - é aplicável a todos os actos processuais e das partes.
Assim, como se consigna no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8/2/1990, cujo sumário está acessível in www.dgsi.pt., «sendo o requerimento de interposição de recurso uma autêntica declaração de vontade da parte visando produzir determinados efeitos processuais, ser-lhe-á aplicável o princípio contido no artigo 249º do Código Civil, segundo o qual o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, dá direito à rectificação desta».
«O erro é uma falsa representação da realidade: é a ignorância que se ignora». «Pratica-se determinado acto, concebendo as coisas por modo diverso daquele que, na realidade, são, mas não fora esse imperfeito conhecimento e o acto não teria sido praticado». «De entre as diversas modalidades de erro apenas interessa para o caso, o chamado erro de escrita em que há, na verdade, uma divergência entre o que se quer e o que se diz» (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/5/2005, in www.dgsi.pt.).
«Esse erro é corrigível em face do contexto ou das circunstâncias da declaração: ao ler o texto logo se vê que há erro e logo se entende o que o interessado queria dizer». «Essa modalidade de erro respeita à interpretação e daí que o acto devidamente interpretado em função do seu contexto (elemento sistemático) e circunstâncias (elementos extraliterais) deva permanecer válido com o sentido de que, afinal, é portador». «Em tais casos, o acto vale, com o seu verdadeiro sentido, sendo irrelevante o erro material: Cfr. J. Dias Marques, Noções Elementares de Direito Civil, 1977, págs. 82 e 83.» - cit. Acórdão da Relação de Coimbra de 24/5/2005.
«De qualquer modo tal erro só pode ser rectificado se for ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto: cfr., neste sentido, Antunes Varela, Cód. Civil, anotado, 1ª edição, I Volume, pág. 161, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1973, pág. 563, e Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 1ª edição, pág. 35, e Heiriich Ewald Horster, A Parte Geral do Cód. Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, 1992, pág. 566.» - cit. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/5/2005.
Isto posto, logo se concluiu que o caso dos autos não se subsume a uma hipótese de erro de escrita ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto, revelado pelo próprio teor do articulado em causa.
O “erro de escrita”, à luz do desde logo foi alegado, resulta de lapso de escritório, que anexou o documento com a motivação e conclusões relativas a outro processo que não o presente.
Ora, como se salienta no acórdão da 2ª Secção (Contencioso Tributário) do Tribunal Central Administrativo Norte de 14/2/2008, in www.dgsi.pt., a faculdade de correcção dos erros materiais manifestos verificados nas peças processuais «visa a correcção de pontuais erros em que seja manifesta ou ostensiva a divergência entre a vontade expressa e a que se quis declarar» e, como tal, «não permite que, ao abrigo dela, se possa substituir uma peça processual para além do prazo peremptório que a lei adjectiva fixa para a prática do acto».
Ora, no caso vertente a pretensão formulada pelo recorrente «não é de mera correcção de um erro material ocorrido na elaboração de uma peça processual, mas antes de substituição integral da peça processual apresentada (e inepta para o fim a que se destinava) por uma outra e distinta e, mais do que isso, que a segunda peça processual seja considerada como apresentada na data em que a primeira deu entrada em juízo; em suma, o que está em causa é a apresentação de uma totalmente nova peça processual já depois de findo o prazo que a lei fixa para a prática do acto».
Por outro lado, «a admitir-se como possível a substituição da peça processual apresentada, estaríamos a permitir que, por essa via, pudesse ser contornado o carácter preclusivo do prazo para a apresentação das alegações de recurso» (ibidem).
Ora, «ao abrigo das disposições legais que referimos, a lei apenas permite que sejam rectificados a todo o tempo os erros materiais ostensivos e nada mais do que isso» (ibidem). Por isso, «não podemos aceitar que, ao abrigo de uma faculdade que a lei concede com vista à correcção de manifestos lapsos materiais, se permita a substituição integral de peças processuais a todo o tempo e, sobretudo, a total subversão do carácter peremptório dos prazos» (ibidem).
O caso vertente não configura tão pouco uma situação de justo impedimento, nos termos e para os efeitos previstos no art. 140º do CPC.
Com efeito, um lapso de escritório, em consequência do qual foram enviados (embora dentro de prazo de recurso) um requerimento de interposição de recurso com as respectivas motivações e conclusões, que nada têm a ver com os presentes autos, não corresponde a qualquer situação totalmente imprevisível e completamente obstaculizadora da prática correcta do envio das alegações de recurso pertinentes. Ocorre, nesse caso, um erro da total responsabilidade do recorrente (ou de quem por si incorreu em tal lapso), sobre quem impendia o dever de cuidado traduzido na prévia verificação da conformidade dos documentos enviados, de forma a prevenir qualquer anomalia, como aquela que se registou, que não pode enquadrar-se no conceito de justo impedimento (cfr. neste sentido e a propósito um deficiente manuseamento informático do programa CITIUS, o acórdão do STJ de 17/4/2012, in www.dgsi.pt.).
Por tudo o que se expendeu, temos que não é admissível a pretendida “rectificação” do teor das motivações e conclusões de recurso apresentadas pelo arguido em 23.05.2024, por forma a serem consideradas como apresentadas nessa data a motivação e conclusões de recurso que o arguido ulteriormente apresentou em 03.06.2024.
Por todo o exposto, indefiro a junção aos autos da nova motivação e conclusões de recurso apresentadas pelo arguido em 03.06.2024 (após o decurso do prazo legal para interposição de recurso), ordenado o seu desentranhamento dos autos, e não se reportando o requerimento de interposição de recurso, e respectivas motivações e conclusões, apresentadas pelo arguido em 23.05.2024 aos presentes autos, não admito o recurso.
*
- Apresentada reclamação nos termos do art. 405º do Código de Processo Penal,
veio a ser proferido o douto despacho exarado no apenso 310/17.8GFPNF-F.C1 onde foi decidido o seguinte: (…)
“3 – Tendo-se concluído que a reação apropriada contra o despacho que julga não verificada uma situação alegada como de justo impedimento para a prática do ato é o recurso e não a reclamação, cumpre determinar, então, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 193.º do CPC («O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados»», aplicável subsidiariamente ao processo penal, o prosseguimento, na 1.ª instância, da forma processual adequada ao caso, ou seja, o recurso.
4 – A segunda questão elencada como fazendo parte do objeto da reclamação ficou prejudicada.
IV. Decisão
Considerando o exposto, determina-se o prosseguimento deste expediente processual, relativo à impugnação da decisão que recaiu sobre o justo impedimento para a prática do ato, como recurso.
Para a sua tramitação, como recurso, determina-se a sua remessa à 1.ª instância. Sem custas. Notifique-se.
*
II – Dos Recursos
II.1 Do recurso do despacho interlocutório
Inconformado com o despacho proferido a 17.07.2024 BB, deduziu reclamação nos termos do disposto no art. 405º do Código de Processo Penal, que foi objeto de decisão no sentido do seu prosseguimento como recurso.
O arguido BB fundamenta a sua posição na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“CONCLUSÕES:
A) través do Requerimento com a Refª. Citius nº 8904184 de 23-05-2024, foi enviado aos presentes Autos, através da plataforma electrónica “Citius”, o requerimento de interposição de Recurso, ao qual foi anexa a Motivação e Conclusões, em cumprimento do nº 3 do Art.º 412º do C.P.P;
B) Todavia, alguns dias após o envio, concretamente em 03-06-2024, a Defensora Oficiosa do ora Reclamante apercebeu-se que, por lapso de escritório, anexou a peça processual de motivação e conclusões errada, a qual nada tinha a ver com os presentes Autos, nem com o ora Reclamante, mas antes relativa a um outro processo judicial e a outra Arguida;
C) Por isso, no mesmo dia 03-06-2024, remeteu aos Autos novo Requerimento, com a Refª. Citius nº 8925225, juntando a Motivação e as Conclusões corretas, requerendo a sua admissão, solicitando que o erro/lapso fosse relevado e que aquelas – Motivação e Conclusões - fossem tidas como apresentadas em 23-05-2024, aquando do envio do Requerimento com a Refª. Citius nº 8904184, atento o lapso ocorrido.
D) A Mma. Juiz veio, então, despachar em 17-07-2024, conforme Refª. Citius 94540758, decidindo que o erro/lapso do ora Reclamante não constitui um “erro de escrita ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto, revelado pelo próprio teor do articulado em causa.”, indeferindo as novas Motivação e Conclusões juntas em 03-06-2024 com o Requerimento com a Refª. Citius nº 8925225, desde logo ordenando o seu desentranhamento e não admitindo, a final, o Recurso.
E) O Reclamante não concorda com a interpretação feita pela Mma. Juiz, entendendo que o Art.º 249º do C.C. se aplica ao caso concreto e, por isso e atento o disposto no Art.º 295º do C.C., o erro/lapso manifesto deverá ser rectificado ou corrigido.
F) De acordo com o disposto no Ac. do T.R. de Guimarães, proferido em 30-09-2021 pelo Relator Alcides Rodrigues no âmbito do Proc. nº 2856/20.1T8VCT-B.G1 (disponível em www.dgsi.pt), o erro em questão na situação concreta em análise, constitui um “erro obstáculo ou erro na declaração, traduz-se numa divergência não intencional entre a vontade e declaração, como resultado de um mero lapso, inadvertência ou engano.”
G) Também Manuel Andrade, em Teoria Geral da Relação Jurídica, II, Almedina, Pág. 235, refere: “O erro obstáculo intervém no trânsito da vontade para a declaração. (…) é, pois, um erro na formulação da vontade (…);
H) Acresce que, como se pode ler no citado Aresto do T.R. de Guimarães de 30-09-2021, relativamente ao Art.º 249º C.C., e cujo entendimento, salvo Douto e melhor entendimento, é aplicável ao presente caso: “Este preceito consagra um princípio geral aplicável tanto a actos extrajudiciais como a actos judiciais, pelo que é aplicável a declarações de vontade não negociais produzidas no decurso de um processo judicial, quer pelas partes, quer pelo juiz. (…) Isto porque também as peças processuais apresentadas pelas partes devem ser lidas na sua substância, quando delas ou das suas circunstâncias resulta evidente que a sua forma não corresponde ao que se quis expressar e se compreende o que se quis dizer. Quando tal ocorra não se está a violar o princípio da preclusão ou da estabilidade da instância, por resultar do expresso na peça que padece do lapso o que se pretendia afirmar.”
I) Ora, no Douto Despacho de que ora se Reclama, não há dúvidas de que a Mma. Juiz entende (e escreve) que o Requerimento de Interposição de Recurso constitui, em si mesmo, “uma autêntica declaração de vontade da parte visando produzir determinado efeitos processuais.”, sendo-lhe, por isso e atento o acima exposto, aplicável o princípio previsto no Art.º 249º do C.C., pondendo, ainda, ler-se no Douto Despacho ora reclamado: “O princípio contido no art.º 249º do Cód. Civil – rectificação de lapso manifesto – é aplicável a todos os actos processuais e das partes.”
J) Tendo a Mma. Juiz, ademais, constatado e expressamente feito constar do Douto Despacho Reclamado que “Tal requerimento de interposição de recurso, respectiva Motivação e conclusões, não se reportam aos presentes Autos, como é possível constar (pensa-se que quereria escrever constatar) da sua leitura.”
K) Porém, após aceitar o alegado lapso como “erro de escrita” e concordar com a aplicação do Art.º 249º C.C. ao caso concreto, a Mma. Juiz conclui, afinal, pela não aceitação do Requerimento com a Refª. Citius nº 8925225 de 03-06-2024, justificando, ademais, tal decisão com o entendimento expresso no Acórdão da 2ª Secção (Contencioso Tributário) do Trib. Central Administrativo do Norte de 14-02-2008, o qual, na realidade, decide sobre uma situação de facto completamente distinta da aqui em apreciação nos presentes Autos, em que terá sido pedida a substituição de uma peça processual por outra “para além do prazo peremptório que a lei adjectiva fixa para a prática do acto.”;
L) O Reclamante entende que a situação concreta se subsume ao decidido no pelo Juiz Relator Henrique Antunes no Ac. do T.R. de Coimbra de 19-05-2015, disponível em www.dgsi.pt, onde escreve:”…O erro material dá-se quando o declarante escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor do texto não coincide com o que o declarante tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real: o declarante queria escrever uma coisa e, por lapso, inconsideração, distração, escreveu coisa diversa.
Para o erro de cálculo ou de escrita vale um regime diferente da anulabilidade: o da correcção do erro – em vez de se anular a declaração, há simplesmente que corrigi-la (art.º 249º CC). Correcção que retroage ao tempo da emissão da declaração: por força da rectificação, a declaração passa a ter, ab initio, o conteúdo que lhe foi impresso pela declaração de correcção. A correcção da declaração visa simplesmente fazer coincidir a vontade real com aquela que foi materializada ou exteriorizada, a rectificação do que se escreveu em função daquilo que, efectivamente, se quis escrever.”
M) Bastando que o erro em questão seja ostensivo ou, como se escreve no Ac. do T.R. de Guimarães de 30-09-2021, proferido pelo Juiz Relator Alcides Rodrigues (acima citado), “o erro só pode ser rectificado se for ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto (…) que se apresenta evidente a divergência entre a vontade declarada ou realizada e a realmente querida, divergência que é claramente detectada por qualquer observador comum.”
N) E, basta a consulta/leitura do documento que foi anexado POR LAPSO com o Requerimento apresentado nos presentes Autos em 23-05-2024 – Refª. Citius nº 8904184 -, por qualquer “observador comum”, para facilmente concluir que a motivação e conclusões juntas NADA TÊM A VER COM OS PRESENTES AUTOS, BASTANDO LER O NOME QUE, DESDE LOGO, CONSTA DO CABEÇALHO, PARA PERCEBER QUE CORRESPONDE A OUTRO PROCESSO E NÃO AOS PRESENTES AUTOS!
O) Tratou-se, pois, sem margem para dúvidas, de erro ostensivo e evidente!
P) Ainda segundo o citado Aresto – Ac.T.R. de Guimarães de 30-09-2021 -, “…, é necessário que seja evidente aquilo que se quis afirmar. Sendo manifesto o lapso cometido, não pode subsistir qualquer fundada dúvida sobre o que se quis declarar.” e, também quanto a este requisito, com a junção do Requerimento de 03-06-2024 – Refª. Citius nº 8925225 – ele está verificado, pois não restam dúvidas de que o que se pretendia era que a motivação e conclusões apresentadas em 23-05-2024 – Refª. Citius nº 8904184 -, porque não correspondentes aos presentes Autos, deveriam, por isso, ter sido de imediato substituídas por aquelas juntas em 03-06-2024.
Q) “…é necessário que essa desconformidade entre o declarado e o pretendido declarar resulte da própria declaração ou das circunstâncias em que a mesma teve lugar. (…) A ostensabilidade do lapso deve resultar do próprio contexto da declaração negocial, mas poderá também advir das circunstâncias que a acompanham.”(Ac. T.R. de Guimarães de 30-09-2021) – ora, salvo Douto e melhor entendimento, o Reclamante defende que também este terceiro requisito está verificado no caso concreto.
R) Porquanto deveria a Mma. Juiz, uma vez que confirmou que o alegado lapso constitui um erro de escrita ou de cálculo, ter autorizado a sua correção, nos termos acima expostos;
S) Até porque da decisão de correcção não resulta qualquer prejuízo para as demais Partes do processo, nem sequer para o seu bom andamento e/ou para a segurança jurídica e/ou para a estabilidade da instância.
T) Ao não admitir o Recurso nos termos e por força do exposto no Douto Despacho de 17-07-2024 ora Reclamado, a Mma. Juiz diminuiu claramente as garantias de defesa do ora Reclamante, pondo em causa o Princípio da Materialidade Subjacente e o Princípio de Acesso aos Tribunais, constitucionalmente previstos, bem assim como o Princípio da Determinabilidade das Leis, da confiança e da segurança jurídica, em particular porque ao indeferir o Recurso, denegou ao Reclamante o seu recurso à Justiça e cerceou o respectivo Direito Constitucional de Acesso aos Tribunais – no caso, ao Tribunal da Relação de Coimbra – violando, além do mais, o disposto no nº 1 do Art.º 32º da Constituição da República Portuguesa.
U) Ao decidir pelo indeferimento quanto à junção do Requerimento de 03- 6-2024, ordenar o seu desentanhamento e, consequentemente, decidir pela não admissão do Recurso, a Mma. Juiz atribuiu uma importância desproporcional, desmesurada e injustificada ao erro ocorrido, inviabilizando definitivamente o Direito do ora Reclamante ao Recurso e coarctando as suas garantias de defesa e o seu direito em apurar a verdade e em esgotar todas as instâncias em sua defesa.
V) Por tudo isso, a decisão de não admissão do Recurso que consta do Despacho reclamado, põe em crise o Princípio Constitucional de Acesso ao Direito e de Tutela Jurisdicional Efectiva, previsto no Art.º 20º da CRP, porque constitui, de facto, uma denegação da justiça ao ora Reclamante.
W) A decisão de não admissão do Recurso que consta do Despacho aqui reclamado, constitui, além do mais e cumulativamente, uma violação do disposto no nº 1 do Art.º 32º da CRP, o qual dispõe: “1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.”
X) E vai contra a lógica ou filosofia do poder dever atribuído ao Juiz após a última reforma do novo C.P.C., que levou à introdução de dispositivos como, por exemplo, o Art.º 590º C.P.C., que inclui os deveres de gestão processual, como aquele de convidar as partes a suprir irregularidades, insuficiências, imprecisões, sempre numa lógica de celeridade, com vista à justa composição do litígio e à plena concretização da justiça, porquanto, no âmbito dessa lógica e em nome dos princípios da cooperação e da boa fé processual, a Mma. Juiz deveria ter atendido à correcção solicitada.
NORMAS VIOLADAS:
- Artºs. 247º, 249º e 295º do C.C.;
- Artºs.º 20º e 32º nº 1 da CRP;
Termos em que deve a presente Reclamação ser julgada procedente por provada e por via dela, ser o Douto Despacho de 17-07-2024, com a Refª. Citius 94540758 substituído por outro que admita a junção aos Autos do Requerimento de 03-06-2024 – Refª. Citius nº 8925225 -, admitindo, assim, o Despacho a proferir todos os pedidos neste oportunamente formulados, nomeadamente a correção nos termos solicitados: ou seja, admitindo-se que a motivação e conclusões que foram oportunamente juntas com o Requerimento apresentado nos presentes Autos em 23-05-024 – Refª. Citius nº 8904184 -, que nada têm a ver com os presentes Autos, sejam substituídas por aquelas correctamente juntas em 03-06-2024 – Refª. Citius nº 8925225 -, tendo-se estas como apresentadas naquela primeira data – ou seja, em 23-05-2024 -, fundamentando-se tal admissão no facto do lapso/erro em questão ser um erro “ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto” e, por isso, constituir um erro susceptível de correcção, nos termos do disposto no alegado Art.º 249º do C.C., por força do disposto no Artº. 295ºdo C.C., devendo, a final, o Novo Despacho a proferir admitir o Recurso oportunamente interposto para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra pelo Requerimento de 23-05-2024, posto que, além do mais, a não admissão de Recurso que consta no Despacho com a Refª. Citius 94540758 (cuja substituição aqui se requer) é desproporcionada e viola dos Princípios Constitucionais previstos no Art.º 20º e 32º nº 1, ambos da CRP, assim como a lógica ou filosofia subjacentes aos especiais poderes de gestão processual do Juiz consagrados na última reforma do C.P.C., em nome dos princípios da cooperação e da boa fé processual legalmente previstos.
Decidindo nesta conformidade, fará Vossa Excelência a TÃO COSTUMADA JUSTIÇA!
***
II.1.3 – Do recurso da sentença condenatória
Inconformada com a decisão condenatória proferida, dela interpôs recurso a arguida CC para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes
conclusões
[transcrição]:
“CONCLUSÕES:
1. Andou mal o tribunal a quo quando baseou e sustentou a condenação da aqui arguida na pena de multa excessiva, além do suposto valor a entregar ao Estado por enriquecimento ilícito, não provado, por alegadamente ter praticado os 4 crimes de que vem acusada, não sendo admissível a condenação subjectiva do sujeito, isto é, condenar o arguido sem concretizar o período temporal certo da prática das infracções, sugerindo – se períodos mensais, sem concretizar a premissa do “quando”.
2. As provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento.
3. Desta feita, entendemos que andou bem mal o tribunal a quo quando, no caso concreto, após a realização do julgamento, não deteve nenhuma dúvida razoável persistente sobre os elementos essenciais do tipo de crime em análise.
4. Mais, não se aceita que, da conjugação do teor dos relatórios periciais e dos depoimentos tenha resultado o apuramento cabal e seguro dos factos que constam no elenco dos factos provados (circunstâncias de modo de ocorrência, tempo e lugar e respetivas consequências psicológicas), e a identidade do agente dos factos constantes na acusação.
5. Considera–se que o tribunal, salvo o devido respeito, já detinha a condenação da arguida determinada independentemente do que se viesse a apurar em sede de julgamento, o que por um lado se entende, mas que, contudo, não é causa suficiente para condenar “a torto e a direito” qualquer pessoa acusada em praça pública ou não é motivo para fazer da arguida um exemplo.
6. Para mais quando a arguida, e de acordo com o relatório social desta, se mostra uma pessoa que teve um percurso de evolução gradual na sua vida, inserido numa família com valores, estudando e trabalhando, mesmo após ter tido uma filha enquanto ainda jovem, provendo o sustento desta, e em que ressalta, além desta não deter quaisquer condenações anteriores, ou seja , esta ser primária, que foi uma jovem com um bom percurso escolar, não tendo conseguido concluir o curso de direito, mas que nunca se furtou a trabalhar no que fosse para nada faltar à sua família; sempre socializou facilmente com terceiros, está bem inserida na sociedade, é casada, detém um novo filho deste casamento, onde ambos os progenitores trabalham em economia comum. A sua rotina diária passa pelas lides domésticas, cuidar da família e filhos menores e trabalhar, sendo que no meio social em que está inserida não há quem aponte qualquer aspecto negativo a si ou à sua família.
7. É também de valorar que a arguida CC confessa que levantou as encomendas referidas e entregues pelos CTT, que procedeu ao pagamento das mesmas com os cheques referenciados na pronúncia, mas negou ter feito tais encomendas e que as mesmas fossem para seu proveito pessoal, bem como ter assinado tais cheques, o que está de acordo com a matéria não provada pelo tribunal: que não se consegue provar que tais cheques foram efectivamente preenchidos pelo punho da arguida.
8. Nem daqui se pode concluir que as encomendas foram feitas pela arguida, que ela assinou os cheques para as pagar, mas tão só que usou os cheques, preenchidos não se sabe como, onde, quando e por quem, para pagar tais encomendas e que as recepcionou e manteve na sua posse.
9. O crime de falsificação de documento exige, para a sua verificação, a existência de “intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.”
10. Não resulta dos autos (quer a partir das suas próprias declarações, quer das declarações da ofendida) que a Arguida teve qualquer intenção de causar prejuízo a outrem, de obter benefício ilegítimo, ou de praticar qualquer crime, até porque somente se provou que usou os cheques para pagar as encomendas e que as recepcionou. Já não se provou como e quando obteve os cheques, quem os preencheu e que as encomendas eram para seu proveito pessoal, que realizou tais encomendas com intuito de prejudicar terceiro.
11. Não se concorda com o douto tribunal a quo quanto ao entendimento de que o elemento subjetivo do tipo está preenchido.
12. A Arguida não pretendeu falsificar qualquer documento e, muito menos, colocá-lo em circulação, até porque entregou, inicialmente, o cheque já assinado por terceiro desconhecido, sem uma qualquer sua assinatura, como resulta das declarações e elementos constantes dos autos.
13. Ressalte – se que na sentença se declara “ (…), que nos autos de reconhecimento reconheceram a arguida como sendo a pessoa a quem entregaram as encomendas, não souberam precisar, com certeza, se os cheques que foram entregues pela arguida para pagamento das encomendas foram por ela assinados no local e nesse momento, ou se já estavam assinados, tendo de forma unânime referido que para além da assinatura que constava já aposta nos cheques, todos os demais dizeres deles constantes foram inscritos pela testemunha EE, pelos motivos e no circunstancialismo que precisaram.
14. Do supra descrito é inescusável que não está preenchido nem o tipo subjectivo nem o tipo objectivo do ilícito criminal de falsificação de documento, não tendo o tribunal a quo conseguido fazer prova nesta matéria e, não estamos em fase de indícios, mas sim de certezas.
15. Finalmente, na parte em que os factos não resultaram provados, tal circunstância deve-se quer à inexistência ou insuficiência de prova produzida, quer à circunstância da insistência em interpretar factos contrariamente ao que preconiza a livre convicção do juiz.
16. As provas recolhidas nas fases preliminares do processo penal não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas, tão só, da decisão processual no que respeita à prossecução do processo até à fase de julgamento.
17. Ora, a douta sentença aqui recorrida fundamenta a conclusão da prática dos crimes pela arguida não dizendo em que período temporal concreto tais crimes ocorreram, dia, hora, mês, as circunstâncias dos mesmos, local ou locais, e quanto ao que sucedeu e modo como sucedeu, isto é, como foram perpetrados, baseou – se tão só em informações e declarações da vitima e na livre convicção do juiz/tribunal, sendo que é de ressaltar que nenhuma das testemunhas ouvidas imputou a prática dos crimes à arguida, apenas a tendo reconhecido por entregar o cheque para pagamento e recepcionar as encomendas.
18. Nem tampouco atendeu a douta sentença a quo ao facto da arguida ser primária, não ter antecedentes criminais,
19. O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido; ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
20. O mesmo decorre do princípio da presunção da inocência, consagrado no art.32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, que estatui que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
21. Ora, é indubitável que tal princípio foi claramente violado na douta sentença recorrida, por não ter sido sequer tido em conta se analisarmos a própria motivação invocada pelo Tribunal a quo, na qual baseou a condenação da arguida:
22. Crê–se, salvo o devido respeito, que aqui falha crucialmente a douta sentença de que se recorre por assentar numa fundamentação insuficiente e precária, não assente em facto concretos ocorridos em determinado espaço de tempo e lugar e por já deter a convicção direcionada para a condenação, ainda que as dúvidas e contradições persistam.
23. A livre convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque para a sua formação concorrem a actividade cognitiva e ainda elementos racionalmente não explicáveis como a própria intuição.
24. Também aqui se crê que o tribunal a quo não valorou devidamente a prova produzida, prova essa genérica, falaciosa, tendenciosa e dúbia, não passível de sustentar e fundamentar a aplicação da pena in casu.
25. A sentença recorrida apresenta presunções e conclusões genéricas, não apresenta datas concretas mediante a confirmação dos factos presumíveis.
26. Posto isto, a discordância da arguida/ recorrente perante a decisão do Tribunal em matéria de facto incide fundamentalmente sobre a valoração dos elementos de prova entendidos na doutrina e jurisprudência como de prova indiciária, indirecta ou circunstancial.
27. A prova indirecta assente na ideia de recurso pelo tribunal aos indícios e a inferências indirectas para chegar à conclusão da autoria dos factos pela arguida, contrapõe-se à prova directa dos factos e do palco dos meios clássicos da prova.
28. Estamos perante uma clara insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, mas sobretudo de manifesta insuficiência de prova para a matéria de facto dada como provada, ou melhor erro de julgamento.
29. Consideramos que o Tribunal ficou impossibilitado de prosseguir a descoberta da verdade, pelo que a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada traduz-se num erro de direito, um erro de julgamento na qualificação jurídica dos factos provados, que naturalmente dará lugar à revogação da decisão recorrida.
30. A sentença recorrida terá necessariamente de ser alterada e os factos suprarreferidos como provados serem alterados para não provados, dando- se ênfase ao que Não Se Logrou PROVAR.
31. Aqui, a recorrente quando questiona, não o texto da sentença, mas o modo como o tribunal a quo procedeu à apreciação da prova, ataca a decisão com base na violação do princípio da livre apreciação da prova e não no vício de erro notório na apreciação da prova.
32. Com o devido respeito, é imperioso reapreciar a prova dos factos dados indevidamente como provados perante a certeza dos que foram dados como não provados.
33. Verifica-se um erro de julgamento na valoração da prova que determinou uma errada enunciação da factualidade dada como provada, o tribunal a quo violou o disposto no artigo 127.° do CPP, que nos termos do artigo 410.°, n.° 2, al. c) do CPP deve ser corrigido.
34. Nesta parte, parece-nos ocorrer insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, erro notório na apreciação da prova e inconstitucionalidade.
35. Entende a Recorrente que há prova produzida em Julgamento e constante dos Autos que não foi devidamente valorada para sustentar a decisão de dar como provados e não provados os factos impugnados.
36. Acresce que a Recorrente também entende que há apenas meros indícios e não provas cabais constantes da sentença de que se recorre, que são interpretados como realidades certas, dogmáticas, quando não passam de meros indícios e juízos valorativos ou considerandos pessoais, como adiante se explicitará.
37. Repare – se que já não estamos numa fase indiciária do processo, mas numa fase em que se condena ou absolve, consoante a prova feita em sede de audiência de julgamento.
38. A prova é, pois, quanto aos factos compreendidos nos elementos objetivos do crime, direta e plena. O que a arguida não aceita e nega é a sua responsabilidade quanto ao elemento subjetivo. E, neste particular, deve sublinhar-se que a prova do dolo dificilmente se alcança de forma direta, a não ser por confissão, antes se apura por conjugação dos factos elementos do tipo com as regras do conhecimento comum e experiência de vida.
39. Conclui - se, então, que só quando o juiz encontre na referida interação uma regra de experiência de vigência indiscutível, segundo a qual, assentes certos factos objetivos, uma pessoa inevitavelmente é conhecedora de determinados factos, poderá atribuir-lhe corretamente os mencionados conhecimentos.
O que no que concerne à arguida CC não sucede!
40. Cremos, pois, que a reapreciação da decisão da sentença quanto à matéria de facto deverá ser feita com o cuidado e ponderação necessários, face aos referidos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova.
41. Refira – se que a distinção dos juízos formulados pelos despachos que encerram o inquérito/instrução e a sentença não se verifica no grau ou intensidade da convicção que os funda, nem na extensão que deve ser dada ao princípio da presunção da inocência na sua vertente do in dubio pro reo, mas sim na sua diferente abrangência.
42. Por sua vez, a prova por presunções constitui um meio de prova legalmente previsto no artigo 349.º do Código Civil, ou seja, constituirão meios de prova permitidos, dentro do princípio geral do artigo 125.º do CPP: São admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei.
43. O princípio da livre apreciação da prova, conjugado com o dever de fundamentação das decisões dos tribunais (artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República na redacção saída da revisão de 1997 e artigo 97.º, n.º 4 do CPP, redacção dada pela Lei 59/98), exige uma apreciação crítica, exaustiva, motivada racionalmente, de acordo com os critérios legais de produção e valoração da prova, e na falta deles nas regras da ciência, da lógica e da experiência comum. Devendo a aludida apreciação crítica resultar na motivação da sentença. Pois que a objectividade e a motivação constituem as únicas características que lhe permitem impor-se a terceiros.
44. A livre apreciação não constitui uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas antes na conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).
45. Por sua vez o princípio in dubio pro reo constitui um princípio geral de direito (processual penal) relativo à apreciação da prova/matéria de facto.
Daí que a sua violação (como princípio de direito, ainda que relativo à apreciação da questão de facto) conforme uma autêntica questão-de-direito – Cfr. Medina Seiça, Liber Discipulorum, pág. 1420;
46. Cremos, exactamente, que neste ponto esteve mal o tribunal a quo, que fantasiou, algo passível de ocorrer na realidade, mas que o tornou como certeza absoluta, sem indícios ou factos para tal juízo assertivo.
47.Com efeito, não só há-de resultar provado os factos básicos, mas há-de determinar-se, ainda, a existência ou conexão racional entre esses factos e o facto consequência. Além de se permitir, em concreto, a análise de toda a prova produzida em sentido contrário com vista a desvirtuar quer os indícios quer a conexão racional entre esses indícios e o facto consequência, o que não sucedeu in casu, como já supra alegado.
48.Passando para a aplicação analógica do raciocínio supra para os crimes imputados à arguida CC, relembre – se que há claramente erro de interpretação da matéria de facto e da prova indiciária, que influenciou negativamente a livre convicção e apreciação da prova pelos Juízes a quo.
49. A prova indiciária é uma prova de probabilidades e é a soma das probabilidades que se verifica em relação a cada facto indiciado que determinará a certeza.
Parte-se do pressuposto de que “em casos semelhantes existe um idêntico comportamento humano” e este relacionamento permite afirmar um facto histórico não com plena certeza, mas, como uma possibilidade mais ou menos ampla.
O que se entende na decisão recorrida, mas não na transposição desta metodologia no caso específico da arguida CC.
50. Quanto à arguida entendemos que para que haja a sua condenação é imprescindível que, por procedimentos legítimos, os juízes alcancem a certeza jurídica, que sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. O que não se verificou na sentença recorrida!
51.“Nas questões humanas não pode haver certezas… Também não se pode pensar que é possível, sem mais, descobrir “a verdade” (…).
A decisão de considerar provado um facto depende do grau de confirmação que esses juízos de probabilidade propiciem.
Esta exigência de confirmação impõe a definição de um “standard” de prova de natureza objectiva, que seja controlável por terceiros e que respeite as valorações da sociedade quanto ao risco de erro judicial, ou seja, que satisfaça o princípio in dubio pro reo.” – princípio este claramente violado na sentença recorrida.
52.O exame e análise de cada uma das provas e o relacionamento de todas elas no seu conjunto são indispensáveis e, se bem feita, concluía – se pela absolvição da arguida CC, por tudo quanto aqui já explanado.
53. O arguido não tem que provar a verdade da sua versão, mas ao apresentá-la, coloca-a à disposição do tribunal. O tribunal passa a conhecer, não só a versão da acusação, mas também a versão que o arguido lhe contrapõe.
Recai sempre sobre o acusador o encargo de destruir a presunção de inocência, o in dubio impõe a valoração do non liqued em sentido favorável ao arguido.
54. Já na fixação da pena, considerando que o grau de ilicitude é elevado, o tribunal apenas afirma que, na maior parte dos casos, o grau de ilicitude é mais baixo ou médio. Não esclarece se, nesta situação concreta, o grau de ilicitude é concretamente reduzido, moderado ou intenso e o porquê de assim o entender.
55. Assim, na determinação da medida concreta da pena, crê – se que o tribunal violou o disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 71º do Código Penal, para mais não condenando em provas cabais ou bastantes, mas em livres convicções passíveis de “triagem”.
56.Dos factos dados como provados, apenas se pode retirar que o grau de ilicitude não é elevado ou até inexistente.
57. Não se concorda que tenha sido feita prova cabal da prática dos crimes imputados, pelo menos pela agente CC.
58. É que atendendo ao relatório social junto aos autos o mesmo traça uma realidade contrária à relatada às conclusões circunstanciais retiradas na sentença.
Quaisquer das testemunhas inquiridas não conhecia a arguida ou conhecia – a mas jamais lhe imputaram a prática de tais actos: apenas sabiam que apresentou o cheque e recolheu a encomenda.
59. Constatou – se que o relatório social detinha os factos descritos de forma objectiva e concreta dando a imagem de uma mulher/mãe/esposa que sabe bem distinguir o que é certo e errado, sendo que após uma explanação bem positiva da personalidade e antecedentes desta, conclui errónea e sem fundamentação pela punição, ainda que em pena não privativa da liberdade, de montantes excessivos.
60. Portanto, apenas se pode concluir que o grau de ilicitude, a existir, é bastante reduzido. Nem moderado nem elevado. Tão só reduzido, para não dizer inexistente.
61. É o que se impõe por força do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 71º do Código Penal.
62. Logo, entende – se que existiam, tal como foi alegado, duvidas sérias de que a prática dos crimes foi perpetrada pela recorrente, sendo que a fase de julgamento é tudo menos indiciária, pelo que, em caso de dúvida, dever – se – ía peticionar por uma pena não privativa da liberdade, ainda que sujeita a algumas injunções por cautela, mas nunca nos montantes referidos na sentença a quo.
63. Não há matéria factual bastante e certa que permita concluir e condenar ou fazer de CC um exemplo para a sociedade nesta matéria.
64. Em suma, entende – se que a pena aplicada de multa é demasiado onerosa in casu, face ao supra descrito.
65. É também demasiado exagerado, desproporcional e pejorativo exigir o pagamento do quantum pecuniário da multa, quando a arguida nunca sequer teve algo que se lhe apontasse.
66. Também aqui o Tribunal a quo excedeu–se, o que se contesta, até pelo contexto social, familiar e económico da arguida.
67. Também para determinar concretamente a medida da pena, o tribunal considerou as razões de prevenção geral, que considerou elevadas.
E de facto são ou seriam se os crimes em causa tivessem tido lugar e tivessem sido praticados pela arguida, o que não se provou.
68. De todo o modo, não se vê que uma eventual (mas não provada) conduta repreensível da arguida, tenha relevo para considerar que se permita fixar a pena, nos termos em que esta foi fixada.
69. Ao tomá-lo em consideração, o tribunal violou a alínea a) do nº 2 do artigo 71º do Código Penal.
70. Perante o supra exposto dúvidas não subsistem que a aplicação da pena não tem cabimento no caso aqui em crise, quanto a esta concreta arguida.
71. Não tendo a arguida preenchido o tipo objectivo e subjectivo dos crimes de que vem acusada, a pena aplicada é desproporcional e excessiva, até mesmo desadequada.
72. Ora, tudo ponderado, tem-se por ajustado ao caso concreto e à culpa da recorrente, que não existe, nem por comunicabilidade, conforme supra exposto, que a pena em que foi condenada deve ser revista e substituída por outra: a absolvição.
73.Em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (n° 2 do artigo 71° do Código Penal), sendo certo que "(...) disso já cuidou, em primeira mão, o legislador, quando estabeleceu a moldura punitiva" (Acórdão STJ de 10/04/1996, CJ-STJ 96, 168).
74.Com efeito, atentas as circunstâncias do caso, a culpa da Recorrente é inexistente, não se colocando sequer a questão atinente às finalidades de prevenção geral neste tipo de ilícito.
75.Violou, nesta confluência, o Acórdão recorrido, o preceituado nos artigos 41.º e 71.º, ambos do Código Penal.
Nestes termos,
deve ser revogada a decisão recorrida, sendo a arguida absolvida, ou caso assim se não entenda, deve o quantum da multa aplicada e o valor supostamente alcançado pela arguida, a título de enriquecimento ilícito, a entregar ao Estado, ser revisto e substancialmente reduzido, só assim se fazendo a tão costumada
JUSTIÇA!”
*
Foram admitidos os respetivos recursos e embora o recurso do despacho intercalar tenha sido admitido a subir de imediato e em separado, acabou o Tribunal
a quo
por fazer subir ambos os recursos nos presentes autos.
*
II.3 Respostas aos recursos
II.3.1
Efetuada a legal notificação a 3 de janeiro de 2025 o Mº Público apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido BB, mas não apresentou conclusões.
II.3.2 Resposta ao recurso interposto pela arguida CC:
- Efetuada a legal notificação o Ministério Público respondeu ao recurso interposto pela arguida o arguido, pugnando pela sua improcedência mas não apresentou conclusões.
*
II.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no seguinte sentido [transcrição]:
“(…)
I.3. Da estrutura do recurso da arguida
Compulsado o recurso interposto pela arguida, podemos concluir que se trata de um recurso com 67 páginas, tendo o recurso ampla “motivação”, que, retirando considerações mais abstratas, que são muitas, se podem sintetizar da seguinte forma:
- insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e sobretudo para a matéria tida como não provada;
- insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados;
- erro notório na apreciação da prova;
- inconstitucionalidade;
- excesso da medida concreta da pena.
Do que nos é dado perceber, para a arguida:
- há prova produzida em Julgamento e constante dos autos que não foi devidamente valorada para sustentar a decisão de dar como provados e não provados os factos infra impugnados;
- mais entende que há factos sem qualquer sustentação que foram valorados em seu prejuízo, quando nunca deveriam sustentar a condenação proferida.
Vejamos os pontos abordados pela arguida:
1. Para a recorrente, andou mal o tribunal a quo quando baseou e sustentou a sua condenação, usando expressões como “Em data não concretamente apurada mas anterior a 28 de Dezembro de 2017, a arguida, CC, usando um nome falso” (…) “42. Em data não concretamente apurada mas anterior a 27 de dezembro de 2017, a arguida, CC (…), pois tal traduz-se em «condenar a arguida sem concretizar o período temporal certo da prática das infrações»
Quanto a este ponto, a arguida revela falta de atenção, pois existe suficiente definição temporal, até porque são indicadas as datas precisas em que ocorreu o furto dos impressos-cheques - «No período compreendido entre as 20:00 horas do dia 10 e as 08:00 horas do dia 11 de novembro de 2017» - e as datas em que a arguida usou os cheques e recebeu as encomendas nos factos provados.
2. A arguida não aceita que, da conjugação do teor dos relatórios periciais e dos depoimentos tenha resultado o apuramento cabal e seguro dos factos que constam no elenco dos factos provados (circunstâncias de modo de ocorrência, tempo e lugar e respetivas consequências psicológicas), e a identidade do agente dos factos constantes na acusação.
A recorrente refere que «de acordo com o relatório social desta, se mostra uma pessoa que teve um percurso de evolução gradual na sua vida, inserido numa família com valores, estudando e trabalhando, mesmo após ter tido uma filha enquanto ainda jovem, provendo o sustento desta, e em que ressalta, além desta não deter quaisquer condenações anteriores, ou seja , esta ser primária, que foi uma jovem com um bom percurso escolar, não tendo conseguido concluir o curso de direito, mas que nunca se furtou a trabalhar no que fosse para nada faltar à sua família; sempre socializou facilmente com terceiros, está bem inserida na sociedade, é casada, detém um novo filho deste casamento, onde ambos os progenitores trabalham em economia comum. A sua rotina diária passa pelas lides domésticas, cuidar da família e filhos menores e trabalhar, sendo que no meio social em que está inserida não há quem aponte qualquer aspeto negativo a si ou à sua família.»
A arguida refere que em «julgamento, “optou por prestar declarações no final da demais prova produzida, admitindo que levantou as encomendas em referência entregues pelos CTT, na Avª ..., ..., e que procedeu ao pagamento das mesmas com os cheques referenciados na pronúncia, negou que as mesmas foram por si encomendadas e que a si se destinassem, bem como ter assinado os cheques em referência, por si ou a seu mando…».
Quanto a esta tese probatória da arguida, é manifesto que não tem razão, pois o contexto é o seguinte: a arguida tinha na sua posse inúmeros impressos-cheque furtados, admitindo o seu preenchimento, à exceção da assinatura, com isso querendo fazer crer que desconhecia a falsificação e a origem desses impressos-cheques furtados, o que no contexto global da prova é totalmente inverosímil, pois qualquer pessoa percebe que quem possui tantos impressos-cheque de conta de empresa com quem não tem ligação e que usa nos moldes provados, só pode saber que está a usar um documento falso, sendo certo que se tornou evidente para o Tribunal Coletivo, com a imediação que existiu em julgamento, que a arguida sabia que a assinatura era falsa, pois fora aposta ou por si ou por terceiro em conluio consigo.
Note-se também na quantidade de encomendas associadas a arguida, que foi incapaz de explicar.
3. Acrescenta ainda que «confessa que levantou as encomendas referidas e entregues pelos CTT, que procedeu ao pagamento das mesmas com os cheques referenciados na pronúncia, mas negou ter feito tais encomendas e que as mesmas fossem para seu proveito pessoal, bem como ter assinado tais cheques, o que está de acordo com a matéria não provada pelo tribunal: que não se consegue provar que tais cheques foram efetivamente preenchidos pelo punho da arguida.
Nem daqui se pode concluir que as encomendas foram feitas pela arguida, que ela assinou os cheques para as pagar, mas tão só que usou os cheques, preenchidos não se sabe como, onde, quando e por quem, para pagar tais encomendas e que as rececionou e manteve na sua posse.
Mais uma vez vem a arguida tapar o sol com uma peneira. Na verdade, a quantidade de encomendas que recebeu e o número de cheques, com a tipologia já aludida, que entregou desmentem a sua lógica pueril de não assunção dos crimes praticados. Na verdade, aludiremos à frente à justificação que apresenta para ser possuidora dos impressos-cheques.
4. Refere ainda a arguida «Não resulta dos autos (quer a partir das suas próprias declarações, quer das declarações da ofendida) que a arguida teve qualquer intenção de causar prejuízo a outrem, de obter benefício ilegítimo, ou de praticar qualquer crime, até porque somente se provou que usou os cheques para pagar as encomendas e que as rececionou. Já não se provou como e quando obteve os cheques, quem os preencheu e que as encomendas eram para seu proveito pessoal, que realizou tais encomendas com intuito de prejudicar terceiro.
Mais uma vez, diga-se:
A arguida teve na sua posse um livro de impressos-cheque de uma empresa com quem não tem qualquer relação contratual, impressos-cheques esses furtados, e, como se diz na motivação probatória do acórdão recorrido, não deu «…qualquer explicação plausível, razoável, verosímil, na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, para se encontrar na posse dos cheques (em tal elevado número) furtados à sociedade A..., Lda., sita em ..., e de os ter utilizado para pagamento das encomendas que rececionou.»
Os mesmos são total ou parcialmente preenchidos com o seu conhecimento e entregues como meio de pagamento de mercadorias que admite ter recebido, não admitindo que as encomendou, e mesmo assim diz desconhecer a falsificação e o uso dos documentos falsos! Trata-se de um argumento tão burilado que resulta imaturo, pois é evidente que ao Ministério Público bastava alegar e provar o que se provou, não tendo de “explicar a história toda”, já que o tribunal não é obrigado a reconstituir ao pormenor todos os factos cronológicos, mas tão-só focar-se no que é importante e lógico, não se vendo qualquer insuficiência probatória ou contradição, pois a contradição e a insuficiência existiriam sim se o Acórdão tivesse absolvido a arguida num contexto destes!
5. Segundo a arguida, «A Arguida não pretendeu falsificar qualquer documento e, muito menos, colocá-lo em circulação, até porque entregou, inicialmente, o cheque já assinado por terceiro desconhecido, sem uma qualquer sua assinatura, como resulta das declarações e ressalte-se que na sentença se declara. Refere ainda que nos autos de reconhecimento reconheceram a arguida como sendo a pessoa a quem entregaram as encomendas, não souberam precisar, com certeza, se os cheques que foram entregues pela arguida para pagamento das encomendas foram por ela assinados no local e nesse momento, ou se já estavam assinados, tendo de forma unânime referido que para além da assinatura que constava já aposta nos cheques, todos os demais dizeres deles constantes foram inscritos pela testemunha EE, pelos motivos e no circunstancialismo que precisaram.
Do supradescrito, sustenta a recorrente, «é inescusável que não está preenchido nem o tipo subjetivo nem o tipo objetivo do ilícito criminal de falsificação de documento, não tendo o tribunal a quo conseguido fazer prova nesta matéria e, não estamos em fase de indícios, mas sim de certezas.
Vejamos então este segmento: a arguida, como ficou provado pelo depoimento da testemunha EE, foi a pessoa que deu as instruções de preenchimento dos impressos-cheques furtados, que estariam já assinados. Recebeu as mercadorias. Mas não esclarece de forma convincente quem lhe entregou os impressos-cheque, que relação existia com a pessoa em causa, contando uma versão totalmente incompleta e reveladora de pouca honestidade de comportamento.
Como se refere na motivação do acórdão recorrido,
«A arguido CC, que faltou à 1ª sessão de julgamento, e após optou por prestar declarações no final da demais prova produzida, admitindo que levantou as encomendas em referência entregues pelos CTT, na Avª ..., ..., e que procedeu ao pagamento das mesmas com os cheques referenciados na pronúncia, negou que as mesmas foram por si encomendadas e que a si se destinassem, bem como ter assinado os cheques em referência, por si ou a seu mando, que entregou aos carteiros para seu pagamento.
Na sua versão, manifestamente por si “arranjada” após ter conhecimento da demais prova que foi produzida em audiência de julgamento, foi contactada por um advogado, Dr. FF, que a contratou para receber encomendas feitas por ele e mulher, designadamente de roupas, a pagar por cheques que ele lhe entregava, já assinados (“não sabe por quem” sic), enviadas em nome das pessoas que referiu, que depois eram levantadas pela mulher do tal advogado em local previamente combinado entre todos, tendo sido nesse circunstancialismo que recebeu as encomendas descritas na pronúncia, que pagou através dos cheques nela identificados. Mais relatou que o tal advogado lhe pediu para levantar umas encomendas em ..., no circunstancialismo que referiu.
A versão da arguida, vista e valorada na sua globalidade, e ante a forma como a prestou, foi tão patentemente incongruente, inconsistente, inverosímil na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, e tão patentemente parcial, no único e claro fito da sua desresponsabilização, que não mereceu qualquer crédito, e foi definitivamente infirmada pela demais prova produzida.»
[…]
«…surpreenderam-se nas suas declarações patentes inconsistências e incongruências, quanto à justificação” que apresentou para rececionar e pagar com cheques previamente assinados, titulados por um estabelecimento comercial de horticultura (sendo que quem a contratou, segundo disse foi um advogado), as encomendas em referência.
Depois, não se depreende na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, que a arguida tenha decidido receber encomendas e pagá-las, a pedido de pessoa que mal conhecia, cuja identificação verdadeiramente não conhecia, nem nunca procurou saber, como ressumou das suas declarações.
Do mesmo passo, não se depreende, na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, que tal pessoa, que também não conheceria bem a arguida, decidisse entregar a pessoa que mal conhece, cheques, em número significativo, assinados, mas não preenchidos.
Depois, também não se alcançou, das declarações, incongruentes e inconsistentes da arguida, manifestamente inverosímeis, e patentemente interessadas, os motivos pelos quais não era a mulher do tal advogado a levantar as encomendas, pois das declarações da arguida, tal como as prestou, não se anteviu qualquer impedimento para que não fosse tal pessoa a levantá-las.
E, também se não depreende, na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, que tendo a arguida levantado as encomendas em Dezembro de 2017, que a si segundo disse não eram destinadas, e que por si não foram encomendadas, em Fevereiro de 2019, ainda tivesse em sua casa, parte desses encomendas (pertença na sua versão de um terceiro), como resulta do auto de busca e apreensão de fls. 580 e segs., e dos autos de reconhecimento desses objetos aprendidos feitos pelos vendedores de tais mercadorias e que expediram as respetivas encomendas, que foram levantadas pela arguida e por esta pagas, com os cheques que foram furtados do Horto em referência, e de igual forma afirmado em audiência pelas testemunhas DD, GG. (sublinhados e negrito nosso)
Concordamos integralmente com este juízo probatório. Como se diz no acórdão,
«No caso em apreço, conjugada a prova documental e testemunhal produzida, conjugada ainda a mesma com as declarações da arguida, a partir dos factos conhecidos, é seguro extrair a ilação do facto desconhecido, ou seja, que foi a arguida a autora material da falsificação dos cheques em referência, por si ou através de terceiro, e que engendrou um esquema, pelo qual, através da falsificação dos cheques, criando a aparência de ser ela ao sua portadora legítima, lograr através dos cheques assim forjados que entregou para pagamento das encomendas, induzir em erro ou engano os funcionários dos CTT sobre a regularidade dos cheques e que estavam licitamente na sua posse, e através deles os lesados, determinando os funcionários dos CTT a entregarem-lhe as encomendas, obtendo dessa forma a arguida uma vantagem económica correspondente ao valor dos bens que lhe foram vendidos pelos lesados, com o necessário prejuízo económico destes.
Dúvidas não ficaram, pois, no tribunal, sobre os factos que se vieram a provar.»
E a inexistência de antecedentes criminais da arguida, contrariamente ao que alega, não infirma este juízo probatório.
6. A arguida refere o seguinte:
«…nenhuma das testemunhas ouvidas imputou a prática dos crimes à arguida, apenas a tendo reconhecido por entregar o cheque para pagamento e rececionar as encomendas.»
«A sentença recorrida apresenta presunções e conclusões genéricas, não apresenta datas concretas mediante a confirmação dos factos presumíveis.
Para a recorrente a sentença incorre em lamentável confusão – muito generalizada – entre o conceito vulgar e o conceito jurídico de presunção.»
Já nos referimos à questão das datas, importando salientar que o juízo condenatório não pertencia às testemunhas, mas antes ao tribunal, após análise da prova global produzida.
Por outro lado, não se verifica no Acórdão qualquer confusão entre o que é vulgar acontecer e a afirmação da prática de atos criminosos pela arguida. Na verdade, o que não é vulgar é alguém apresentar a justificação que a arguida apresentou e que o coletivo desmontou na perfeição, e também não é normal que alguém se preste a serviços a pessoas desconhecidas naqueles moldes, fique até com parte da mercadoria que receberia para terceiros, disponibilizando-se a usar impressos-cheques em branco como meio de pagamento, assinados em branco, ou seja, sem preenchimento! Inacreditável! Então é crível que alguém entregue a desconhecida um livro de impressos-cheque assinados, de conta de empresa, não preenchidos em qualquer campo?
Como se refere na motivação probatória do acórdão recorrido:
«Depois, surpreenderam-se nas suas declarações patentes inconsistências e incongruências, quanto à “justificação” que apresentou para rececionar e pagar com cheques previamente assinados, titulados por um estabelecimento comercial de horticultura (sendo que quem a contratou, segundo disse foi um advogado), as encomendas em referência. Depois, não se depreende na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, que a arguida tenha decidido receber encomendas e pagá-las, a pedido de pessoa que mal conhecia, cuja identificação verdadeiramente não conhecia, nem nunca procurou saber, como ressumou das suas declarações. Do mesmo passo, não se depreende, na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, que tal pessoa, que também não conheceria bem a arguida, decidisse entregar a pessoa que mal conhece, cheques, em número significativo, assinados, mas não preenchidos.
Depois, também não se alcançou, das declarações, incongruentes e inconsistentes da arguida, manifestamente inverosímeis, e patentemente interessadas, os motivos pelos quais não era a mulher do tal advogado a levantar as encomendas, pois das declarações da arguida, tal como as prestou, não se anteviu qualquer impedimento para que não fosse tal pessoa a levantá-las.
E, também se não depreende, na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, que tendo a arguida levantado as encomendas em dezembro de 2017, que a si segundo disse não eram destinadas, e que por si não foram encomendadas, em fevereiro de 2019, ainda tivesse em sua casa, parte desses encomendas (pertença na sua versão de um terceiro), como resulta do auto de busca e apreensão de fls. 580 e segs., e dos autos de reconhecimento desses objetos aprendidos feitos pelos vendedores de tais mercadorias e que expediram as respetivas encomendas, que foram levantadas pela arguida e por esta pagas, com os cheques que foram furtados do Horto em referência, e de igual forma afirmado em audiência pelas testemunhas DD, GG.»
À motivação de recurso seguem-se 75 conclusões!
E mais uma conclusão final:
«deve ser revogada a decisão recorrida, sendo a arguida absolvida, ou caso assim se não entenda, deve o quantum da multa aplicada e o valor supostamente alcançado pela arguida, a título de enriquecimento ilícito, a entregar ao Estado, ser revisto e substancialmente reduzido, só assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA!»
Mesmo assim, pensamos ter conseguido traduzir o que se pretende no recurso.
Portanto, a arguida interpõe um recurso invocando um erro de julgamento na valoração da prova que determinou uma errada enunciação da factualidade dada como provada, alegando que o tribunal a quo violou o disposto no artigo 127.º do CPP, o que nos termos do artigo 410.º, n.º 2, al. c) do CPP deve ser corrigido.
Entende ser inocente e que foi violado o princípio in dúbio pro reo.
Nesta parte, alega ainda ocorrer insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, erro notório na apreciação da prova e inconstitucionalidade.
A recorrente, não tendo interposto recurso da matéria de facto, não cumprindo o ónus do art.º 412.º, n.º 3 do CPP, interpõe o seu recurso versando matéria de direito.
Interpondo recurso em matéria de direito, mesmo assim, dispõe o art.º 410.º do CPP que
«2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.»
Acontece, todavia, que o artigo 412.º (Motivação do recurso e conclusões) do CPP dispõe o seguinte:
1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
É difícil perceber o que a recorrente pretende, até porque não nos incumbe definir o âmbito do recurso, mas mesmo assim fizemos um esforço, sem prejuízo de despacho de aperfeiçoamento, que se entender necessário.
A arguida discorda da sua condenação por entender não existir prova direta ou indireta que possa sustentar a mesma.
Sobre isto já nos pronunciámos, sendo manifesta a procedência do juízo probatório realizado na decisão recorrida, que deve ser mantido.
Quanto à pena aplicada, a arguida, como pugna pela sua absolvição, não indica factos concretos de discordância.
O acórdão condenou a arguida da seguinte forma:
«3. Condeno a arguida CC, pela prática em concurso real e efetivo e em autoria material de:
a) Um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, do Código Penal (factos 12 a 59), na pena de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);
b) Um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.ºs 1, als. c) e e), e 3, do Código Penal (factos 12 a 59), na pena de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);
c) Um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal (factos 60 a 77), na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);
d) Um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.ºs 1, als c) e e), e 3, do Código Penal (factos 60 a 77), na pena de 170 (cento e setenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros);
e) Procedendo ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, condeno a arguida na pena única de 520 (quinhentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros); o que perfaz a multa no montante global de € 3.120,00 (três mil cento e vinte euros).
C. Julgo o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante DD contra a arguida/demandada CC, parcialmente provado e procedente e, consequentemente, condeno a arguida/demandada a pagar à demandante, a quantia de € 243,35 (duzentos e quarente e três euros e trinta e cinco cêntimos, acrescida de juros de mora legais, desde a presente data até efetivo e integral pagamento, absolvendo a arguida/demandada do demais peticionado.
[…]
E. Ao abrigo do disposto no art. 110º, nº 1, al. b) e nº 4, do Código Penal, declaro que a quantia de € 7.337,01 (sete mil trezentos e trinta e sete euros e um cêntimo), obtida pela arguida CC com a prática dos ilícitos criminais em que ora foi condenada consubstancia vantagem obtida com a prática dos aludidos crimes e, consequentemente, declaro a mesma perdida a favor do Estado, condenando a arguida no pagamento de tal quantia ao Estado.»
Não vemos que a condenação viole o princípio da proporcionalidade das penas, sendo totalmente ajustada.
Concluindo:
1.ª As conclusões do recurso são prolixas, não cumprindo as exigências do art.º 412.º, n.º 2, do CPP. Mesmo assim, procurámos delimitar o âmbito do recurso em função do texto apresentado, sem prejuízo de despacho de aperfeiçoamento a formular por referência ao recurso interposto.
2.ª Sendo o recurso restrito à matéria de direito, como demonstrámos, não resulta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pois a prova produzida foi cabal, desde a documental, aos reconhecimentos realizados, até aos depoimentos recolhidos.
3.ª E também não existe qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, pois a arguida assenta o seu recurso na desconformidade da sua versão com os factos provados, mas, como se demonstrou, a sua versão padece de honestidade e também não impugnou a matéria de facto.
4.ª Não existe erro notório na apreciação da prova, antes pelo contrário, o erro invocado pela arguida, ao dizer que o acórdão confundiu o que é vulgar com as exigências da prova, mais não é do que uma pretensão de afirmar a sua própria versão dos factos à revelia da prova produzida e da impugnação da matéria de facto, que não fez por falta de argumentos sérios, tendo optado pela invocação de ideias e de uma honestidade que não se vê retratada nos factos que cometeu.
5.ª A arguida entrou na posse de diversos impressos-cheque furtados a empresa, com a qual não tinha qualquer ligação, fez diversas encomendas para endereço seu, mas em nome de outra pessoa, recebeu as mercadorias pessoalmente nesse endereço, algumas das quais que ainda possuía à data da busca domiciliária, impressos-cheque esses que preencheu, tendo logrado apor-lhes, pelo seu próprio punho ou através de terceiros em conluio consigo, uma assinatura como se fosse a da titular da conta, não tendo conseguido explicar de forma credível como ficou na posse dos impressos-cheque em branco já assinados de conta de uma empresa que desconhecia. Em suma, o que não é credível é a sua versão dos factos.
7.ª Questiona a pena apenas por entender dever ser absolvida, mas a pena mostra-se totalmente proporcional e ajustada.
8.ª Atendendo à nacionalidade da arguida – brasileira -, porque o Brasil não ratificou a Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal (cf. Art.º 22.º), aberta a assinatura por Estados não europeus, e da Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa nada resulta quanto ao averbamento de condenações penais nos Estados-membros, tal averbamento pressupõe um processo de revisão e confirmação do Acórdão condenatório português no Brasil com vista ao posterior averbamento da condenação no registo criminal do Brasil, o que deve ser realizado mediante pedido formal a executar por Carta Rogatória a expedir neste processo, quando baixar e após trânsito em julgado, através da PGR enquanto Autoridade Central.
Termos em que o recurso da arguida deve ser julgado improcedente, por não provado, assim se fazendo, com o suprimento de V.ªs Ex.ªs a tão costumada justiça!”
II. DO RECURSO DO ARGUIDO BB
I.1. Do recebimento do recurso
Este arguido interpôs recurso do Acórdão a 23/05/2024, com requerimento de interposição que invoca outra arguida.
A 03/06/2024 a defensora do arguido junto requerimento requer que se lhe releve o lapso de escritório que involuntariamente foi cometido e pelo qual a Requerente muito se penaliza, admitindo a junção aos presentes da Motivação e Conclusões corretas, devendo as mesmas ser tidas como apresentadas na referida data de 23-05-2024, assim se seguindo os ulteriores termos até final.
A 17/07/2024, a MM.ª Juiz formulou despacho que não admitiu o recurso por extemporâneo.
Deste despacho foi apresentada Reclamação para a Relação de Coimbra, a 29/07/2024.
A 05/08/2024 a MM.ª Juiz decidiu:
«Por tempestiva, ao abrigo do disposto no art.º 405.º, n.ºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal, admito a reclamação apresentada em 29.07.2004, pelo arguido BB, do despacho que não admitiu, por extemporaneidade, o recurso interposto pelo mesmo da sentença condenatória proferida nos autos.
*
Organize apenso, juntando no mesmo cópias certificadas da reclamação apresentada em 29.07.2024, das peças processuais indicadas na mesma para instrução da reclamação, da declaração de depósito da sentença, do presente despacho, mais se certificando a data aposta na sentença.
*
Após, remeta os autos ao Exmo. Sr. Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra para apreciação.
[…]
Tendo sido apresentada reclamação pelo arguido BB, do despacho que não admitiu, por extemporaneidade, o recurso interposto pelo mesmo da sentença condenatória, determino que os autos aguardem a decisão a proferir pelo Exmo. Sr. Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, a fim de, após, se determinar a subida dos autos ao Venerando Tribunal da Relação de Coimbra para apreciação do recurso interposto pela arguida.
*
Notifique.»
Em 02-10-2024, foi apensado aos presentes autos, os de Reclamação com o n.º 310/17.8GFPNF-F.
Este apenso não consta do processo eletrónico. Todavia, consultámos a Decisão que recaiu sobre a Reclamação, no “habilus e Citius Viewer” onde se refere o seguinte:
(…) 3 - Tendo-se concluído que a reação apropriada contra o despacho que julga não verificada uma situação alegada como de justo impedimento para a prática do ato é o recurso e não a reclamação, cumpre determinar, então, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 193.º do CPC («O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados»), aplicável subsidiariamente ao processo penal, o prosseguimento, na 1.ª instância, da forma processual adequada ao caso, ou seja, o recurso.
4 – A segunda questão elencada como fazendo parte do objeto da reclamação ficou prejudicada.
IV. Decisão
Considerando o exposto, determina-se o prosseguimento deste expediente processual, relativo à impugnação da decisão que recaiu sobre o justo impedimento para a prática do ato, como recurso.
Para a sua tramitação, como recurso, determina-se a sua remessa à 1.ª instância. Sem custas. Notifique-se.
(…)
E a 06/12/2024, a MM.ª Juiz determinou:
«Determinou o Venerando TR de Coimbra no Apenso de reclamação, o prosseguimento do expediente processual relativo à impugnação da decisão que recaiu sobre o justo impedimento para a prática do ato, como recurso.
Assim, e ante o decidido pelo Venerando TR de Coimbra:
Por estar em tempo, ter legitimidade, a decisão em crise ser recorrível, e vir acompanhado das respetivas motivações, admito o recurso interposto em 29.07.2024, pelo arguido BB, do despacho que não admitiu, por extemporaneidade, o recurso interposto pelo mesmo da sentença condenatória proferida nos autos, a subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo (arts. 399.º, 400.º “a contrario”, 401.º, n.º 1, al. b), 406.º, n.º 2, 407.º, 1, e 2, al. b), 408.º, n.º1, al. a), 411.º, 414.º, n.º 1, todos do C.P.P.).
*
Notifique (art.º 413.º, n.º 1 do C.P.P.).»
A 14/02/2025, não obstante o despacho anterior (cf. Subida em separado), a MM.ª Juiz limitou-se a mandar subir os autos à Relação.
I.2. O nosso Parecer deve, pois, incidir sobre a Reclamação de 29/07/2024, que foi transmutada corretamente em recurso.
A 17/07/2024, a MM.ª Juiz formulou o despacho recorrido (…)
O recurso interposto assenta a sua tese num alegado “erro de escrita ou de cálculo”, sendo certo que a sua correção não resulta qualquer prejuízo para as demais “Partes do processo”, nem sequer para o seu bom andamento e/ou para a segurança jurídica e/ou para a estabilidade da instância.
Para o recorrente «Ao não admitir o Recurso nos termos e por força do exposto no Douto Despacho de 17-07-2024, a Mma. Juiz diminuiu claramente as garantias de defesa do ora Recorrente, pondo em causa o Princípio da Materialidade Subjacente e o Princípio de Acesso aos Tribunais, constitucionalmente previstos, bem assim como o Princípio da Determinabilidade das Leis, da confiança e da segurança jurídica, em particular porque ao indeferir o Recurso, denegou ao Reclamante o seu recurso à Justiça e cerceou o respetivo Direito Constitucional de Acesso aos Tribunais – no caso, ao Tribunal da Relação de Coimbra – violando, além do mais, o disposto no nº 1 do Art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Para o recorrente a Mma. Juiz atribuiu uma importância desproporcional, desmesurada e injustificada ao erro ocorrido, inviabilizando definitivamente o Direito do ora Reclamante ao Recurso e coartando as suas garantias de defesa e o seu direito em apurar a verdade e em esgotar todas as instâncias em sua defesa.
E vai contra a lógica ou filosofia do poder dever atribuído ao Juiz após a última reforma do novo C.P.C., que levou à introdução de dispositivos como, por exemplo, o art.º 590.º C. P. Civil, que inclui os deveres de gestão processual, como aquele de convidar as partes a suprir irregularidades, insuficiências, imprecisões, sempre numa lógica de celeridade, com vista à justa composição do litígio e à plena concretização da justiça, porquanto, no âmbito dessa lógica e em nome dos princípios da cooperação e da boa fé processual, a Mma. Juiz deveria ter atendido à correção solicitada.
Entende o recorrente, na verdade, que o art.º 249.º do Código Civil se aplica ao caso concreto e, por isso e atento o disposto no art.º 295.º do mesmo código, o erro/lapso manifesto deverá ser retificado ou corrigido.
Cita em abono da sua tese o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30/08/2021 (Processo: 2856/20.1T8VCT-B.G1; relator: Alcides Rodrigues). O requerimento de interposição de recurso constitui, em si mesmo, “uma autêntica declaração de vontade da parte visando produzir determinado efeitos processuais.”, sendo-lhe, por isso e atento o acima exposto, aplicável o princípio previsto no art.º 249.º do Código Civil.
Concordamos integralmente com a decisão recorrida.
O caso dos autos não se subsume a uma hipótese de erro de escrita ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto, revelado pelo próprio teor do articulado em causa.
No caso vertente a pretensão formulada pelo recorrente não é de mera correção de um erro material ocorrido na elaboração de uma peça processual, mas antes de substituição integral da peça processual apresentada (e inepta para o fim a que se destinava) por uma outra e distinta e, mais do que isso, que a segunda peça processual seja considerada como apresentada na data em que a primeira deu entrada em juízo.
Em suma, o que está em causa é a apresentação de uma totalmente nova peça processual já depois de findo o prazo que a lei fixa para a prática do ato.
A admitir-se como possível a substituição da peça processual apresentada, estaríamos a permitir que, por essa via, pudesse ser contornado o carácter preclusivo do prazo para a apresentação das alegações de recurso.
Uma coisa é o direito de acesso à justiça - o ato podia ser praticado fora do prazo em caso de justo impedimento (art.º 140.º do CPC), ou independentemente de justo impedimento, dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo (art.º 139.º, n.ºs 4 e 5, do CPC) - e o direito à defesa e outra a possibilidade de substituição integral de peça processual por outra, como um requerimento de interposição de recurso, na sequência de lapso de um escritório de advocacia ou dos serviços do Ministério Público, etc., pois tal colocaria em causa a finalidade dos prazos em processo penal, designadamente os prazos perentórios.
Saliente-se que o justo impedimento é definido no art.º 140.º do CPC como «o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do ato». Ora, o lapso do escritório de advocacia que se traduz na junção de um requerimento e motivação de recurso de processo alheio a outro, é imputável ao referido escritório, pelo que não traduz “evento não controlável, não imputável”.
Não existe qualquer desigualdade de tratamento, pois todos os sujeitos processuais estão sujeitos às mesmas regras, não sendo possível transacionar com a lei, de molde a ajeitar lapsos como aquele.
O princípio da transparência da realização da justiça requer exatamente a solução exarada no despacho recorrido.
O arguido foi assim condenado:
2. Condeno o arguido BB, pela prática em concurso real e efetivo e em autoria material de:
a) Um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217º, n.º1, do Código Penal, (factos 3 a 11), na pena de 5 (cinco) meses de prisão;
b) Um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, n.ºs 1, als. c) e e) e 3, do Código Penal (factos 3 a 11), na pena de 12 (doze) meses de prisão.
c) Procedendo ao cúmulo jurídico da penas parcelares aplicadas, condeno o arguido na pena única de 13 (treze) meses de prisão;
d) Ao abrigo do disposto nos artigos 50º, nºs 1, 2, e 5 do Código Penal, decido suspender na sua execução a pena de treze meses de prisão, ora imposta ao arguido, pelo período de treze meses, sujeita, a regime de prova, assente num plano de reinserção social, por forma a alcançar os seguintes objetivos:
- Prevenir o cometimento pelo arguido no futuro de factos de idêntica natureza;
- Permitir o confronto do arguido com as suas ações e tomada de consciência das suas consequências, de forma a que o mesmo adquira competências pessoais e sociais tendentes a determinar-se no futuro de acordo com o direito, evitando a reincidência.
[…]
B. Julgo o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante CTT – Correios de Portugal, S.A., contra o arguido BB, improcedente e, consequentemente, absolvo o arguido/demandado do pedido.
D. Ao abrigo do disposto no art.º 110.º, n.º 1, al. b), e n.º 4, do Código Penal, declaro que a quantia no montante de € 1.641,32 (mil seiscentos e quarenta e um euros e trinta e dois cêntimos) obtida pelo arguido BB com a prática dos ilícitos criminais em que ora foi condenado, consubstancia vantagem obtida com a prática dos aludidos crimes e, consequentemente, declaro a mesma perdida a favor do Estado, condenando o arguido no pagamento de tal quantia ao Estado.
F) Condeno os arguidos BB, nas custas criminais, com taxa de justiça, que fixo, para cada um em duas UC. G) Sem custas nas instâncias civis (art.º 4.º, n.º 1, al. n), do RCP.
O acórdão mostra-se transitado em julgado desde 25/05/2024, contando-se os 13 meses da suspensão da execução da pena, com regime de prova, desta esta data, os quais terminam a 25/06/2025.
Concluindo:
1. No caso sob recurso, a defensora do arguido juntou em prazo de interposição de recurso peça processual (cf. também um requerimento de interposição de recurso) que havia elaborado para outro processo.
2. Decorrido o prazo para recorrer, veio alegar justo impedimento, juntou, fora de prazo para recorrer, novo requerimento de interposição de recurso e formulou pretensão, não de correção de um erro material ocorrido na elaboração de uma peça processual, mas antes de substituição integral da peça processual apresentada (e inepta para o fim a que se destinava) por uma outra e distinta e, mais do que isso, que a segunda peça processual fosse considerada como apresentada na data em que a primeira deu entrada em juízo.
3. Acontece, todavia, que a sua pretensão não se conforma com o art.º 140.º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil, o qual define justo impedimento como «o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do ato.»
4. A violação do dever de cuidado traduzido na prévia verificação da conformidade dos documentos enviados, de forma a prevenir qualquer anomalia, como aquela que se registou, não pode enquadrar-se no conceito de justo impedimento, pelo que o recurso do arguido é manifestamente improcedente, devendo os autos baixarem oportunamente à 1.ª Instância para não admissão do recurso interposto por extemporaneidade, na sequência da inexistência de justo impedimento, parecendo-nos ficar sem objeto qualquer reclamação que pudesse vir a ser apresentada do despacho a formular.
5. Atendendo à nacionalidade do arguido – brasileira -, porque o Brasil não ratificou a Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal (cf. Art.º 22.º), aberta a assinatura por Estados não europeus, e da Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa nada resulta quanto ao averbamento de condenações penais nos Estados-membros, tal averbamento pressupõe um processo de revisão e confirmação do Acórdão condenatório português no Brasil com vista ao posterior averbamento da condenação no registo criminal do Brasil, o que deve ser realizado mediante pedido formal a executar por Carta Rogatória a expedir neste processo, quando baixar e após trânsito em julgado, através da PGR enquanto Autoridade Central.
Este o nosso parecer, seguros do suprimento de V.ªs Excelências e da realização da tão costumada justiça!”
*
I.5. Resposta
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.
*
I.6. Prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
*
II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal
ad quem
e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante, designadamente, do STJ[Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in
http://www.dgsi.pt
.], são as
conclusões
apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso designadamente as que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal [Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95] e das nulidades previstas no art. 379º do mesmo diploma legal.
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as
questões a apreciar e decidir
são as seguintes:
Relativamente ao recurso intercalar:
®
Da aplicação do disposto no art. 249º do CC, com a correção do lapso manifesto e aceitação da nova peça processual como correção da apresentada a 23.05.2024 e consequente admissão do recurso interposto pelo arguido.
®
Aferir se o despacho recorrido é desproporcionado, viola os princípios constitucionais previstos nos arts. 20º e 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e a lógica subjacente aos poderes de gestão processual do Juiz, entre o mais, estabelecidos no art. 590º do Código de Processo Civil, consagrados em nome dos princípios da cooperação e boa fé processual.
Relativamente ao recurso interposto da sentença condenatória:
®
Do não preenchimento dos elementos típicos (objetivo e subjetivo) do crime de falsificação de documentos.
®
Da não concretização do período temporal em que os factos ocorreram.
®
Da violação do princípio in dubio pro reo.
®
Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
®
Do erro de julgamento relativamente à matéria de facto provada que deve passar aos factos não provados, com a inerente absolvição da arguida.
®
Erro notório na apreciação da prova- art. 410º, nº 2 al. c) do Código de Processo Penal.
®
Da violação do principio da livre apreciação da prova – art. 127º do Código de Processo Penal, na análise da prova indiciária e por presunções.
®
Da errada ponderação do grau de ilicitude da determinação da medida da pena.
®
Do exagero e desproporção da pena de multa aplicada e do valor fixado a titulo de enriquecimento ilícito
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II.2- Da decisão recorrida
[transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:
“FACTOS PROVADOS
Da discussão e instrução, resultaram provados os seguintes factos:
1. No período compreendido entre as 20:00 horas do dia 10 e as 08:00 horas do dia 11 de Novembro de 2017, pessoa ou pessoas não identificadas entraram nas instalações de escritório do horto denominado “A...”, sito em ..., ..., propriedade da sociedade “A..., Lda.”, por meio de escalamento através de uma janela das traseiras e do seu interior retiraram, para além do mais, dois livros de cheques: um com cheques da conta n.º ...92, da Banco 1... do ..., titulada pela sociedade “A..., L.da”; e o outro da conta n.º ...15, da Banco 1... do ..., cotitulada por HH e II, sócios e gerentes da referida sociedade, de que se apropriaram, sem o conhecimento e contra a vontade dos seus legítimos titulares.
2. Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre os dias 11 e 23 de Novembro de 2017, em relação ao arguido BB; e entre 11 de Novembro e 28 de Dezembro de 2017 em relação à arguida CC; estes arguidos entraram na posse de parte dos cheques dos dois livros de cheques subtraídos das instalações da sociedade “A..., Lda.”, por meio não concretamente apurado, que sabiam não lhes pertencer e que não estavam autorizados a emitir pelos seus legítimos titulares e decidiram usá-los em seu proveito.
3. No dia 23 de Novembro de 2017, JJ e KK, ambos funcionários dos CTT encarregues da distribuição postal, deslocaram-se à Rua ..., ..., ..., para proceder à entrega de várias encomendas remetidas via CTT, cujo nome do destinatário era LL, mas sendo o arguido o verdadeiro destinatário das mesmas, e que tinham de ser pagas no momento de levantamento.
4. No local apresentou-se o arguido BB, como sendo o destinatário das encomendas, tendo entregue aos funcionários dos CTT, para pagamento, os seguintes cheques:
- Encomendas com as referências ...90... e ...86..., no valor a cobrar pelo destinatário de €285,00, cada, provenientes de MM “B...”, contendo quatro jantes, o cheque n.º ...77, cuja cópia consta de fls. 199 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos, sacado sobre a conta n.º ...15, da Banco 1... do ..., cotitulada por HH e II, com data de 23.11.2017 e o valor em numerário de € 570,00, e por extenso de “quinhentos euros”.
- Encomendas com a referências ...93..., ...81..., ...70... e ...05..., no valor a cobrar pelo destinatário de €142,00, cada, provenientes de NN, contendo “espuma acústica”, o cheque n.º ...87, cuja cópia consta de fls. 795 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos, sacado sobre a conta n.º ...15, da Banco 1... do ..., cotitulada por HH e II, com data de 23.11.2017 e o valor de €568,00.
- Encomenda com a referência ...65..., no valor a cobrar pelo destinatário de €204,32, proveniente de “C..., Lda.”, o cheque n.º ...86, cuja cópia consta de fls. 19 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos, sacado sobre a conta n.º ...15, da Banco 1... do ..., cotitulada por HH e II, com data de 23.11.2017 e o valor de €204,32.
- Encomenda com a referência ...98..., no valor a cobrar pelo destinatário de €299,00, proveniente de OO, o cheque n.º ...85, cuja cópia consta de fls. 812 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos, sacado sobre a conta n.º ...15, da Banco 1... do ..., cotitulada por HH e II, com data de 23.11.2017 e o valor de €299,00.
5. Todos os cheques entregues pelo arguido BB aos funcionários dos CTT foram sacados sobre a conta n.º ...15, da Banco 1... do ..., cotitulada pelos denunciantes HH e II e haviam sido subtraídos aos seus legítimos titulares nas circunstâncias referidas em 1..
6. O arguido BB que tinha entrado na posse dos livros de cheques referidos em 2., de onde foram extraídos os quatro cheques em causa, e que sabia não lhe pertencerem e que não estava autorizado a preenche-los e emiti-los pelos seus legítimos titulares, pelo seu próprio punho ou pelo punho de terceiro a seu mando, preencheu os cheques com a totalidade dos dizeres neles constantes, designadamente valor, data, o nome no campo “não à ordem” e no local da assinatura imitou a assinatura de um dos cotitulares da conta.
7. Depois o arguido BB entregou os cheques aos funcionários dos CTT nas circunstâncias referidas em 4., para pagamento de encomendas que haviam sido efetuadas pelo arguido e a ele destinadas, levando os funcionários dos CTT a entregar as encomendas ao arguido convencidos da regularidade dos cheques e que estavam licitamente na posse do arguido BB.
8. O arguido BB ao entregar os referidos cheques aos funcionários dos CTT, sabia que os mesmos não lhe pertenciam e não estavam legitimamente na sua posse e que o mesmo havia abusivamente preenchido e assinado os cheques.
9. O arguido agiu dessa forma com o propósito de enganar os funcionários dos CTT e através deles os lesados, MM, NN, “D..., Lda.” e OO e dessa forma obter uma vantagem económica correspondente ao valor dos bens que lhe foram por estes vendidos.
10. O arguido que tinha conhecimento de que os cheques não lhe pertenciam e que não tinha legitimidade para os emitir e usar, não se coibiu de os pôr em circulação.
11. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de usar cheques falsificados e dessa forma obter um enriquecimento do seu património no montante total de € 1.641,32 (mil seiscentos e quarenta e um euros e trinta e dois cêntimos), com o necessário prejuízo económico dos denunciantes, o que conseguiu, da forma descrita.
12. No dia 25 de Dezembro de 2017, a arguida CC, usando um nome falso “PP”, efetuou uma encomenda através da página do “Facebook” de DD, de produtos de cosmética, no valor de €143,95, onde já estava incluído o valor de portes de correio, e solicitou a sua expedição para a morada sita na Av. ..., ... ..., em nome de QQ, mas sendo a arguida a verdadeira destinatária dos produtos encomendados.
13. A denunciante DD procedeu ao envio dos produtos encomendados via CTT, através de encomenda com a referência ...52....
14. No dia 28 de Dezembro de 2017, pelas 16:24, o funcionário dos CTT, RR, acompanhado por EE, gestora do Centro de Distribuição Postal de ..., que o foi ajudar na entrega das mercadorias dado o elevado número das mesmas, procedeu à entrega da encomenda na morada indicada e que foi recebida pela arguida CC e que entregou ao mesmo, para pagamento, o cheque n.º ...71, cuja original consta de fls. 56 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos, sacado sobre a conta n.º ...92, da Banco 1... do ..., titulada por “A..., Lda.”, no qual consta aposta a data de 28.12.2017, e o valor de €143,35.
15. O cheque entregue havia sido subtraído aos seus legítimos titulares nas circunstâncias referidas em 1..
16. A arguida CC, que tinha entrado na posse dos livros de cheques referidos em 2., de onde foi extraído o cheque referido, e que sabia não lhe pertence e que não estava autorizada a preenche-lo e emiti-lo pelos seus legítimos titulares, de comum acordo e em conjugação de esforços, no referido cheque, pelo seu próprio punho ou de terceiro a seu mando, no local da assinatura emitiram a assinatura de um dos cotitulares da conta.
17. Nas circunstâncias referidas em 14., a arguida CC, entregou o referido cheque assim assinado ao funcionário dos CTT, para pagamento de encomenda que havia sido efetuada pela arguida e a ela destinada, cujos demais dizeres dele constantes designadamente valor, data, o nome no campo “não à ordem” foram nessas circunstâncias inscritos por EE, a solicitação da arguida, levando o funcionário dos CTT a entregar a encomenda à arguida convencido da regularidade do cheque e que estava licitamente na posse da arguida.
18. A arguida, CC, ao entregar o cheque nos CTT, sabia que o mesmo não lhes pertencia e não estava legitimamente na sua posse e que a mesma havia abusivamente assinado.
19. A arguida agiu dessa forma com o propósito de enganar o funcionário dos CTT e através dele a denunciante DD e dessa forma obter uma vantagem económica correspondente ao valor dos bens que lhes foram por esta vendidos.
20. A arguida que tinha conhecimento de que o cheque não lhe pertencia e que não tinha legitimidade para o emitir e usar, não se coibiu de o pôr em circulação.
21. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de usar um cheque falsificado e dessa forma obter um enriquecimento do seu património no montante de €143,35 (cento e quarenta e três Euros e trinta e cinco cêntimos), com o necessário prejuízo económico da denunciante, nesse valor, o que conseguiu, da forma descrita.
22. Em data não concretamente apurada mas anterior a 28 de Dezembro de 2017, a arguida, CC, usando um nome falso, efetuou uma encomenda online junto da sociedade “E..., Unipessoal, Lda.” de componentes automóveis, no valor de €336,24, onde já estava incluído o valor de portes de correio e a sua expedição para a morada sita na Av. ..., ... ..., em nome de QQ, mas sendo a arguida a verdadeira destinatária dos produtos encomendados.
23. A denunciante “E..., Unipessoal, Lda.” procedeu ao envio dos produtos encomendados via CTT, através de encomenda com a referência ...57....
24. No dia 28 de Dezembro de 2017, pelas 16:20, o funcionário dos CTT, RR acompanhado por EE, gestora do Centro de Distribuição Postal de ..., que o foi ajudar na entrega das mercadorias dado o elevado número das mesmas, procedeu à entrega da encomenda na morada indicada e que foi recebida pela arguida CC e que entregou ao mesmo, para pagamento, o cheque n.º ...15, cuja cópia consta de fls. 818 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos, sacado sobre a conta n.º ...92, da Banco 1... do ..., titulada por “A..., Lda.”, no qual consta aposta a data de 28.12.2017, e o valor de €336,34.
25. O cheque entregue havia sido subtraído aos seus legítimos titulares nas circunstâncias referidas em 1..
26. A arguida, CC, que tinha entrado na posse dos livros de cheques referidos em 2., de onde foi extraído o cheque referido, e que sabia não lhe pertencer e que não estava autorizada a preenche-lo e emiti-lo pelos seus legítimos titulares, pelo seu próprio punho ou de terceiro a seu mando, no referido cheque, no local da assinatura imitou a assinatura de um dos cotitulares da conta.
27. Nas circunstâncias referidas em 24., a arguida CC, entregou o referido cheque assim assinado ao funcionário dos CTT, para pagamento de encomenda que havia sido efetuada pela arguida e a ela destinada, cujos demais dizeres dele constantes designadamente valor, data, o nome no campo “não à ordem” foram nessas circunstâncias inscritos por EE, a solicitação da arguida, levando o funcionário dos CTT a entregar a encomenda à arguida convencido da regularidade do cheque e que estava licitamente na posse da arguida.
28. A arguida, CC, ao entregar o cheque nos CTT, sabia que o mesmo não lhe pertencia e não estava legitimamente na sua posse e que a mesma havia abusivamente preenchido e assassinado.
29. A arguida agiu dessa forma com o propósito de enganar o funcionário dos CTT e através dele a denunciante “E..., Unipessoal, Lda.” e dessa forma obter uma vantagem económica correspondente ao valor dos bens que lhe foram por esta vendidos.
30. A arguida que tinha conhecimento de que o cheque não lhe pertencia e que não tinha legitimidade para o emitir e usar, não se coibiu de o pôr em circulação.
31. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de usar um cheque falsificado e dessa forma obter um enriquecimento do seu património no montante de €336,34 (trezentos e trinta e seis Euros e trinta e quatro cêntimos), com o necessário prejuízo económico da denunciante, nesse valor, o que conseguiu, da forma descrita.
32. Em data não concretamente apurada mas anterior a 28 de Dezembro de 2017, a arguida, CC, usando um nome falso, efetuou uma encomenda através do “Facebook”, a SS, de artigos de vestuário, no valor de €256,00, onde já estava incluído o valor de portes de correio e solicitou a sua expedição para a morada sita na Av. ..., ... ..., em nome de QQ, mas sendo a arguida a verdadeira destinatária dos produtos encomendados.
33. O denunciante SS procedeu ao envio dos produtos encomendados via CTT, através de encomenda com a referência ...14....
34. No dia 28 de Dezembro de 2017, pelas 16:20, o funcionário dos CTT, RR, acompanhado por EE, gestora do Centro de Distribuição Postal de ..., que o foi ajudar na entrega das mercadorias dado o elevado número das mesmas, procedeu à entrega da encomenda na morada indicada e que foi recebida pela arguida CC e que entregou ao mesmo, para pagamento, o cheque n.º ...13, cuja original consta de fls. 13 do apenso A e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos, sacado sobre a conta n.º ...92, da Banco 1... do ..., titulada por “A..., Lda.”, no qual consta aposta a data de 28.12.2017, e o valor de €256,00.
35. O cheque entregue havia sido subtraído aos seus legítimos titulares nas circunstâncias referidas em 1..
36. A arguida, CC, que tinha entrado na posse dos livros de cheques referidos em 2., de onde foi extraído o cheque referido, e que sabia não lhe pertencer e que não estava autorizada a preenche-lo e emiti-lo pelos seus legítimos titulares, pelo seu próprio punho ou de terceiro a seu mando, no referido cheque, no local da assinatura imitou a assinatura de um dos cotitulares da conta.
37. Nas circunstância referidas em 34., a arguida CC, entregou o referido cheque assim assinado ao funcionário dos CTT, para pagamento de encomenda que havia sido efetuada pela arguida e a ela destinada, cujos demais dizeres dele constantes designadamente valor, data, o nome no campo “não à ordem” foram nessas circunstâncias inscritos por EE, a solicitação da arguida, levando o funcionário dos CTT a entregar a encomenda à arguida convencido da regularidade do cheque e que estava licitamente na posse da arguida.
38. A arguida, CC, ao entregar o cheque nos CTT, sabia que o mesmo não lhe pertencia e não estava legitimamente na sua posse e que a mesma havia abusivamente assinado.
39. A arguida agiu dessa forma com o propósito de enganar o funcionário dos CTT e através dele o denunciante SS e dessa forma obter uma vantagem económica correspondente ao valor dos bens que lhe foram por esta vendidos.
40. A arguida que tinha conhecimento de que o cheque não lhe pertencia e que não tinha legitimidade para o emitir e usar, não se coibiu de o pôr em circulação.
41. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de usar um cheque falsificado e dessa forma obter um enriquecimento do seu património no montante de €256,00 (duzentos e cinquenta e seis Euros), com o necessário prejuízo económico do denunciante, nesse valor, o que conseguiu, da forma descrita.
42. Em data não concretamente apurada mas anterior a 27 de dezembro de 2017, a arguida, CC, usando um nome falso, efetuou uma encomenda através do “OLX”, a TT de componentes automóveis, no valor de €1.702,28, onde já estava incluído o valor de portes de correio e a sua expedição para a morada sita na Av. ..., ... ..., em nome de UU, mas sendo a arguida a verdadeira destinatária dos produtos encomendados.
43. A denunciante TT procedeu ao envio dos produtos encomendados via CTT, através de encomenda com a referência ...62....
44. No dia 28 de Dezembro de 2017, pelas 16:20, o funcionário dos CTT, RR acompanhado por EE, gestora do Centro de Distribuição Postal de ..., que o foi ajudar na entrega das mercadorias dado o elevado número das mesmas, procedeu à entrega da encomenda na morada indicada e que foi recebida pela arguida CC e que entregou ao mesmo, para pagamento, o cheque n.º ...10, cuja cópia consta de fls. 754 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos, sacado sobre a conta n.º ...92, da Banco 1... do ..., titulada por “A..., Lda.”, no qual consta aposta a data de 28.12.2017, e o valor de €1.702,28.
45. O cheque entregue havia sido subtraído aos seus legítimos titulares nas circunstâncias referidas em 1..
46. A arguida, CC, que tinha entrado na posse dos livros de cheques referidos em 2., de onde foi extraído o cheque referido, e que sabia não lhe pertencer e que não estava autorizada a preenche-lo e emiti-lo pelos seus legítimos titulares, pelo seu próprio punho ou de terceiro a seu mando, no referido cheque, no local da assinatura imitou a assinatura de um dos cotitulares da conta.
47. Nas circunstância referidas em 44., a arguida CC, entregou o referido cheque assim assinado ao funcionário dos CTT, para pagamento de encomenda que havia sido efetuada pela arguida e a ela destinada, cujos demais dizeres dele constantes designadamente valor, data, o nome no campo “não à ordem” foram nessas circunstâncias inscritos por EE, a solicitação da arguida, levando o funcionário dos CTT a entregar a encomenda à arguida convencido da regularidade do cheque e que estava licitamente na posse da arguida.
48. A arguida, CC, ao entregar o cheque nos CTT, sabia que o mesmo não lhe pertencia e não estava legitimamente na sua posse e que a mesma havia abusivamente preenchido e assinado.
49. A arguida agiu dessa forma com o propósito de enganar o funcionário dos CTT e através dele a denunciante TT e dessa forma obter uma vantagem económica correspondente ao valor dos bens que lhe foram por esta vendidos.
50. A arguida que tinha conhecimento de que o cheque não lhe pertencia e que não tinha legitimidade para o emitir e usar, não se coibiu de o pôr em circulação.
51. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de usar um cheque falsificado e dessa forma obter um enriquecimento do seu património no montante de €1.702,28 (mil setecentos e dois Euros e vinte e oito cêntimos), com o necessário prejuízo económico do denunciante, nesse valor, o que conseguiu, da forma descrita.
52. Nesse mesmo dia 28 de dezembro de 2017, pelas 16:20, o funcionário dos CTT, RR, acompanhado por EE, gestora do Centro de Distribuição Postal de ..., que o foi ajudar na entrega das mercadorias dado o elevado número das mesmas, procedeu ainda à entrega das encomendas com as referências ...25..., ...13..., ...87..., ...14..., ...75..., ...27..., ...13..., ...15..., ...72..., ...72..., ...35..., na morada sita na Av. ..., ... ... e que foram recebidas pela arguida CC e que entregou ao mesmo, para pagamento das encomendas, os seguintes cheques:
- ...11, pelo valor de €141,20, cuja cópia consta de fls. 800 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos;
- ...14, pelo valor de €1.100,00, cuja cópia consta de fls. 806 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos;
- ...73, pelo valor de €1.018,53, cuja cópia consta de fls.759 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos;
- ...77, pelo valor de €406,94, a que se reporta a informação de fls. 849 do “Banco 2...”;
- ...81, pelo valor de €213,72, cuja cópia consta de fls.804 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos;
- ...12, pelo valor de €104,50, cuja cópia consta de fls.801 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos;
- ...67, pelo valor de €110,00, cuja cópia consta de fls. 805 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos;
- ...82, pelo valor de €110,00, cuja cópia consta de fls.803 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos;
- ...79, pelo valor de €415,00, cuja cópia consta de fls.794 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos;
- ...70, pelo valor de €450,00, a que se reporta a informação de fls. 761 a 763 do “Banco 3...”;
- ...66, pelo valor de €118,00, cuja cópia consta de fls.802 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos;
Todos sacados sobre a conta n.º ...92, da Banco 1... do ..., titulada por “A..., Lda.”, com data de 28.12.2017 e o valor de €1.702,28.
53. Todos os cheques acima referidos e entregues pela arguida, CC, haviam sido subtraídos aos seus legítimos titulares nas circunstâncias referidas em 1..
54. A arguida, CC, que tinha entrado na posse dos livros de cheques referidos em 2., de onde foram extraídos os cheques referidos, e que sabia não lhe pertencerem e que não estava autorizada a preenche-los e emiti-los pelos seus legítimos titulares, pelo seu próprio punho ou de terceiro a seu mando, no referido cheque, no local da assinatura imitou a assinatura de um dos cotitulares da conta.
55. Nas circunstância referidas em 52., a arguida CC, entregou os referidos cheques assim assinados ao funcionário dos CTT, para pagamento de encomendas que haviam sido efetuada pela arguida e a ela destinadas, cujos demais dizeres dele constantes designadamente valor, data, o nome no campo “não à ordem” foram nessas circunstâncias inscritos por EE, a solicitação da arguida, levando o funcionário dos CTT a entregar as encomendas à arguida convencido da regularidade dos cheques e que estavam licitamente na posse da arguida.
56. A arguida, CC, ao entregar os cheques nos CTT, sabia que os mesmos não lhe pertenciam e não estavam legitimamente na sua posse e que a mesma havia abusivamente preenchido e assinado.
57. A arguida agiu dessa forma com o propósito de enganar os funcionários dos CTT e dessa forma obter uma vantagem económica correspondente ao valor dos bens constantes das encomendas que lhes foram entregues.
58. A arguida que tinha conhecimento de que os cheques não lhe pertenciam e que não tinha legitimidade para os emitir e usar, não se coibiu de os pôr em circulação.
59. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de usar cheques falsificados e dessa forma obter um enriquecimento do seu património no montante de €4.187,89 (quatro mil cento e oitenta e sete euros e oitenta e nove cêntimos) com o necessário prejuízo económico da denunciante “CTT- Correios de Portugal, S.A” e dos emitentes das encomendas, nesse valor, o que conseguiu, da forma descrita.
60. No dia 26 de dezembro de 2017, a arguida, CC, usando um nome falso, efetuou uma encomenda através da página do “Facebook” da denunciante VV, de artigos de vestuário, no valor de €280,00, onde já estava incluído o valor de portes de correio e solicitou a sua expedição para a morada sita na Av. ..., ... ..., em nome de QQ, mas sendo a arguida a verdadeira destinatária dos produtos encomendados.
61. A denunciante VV procedeu ao envio dos produtos encomendados via CTT, através de encomenda com a referência ...04....
62. No dia 29 de Dezembro de 2017, pelas 16:33, um funcionário dos CTT procedeu à entrega da encomenda na morada indicada e que foi recebida pela arguida, CC, e que entregou ao mesmo, para pagamento, o cheque n.º ...65, cuja cópia consta de fls. 808 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos, sacado sobre a conta n.º ...92, da Banco 1... do ..., titulada por “A..., L.da”, com data de 29.12.2017 e o valor de €280,00.
63. O cheque entregue havia sido subtraído aos seus legítimos titulares nas circunstâncias referidas em 1.
64. A arguida, CC, que tinha entrado na posse dos livros de cheques referidos em 2., de onde foi extraído o cheque referido, e que sabia não lhe pertencer e que não estava autorizada a preenche-lo e emiti-lo pelos seus legítimos titulares, pelo seu próprio punho ou de terceiro a seu mando, preencheu o cheque com a totalidade dos dizeres nele constantes, designadamente valor, data, o nome no campo “não à ordem” e no local da assinatura imitou a assinatura de um dos cotitulares da conta.
65. Depois procedeu à entrega do cheque ao funcionário dos CTT nas circunstâncias referidas em 62., para pagamento de encomenda que havia sido efetuada pela arguida e a ela destinada, levando o funcionário dos CTT a entregar a encomenda à arguida convencido da regularidade do cheque e que estava licitamente na sua posse.
66. A arguida, CC, ao entregar o cheque nos CTT, sabia que o mesmo não lhe pertencia e não estava legitimamente na sua posse e que a mesma havia abusivamente preenchido e assinado.
67. A arguida agiu dessa forma com o propósito de enganar o funcionário dos CTT e através dele a denunciante VV e dessa forma obter uma vantagem económica correspondente ao valor dos bens que lhe foram por esta vendidos.
68. A arguida que tinha conhecimento de que o cheque não lhe pertencia e que não tinha legitimidade para o emitir e usar, não se coibiu de o pôr em circulação.
69. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de usar um cheque falsificado e dessa forma obter um enriquecimento do seu património no montante de €280,00 (duzentos e oitenta Euros), com o necessário prejuízo económico da denunciante, nesse valor, o que conseguiu, da forma descrita.
70. Nesse mesmo dia 29 de Dezembro de 2017, pelas 16:33, funcionários dos CTT procederam à entrega das encomendas com as referências ...57... e ...43..., na morada dos arguidos sita na Av. ..., ... ... e que foram recebidas pela arguida, CC, e que entregou aos mesmos, para pagamento, os seguintes cheques:
- ...12, pelo valor de €104,50, cuja cópia consta de fls. 800 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos;
- ...64, pelo valor de €470,00, a que se reporta a informação de fls. 849 do “Banco 2...”;
Todos sacados sobre a conta n.º ...92, da Banco 1... do ..., titulada por “A..., Lda.”.
71. Todos os cheques acima referidos e entregues pela arguida, CC haviam sido subtraídos aos seus legítimos titulares nas circunstâncias referidas em 1..
72. A arguida, CC, que tinha entrado na posse dos livros de cheques referidos em 2., de onde foram extraídos os cheques referidos, e que sabia não lhe pertencerem e que não estava autorizada a preenche-los e emiti-los pelos seus legítimos titulares, pelo seu próprio punho ou de terceiro a seu mando, preencheu os cheques com a totalidade dos dizeres nele constantes, designadamente valor, data, o nome no campo “não à ordem” e no local da assinatura imitou a assinatura de um dos cotitulares da conta.
73. Depois procedeu à entrega dos cheques aos funcionários dos CTT nas circunstâncias referidas em 70., para pagamento de encomendas que haviam sido efetuadas pela arguida e a ela destinadas, levando os funcionários dos CTT a entregar as encomendas à arguida convencido da regularidade dos cheques e que estavam licitamente na posse da arguida.
74. A arguida, CC, ao entregar os cheques nos CTT, sabiam que os mesmos não lhe pertenciam e não estavam legitimamente na sua posse e que a mesma havia abusivamente preenchido e assinado.
75. A arguida agiu dessa forma com o propósito de enganar os funcionários dos CTT e dessa forma obter uma vantagem económica correspondente ao valor dos bens constantes das encomendas que lhe foram entregues.
76. A arguida que tinha conhecimento de que os cheques não lhe pertenciam e que não tinha legitimidade para os emitir e usar, não se coibiu de os pôr em circulação.
77. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de usar cheques falsificados e dessa forma obter um enriquecimento do seu património no montante total de €574,50 (quinhentos e setenta e quatro Euros e cinquenta cêntimos) com o necessário prejuízo económico da denunciante “CTT- Correios de Portugal, S.A” e dos emitentes das encomendas, nesse valor, o que conseguiu, da forma descrita.
78. Os arguidos BB, e CC, sabiam que as suas condutas eram ilícitas e proibidas por lei.
79. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 15 de Março de 2018, pessoa cuja identificação não se logrou apurar, efetuou uma encomenda através do “OLX”, a WW de uma mesa de mistura e microfones, no valor global de € 690,00, onde já estava incluído o valor de portes de correio e a sua expedição para a morada sita na Rua ..., ..., ....
80. A denunciante WW procedeu ao envio dos produtos encomendados via CTT, através das encomendas com as referências ...34... e ...65....
81. No dia 19 de Março de 2018, pelas 12:43 horas, um funcionário dos CTT procedeu à entrega das encomendas na morada indicada e que foram recebidas pela arguida AA, que entregou ao mesmo, para pagamento, os cheques n.ºs ...74 e ...76, cujos originais constam de fls. 26 do apenso C e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos, sacados sobre a conta n.º ...92, da Banco 1... do ..., titulada por “A..., Lda.”, com data de 19.03.2018 e o valor, respetivamente, de € 335,00 e € 350,00.
82. Os referidos cheques entregues pela arguida AA, haviam sido subtraídos aos seus legítimos titulares nas circunstâncias referidas em 1.
83. Os referidos cheques chegaram à posse da arguida AA em circunstâncias não concretamente apuradas, tendo a arguida aposto nesses cheques pelo seu próprio punho, o valor em extenso que deles consta.
84. Depois a arguida AA procedeu à entrega dos cheques ao funcionário dos CTT nas circunstâncias referidas em 81., para pagamento das encomendas, tendo-lhe o funcionário dos CTT, convencido da regularidade dos cheques, entregue as mesmas.
85. A arguida, AA, sabia que os cheques que entregou aos CTT para pagamento das referidas encomendas, não lhe pertenciam.
86. Após receber as referidas encomendas, a arguida AA, a solicitação de terceiro cuja identidade se não apurou, entregou-as num estabelecimento comercial denominado F..., sito na Av. ..., ..., a um funcionário deste estabelecimento chamado XX.
87. No CRC do arguido BB constam averbadas as seguintes condenações:
a) No PCS nº 201/01...., foi condenado por sentença transitada em julgado em 15.07.2002, pela prática em 22.06.2001, de dois crimes de emissão de cheque sem provisão, em pena de multa, declarada extinta pelo seu pagamento, em 04.05.2009;
b) No PCS nº 54/03...., foi condenado por sentença transitada em julgado em 06.01.2006, pela prática em 01.02.2001, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, em pena de multa, declarada extinta pelo seu pagamento, em 30.09.2009;
c) No PCS nº 289/05...., foi condenado por sentença transitada em julgado em 29.11.2006, pela prática em 13.06.2005, de um crime de desobediência, em pena de multa, declarada extinta pelo seu pagamento, em 23.11.2007;
d) No PCS nº 122/05...., foi condenado por sentença transitada em julgado em 30.01.2007, pela prática em 29.06.2005, de um crime de ofensa à integridade física simples, em pena de multa, declarada extinta pelo seu pagamento coercivo, em 15.05.2008;
e) No PCC nº 80/06...., foi condenado por acórdão transitado em julgado em 21.04.2008, pela prática em 01.01.2001, de dois crimes de abuso de confiança fiscal, na pena de 22 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova e condicionada ao pagamento das prestações tributárias e acréscimos legais;
f) No PCS nº 296/06...., foi condenado por sentença transitada em julgado em 07.05.2008, pela prática entre Fevereiro de 2002 e Agosto de 2004, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por três anos, condicionada ao pagamento das prestações tributárias e acréscimos legais;
Neste processo foi realizado cúmulo jurídico das penas em que o arguido foi condenado no mesmo, e no PCS referido em b), tendo sido condenado, por sentença transitada em julgado em 23.01.2009, na pena de um ano de prisão, suspensa na sua execução por três anos, condicionada ao pagamento das prestações tributárias e acréscimos legais.
g) No PCS nº 72/06...., foi condenado por sentença transitada em julgado em 15.09.2008, pela prática em 08.2004, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de um ano e oito meses de prisão, suspensa na sua execução por três anos, condicionada ao pagamento das prestações tributárias e acréscimos legais;
h) No PCS nº 194/07...., foi condenado por sentença transitada em julgado em 15.09.2008, pela prática em 01.06.2002, de um crime de falsificação de documento e de um crime de burla qualificada, em pena de multa, e na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por quatro anos, com regime de prova e condicionada ao pagamento de indemnização ao lesado;
i) No PCC nº 82/06...., foi efectuado o cúmulo jurídico das penas em que o arguido foi condenado nos processos supra identificados em b) a h), tendo por acórdão transitado em julgado em 05.05.2011, sido condenado em pena de multa e na pena única de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos, com regime de prova e sujeita a condições, declarada extinta em 04.07.2017.
j) No PCS nº 55/08...., foi condenado por sentença transitada em julgado em 07.10.2010, pela prática em 01.09.2004, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de sete meses de prisão suspensa na sua execução por um ano, com sujeição a deveres, tendo por decisão transitada em julgado em 04.02.2015, sido revogada a suspensão da execução dessa pena.
k) No PCS nº 85/10...., foi condenado por sentença transitada em julgado em 04.01.2012, pela prática em 2009, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 16 meses de prisão, substituída por 480 horas de trabalho a favor da comunidade, declarada extinta pelo cumprimento em 13.06.2015.
l) No PCS nº 1046/10...., foi condenado por sentença transitada em julgado em 21.06.2012, pela prática em 06.2008, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de 6 meses de prisão, substituída por 180 horas de trabalho a favor da comunidade, declarada extinta pelo cumprimento em 25.01.2013.
m) No PCS nº 295/11...., foi condenado por sentença transitada em julgado em 17.09.2012, pela prática em 10.2011, de um crime de coacção na forma tentada, na pena de 5 meses de prisão, substituída por 150 horas de trabalho a favor da comunidade, declarada extinta pelo cumprimento em 27.03.2014.
n) No processo sumaríssimo nº 40/12...., foi condenado por sentença transitada em julgado em 08.03.2013, pela prática em 09.12.2011, de um crime de abuso de confiança, em pena de multa, declarada extinta pelo cumprimento em 26.19.2014.
o) No processo sumário nº 186/13...., foi condenado por sentença transitada em julgado em 04.10.2013, pela prática em 18.07.2013, de um crime de desobediência, na pena de um ano e dois meses de prisão, substituída por 420 horas de trabalho a favor da comunidade, declarada extinta pelo cumprimento em 30.09.2017.
p) No PCS nº 2169/12...., foi condenado por sentença transitada em julgado em 09.12.2014, pela prática em 2009, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de cinco meses de prisão, substituída por 150 horas de trabalho a favor da comunidade, declarada extinta pelo cumprimento em 03.03.2017.
q) No PCS nº 61/12...., foi condenado por sentença transitada em julgado em 09.03.2015, pela prática em 05.10.2011, de um crime de desobediência qualificada, na pena de um ano de prisão.
Neste processo foi realizado cúmulo jurídico das penas em que o arguido foi condenado no mesmo, e no PCS referido em j), tendo sido condenado, por sentença transitada em julgado em 24.12.2015, na pena de um ano e dois meses de prisão, que cumpriu, tendo a pena sido declarada extinta por decisão transitada em julgado em 21.10.2016.
r) No PCS nº 137/16...., foi condenado por sentença transitada em julgado em 25.01.2020, pela prática em 03.2013, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de 16 meses de prisão em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica, que cumpriu, e declarada extinta por decisão transitada em julgado em 04.08.2021.
87. No CRC da arguida CC, não consta averbada qualquer condenação.
88. No CRC da arguida AA, não consta averbada qualquer condenação.
89. No relatório social elaborado pela DGRSP em 21.02.2024, referente ao arguido BB, com base nas seguintes fontes/procedimentos de recolha de informação: entrevista com o arguido, nas instalações da Equipa Baixo Mondego 1; entrevista com YY (companheira do arguido), nas instalações da Equipa Baixo Mondego 1; contacto telefónico com ZZ (pai, residente em ...); consulta do dossiê do arguido na DGRSP onde constam os registos de diligências, comprovativos e relatório social para julgamento no âmbito do presente processo, quando elaborado em 25.01.2023, e actualizado; contacto com o Comando da Guarda Nacional Republicana de ... (O.P.C Local); consulta dos documentos remetidos pelo Tribunal (Despacho de Acusação Pública e Despacho de Pronuncia), exara-se:
«1. CONDIÇÕES PESSOAIS E SOCIAIS
BB vive em união de facto com YY (41 anos – desempregada), relacionamento que dura há 11 anos. O casal tem um filho com 7 anos de idade (AAA). Integra ainda este agregado familiar a menor BBB (15 anos, estudante), filha do primeiro casamento da companheira do arguido.
O agregado familiar reside na atual morada desde outubro de 2022, em apartamento de tipologia T3. com contrato de arrendamento titulado pelo arguido e companheira. A habitação é descrita como tendo condições de habitabilidade condignas para as necessidades familiares.
Reside em ... desde 2019.
As relações familiares do arguido aparentam ser harmoniosas e consistentes, sendo referido um relacionamento de proximidade (com contacto telefónico quase diariamente, e aos fins de semana pessoalmente) e interajuda com as famílias de origem do casal, ambas residentes em ....
Ao nível escolar, frequentou o 12º ano de escolaridade, mas abandonou os estudos sem completar este grau de escolaridade.
O seu percurso laboral caracterizou-se pela mobilidade entre empresas dos ramos de fabrico de peças de alumínio (“G..., Lda”) e de produtos de higiene (“H...”), tendo chegado a constituir sociedades em nome individual, e posteriormente por quotas, nas quais foi sócio-gerente, e que vieram a encerrar por inviabilidade económica.
Desde finais de 2012 e até 2017 - ano dos factos de que está acusado nos autos - trabalhou na empresa “I..., Lda.”, com sede em ... (...), que operava na área da recuperação de créditos e impostos, com a categoria profissional de comercial.
Em dezembro de 2018, estabeleceu-se em nome individual com a empresa “J... Unipessoal Lda”, do ramo de alumínios e caixilharia, a qual também foi encerrada por insuficiência económica.
Atualmente, BB exerce a atividade vendedor de produtos/material do ramo da construção civil e prestador de serviços a várias empresas, atividade que executa de forma independente e sem vínculo de trabalho.
Relativamente à sua situação económica (e do agregado), BB descreve-a como difícil e exigente de uma rigorosa gestão, sendo o seu salário no valor aproximadamente de 1.200,00 euros, mas de montante incerto, sendo também a única fonte de rendimento familiar.
A sua companheira, que está desempregada há mais de onze anos, dedica-se à vida doméstica e, complementarmente, à venda de artigos para o lar da marca “Tupperware”, na qual aufere a comissão de 25% do valor de vendas que conseguir realizar.
Neste contexto, o casal relata que dependem do apoio das respetivas famílias de origem (residentes em ...), com quem mantêm visitas semanais (habitualmente) e recebem donativos de produtos hortícolas.
As despesas fixas do agregado familiar relatadas atingem o valor total de €693,50 e são as seguintes: €350,00 renda de casa; €177,00; €56,00 de eletricidade; €30,50 de água; €80,00 de telecomunicações.
Nestas despesas não estão contabilizadas as despesas com alimentação e outras que são de montante variável (vestuário, calçado, material escolar dos filhos, por exemplo).
2 – REPERCUSSÕES DA SITUAÇÃO JURÍDICO-PENAL DO ARGUIDO
Confrontado com a situação processual em apreciação, identificou um impacto negativo na sua estabilidade emocional e familiar, deixando transparecer receio de sofrer condenação em pena de prisão efetiva dado o seu percurso e anterior situação judicial.
Na dinâmica e relacionamento familiares não foram sinalizados impactos negativos com o presente processo, continuando a ser relatada uma vivência baseada no apoio e interajuda.
BB tem antecedentes criminais por crimes de semelhante natureza, tendo condenações em penas/medidas de execução na comunidade acompanhadas pela DGRSP desde 2010, nomeadamente 4 (quatro) condenações em Prestação de Trabalho a Favor da Comunidade nos seguintes processos: 1) processo nº 1046/10....; 2) processo nº 186/13....; 3) processo nº 85/10....; 4) e processo nº 2169/12..... Em todos estes processos o arguido cumpriu as penas na integra, com a supervisão da DGRSP (Equipa Dão Lafões e Equipa do Baixo Mondego 1)
No processo nº 391/15.... cumpriu 18 (dezoito) meses de pena de prisão no Estabelecimento Prisional ... e esteve em acompanhamento durante o período de Liberdade Condicional pela Equipa do Baixo Mondego 1
No processo nº 82/06.... foi condenado empena de prisão, que foi suspensa na sua execução com regime de prova, no qual cumpriu as injunções judicialmente fixadas e os objetivos do Plano de Reinserção Social elaborado pela Equipa de Dão Lafões.
Em 2020, cumpriu 1 (um) ano de Pena de Prisão, em Regime de Permanência na Habitação, com a vigilância da Equipa de Vigilância Eletrónica 03 de Coimbra, à ordem do processo nº 137/16....
3 – CONCLUSÃO
BB revela-se um indivíduo com vínculos afetivos aos níveis pessoal e familiar, com a família nuclear e alargada.
O seu percurso profissional caracteriza-se pela mobilidade e dificuldades na gestão das empresas que constituiu ao longo do seu trajeto, colocando-se em incumprimento de obrigações legais que determinaram a sua condenação por crimes de idêntica natureza.
Tem anteriores contactos com o aparelho de Justiça penal, e condenações por crimes de igual tipicidade, tendo cumprido com qualidade as injunções e deveres inerentes àquelas condenações.
Face ao descrito, identificamos necessidades aos níveis pessoais, estabilidade laboral / económica e consolidação da censurabilidade das suas anteriores condutas criminais, pelo que, e em caso de condenação em pena de prisão e se a medida da pena aplicada permitir, somos de parecer que reúne condições pessoais para o cumprimento de uma medida penal de execução na comunidade com o seu acompanhamento por parte destes Serviços, dirigido ao aperfeiçoamento daquelas necessidades, bem como à consciencialização da ilicitude do comportamento e adoção de comportamentos legalmente normativos».
90. No relatório da DGRSP elaborado em 27.02.2024, referente à arguida CC, com base nos seguintes procedimentos: entrevista à arguida, realizada nas instalações dessa Equipa da DRGSP, no dia 09-02-2024; contacto telefónico posterior com a arguida para atualização da sua situação; recolha de elementos no meio social de residência, nomeadamente junto do Presidente da Junta de Freguesia local; consulta/análise dos elementos já existentes em dossier desta DGRSP, relativo à arguida; consulta/análise das peças processuais remetidas com o pedido de relatório, exara-se:
«I - Condições sociais e pessoais
CC é natural de ..., localidade situada no estado de ..., Brasil, onde iniciou o seu processo de aprendizagem social, inserida no agregado familiar de origem, constituído pelos pais, ele encarregado de obras e ela empregada doméstica e um irmão mais novo que ela três anos.
Viveu na referida localidade até aos 5 anos de idade, altura em que os pais fixam residência na cidade .... Contudo, quando tinha 13 anos de idade, o seu pai haveria de ser vítima de um sequestro, facto que abalou um pouco a família e motivou o regresso à localidade de onde são originários.
Iniciou processo de escolarização em idade própria, cuja frequência viria a interromper aos 17 anos de idade, após concluir o 3º ano do ensino médio, equivalente, segundo refere, ao 12º ano da escolaridade lecionado em Portugal. Mais tarde, em ..., ainda frequenta a Faculdade de Direito em regime noturno, durante dois anos e meio, sem concluir.
Aos 17 anos teve uma filha gerada na pendência de uma relação de namoro. Viveu depois em união de facto com o pai da sua filha até 2009 em ..., dando aulas a jovens nessa altura. Aquando da rutura da relação vai viver novamente para ..., onde os pais já se encontravam novamente a residir, ficando a filha ao seu cuidado.
Em termos profissionais, durante a sua permanência em ..., teve várias atividades laborais.
Trabalhou como empregada de limpeza, empregada de escritório e numa imobiliária.
Entretanto, os pais separam-se e os bens imobiliários que tinham foram repartidos pelos filhos, ficando a arguida na altura a viver com a filha, numa moradia que os pais haviam construído em .... Ali permanece até 2016, altura em que vem viver para Portugal, fixando residência em ..., em casa de pessoas suas amigas.
Ainda em 2016, viria a conhecer o seu atual marido, natural de ..., casando com ele pouco tempo depois de vir para Portugal, com regime separação de bens. A filha que na altura deixou no Brasil haveria de depois se juntar a si em Portugal, decorria o mês de dezembro de 2016.
Quando chegou esteve a trabalhar numa empresa de limpezas durante seis meses, sem contrato. Depois ter-se-á coletado e começou a trabalhar por conta própria.
Aquando dos acontecimentos que sustentam a presente realidade jurídico-penal a arguida vivia em ... onde, segundo verbaliza, permaneceu até 2018, altura em que o seu agregado familiar fixa residência em ..., no concelho .... Um ano depois terão vendido a casa onde residiam em ... e compram outra em ..., no concelho ....
Entretanto, o marido torna-se o responsável da Rádio K..., em ... e, pouco mais de um ano depois, o agregado familiar fixa residência numa moradia que a arguida adquiriu com recurso a crédito bancário, no valor de €108.000,00 (cento e oito mil euros), amortizável em quarenta anos, cujo pagamento verbaliza ter iniciado em setembro de 2021, situada em ..., concelho ..., na morada indicada no presente relatório social, onde reside atualmente.
O agregado familiar, para além da arguida é constituído pelo marido, CCC, de 52 anos, licenciado, pela filha da arguida nascida na pendência de relação anterior, DDD, de 16 anos de idade, que frequenta o 8º ano da escolaridade, e pela filha nascida na pendência do matrimónio, EEE, de 5 anos de idade.
O marido da arguida detém a empresa “L..., Unipessoal, Lda”, sedeada na morada onde reside o agregado familiar, cuja atividade empresarial consiste no aluguer de veículos automóveis ligeiros. Detém ainda a exploração das Rádios “K...” e “M...”, sedeadas, respetivamente, em ... e ....
A arguida trabalha na empresa L... e nas Rádios, ali desempenhando funções administrativas, a troco do salário mínimo nacional, acrescido de subsídio de alimentação.
Para além dos relativos ao processo de subsistência dos elementos que o constituem, variáveis em função do rendimento disponível, mas cujo valor mensal se acercará a €300,00 (trezentos euros), os encargos mensais com maior peso no orçamento familiar surgem associados à prestação paga para amortização do empréstimo bancário contraído para aquisição do espaço habitacional onde atualmente residem, cujo valor mensal é de €387,00 (trezentos e oitenta e sete euros) e a consumos domésticos (eletricidade e comunicações), em valor aproximado a €120,00 (cento e vinte euros).
A arguida ainda não tem nacionalidade portuguesa, mas pretende adquiri-la. Tem a sua autorização de residência caducada desde ../../2023, mas tem vindo a desenvolver diligência com o intuito de a renovar, contudo, tem experimentado dificuldades em fazer a marcação de data para solicitar tal renovação, situação para a qual parece estar a contribuir a transição dos serviços de imigração do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para uma nova entidade, agora designada Agência para a Integração Migrações e Asilo (AIMA). Contudo tem passaporte válido até 2026.
A sua rotina diária divide-se entre os espaços habitacional e profissional e o exercício das responsabilidades parentais.
No meio social atual de residência tanto a arguida como o marido são identificados como pessoas que desenvolvem uma vivência diária reservada, pouco interagindo com outros elementos da comunidade, não sendo ali conhecido o seu envolvimento em quaisquer práticas socialmente reprováveis.
Quando confrontada com a atual realidade jurídico-penal, mostrar-se-ia conformada com a mesma.
II - Conclusão
CC efetuou o seu processo de aprendizagem social no Brasil, inserida no núcleo familiar de origem, junto do qual parece ter beneficiado das condições necessárias a um adequado desenvolvimento pessoal e social. No Brasil, onde dividiu o seu tempo entre ..., no estado de ..., localidade de onde é natural e ....
À data dos factos resida em ..., localidade onde fixou residência aquando da sua entrada em Portugal, encontrava-se já casada com o seu atual marido e tinha a seu cargo a filha nascida no Brasil, residindo desde agosto/setembro de 2021 na morada que consta do presente documento.
Encontra-se enquadrada profissionalmente na empresa e Rádios geridas pelo marido, onde exerce funções administrativas, dividindo o seu tempo entre o desempenho da sua atividade profissional, as lides domésticas e o exercício das responsabilidades parentais, alimentando a expetativa de que, em caso de condenação, a decisão proferida a não prive da liberdade necessária para dar continuidade ao seu atual projeto de vida.
Assim, não deixaremos de considerar que, em caso de condenação, a aplicação de uma pena de execução na comunidade, se poderá mostrar ajustada às necessidades de ressocialização que o caso presente encerra».
91. No relatório social elaborado pela DGRS referente à arguida AA, exara-se:
« CONDIÇÕES PESSOAIS E SOCIAIS
AA – tal como sucedia à data dos alegados factos – vive com o marido (FFF, 77 anos, reformado), em casa própria (moradia unifamiliar edificada pelo casal há mais de quarenta anos), considerando ambos dispor de adequadas condições de conforto e salubridade. A habitação está inserida em zona habitacional de meio aldeão a que não são especificamente reportadas problemáticas sociais / delinquenciais. A arguida refere que os filhos estão autónomos e a vivência conjugal comporta rotinas assentes no bem-estar comum, existindo entendimento e harmonia relacional, com propósitos de vida conjunta bem conciliados.
A arguida obteve o 9º ano de escolaridade em idade adulta e, após um percurso profissional com evidência de hábitos de trabalho (no setor da indústria do calçado), está reformada e refere auferir pensão de velhice no valor mensal de 380 €, a que acresce a pensão do cônjuge montante de 660 €.
Descreve uma gestão dos seus recursos com critério direcionados necessidades essenciais (tendo encargos de funcionalidade doméstica que ronda os 100 / 150 € mensais) sendo variáveis os gastos de manutenção comum e de saúde, não evocando privações e orgulhando-se de ter equilíbrio financeiro.
À data da presente Acusação, AA, já reformada, dedicava-se aos trabalhos domésticos e a atividades de horticultura e criação de animais de capoeira para consumo familiar. Por outro lado, a mesma refere que, na sua índole e postura pessoais, procurou ser prestável em ações solidárias de voluntariado, envolvimento este que veio a cessar devido às contingências da pandemia por SARS-COV 2, sendo esta informação confirmada pelo cônjuge e autarca.
O modo de vida e rotinas atuais de AA, em 2020, foram alterados após diagnóstico de problemas do foro oncológico, tendo sido submetida a várias cirurgias, a última das quais em outubro último, estando convalescente e mantendo seguimento clínico semanal no IPO – ....
2 – REPERCUSSÕES DA SITUAÇÃO JURÍDICO-PENAL DO ARGUIDO
AA refere ser o presente processo o primeiro contacto como sistema judicial e que do mesmo não resultaram impactos significativos nas suas circunstâncias de vida, as quais (nos últimos dois anos) sofreram reveses e ajustes decorrentes do seu problema de saúde.
De todo o modo, refere que esta tramitação processual lhe acarreta sofrimento acrescido, sucedendo que a partilhou somente com o marido, sendo desconhecida dos filhos ou de qualquer outra pessoa das suas interações.
A arguida enuncia compreender a ilicitude da tipologia de crime pelo qual vem acusada, verbalizando sentimentos de inquietação.
3 – CONCLUSÃO
A arguida está reformada desde os 57 anos de idade e, hoje, sofre de problemas de saúde que a obrigam a rotinas de tratamento (regulares e na cidade ...) e de autocuidado quotidiano. Tem uma envolvência familiar apoiante, sendo o presente processo desconhecido dos filhos.
Considerando os dados expostos, entendemos que, no caso de ser proferida decisão de teor condenatório nos presentes autos, existem condições para poder ser aplicada pena ou medida de execução em meio livre, como mecanismo de reforço e consciencialização para o desvalor da sua conduta e de responsabilização pelas consequências dos seus atos».
92. O demandante CTT – Correios de Portugal, S.A., sociedade concessionária do serviço universal postal, que dispõe da prestação de serviços postais, dentro dos quais se destaca o serviço de reexpedição de correspondência, bem como venda de produtos diversos, procedeu à indemnização a GGG, da quantia de € 570,00, referente ao cheque supra referido em 4., por motivo de cobrança não efectuada das mercadorias discriminadas supra em 4., por haver divergência quanto o valor em numerário e por extenso aposto nesse cheque.
93. Em consequência da conduta da arguida CC, supra referida em 12. a 21, a demandante DD, teve um prejuízo no montante de € 143,35.
94. Em consequência da conduta da arguida CC, supra referida em 12. a 21., a demandante DD, sentiu-se enganada e manipulada pela arguida, e sentiu insegurança e receio de continuar a vender os seus produtos através da página do Facebook.
***
FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provaram outros factos com relevo para a decisão e, nomeadamente que:
1.1. O cheque supra referido em 14. dos factos provados, foi preenchido pela arguida CC pelo seu próprio punho, nos dizeres dele constantes quanto ao valor, data, e nome no campo “não à ordem”.
2.2. O cheque supra referido em 24. dos factos provados, foi preenchido pela arguida CC pelo seu próprio punho, nos dizeres dele constantes quanto ao valor, data, e nome no campo “não à ordem”.
3.3. O cheque supra referido em 34. dos factos provados, foi preenchido pela arguida CC pelo seu próprio punho, nos dizeres dele constantes quanto ao valor, data, e nome no campo “não à ordem”.
4.4. O cheque supra referido em 44. dos factos provados, foi preenchido pela arguida CC pelo seu próprio punho, nos dizeres dele constantes quanto ao valor, data, e nome no campo “não à ordem”.
5.5. Os cheques supra referidos em 52. dos factos provados, foram preenchidos pela arguida CC pelo seu próprio punho, nos dizeres deles constantes quanto ao valor, data, e nome no campo “não à ordem”.
6.6. Entre 11 de Novembro de 2017 e 15 de Março de 2018, a arguida AA entrou na posse de parte dos cheques dos dois livros de cheques subtraídos das instalações da sociedade “A..., Lda.”, que sabia não lhe pertencerem e que não estava autorizada a emitir pelos seus legítimos titulares e decidiu usá-los em seu proveito.
7.7. A encomenda supra referida em 79. dos factos provados, foi efectuada pela arguida AA.
8.8. A arguida AA, que tinha entrado na posse dos livros de cheques supra referidos em 2., de onde foram extraídos os cheques supra referidos em 81., e que sabia não lhe pertencerem e que não estava autorizada a preenche-los e emiti-los pelos seus legítimos titulares, pelo seu próprio punho ou de terceiro a seu mando, preencheu os cheques com a totalidade dos dizeres neles constantes, designadamente valor em numerário, data, o nome no campo “não à ordem” e no local da assinatura imitou a assinatura de um dos cotitulares da conta.
9.9. Depois procedeu à entrega desses cheques ao funcionário dos CTT nas circunstâncias referidas em 81., para pagamento das encomendas que haviam sido efetuadas pela arguida e a ela destinadas, levando o funcionário dos CTT a entregar as mesmas à arguida convencido da regularidade dos cheques e que estavam licitamente na posse da mesma.
10.10. A arguida, AA, ao entregar os cheques nos CTT, sabiam que os mesmos não estavam legitimamente na sua posse e que a mesma havia abusivamente preenchido e assinado.
11.11. A arguida agiu dessa forma com o propósito de enganar o funcionário dos CTT e através dele a denunciante WW e dessa forma obter uma vantagem económica correspondente ao valor dos bens que lhe foram por esta vendidos.
12.12. A arguida que tinha conhecimento que não tinha legitimidade para emitir e usar os referidos cheques, não se coibiu de os pôr em circulação.
13.13. A arguida, AA, agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de usar cheques falsificados e dessa forma obter um enriquecimento do seu património no montante de €690,00, com o necessário prejuízo económico da denunciante, nesse valor, o que conseguiu, da forma descrita.
14.14. A arguida AA sabia que as suas condutas eram ilícitas e proibidas por lei.
15.15. Em consequência da conduta da arguida CC, supra referida em 12. a 21, a demandante DD, sofreu profundo abalo moral e psicológico, vergonha, angústia e ansiedade, tendo sido afectada nas horas destinadas ao repouso e ao sono.
16.16. A empresa da demandante DD, recebe muitas encomendas através da página do Facebook, para venda de produtos de cosmética.
17.17. Em consequência da conduta da arguida CC, supra referida em 12. a 21., a demandante DD, teve de se deslocar da sua empresa sita em ..., para tentar resolver a situação, pelo menos 5 vezes aos CTT, 3 vezes ao Banco; e 2 vezes à GNR de ..., tendo em todas essas deslocações de fechar o seu estabelecimento, uma vez que é a própria que está na loja, não tendo funcionários, o que lhe causou um prejuízo no montante de € 100,00 pelas vendas que deixou de fazer.
18.18. A arguida AA foi enganada e “usada” num estratagema montado por pessoa que conheceu através das redes sociais, que se identificava com o nome de FF, advogado, “especialista” em questões de violência doméstica, que foi quem encomendou os produtos e foi o real destinatário e beneficiário dos produtos adquiridos.
19.19. Que solicitou à arguida a sua ajuda, que consistia apenas em receber umas encomendas, para posterior entrega, justificando a sua impossibilidade em receber tais encomendas com o facto de então se encontrar hospitalizado com cancro, que, pese embora tivesse uma loja em ..., tais encomendas não podiam ser endereçadas para lá, porque havia descoberto que, na sua ausência, andava a ser roubado por quem se encontrava na dita loja, acrescentando ainda que, para o efeito a arguida ia receber pelo correio, cheques para efectuar o respectivo pagamento.
***
MOTIVAÇÃO
O tribunal fundou a sua convicção na conjugação crítica, sua livre valoração, e à luz das normais regras da experiência comum, da globalidade da prova documental, por declarações dos arguidos, e testemunhal produzida, atendendo quanto à prova por declarações e testemunhal, à segurança, coerência, objetividade, espontaneidade, incoerências, inconsistência, razão de ciência, e conjugação da mesma entre si e com a prova documental junta aos autos. Assim, para formar a sua convicção, o tribunal valorou nos termos supra consignados, conjugadamente, os seguintes elementos probatórios:
- Aditamentos de fls. 8 e 9, 13 a 19, 24 a 27.
- Cópia de cheques de fls. 31 a 36.
- Mapa dos CTT de ocorrências de fls. 80.
- Relatos de diligências externas de fls. 139 a 140, 436 a 439, 476 a 478.
- Autos de busca e apreensão de fls. 575 a 584.
- Certidão de teor de matrícula da sociedade “A...” de fls. 631 a 638.
- Informações bancárias de fls. 684 a 704, 753 a 763, 792 a 849.
Prova por reconhecimento de pessoas: de fls. 389 a 394, 608 a 613.
- Documentos juntos pelo demandante CTT, com o pedido de indemnização que deduziu.
- Relatórios socias elaborados pela DGRSP.
- CRC dos arguidos.
E, ainda, concretamente quanto aos factos provados em 3. a 11.:
- Aditamento de fls. 53 a 55.
- Cheque de fls. 56 e 57.
- Documentos de fls. 58 a 62.
- Provas de entrega de fls. 179 a 186.
- Documentos de fls. 198 a 201, 508 a 510, 516 a 519 (denunciante MM).
- Documentos de fls. 202 a 213, dos presentes autos, 9 a 24, 42 a 45 do apenso B (denunciante NN).
- Documentos de fls. 335 a 339 (Sociedade N..., Lda.).
- Autos de busca e apreensão de fls. 366 a 383.
- Auto de reconhecimento de objetos e termo de entrega de fls. 469 a 474.
- Cheques de fls. 199, 795, 19 e 812.
- Pesquisa de matrícula de fls. 63 a 65.
- Pesquisa de “Facebook” de fls. 66 a 69.
E, quanto aos factos provados em 12. a 59.:
- Aditamento de fls. 46 a 53.
- Cheque de fls. 56.
- Documentos de fls. 58 a 62.
- Auto de apreensão de DVD de fls. 90 e apenso 1 com fotogramas extraídos do DVD.
- Documento de fls. 243.
- Auto de reconhecimento de objetos de fls. 618 e 619.
-Documentos de fls. 881 a 887, 903 a 905.
E, quanto aos factos provados em 60 a 77:
- Aditamento de fls. 121 a 138.
- Cheque de fls. 808.
- Cheque de fls. 800.
-Documentos de fls. 554 a 562.
- Auto de reconhecimento de objetos de fls. 624 e 625.
E, quanto aos factos provados em 79 a 85:
- Documentos de fls. 188 a 196.
- Documentos de fls. 9 a 23 do apenso C.
- Cheques de fls. 26.
- Comprovativos de entrega de encomendas de fls. 61 a 69 do apenso C.
- Pesquisa de veículo de fls. 70.
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Declarações dos arguidos.
Depoimentos das testemunhas:
- HH, sócia do horto “A...”, sito em ..., ..., propriedade da sociedade “A..., Lda.”.
– HHH, inspector nos CTT há 21 anos, que procedeu a diligências de investigação reportadas com os cheques em referência, entregues aos CTT para pagamento das encomendas entregues em ... (referentes ao arguido BB), que descreveu e relatou;
- EE, chefe de Centro de Distribuição de Correio sito em ..., onde trabalha há cerca de 30 anos, e RR, carteiro em ..., que em 28.12.2017, procederam à entrega de encomendas em referência nos autos na Avª ..., ..., recebendo os respectivos cheques para pagamento.
– III, carteiro, a exercer funções em ..., desde 1980, JJ, carteiro, a exercer funções em ..., desde 1994, KK, carteiro a exercer funções em ..., há 27 anos, que procederam à entrega de encomendas em referência nos autos na Rua ..., ..., ..., recebendo os respectivos cheques para pagamento.
- NN, DD, GG, MM, TT, JJJ, KKK, SS, WW, que procederam à expedição de encomendas via CTT em referência nos autos.
- LLL, agente do NIC da GNR ..., que dirigiu a investigação na fase de inquérito, e realizou as diligências investigatórias que mencionou.
- MMM, ex marido da demandante DD.
- NNN, taxista em ..., há 19 anos.
- XX, que foi funcionário no estabelecimento comercial denominado F..., sito na Av. ..., ....
Como é sabido, o tribunal decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção (cfr. art.º 127º do Código de Processo Penal), regendo, pois, o princípio da livre apreciação da prova, o qual significa, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminantes de valor a atribuir à prova e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre apreciação da prova e na sua convicção pessoal. Convicção pessoal, que não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, mas tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Os depoimentos das testemunhas, tal como as declarações do arguido, são valorados em obediência ao princípio da livre apreciação da prova plasmado no art. 127º do CPP, pelo que a sua apreciação há-de ser recondutível a critérios objectivos, conjugadas com a demais prova produzida, na sua valoração à luz das normais regras da experiência.
Por outro lado, não sofre controvérsia a admissibilidade em processo penal de todas as provas que não sejam proibidas por lei (art. 125º do C.P.P.), aí se incluindo as presunções judiciais, que são as ilações que o julgador retira de factos conhecidos para firmar outros factos, desconhecidos (art. 349º do Código Civil). Não sendo a presunção judicial um meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados.
Na formação da convicção do julgador intervêm, assim, provas e presunções, sendo certo que as primeiras são instrumentos de verificação direta dos factos ocorridos, e as segundas permitem estabelecer a ligação entre o que se
tem por adquirido e aquilo que as regras da experiência nos ensinam poder inferir.
Assim, a factualidade provada em 1. alicerçou-se na ponderação do conteúdo do auto de denúncia quanto a tal factualidade junto aos autos a fls. 3 a 5, no que na sua objectividade releva, designadamente data da denúncia, e local indicado como tendo sido alvo do furto denunciado, conjugado com o depoimento da testemunha HH, que de forma coerente e consistente, relatou sobre o furto de livros de cheques titulados pela sociedade de que é sócia, bem como de conta que era cotituladas por si e pelo seu falecido marido, data em que teve conhecimento de tal, mais relatando que no dia seguinte ela e o marido procederam ao cancelamento dos cheques furtados, que não se encontravam assinados nem preenchidos em nenhum dos seu campos, e que nem ela nem o marido procederam às encomendas que vieram a ser pagas com tais cheques, efectuadas após o furto e cancelamento dos cheques, logrando convencer da veracidade dos factos que relatou, pela razão de ciência, e forma isenta, imparcial, e consistente, como prestou depoimento.
Quanto à factualidade provada em 3. a 11:
O arguido BB, admitindo que levantou as encomendas em referência entregues pelos CTT, na Rua ..., ..., ..., e que procedeu ao pagamento das mesmas com os cheques referenciados na acusação, negou que as mesmas foram por si encomendadas, bem como ter preenchido e assinados os cheques em referência que entregou aos carteiros para seu pagamento, dizendo que se limitou a fazer um favor à arguida CC, pelos motivos que referiu.
Não logrou, porem, o arguido convencer dessa sua versão, ressaltando das suas declarações à evidência a estratégia da defesa do arguido, com o único fito da sua desresponsabilização, sendo patente e manifesta a incoerência, incongruência, e inverosimilhança dessas versão, na sua livre valoração, e à luz das normais regras da experiência comum, conjugadas as declarações do arguido criticamente, e à luz de tais normais regras da experiência comum, com a globalidade da prova documental e testemunhal produzida, que definitivamente infirmou tal versão do arguido.
Assim, e desde logo, foi a mesma infirmada pelos depoimentos das testemunhas III, JJ, e KK.
Com efeito, referiram as testemunhas em referência vistos conjugadamente os seus depoimentos, que valorados na sua globalidade, e ante a forma como os prestaram, mereceram inteira credibilidade, pela razão de ciência, e a forma clara, isenta escorreita, consiste e coerente como os prestaram, nos quais não se surpreendeu qualquer interesse ou parcialidade, e conjugados os mesmos com a prova documental junta aos autos, que o destinatário das encomendas em referência estava identificado como LL, sendo que o arguido, aquando da entrega dessas encomendas se apresentou como sendo o destinatário das mesmas, LL, fornecendo inclusivamente o arguido verbalmente o número de contribuinte de “LL”, que coincidia com o constante das encomendas, mais dizendo que os cheques que entregou para pagamento eram de conta bancária de sua mulher; mais referiram as testemunhas que os cheques entregues pelo arguido se encontravam assinados, e que o mesmo antes de os entregar os preencheu em todos os seus campos. Referiram ainda o arguido insistiu em pagar as encomendas que eram para pagar apenas em numerário, com cheques, e que no segundo dia de entrega de encomendas, quando solicitaram ao arguido a apresentação dos seus documentos, o mesmo de imediato se se foi embora sem os fornecer, não levantando as encomendas.
E foi infirmada pela prova documental produzida, e acima referida quanto a esta factualidade, designadamente, auto de busca e apreensão, realizada em casa do arguido no dia 19.07.2018, onde foram encontrados e apreendidos, na cave da residência, espumas acústicas, protegidas com plástico, onde ainda eram visíveis os dizeres da entrega dos CTT, o nome e morada do destinatário, LL – Rua ..., ..., ..., encomenda essa que havia sido enviada por NN, sendo que esta testemunha reconheceu as espumas aprendias como tendo sido as que vendeu através de um anúncio que publicou no site OLX, lhe foram encomendadas por um LL, residente em ..., a quem as enviou através de encomenda expedida pelos CTT , conforme auto de reconhecimento de objetos e fls. 469 e 470, e paga com um cheque que havia sido furtado no horto “A...”, sito em ..., ..., propriedade da sociedade “A..., Lda.”, o que reiterou em sede de julgamento.
De igual forma, as testemunhas MM proprietário da empresa “B...”, TT, MM, procederam à venda através da internet de artigos expedidos por encomenda via CTT, que foram pagos com cheques que haviam sido furtados do Horto em referência, entregues pelo arguido aos carteiros dos CTT, que não foram pagos, porque cancelados, nunca tendo sido ressarcidos dos montantes devidos pelas vendas que fizeram.
No caso, o arguido negou os factos, sendo que a prova produzida foi meramente circunstancial, pois na verdade, não se produziu prova presencial dos factos.
Com efeito nenhuma das testemunhas ouvidas presenciou o arguido forjar/adulterar os cheques em questão, apondo nos mesmos pelo seu próprio punho ou de terceiro a seu mando, no local da assinatura, uma assinatura como se fosse a de um dos cotitulares da conta, imitando-a, assim os forjando e criando a aparência de ele ser o seu portador legítimo, logrando através dos cheques assim assinados que entregou para pagamento das encomendas, induzir em erro ou engano os funcionários dos CTT sobre a regularidade dos cheques e que estavam licitamente na sua posse do arguido, e através deles os lesados, determinando os funcionários dos CTT a entregarem as encomendas ao arguido, obtendo dessa forma o arguido uma vantagem económica correspondente ao valor dos bens que lhe foram vendidos pelos lesados MM, NN, “D..., Lda.” e OO, com o necessário prejuízo económico dos lesados.
No entanto, não obstante a prova ser circunstancial, reunidos os vários factos instrumentais, pode firmar-se consistentemente a convicção de que o arguido efectivamente praticou os factos que se vieram a provar.
Com efeito, a prova indirecta que resultou da prova produzida em julgamento foi bastante para convencer o tribunal.
Assim e apesar da prova circunstancial e indiciária (hoc sensu, de factualidade instrumental) por si, isoladamente, não ter, nem dever ter qualquer valor, porquanto não é prova directa, a verdade é que os diversos indícios e circunstancialismos apurados em sede de audiência de julgamento, valorados criticamente e à luz das normais regras da experiência comum, constituíram fonte de convencimento e de convicção, pois todos em conjunto constituíram uma prova, conseguida com a lógica conjunção de uns nos outros, logrando-se assim chegar à descoberta dos factos e à autoria dos mesmos.
Desde logo, a circunstância de o arguido, residente em ..., não ter dado qualquer explicação plausível, razoável, verosímil, na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, para se encontrar na posse dos cheques furtados à sociedade A..., Lda., sita em ..., e de os ter utilizado para pagamento das encomendas que recepcionou.
Depois, não apresentou qualquer justificação plausível, razoável, verosímil, na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, sobre a que título decidiu receber encomendas e pagá-las, quando as mesmas segundo disse, não eram destinadas a si, e não foram por si encomendadas.
A fazer fé na sua versão (que não colheu), a ser verdade que apenas pretendeu “ajudar” a sua amiga e arguida CC, não se depreende que não achasse estranho, que residindo esta fora de ... (ainda que aqui se pudesse encontrar temporariamente), solicitasse o envio de mercadorias para ..., e para ele as ir levantar, nem achasse estranho que todos os cheques pertencessem a pessoa(s) que não a arguida, tendo todos eles sido sacados sobre a mesma conta.
Depois, não se depreende à luz das normais regras da experiência comum, que o arguido, quando levantou as encomendas se tenha identificado como “LL” (que era o nome que constava como destinatário das mesmas), fornecendo inclusivamente verbalmente o número de contribuinte de “LL”, que coincidia com o constante das encomendas; que tenha dito que os cheques que entregou para pagamento eram de conta bancária de sua mulher; que insistiu em pagar as encomendas que eram para pagar apenas em numerário, com cheques; e que no segundo dia de entrega de encomendas, quando solicitaram ao arguido a apresentação dos seus documentos, o mesmo de imediato se se foi embora sem os fornecer, não levantando as encomendas.
E, também se não depreende, na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, que tendo levantado as encomendas em Novembro de 2017, que a si segundo disse não eram destinadas, nem por si encomendadas, “guardasse” uma dessas encomendas em sua casa até Julho de 2018, data em que foi apreendida na busca realizada à sua residência.
Por fim, as declarações do arguido, valoradas nos termos supra exposto, a ancorarem esta convicção do tribunal.
No caso em apreço, a partir dos factos conhecidos, é seguro extrair a ilação do facto desconhecido, ou seja, que foi o arguido o autor material da falsificação, por si ou através de terceiro, e que engendrou um esquema, pelo qual, através da falsificação dos cheques, criando a aparência de ele ser o seu portador legítimo, lograr através dos cheques assim forjados que entregou para pagamento das encomendas, induzir em erro ou engano os funcionários dos CTT sobre a regularidade dos cheques e que estavam licitamente na sua posse, e através deles os lesados, determinando os funcionários dos CTT a entregarem-lhe as encomendas, obtendo dessa forma o arguido uma vantagem económica correspondente ao valor dos bens que lhe foram vendidos pelos lesados, com o necessário prejuízo económico destes.
Dúvidas não ficaram, pois, no tribunal, sobre os factos que se vieram a provar.
Quanto à factualidade provada em 12. A 77., e não provada em 1.1. a 5.5.:
A arguido CC, que faltou à 1ª sessão de julgamento, e após optou por prestar declarações no final da demais prova produzida, admitindo que levantou as encomendas em referência entregues pelos CTT, na Avª ..., ..., e que procedeu ao pagamento das mesmas com os cheques referenciados na pronúncia, negou que as mesmas foram por si encomendadas e que a si se destinassem, bem como ter assinado os cheques em referência, por si ou a seu mando, que entregou aos carteiros para seu pagamento.
Na sua versão, manifestamente por si “arranjada” após ter conhecimento da demais prova que foi produzida em audiência de julgamento, foi contactada por um advogado, Dr. FF, que a contratou para receber encomendas feitas por ele e mulher, designadamente de roupas, a pagar por cheques que ele lhe entregava, já assinados (“não sabe por quem” sic), enviadas em nome das pessoas que referiu, que depois eram levantadas pela mulher do tal advogado em local previamente combinado entre todos, tendo sido nesse circunstancialismo que recebeu as encomendas descritas na pronúncia, que pagou através dos cheques nela identificados. Mais relatou que o tal advogado lhe pediu para levantar umas encomendas em ..., no circunstancialismo que referiu.
A versão da arguida, vista e valorada na sua globalidade, e ante a forma como a prestou, foi tão patentemente incongruente, inconsistente, inverosímil na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, e tão patentemente parcial, no único e claro fito da sua desresponsabilização, que não mereceu qualquer crédito, e foi definitivamente infirmada pela demais prova produzida.
As testemunhas EE, que foi ajudar o seu colga RR na entrega das mercadorias à arguida no dia 28 de Dezembro de 2017, que nos autos de reconhecimento reconheceram a arguida como sendo a pessoa a quem entregaram as encomendas, não souberam precisar, com certeza, se os cheques que foram entregues pela arguida para pagamento das encomendas foram por ela assinados no local e nesse momento, ou se já estavam assinados, tendo de forma unânime referido que para além da assinatura que constava já aposta nos cheques, todos os demais dizeres deles constantes foram inscritos pela testemunha EE, pelos motivos e no circunstancialismo que precisaram.
As testemunhas ouvidas que expediram as encomendas em referência, afirmaram nunca terem sido ressarcidas dos prejuízos causados pelo não pagamento dos cheques que foram entregues (pela arguida), para seu pagamento.
No caso, a arguida negou os factos, sendo que a prova produzida foi meramente circunstancial, pois na verdade, não se produziu prova presencial dos factos.
Com efeito nenhuma das testemunhas ouvidas presenciou a arguida forjar/adulterar os cheques em questão, apondo nos mesmos pelo seu próprio punho ou de terceiro a seu mando, no local da assinatura, uma assinatura como se fosse a de um dos cotitulares da conta, imitando-a, assim os forjando e criando a aparência de ser ela a sua portadora legítima, logrando através dos cheques assim assinados que entregou para pagamento das encomendas, induzir em erro ou engano os funcionários dos CTT sobre a regularidade dos cheques e que estavam licitamente na sua posse da arguida, e através deles os lesados, determinando os funcionários dos CTT a entregarem as encomendas à arguida, obtendo dessa forma a arguida uma vantagem económica correspondente ao valor dos bens que lhe foram vendidos pelos lesados com o necessário prejuízo económico destes.
No entanto, não obstante a prova ser circunstancial, reunidos os vários factos instrumentais, pode firmar-se consistentemente a convicção de que a arguida efectivamente praticou os factos que se vieram a provar.
Com efeito, a prova indirecta que resultou da prova produzida em julgamento foi bastante para convencer o tribunal.
Assim e apesar da prova circunstancial e indiciária (hoc sensu, de factualidade instrumental) por si, isoladamente, não ter, nem dever ter qualquer valor, porquanto não é prova directa, a verdade é que os diversos indícios e circunstancialismos apurados em sede de audiência de julgamento, valorados criticamente e à luz das normais regras da experiência comum, constituíram fonte de convencimento e de convicção, pois todos em conjunto constituíram uma prova, conseguida com a lógica conjunção de uns nos outros, logrando-se assim chegar à descoberta dos factos e à autoria dos mesmos.
Desde logo, a circunstância de a arguida, não ter dado qualquer explicação plausível, razoável, verosímil, na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, para se encontrar na posse dos cheques (em tal elevado número) furtados à sociedade A..., Lda., sita em ..., e de os ter utilizado para pagamento das encomendas que recepcionou.
Depois, surpreenderam-se nas suas declarações patentes inconsistências e incongruências, quanto à “justificação” que apresentou para recepcionar e pagar com cheques previamente assinados, titulados por um estabelecimento comercial de horticultura (sendo que quem a contratou, segundo disse foi um advogado), as encomendas em referência.
Depois, não se depreende na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, que a arguida tenha decidido receber encomendas e pagá-las, a pedido de pessoa que mal conhecia, cuja identificação verdadeiramente não conhecia, nem nunca procurou saber, como ressumou das suas declarações. Do mesmo passo, não se depreende, na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, que tal pessoa, que também não conheceria bem a arguida, decidisse entregar a pessoa que mal conhece, cheques, em número significativo, assinados, mas não preenchidos.
Depois, também não se alcançou, das declarações, incongruentes e inconsistentes da arguida, manifestamente inverosímeis, e patentemente interessadas, os motivos pelos quais não era a mulher do tal advogado a levantar as encomendas, pois das declarações da arguida, tal como as prestou, não se anteviu qualquer impedimento para que não fosse tal pessoa a levantá-las.
E, também se não depreende, na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, que tendo a arguida levantado as encomendas em Dezembro de 2017, que a si segundo disse não eram destinadas, e que por si não foram encomendadas, em Fevereiro de 2019, ainda tivesse em sua casa, parte desses encomendas (pertença na sua versão de um terceiro), como resulta do auto de busca e apreensão de fls. 580 e segs., e dos autos de reconhecimento desses objectos aprendidos feitos pelos vendedores de tais mercadorias e que expediram as respectivas encomendas, que foram levantadas pela arguida e por esta pagas, com os cheques que foram furtados do Horto em referência, e de igual forma afirmado em audiência pelas testemunhas DD, GG.
Por fim, as declarações da arguida, valoradas nos termos supra exposto, que definitivamente cimentaram a convicção do tribunal.
No caso em apreço, conjugada a prova documental e testemunhal produzida, conjugada ainda a mesma com as declarações da arguida, a partir dos factos conhecidos, é seguro extrair a ilação do facto desconhecido, ou seja, que foi a arguida a autora material da falsificação dos cheques em referência, por si ou através de terceiro, e que engendrou um esquema, pelo qual, através da falsificação dos cheques, criando a aparência de ser ela ao sua portadora legítima, lograr através dos cheques assim forjados que entregou para pagamento das encomendas, induzir em erro ou engano os funcionários dos CTT sobre a regularidade dos cheques e que estavam licitamente na sua posse, e através deles os lesados, determinando os funcionários dos CTT a entregarem-lhe as encomendas, obtendo dessa forma a arguida uma vantagem económica correspondente ao valor dos bens que lhe foram vendidos pelos lesados, com o necessário prejuízo económico destes.
Dúvidas não ficaram, pois, no tribunal, sobre os factos que se vieram a provar.
Os diversos indícios e circunstancialismos apurados em sede de audiência de julgamento, constituíram fonte de convencimento e de convicção, pois todos em conjunto constituíram uma prova, conseguida com a lógica conjunção de uns nos outros, logrando-se assim chegar à descoberta dos factos e à autoria dos mesmos.
A prova indirecta que resultou da prova produzida em julgamento foi bastante para convencer o tribunal sobre os factos que se vieram a provara relativamente ao arguido BB e à arguida CC.
Apesar da prova circunstancial e indiciária (hoc sensu, de factualidade instrumental) por si, isoladamente, não ter, nem dever ter qualquer valor, porquanto não é prova directa, a verdade é que os diversos indícios e circunstancialismos apurados em sede de audiência de julgamento, valorados criticamente e à luz das normais regras da experiência comum, constituíram fonte de convencimento e de convicção, pois todos em conjunto constituíram uma prova, conseguida com a lógica conjunção de uns nos outros, logrando-se assim chegar à descoberta dos factos e à autoria dos mesmos.
No caso em apreço, a partir dos factos conhecidos, é seguro extrair a ilação do facto desconhecido, ou seja, que os arguidos cometeram os factos que se vieram a provar.
Os factos provados relativos ao elemento intelectual e volitivo do dolo resultaram do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas, de acordo com as regras da razoabilidade e da experiência comum, já que o dolo e o conhecimento são realidades não diretamente apreensíveis, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.
O Tribunal entendeu que os arguidos BB e CC sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei pelo simples facto de estarem inseridos na sociedade e de ser do conhecimento geral a proibição de falsificar documentos, e através de esquemas ardilosos, mediante engano, obterem vantagens económicas.
Quanto às condições de vida, profissionais, familiares e sócio económicas dos arguidos interessaram os relatórios elaborados pela DGRSP.
Quanto às condenações sofridas pelo arguido BB, e ausência de condenações sofridas pelas arguidas CC e AA, interessaram os CRC juntos aos autos.
Quanto aos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela demandante DD, interessaram as declarações desta, da testemunha MMM, que relatou sobre as repercussões psicológicas advenientes para a demandante em consequência da actuação da arguida CC, conjugados com os documentos referentes à encomenda em referência, e cheque que foi entregue para o pagamento da mesma, onde vem inscrito o valor da encomenda, correspondente ao prejuízo patrimonial da demandante.
Quanto aos factos provados em 79 a 86, e não provados em 6.6. a 14.14.
Da prova documental produzida e declarações da arguida AA, dúvidas não ficaram no tribunal sobre os factos que se vieram a provar.
Com efeito, e ademais, a arguida admitiu ter recepcionado as encomendas em referência, que pagou com os cheques descritos na pronúncia, mais admitindo que inscreveu nos mesmos o valor por extenso que deles consta, e que os mesmos não lhe pertenciam.
Da prova documental produzida, e depoimento de HH, dúvidas não ficaram que tais cheques foram furtados do estabelecimento A..., Lda., e que as assinaturas que deles constam não foram feitas por nenhum dos cotitulares da conta de onde foram sacados.
A arguida AA (tal como os demais arguidos), negou quanto ao demais a prática dos factos de que vem pronunciada, dizendo em síntese, como o já havia feito na contestação que apresentou, que foi enganada num estratagema montado por pessoa que conheceu através das redes sociais, que se identificava com o nome de FF, advogado, “especialista” em questões de violência doméstica, que foi quem encomendou os produtos e foi o real destinatário e beneficiário dos produtos adquiridos, prontificando-se a arguida a levantar tais encomendas pelos motivos que referenciou, e entrando na posse dos cheques com que as pagou, no circunstancialismo que descreveu, tendo posteriormente a pedido de individuo a mando do tal Dr. FF, entregue as encomendas em questão no estabelecimento comercial denominado F..., sito em ..., a XX, funcionário dessa loja.
Para além da prova documental, das próprias declarações da arguida, e depoimento da testemunha HH, outra prova consistente não foi produzida sobre os factos de que vem pronunciada a arguida.
Com efeito, nenhuma das demais testemunhas ouvidas, os relatou, e a prova documental produzida, quanto a esta arguida, não permite extrair por si só a conclusão de que a arguida cometeu os factos de que vem pronunciada.
Não obstante a versão da arguida, na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, pudesse soçobrar, certo é que a mesma foi de certa forma ancorada pelos depoimentos das testemunhas NNN, e XX.
Assim, a testemunha NNN, ancorando a versão da arguida, relatou que foi contratado por um indivíduo que via no estabelecimento comercial denominado F..., sito em ..., para ir buscar umas encomendas a essa loja, e entrega-las em ....
Por sua vez, a testemunha XX, num registo atabalhoado, comprometido até, em dissonância com o depoimento que prestou em sede de instrução (e reproduzido em audiência), afirmou que de facto era funcionário do estabelecimento comercial denominado F..., sito em ..., e que a arguida foi ao mesmo pedir-lhe para lá guardar umas encomendas, e que depois as iria de novo buscar, tendo-lhe entretanto telefonado a dizer que não iria, e que seria um taxista que as iria buscar, o que efectivamente aconteceu, dizendo-lhe após o taxista que vinha levantar as encomendas a pedido da arguida.
Surpreenderam-se manifestas inconsistências no depoimento desta testemunha, e parcialidade, convencendo-se até o tribunal ante a forma como prestou depoimento, que poderia estar de alguma forma envolvido “na situação” em apreço nos autos, ancorando de alguma forma a versão da arguida.
Conjugados os depoimentos das referidas testemunhas, contraditórios entre si, não se tendo surpreendido no depoimento da testemunha NNN qualquer parcialidade, ressumando do mesmo que não conhece sequer a arguida AA, vistas as declarações da arguida, e ausência de outra prova documental bastante sobre os factos de que vem pronunciada, sendo que as testemunhas de acusação quanto aos factos em referência nada relataram, ficou o tribunal com dúvida razoável, sobre a prática pela arguida AA dos factos de que vinha pronunciada.
Em suma, valorada na sua globalidade, criticamente, e à luz das regras da experiência comum a globalidade da prova produzida, ficou o tribunal com dúvida insanável, sobre se a arguida praticou os factos de que vem pronunciada.
Tudo por concluir, que a prova produzida em sede de audiência, valorada nos termos supra expostos, se revelou insuficiente para, com plena segurança, ser da mesma retirada, sem dúvidas, a conclusão de que a arguida praticou os factos de que vem pronunciada.
Ensina o Prof. Figueiredo Dias sobre o princípio in dubio:
«À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo» (Direito Processual Penal, reimpressão, 1984 pág. 213).
Concluindo: concatenada e conjugada a prova produzida em julgamento, não foi possível, com a segurança que se impõe em processo crime, concluir que a arguida AA cometeu os factos de que vem pronunciada.
Quanto ao facto provado 92, importou o documento junto pelos CTT com o pedido de indemnização civil, depoimento da testemunha OOO e GGG, que relataram os motivos pelos quais o CTT procedeu à devolução da quantia em referência.
A falta de prova dos demais factos supra enunciados radicou na ausência de prova documental e testemunhal sobre os mesmos.
***
*
II.3- Do recurso intercalar interposto por BB
Entende o recorrente que o lapso em que incorreu ao juntar/anexar a peça processual que nada tem que ver com os presentes autos nem com o arguido deve ser entendido como um lapso material manifesto, suscetível de ser corrigido nos termos e para os efeitos do disposto no art. 249º do CC, pretendendo substituir na íntegra a peça processual que enviou aos a 23.05.2024 pela que enviou a 03.06.2024.
Cremos ser pacífico que, por força do disposto no art. 295º do Código Civil, o art. 249º do mesmo diploma legal, se aplica a erros de cálculo ou de escrita cometidos em atos processuais e concretamente a atos processuais dos sujeitos processuais.
Porém, tais dispositivos legais serão aplicáveis quando se verifique que na peça processual em causa foram cometidos
pontuais erros
de escrita ou cálculo, que consubstanciam uma manifesta e evidente divergência entre a vontade que se exprimiu e aquela que se pretendia exprimir.
Será por hipótese a troca, a dado momento, de um nome, ou até da indicação de uma data, decorrendo do restante texto não só a evidência do lapso, como o sentido da vontade que foi incorretamente expressa.
Porém, na situação presente, salvo o devido respeito, não estamos perante qualquer erro de escrita, mas antes perante – como no recurso expressamente se refere – o envio de uma peça processual que não se destinaria a este processo.
Esta interpretação preconizada pelo recorrente - que diga-se não é sustentada no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães invocado, pois que ali se tratava de um lapso de escrita revelado no texto do articulado – permitiria que a coberto da figura do lapso material se viessem a ultrapassar prazos perentórios, como aquele que consagra o direito ao recurso.
Como se refere no Acórdão do TRL de 15.01.2013 [processo nº 493/09.0TCFUN.L1-1, disponível in www.dgsi.pt] :
1. Segundo uma orientação jurisprudencial praticamente pacífica, mercê do disposto no art. 295º do mesmo diploma, o princípio contido no art. 249º do Cód. Civil - rectificação de lapso manifesto - é aplicável a todos os actos processuais e das partes.
2. Consequentemente, como o requerimento de interposição de recurso constitui uma autêntica declaração de vontade da parte visando produzir determinados efeitos processuais, é-lhe aplicável o princípio contido no artigo 249º do Código Civil, segundo o qual o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, dá direito à rectificação desta.
3. De qualquer modo tal erro só pode ser rectificado (ao abrigo do cit. art. 249º do Código Civil) se for ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto: é preciso que, ao ler o texto logo se veja que há erro e logo se entenda o que o interessado queria dizer.
4. Por isso, os lapsos materiais cometidos nos articulados que a lei permite corrigir devem resultar do teor dos próprios articulados, não se podendo alegar a existência de lapso quando se pretende provar o mesmo através de elementos de prova que nem sequer constavam do processo.
5. A esta luz, os lapsos materiais cometidos nos articulados que a lei permite corrigir devem resultar do teor dos próprios articulados, não se podendo alegar a existência de lapso quando se pretende provar o mesmo através de elementos de prova que nem sequer constavam do processo.
6. Por outro lado,
a faculdade de correcção dos erros materiais manifestos verificados nas peças processuais destina-se, tão só, à correcção de erros pontuais em que seja manifesta ou ostensiva a divergência entre a vontade expressa e a que se quis declarar e, como tal, não consente que, ao abrigo dela, se possa substituir integralmente (ou quase integralmente) uma peça processual já apresentada nos autos por outra totalmente distinta, para além do prazo peremptório que a lei adjectiva fixa para a prática do acto em questão, por forma a que a segunda peça processual seja considerada como apresentada na data em que a primeira deu entrada em juízo
.
(sublinhado nosso.
7.
Se fosse admitido que, ao abrigo da possibilidade de correcção de erros materiais, se pudesse substituir uma peça processual por outra totalmente distinta, para além do prazo peremptório que a lei adjectiva fixa para a prática do acto, estar-se-ia a subverter completamente a tramitação processual, abrindo-se a porta para que, mediante a utilização ardilosa de um procedimento deliberadamente assumido com vista à ulterior alegação de erro material, não mais fossem respeitados os prazos peremptórios legalmente fixados para a prática dos actos processuais
.
(sublinhado nosso).
8. A alegação, pelo mandatário da parte recorrente, de que ocorreu um deficiente manuseamento informático do programa CITIUS, em consequência do qual foram enviadas (embora dentro do prazo de recurso) peças processuais (alegações de recurso) que nada tinham a ver com o processo a que se destinavam, não corresponde a qualquer situação totalmente imprevisível e completamente obstaculizadora da prática correcta do envio das alegações de recurso pertinentes, pelo que não configura uma hipótese de justo impedimento, nos termos e para os efeitos previstos no art. 146º do CPC.”
No mesmo sentido se pronuncia o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN)de 14/2/2008 [processo nº 01032/04 – BRAGA, disponível in
www.dgsi.pt
] onde se escreve que o disposto no art. 249 º do Código Civil
“visa a correcção de pontuais erros em que seja manifesta ou ostensiva a divergência entre a vontade expressa e a que se quis declarar» e, como tal, «não permite que, ao abrigo dela, se possa substituir uma peça processual para além do prazo peremptório que a lei adjectiva fixa para a prática do acto”.
Na situação
sub judice
, tal como nos dois acórdão acima mencionados, não estamos perante a correção de qualquer lapso verificado na peça de recurso, mas antes perante a pretensão de substituição total do recurso apresentado por outro completamente diferente e junto aos autos já após o termo do prazo perentório fixado, o que claramente ultrapassa o âmbito de aplicação do referido art. 249º do Código Civil.
Como se refere no citado acórdão do TCAN
«a admitir-se como possível a substituição da peça processual apresentada, estaríamos a permitir que, por essa via, pudesse ser contornado o carácter preclusivo do prazo para a apresentação das alegações de recurso”.
Não se pode, efetivamente ao abrigo de uma disposição que permite a correção de lapsos evidentes de escrita ou cálculo (e apenas destes) pretender-se ultrapassar prazos perentórios, quando relativamente a estas são expressamente fixadas regras no art. 107º A do Código de Processo Penal e 140º do Código de Processo Civil.
Mais uma vez nos socorrendo do referido acórdão do TCAN ao abrigo do disposto no art. 249º e 295 do CC
“a lei apenas permite que sejam rectificados a todo o tempo os erros materiais ostensivos e nada mais do que isso
» (
ibidem
). Por isso, «
não podemos aceitar que, ao abrigo de uma faculdade que a lei concede com vista à correção de manifestos lapsos materiais, se permita a substituição integral de peças processuais a todo o tempo e, sobretudo, a total subversão do carácter peremptório dos prazos”.
Neste sentido ainda 27.10.2020 [processo nº 1075/16.6T8PRT.P1, disponível in
www.dgsi.pt
].
Invoca ainda o recorrente que o despacho proferido vai contra a lógica e filosofia do poder dever atribuído ao Juiz com a reforma do Código de Processo Civil e que levou à introdução de dispositivos como o art. 590º do Código de Processo Civil.
Os poderes de gestão processual estão configurados na filosofia do Processo Civil, sendo que a aplicação de normativos daquele diploma legal pressuporia a existência de uma lacuna no âmbito do Código de Processo Penal, que cremos não existe.
Porém, sempre se dirá que este princípio visa a adoção dos mecanismos de simplificação e agilização processual que, respeitando os princípios da igualdade das partes e do contraditório, garantam a composição do litígio em prazo razoável, não permite igualmente ultrapassar os prazos perentórios fixados. Ora, para além do processo penal não ser configurado como um processo de partes, fundamentalmente importa salientar que o objetivo pretendido pelo recorrente não se traduz em qualquer simplificação ou agilização processual.
Invoca ainda o recorrente que o despacho que não considerou a existência de alegado lapso de escrita e consequentemente não permitiu a substituição das alegações de recurso apresentadas a 23.05.2024 por aquelas apresentadas a 03.06.2024, diminuiu as suas garantias de defesa, denegou-lhe justiça e cerceou o seu direito constitucional de acesso aos Tribunais, violando os arts. 20º e 32º da Constituição da República Portuguesa.
Tal como o Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar uniformemente, não resulta da Constituição nenhuma garantia genérica de direito ao recurso de decisões judiciais; nem tal direito faz parte integrante e necessária do princípio constitucional do acesso ao Direito e à Justiça, consagrado no citado artigo 20.° da Constituição, reconhecendo-se, nesse âmbito, ao legislador ordinário uma ampla margem de discricionariedade na concreta conformação e delimitação dos pressupostos de admissibilidade e do regime dos recursos, com o limite decorrente da própria previsão constitucional que lhe veda suprimir em bloco a recorribilidade ou fazê-la depender de circunstâncias que traduzam a violação do princípio da proporcionalidade.
Ora, no caso em apreço, o legislador ordinário no uso desse seu poder não só estabeleceu prazos, alguns perentórios - que sendo aplicáveis a todos os sujeitos processuais garantem o princípio da igualdade estabelecido no art. 13º da Constituição da República Portuguesa -, como previu as hipóteses em que os erros de escrita dão lugar à respetiva retificação e quais as características que o erro tem de ter (erro de escrita revelado no contexto da declaração ou das circunstâncias em que a mesma à feita) e consequentemente estes aspetos caiem no âmbito da margem de liberdade de conformação concedida pela Constituição da República Portuguesa ao legislador ordinário.
E, como tal, o direito de acesso aos Tribunais e as garantias de defesa do arguido, designadamente na sua vertente do recurso tem naturalmente de conjugar-se com os prazos estabelecidos para a respetiva prática.
Ora, no caso presente o Tribunal
a quo
limitou-se a considerar que no caso presente a situação não era subsumível ao disposto no art. 249º do Código Civil, como efetivamente não o é, pois que não ocorre uma situação em que se tenha escrito algo diferente do pretendido, mas antes ocorreu um alegado engano no envio da peça processual a estes autos. Consequentemente considerou não ser possível a sua substituição integral por outra peça processual (motivações de recurso apresentadas após o termo do prazo perentório de recurso), o que também não surge violador de quaisquer princípios constitucionais invocados.
Opção diferente permitiria, ela sim, uma violação do principio da determinabilidade das leis da confiança e segurança jurídica, pois permitiria que através da alegação de um erro de escrita – quando na verdade está em causa no mínimo um lapso na junção da peça processual ao processo errado - a substituição integral de uma peça processual já após o termo do respetivo prazo perentório.
Conclui-se, assim, que não estando perante um qualquer lapso de escrita suscetível de retificação inexistiu qualquer violação do direito de acesso aos tribunais, ou violação das garantias de defesa do arguido consagradas nos arts. 20º e 32º da Constituição da República Portuguesa.
Por outro lado, dada a perspetiva da douta decisão da reclamação importa ainda salientar que no caso em apreço não estamos também perante qualquer situação de justo impedimento, nos termos do art. 140º do Código de Processo Civil.
A regra geral do artigo 139.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 4.º do Código de Processo Penal, estabelece que o decurso de um prazo perentório importa a extinção do direito de o sujeito processual praticar o ato.
O direito de o arguido interpor recurso da sentença penal encontra-se balizado por um prazo perentório de 30 dias, findo o qual, em princípio, esse direito se extingue.
Contudo, no processo penal a prática de ato fora de prazo é admitida, em casos excecionais, expressamente previstos no artigo 107º. do Código de Processo Penal.
Preconiza este artigo 107º. do Código de Processo Penal, que:
“(…) 2 - Os atos processuais só podem ser praticados fora dos prazos estabelecidos por lei, por despacho da autoridade referida no número anterior, a requerimento do interessado e ouvidos os outros sujeitos processuais a quem o caso respeitar, desde que se prove justo impedimento.
3 - O requerimento referido no número anterior é apresentado no prazo de três dias, contado do termo do prazo legalmente fixado ou da cessação do impedimento.
4 - A autoridade que defira a prática de ato fora do prazo procede, na medida do possível, à renovação dos atos aos quais o interessado teria o direito de assistir.
5 - Independentemente do justo impedimento, pode o ato ser praticado no prazo, nos termos e com as mesmas consequências que em processo civil, com as necessárias adaptações.”
O conceito de justo impedimento é definido no artigo 140º. nº.1 do Código de Processo Civil, para onde o artigo 4.º do Código de Processo Penal, remete, estabelecendo o seguinte:
“1 - Considera-se «justo impedimento» o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do ato.
2 - A parte que alegar o justo impedimento oferece logo a respetiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admite o requerente a praticar o ato fora do prazo se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou”.
O justo impedimento exige a verificação de dois requisitos:
- Que o evento não seja imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatário;
- Que o evento determine a impossibilidade de praticar atempadamente o ato.
Como se refere no Acórdão do TRG de 03.10.2024 [ processo nº 420/08.2TTvRL-F.G1, disponível in
www.dgsi.pt
]:
“I - A figura do justo impedimento legitima a prática do ato decorrido o prazo respetivo e tem vindo a ser interpretada pelos tribunais de forma cautelosa a fim de evitar o seu uso abusivo.
II – O justo impedimento abrange as situações em que a omissão ou o atraso da parte ocorra devido a motivos justificados ou desculpáveis que não envolvam culpa ou negligência séria, sendo certo que a culpa deve ser apreciada nos termos do disposto no art.487.º, nº 2, do Código Civil ou seja, a culpa deve ser apreciada em cada caso concreto, pela diligência que teria um bom pai de família colocado nas circunstâncias concretas em que se encontrava o agente.
III - O que releva para a verificação do justo impedimento é a inexistência de culpa, negligência ou imprevidência da parte do mandatário ou representante na ultrapassagem do prazo perentório.
IV - Não configura uma situação de justo impedimento, o descuido na falta de confirmação da peça processual que se pretendia juntar aos autos, já que a não prática do ato em tempo útil foi provocada por facto imputável ao litigante em falta.”
Ora, no caso dos autos constata-se que o envio da peça processual - que era referente a outro processo - é imputável à sua apresentante pois decorreu de lapso cometido pela sua ilustre subscritora, como esta expressamente invoca na conclusão 2 do recurso apresentado, pelo que, não se verifica, desde logo, um dos requisitos da figura do justo impedimento, nos termos do disposto no art. 140º do Código de Processo Civil.
Em face de todo o exposto, improcede o recurso interposto pelo arguido BB, devendo-se manter-se o despacho que não admitiu o recurso por si interposto por extemporâneo.
II.4 - Do Recurso da decisão condenatória, interposto por CC:
A arguida/recorrente CC veio invocar erro de julgamento relativamente aos factos provados e bem assim, os vícios da insuficiência da para a decisão da matéria de facto e do erro notório na apreciação da prova, invocando ainda a violação do princípio da livre apreciação da prova e do princípio
in dubio pro reo
.
Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal.
No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios, que se encontram previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que, conforme decorre do referido preceito legal,
devem resultar do texto da decisão recorrida
, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão,
sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar
, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento [Cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss.]. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário.
No segundo caso estamos perante um erro do julgamento [designadamente na apreciação da prova] cuja apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
Não se poderá esquecer, portanto, que o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio jurídico com vista a colmatar erros do julgamento na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, sendo, portanto, manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
Tem sido este o sentido defendido quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, designadamente:
Assim refere Damião Cunha [O caso Julgado Parcial, pág. 37], ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica e não como «novos julgamentos».
“O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros
[Cf. neste sentido, Acórdão do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt].
*
II.3.1 Da impugnação da matéria de facto – arts. 410º, nº 2 e 412º do Código de Processo Penal
Alega a recorrente que o Tribunal
a quo
julgou erradamente os pontos constantes dos factos provados, que entende devem passar para o elenco dos não provados, mas não indica por referência a cada um desses factos os meios de prova que impunham decisão diversa.
Conforme decorre do artigo 412.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “motivação do recurso e conclusões”:
“1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
3 -
Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar
:
a)
Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados
;
b)
As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida
;
c) As provas que devem ser renovadas.
[sublinhado nosso].
No nº4 do mesmo artigo prevê-se que: “
Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação
”
(sublinhado nosso).
E no nº6
“No caso previsto no nº 4 o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa”
.
Impõe-se, pois, ao recorrente, versando o recurso matéria de facto, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa.
Tal ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e bem assim tem de ser referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
A impugnação da decisão da matéria de facto, pela via mais ampla prevista no artigo 412º, do C.P.P., tendo havido documentação da prova produzida em audiência, com a respetiva gravação, impõe ao recorrente, como sobredito, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos dos seus nºs 3, 4 e 6.
Exige-se ao recorrente, quando impugna a matéria de facto, a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado.
Para além disso, a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, a que acresce a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considere mal julgado.
E, quanto às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, resulta do nº 4 do dispositivo legal em análise que havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar as passagens (das gravações) ou os concretos segmentos de tais depoimentos em que se funda a impugnação e que no seu entender invertem a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).
A remissão para os suportes técnicos não se basta com a indicação da totalidade das declarações prestadas – indicando a hora e minutos em que cada um dos depoimentos se iniciou e terminou - mas para os concretos locais da gravação que suportam a tese do recorrente.
Na situação presente, a recorrente remete para a totalidade da factualidade provada e apesar de fazer uma menção às declarações da arguida e a ter negado ter feito as encomendas em causa e que as mesmas fossem para seu proveito pessoal, não indica um qualquer segmento destas nem as correlaciona com qualquer dos factos impugnados. E, embora invocando o relatório social não o correlaciona com qualquer facto concreto, nem em que medida relativamente a esse concreto facto o teor deste relatório impunha decisão diversa.
Ora, como acima referimos, esta forma de impugnação impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa e tal ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, tem de ser referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
Tal significa que ao tribunal de recurso cabe averiguar se existe o erro de julgamento na fixação da matéria de facto, por se evidenciar que as provas valoradas pelo tribunal recorrido eram provas proibidas ou o foram com violação das regras sobre a apreciação da prova, e nomeadamente o principio da livre apreciação, do princípio
in dubio pro reo
ou prova vinculada, ou as regras da experiência ou ainda se a convicção formada pelo tribunal de recurso não era possível, pois se for uma das possíveis não pode o tribunal de recurso interferir nessa apreciação.
E não cumpria convidar a recorrente a aperfeiçoar as conclusões do recurso, pois resumindo as conclusões as razões do pedido, nada pode ser resumido que não se contenha na motivação, de que as conclusões constituem uma síntese essencial. Neste sentido, vem decidindo o Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, de que o não cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto ou a indicção das normas jurídicas violadas, tanto na motivação como nas conclusões desta, não justifica o convite ao aperfeiçoamento, uma vez que só se pode corrigir o que está deficientemente cumprido e não o que se tem por incumprido [Cf. entre outros, os Acórdãos do STJ, de 04-10-2006, Processo n.º 812/06-3.ª; de 08-03-2006, Processo n.º 185/06-3.ª; 04-01-2007, Processo n.º 4093-3.ª e de 10-01-2007, Processo n.º 3518/06-3.ª, e de 01.06.2011, Processo nº 234/00.8JAAVR.C2.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt].
Este entendimento é também sufragado pelo Tribunal Constitucional, designadamente, nos acórdãos nos 259/2002, 140/2004, 322/04, 357/2006, 529/03 e 685/2020 [Disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt], que distingue a deficiência resultante da omissão na motivação das especificações previstas na lei - caso em que o vício será insanável -, da omissão de levar as especificações constantes da motivação às conclusões – caso em que se impõe o convite à correção. Em suma, o artigo 417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, impõe o dever de convite ao aperfeiçoamento tão só quando “a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º”.
Se a recorrente não faz, como no presente caso, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos números 2, 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, nos seus precisos termos, não há lugar ao convite à correção das conclusões, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser ultrapassado através do mencionado convite.
Assim, e em face da inobservância de tais normativos (não cumprimento do ónus de especificação que lhes é imposto pelo art° 412° CPP), não é possível conhecer da impugnação da matéria de facto por essa via.
II.3.2 Invocou a recorrente a existência dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [artigo 410.º, n.º2, al. a) do Código de Processo Penal] e do erro notório na apreciação da prova [artigo 410.º, n.º2, al. c) do Código de Processo Penal].
Alega para tanto que a sentença não assenta em factos concretos ocorridos em determinado espaço de tempo e lugar, e bem assim que o tribunal se baseou em prova indiciária que não é suficiente para as conclusões vertidas, tendo havido na apreciação da prova indiciária, não sendo esta suficiente para as inferências retiradas.
Analisada a motivação/conclusões do recurso, constata-se que o recorrente confunde erro de julgamento com o invocado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Com efeito:
A recorrente indica, expressamente, como objeto do recurso, que este terá como fundamento a insuficiência de prova para a decisão da matéria de facto dada como provada, alegando que não se pode conformar com a decisão proferida uma vez que considera que não foi feita prova suficiente de que a mesma tenha praticado os factos constantes dos factos provados.
E, para tanto faz apelo às declarações prestadas pela arguida em sede de julgamento que negou a prática dos factos, e que atendendo ás declarações da ofendida e da testemunha EE tinha o tribunal a quo que decidir atendendo ao princípio in dúbio pro reo”; concluindo existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do artigo 410.º n.º 2 al. a) do CPP, quanto aos pontos 2 e 4 da acusação publica, por não ter ficado demostrado a veracidade de ditos factos.
Vejamos:
Dispõe o art. 410º do Código de Processo Penal, o seguinte:
“1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”
Da análise de tal preceito legal decorre, portanto, que a decisão sobre a matéria de facto é suscetível de ser posta em causa por via da invocação dos apontados vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vícios decisórios esses que, conforme se referiu supra, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não com a falta de prova para a decisão da matéria de facto provada .
Trata-se de uma insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, de um “
vício de confeção da matéria de facto”, (…) impeditivo de bem se decidir , tanto no plano objetivo como subjetivo, o julgador quedou –se por uma investigação lacunar, deixou de indagar factos essenciais à decisão de direito, figurando na acusação, defesa ou resultantes da decisão da causa, impedindo de bem decidir no plano do direito, comprometendo a conclusão final do silogismo judiciário”.
A insuficiência para decisão da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados.
Como refere Germano Marques da Silva, em “Curso de Processo Penal, Tomo III, pág. 325, no que “
consiste a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito. É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto para uma decisão de direito”.
Tal vício ocorrerá se o tribunal a quo deixou de dar resposta a um facto essencial postulado pelo objeto do processo, isto é, deixou por esgotar o thema probandum
Ora, analisando a sentença sob recurso vemos que o Tribunal recorrido não omitiu qualquer pronúncia sobre a matéria de facto objeto do processo, nem omitiu o apuramento de factos que podia e devia investigar.
E, no que se refere à conclusão 17, isto é, à afirmação de que
a “s
entença aqui recorrida fundamenta a conclusão da prática dos crimes pela arguida não dizendo em que período temporal concreto tais crimes ocorreram, dia, hora, mês, as circunstâncias dos mesmos, local ou locais, e quanto ao que sucedeu e modo como sucedeu, isto é, como foram perpetrados(…)
não cremos que assim seja.
Como se salientou o Acórdão do STJ de 21.02.2007[processo nº06P4341, disponível in www.dgsi.pt], “
o princípio ou cláusula geral estabelecido no n. 1 do art. 32.º da CRP significa, ao aludir a todas as garantias de defesa, que ao arguido, como sujeito processual, devem ser assegurados todos os direitos, mecanismos e instrumentos necessários e adequados para que possa, em plena liberdade da vontade, defender-se, designadamente para que possa contrariar a acusação ou a pronúncia, através de um julgamento imparcial, realizado com total independência do juiz, em procedimento leal e justo, sendo certo que a individualização e clareza dos factos objecto do processo são indispensáveis para que o arguido possa valida e eficazmente contraditar a acusação ou a pronúncia, única forma de se poder defender. Devendo, por tal, ter-se por não escritas as mencionadas imputações genéricas
”.
Assim, os factos que constituem o objeto do processo têm de se encontrar suficientemente concretizados de forma a serem pelo arguido localizados no tempo e no espaço.
Não é, no entanto, sempre necessária uma indicação concreta do dia hora e local da ocorrência de determinado facto, o que se torna ainda mais premente nos crimes cuja execução se prolonga no tempo, ou que importam reiteração de comportamentos, que tornam difícil, se não impossível, tal concretização.
Porém, na situação presente ocorre uma suficiente descrição factual, que permite concretizar quer no tempo quer no espaço a conduta da arguida.
No ponto 1 provou-se que no período compreendido entre
as 20:00 horas do dia 10 e as 08:00 horas do dia 11 de Novembro de 2017, pessoa ou pessoas não identificadas entraram nas instalações de escritório do horto denominado “A...”, sito em ..., ..., propriedade da sociedade “A..., Lda.”, por meio de escalamento através de uma janela das traseiras e do seu interior retiraram, para além do mais, dois livros de cheques: um com cheques da conta n.º ...92, da Banco 1... do ..., titulada pela sociedade “A..., L.da”; e o outro da conta n.º ...15, da Banco 1... do ..., cotitulada por HH e II, sócios e gerentes da referida sociedade, de que se apropriaram, sem o conhecimento e contra a vontade dos seus legítimos titulares.”
Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre os dias 11 e 23 de Novembro de 2017, em relação ao arguido BB; e entre 11 de Novembro e 28 de Dezembro de 2017 em relação à arguida CC; estes arguidos entraram na posse de parte dos cheques dos dois livros de cheques subtraídos das instalações da sociedade “A..., Lda.”, por meio não concretamente apurado, que sabiam não lhes pertencer e que não estavam autorizados a emitir pelos seus legítimos titulares e decidiram usá-los em seu proveito.
E no ponto 12 refere-se especificamente a data em que a arguida atuou e a morada para onde solicitou a expedição (25 de dezembro de 2017 e Av. ... ...; no ponto 14 o dia 28 de dezembro de 2017 como sendo o dia da respetiva entrega e respetiva receção pela arguida, bem como da entrega do cheque devidamente identificado.
Descrevendo-se no ponto 16 a concreta atuação imputada à arguida por referência ao aludido cheque, prosseguindo a descrição da matéria de facto relativa a este episódio até ao ponto 21.
No que concerne à factualidade descrita de 22 a 31 e 32 a 41, 42 a 59 verificamos que esta está balizada no período temporal que se situa entre 11 de novembro de 2017 (ponto 2) e 29 de dezembro de 2017, sendo que por referência a cada uma das encomendas é descrito o concreto dia em que a entrega da mesma ocorreu, a morada onde foi efetuada, ter sido a arguida a receber a dita encomenda e a entregar os cheques em causa. Mais se descreve, relativamente a cada situação, ter sido a arguida a providenciar pela aposição no respetivo cheque de uma imitação da assinatura de um dos cotitulares da conta no local destinado à sua assinatura.
O mesmo ocorre quanto aos factos descritos nos pontos 60 a 77, sendo, assim, possível à arguida exercer quanto aos mesmos o respetivo contraditório e sendo estes manifestamente suficientes para integrar (entre o mais os crimes de falsificação de documentos que lhe são imputados.
Na verdade, a matéria de facto provada ( pontos 1 a 94) é suficiente para fundamentar a decisão de direito [encontrando-se provados todos os elementos dos tipos de crime pelos quais foi condenada e em particular daquele que questiona em recurso - isto é dos crimes de falsificação de documentos, previstos e puníveis pelo art. 256º, nº 1 al.s c) e e) e nº 3 do Código Penal], mas também porque não decorre do acórdão recorrido que o tribunal
a quo
tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão, sendo que, além do mais, na contestação a arguida ofereceu o merecimento dos autos e foi dada cabal resposta aos factos constantes do despacho de pronúncia.
Em suma, o Tribunal
a quo
ponderou os factos que constituem o objeto do processo e fê-lo pronunciando-se sobre os mesmos, inexistindo outros que se mostrassem essenciais e relevantes para a decisão da causa. E, não deixou de investigar e de se pronunciar sobre toda a matéria da acusação/defesa pertinente, ou seja, sobre o objeto do processo.
Saber se essa matéria devia ou não ter sido dada como provada são questões que escapam ao vício da apontada insuficiência, que é o que a recorrente fundamentalmente questiona.
Improcede, pois, nesta parte o recurso interposto.
Invoca ainda a recorrente o erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, que se verifica quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis.
Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido .
Como referem Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, pág. 77, tal vicio ocorre quando se verifica “
falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que efetivamente se provou ou não provou, ou seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. (…) há um tal erro quando um ser humano médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis”.
Em suma o vício do erro notório na apreciação da prova refere-se às situações de falha grosseira na análise da prova e não resulta da simples discordância quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo tribunal, mas antes tem de resultar de uma falta evidente de lógica entre os factos provados ou não provados, ou da decisão ressaltar uma apreciação evidentemente ilógica ou arbitrária que não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
Tal erro já não se verifica se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não conduz ao referido vício .
Importa, porém, não esquecer, quando a este vício que, salvo no caso de prova vinculada, o tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção, tal como o dispõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova [salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial] e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal.
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada, sempre sem esquecer que a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável.
Questiona a este propósito a recorrente o uso da prova indireta pelo Tribunal
a quo
alegando que as conclusões que foram retiradas extravasam o que esta prova por presunção permite efetuar.
É certo que o sistema da prova livre previsto no art. 125º do Código de Processo Penal, não se abre, por assim dizer, ao arbítrio ou ao subjetivismo. Antes exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência.
O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça
[Cfr. o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 464/97, publicado no DR, II Série, de 12-01-1998].
Neste quadro pode o tribunal lançar mão da prova indiciária ou indireta, ou seja, aquela que se refere a factos diversos do tema da prova (prova direta), mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto a esse tema.
Citando o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra em 09-02-2000 [Publicado na CJ, tomo I, pág. 51] (…)
A prova indiciária realizar-se-á para tanto através de três operações. Em primeiro lugar a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento.
A lógica tratará de explicar o correto da inferência e será a mesma que irá outorgar à prova da capacidade de convicção.
Não faz a nossa lei processual penal qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária. O funcionamento e creditação desta está dependente da convicção do julgador que, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objetivável e motivável.
Conforme refere Marques da Silva, o juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspeto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível, inerente à valoração da prova, intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora, já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.
Porém, o facto de também relativamente à prova indireta funcionar a regra da livre convicção não quer dizer que na prática não se definam regras que, de forma alguma se poderão confundir com a tarifação da prova. Assim, os indícios devem ser sujeitos a uma constante verificação que incida não só sobre a sua demonstração como também sobre a capacidade de fundamentar uma lógica dedutiva; devem ser independentes e concordantes entre si.
Nada impedirá, porém, que devidamente valorada, a prova indiciária a mesma por si, na conjunção dos indícios permita fundamentar a condenação (conforme Mittermaier “Tratado de Prueba em Processo Penal, pág. 389).”
Em suma, poderemos dizer que o funcionamento e a creditação da prova indiciária está dependente da convicção do julgador, a qual, sendo pessoal, deverá ser sempre objetivável e motivável, nomeadamente em sede de acórdão.
Os requisitos desse funcionamento reconduzem-se a que os indícios sejam graves, precisos e concordantes.
Verificados estes requisitos, o funcionamento da prova indiciária desenvolve-se em três momentos distintos: a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência, que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento.
As inferências lógicas aptas a propiciar a prova indiciária podem, também, consistir em conhecimentos técnicos que fazem parte da cultura média ou leis científicas aceites como válidas sem restrição.
Vertendo agora a atenção sobre o caso concreto:
Na sentença recorrida - após se ter afastado de forma fundamentada a credibilidade das declarações da arguida e de se ter atribuído credibilidade aos depoimentos das testemunhas que relataram ter recebido as encomendas e procedido à respetiva expedição e, bem assim, aos depoimentos das testemunhas EE e PPP quanto às entregas efetuadas e à circunstância de terem reconhecido a arguida ( como consta dos autos de reconhecimento ali mencionados) – escreveu-se o seguinte:
“A versão da arguida, vista e valorada na sua globalidade, e ante a forma como a prestou, foi tão patentemente incongruente, inconsistente, inverosímil na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, e tão patentemente parcial, no único e claro fito da sua desresponsabilização, que não mereceu qualquer crédito, e foi definitivamente infirmada pela demais prova produzida.
As testemunhas EE, que foi ajudar o seu colga RR na entrega das mercadorias à arguida no dia 28 de Dezembro de 2017, que nos autos de reconhecimento reconheceram a arguida como sendo a pessoa a quem entregaram as encomendas, não souberam precisar, com certeza, se os cheques que foram entregues pela arguida para pagamento das encomendas foram por ela assinados no local e nesse momento, ou se já estavam assinados, tendo de forma unânime referido que para além da assinatura que constava já aposta nos cheques, todos os demais dizeres deles constantes foram inscritos pela testemunha EE, pelos motivos e no circunstancialismo que precisaram.
As testemunhas ouvidas que expediram as encomendas em referência, afirmaram nunca terem sido ressarcidas dos prejuízos causados pelo não pagamento dos cheques que foram entregues (pela arguida), para seu pagamento.
No caso, a arguida negou os factos, sendo que a prova produzida foi meramente circunstancial, pois na verdade, não se produziu prova presencial dos factos.
Com efeito nenhuma das testemunhas ouvidas presenciou a arguida forjar/adulterar os cheques em questão, apondo nos mesmos pelo seu próprio punho ou de terceiro a seu mando, no local da assinatura, uma assinatura como se fosse a de um dos cotitulares da conta, imitando-a, assim os forjando e criando a aparência de ser ela a sua portadora legítima, logrando através dos cheques assim assinados que entregou para pagamento das encomendas, induzir em erro ou engano os funcionários dos CTT sobre a regularidade dos cheques e que estavam licitamente na sua posse da arguida, e através deles os lesados, determinando os funcionários dos CTT a entregarem as encomendas à arguida, obtendo dessa forma a arguida uma vantagem económica correspondente ao valor dos bens que lhe foram vendidos pelos lesados com o necessário prejuízo económico destes.
No entanto, não obstante a prova ser circunstancial, reunidos os vários factos instrumentais, pode firmar-se consistentemente a convicção de que a arguida efectivamente praticou os factos que se vieram a provar.
Com efeito, a prova indirecta que resultou da prova produzida em julgamento foi bastante para convencer o tribunal.
Assim e apesar da prova circunstancial e indiciária (hoc sensu, de factualidade instrumental) por si, isoladamente, não ter, nem dever ter qualquer valor, porquanto não é prova directa, a verdade é que os diversos indícios e circunstancialismos apurados em sede de audiência de julgamento, valorados criticamente e à luz das normais regras da experiência comum, constituíram fonte de convencimento e de convicção, pois todos em conjunto constituíram uma prova, conseguida com a lógica conjunção de uns nos outros, logrando-se assim chegar à descoberta dos factos e à autoria dos mesmos.
Desde logo, a circunstância de a arguida, não ter dado qualquer explicação plausível, razoável, verosímil, na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, para se encontrar na posse dos cheques (em tal elevado número) furtados à sociedade A..., Lda., sita em ..., e de os ter utilizado para pagamento das encomendas que recepcionou.
Depois, surpreenderam-se nas suas declarações patentes inconsistências e incongruências, quanto à “justificação” que apresentou para recepcionar e pagar com cheques previamente assinados, titulados por um estabelecimento comercial de horticultura (sendo que quem a contratou, segundo disse foi um advogado), as encomendas em referência.
Depois, não se depreende na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, que a arguida tenha decidido receber encomendas e pagá-las, a pedido de pessoa que mal conhecia, cuja identificação verdadeiramente não conhecia, nem nunca procurou saber, como ressumou das suas declarações. Do mesmo passo, não se depreende, na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, que tal pessoa, que também não conheceria bem a arguida, decidisse entregar a pessoa que mal conhece, cheques, em número significativo, assinados, mas não preenchidos.
Depois, também não se alcançou, das declarações, incongruentes e inconsistentes da arguida, manifestamente inverosímeis, e patentemente interessadas, os motivos pelos quais não era a mulher do tal advogado a levantar as encomendas, pois das declarações da arguida, tal como as prestou, não se anteviu qualquer impedimento para que não fosse tal pessoa a levantá-las.
E, também se não depreende, na sua valoração à luz das normais regras da experiência comum, que tendo a arguida levantado as encomendas em Dezembro de 2017, que a si segundo disse não eram destinadas, e que por si não foram encomendadas, em Fevereiro de 2019, ainda tivesse em sua casa, parte desses encomendas (pertença na sua versão de um terceiro), como resulta do auto de busca e apreensão de fls. 580 e segs., e dos autos de reconhecimento desses objectos aprendidos feitos pelos vendedores de tais mercadorias e que expediram as respectivas encomendas, que foram levantadas pela arguida e por esta pagas, com os cheques que foram furtados do Horto em referência, e de igual forma afirmado em audiência pelas testemunhas DD, GG.
Por fim, as declarações da arguida, valoradas nos termos supra exposto, que definitivamente cimentaram a convicção do tribunal.
No caso em apreço, conjugada a prova documental e testemunhal produzida, conjugada ainda a mesma com as declarações da arguida, a partir dos factos conhecidos, é seguro extrair a ilação do facto desconhecido, ou seja, que foi a arguida a autora material da falsificação dos cheques em referência, por si ou através de terceiro, e que engendrou um esquema, pelo qual, através da falsificação dos cheques, criando a aparência de ser ela ao sua portadora legítima, lograr através dos cheques assim forjados que entregou para pagamento das encomendas, induzir em erro ou engano os funcionários dos CTT sobre a regularidade dos cheques e que estavam licitamente na sua posse, e através deles os lesados, determinando os funcionários dos CTT a entregarem-lhe as encomendas, obtendo dessa forma a arguida uma vantagem económica correspondente ao valor dos bens que lhe foram vendidos pelos lesados, com o necessário prejuízo económico destes.
Dúvidas não ficaram, pois, no tribunal, sobre os factos que se vieram a provar.
Os diversos indícios e circunstancialismos apurados em sede de audiência de julgamento, constituíram fonte de convencimento e de convicção, pois todos em conjunto constituíram uma prova, conseguida com a lógica conjunção de uns nos outros, logrando-se assim chegar à descoberta dos factos e à autoria dos mesmos.
A prova indirecta que resultou da prova produzida em julgamento foi bastante para convencer o tribunal sobre os factos que se vieram a provara relativamente ao arguido BB e à arguida CC.
Apesar da prova circunstancial e indiciária (hoc sensu, de factualidade instrumental) por si, isoladamente, não ter, nem dever ter qualquer valor, porquanto não é prova directa, a verdade é que os diversos indícios e circunstancialismos apurados em sede de audiência de julgamento, valorados criticamente e à luz das normais regras da experiência comum, constituíram fonte de convencimento e de convicção, pois todos em conjunto constituíram uma prova, conseguida com a lógica conjunção de uns nos outros, logrando-se assim chegar à descoberta dos factos e à autoria dos mesmos.
No caso em apreço, a partir dos factos conhecidos, é seguro extrair a ilação do facto desconhecido, ou seja, que os arguidos cometeram os factos que se vieram a provar.
Os factos provados relativos ao elemento intelectual e volitivo do dolo resultaram do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas, de acordo com as regras da razoabilidade e da experiência comum, já que o dolo e o conhecimento são realidades não diretamente apreensíveis, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.
O Tribunal entendeu que os arguidos BB e CC sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei pelo simples facto de estarem inseridos na sociedade e de ser do conhecimento geral a proibição de falsificar documentos, e através de esquemas ardilosos, mediante engano, obterem vantagens económicas.”
Ora, lendo este segmento e a restante motivação não sobressai desta qualquer erro clamoroso, que tenha resultado provado algum facto que não possa ter acontecido ou que a prova tenha sido valorada contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados.
Do seu texto, contexto lógico e da respetiva fundamentação não resulta que os factos dados como provados se contradigam entre si ou violem os conhecimentos adquiridos pelas regras da experiência comum.
Em sede de recurso cabe “ (…)
aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração”
[Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, p. 253].
E na verdade, a sentença sob recurso apresenta-se bem estruturada, com indicação e exame crítico das provas proficiente, numa análise concatenada com as regras da experiência comum e de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do CPP.
Lendo a decisão recorrida não logramos descortinar onde a mesma é ilógica ou atentatória das regras da experiência comum.
Como resulta explanado na respetiva motivação o tribunal teve em conta os indícios recolhidos, obtidos por prova direta como seja, entre o mais – a posse de vários impressos de cheque
furtados à sociedade A..., Lda., sita em ..., e de os ter utilizado para pagamento das encomendas que recepcionou, entregando-os como meio de pagamento; a utilização de nome de terceira pessoa nas encomendas, a circunstância de em fevereiro de 2018 ainda ter consigo parte das encomendas ( auto de busca e apreensão de fls. 580 e ss.) objetos que foram reconhecidos pelos respetivos vendedores, tudo conjugado –
permite na conjugação com as regras da experiência comum as conclusões retiradas quanto à atuação da arguida CC.
O recorrente pretende apenas colocar em crise a convicção que o Tribunal recorrido formou perante as provas produzidas em audiência e substituir essa convicção pela sua própria convicção.
Em conclusão, evidencia a sentença recorrida a explicitação lógica e escorreita do modo como o julgador formou a sua convicção sobre o facto em apreço – concretamente a razão porque conjugando todos os indícios que recolheu, designadamente da prova documental, por reconhecimentos, do resultado das buscas efetuadas, das declarações prestadas pelos ofendidos e pelas testemunhas inquiridas - tudo permitindo num percurso lógico e suportado pelas regras da experiência comum perceber e concluir pela imputação feita à ora recorrente, tendo o Tribunal fundamentado correta e adequadamente a conclusão que retirou quanto “aos elementos subjetivos dos tipos de crime imputados” e concretamente relativamente aos crimes de falsificação de documentos que a recorrente coloca em causa.
Ali se escreveu:
“Os factos provados relativos ao elemento intelectual e volitivo do dolo resultaram do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas, de acordo com as regras da razoabilidade e da experiência comum, já que o dolo e o conhecimento são realidades não diretamente apreensíveis, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.
O Tribunal entendeu que os arguidos BB e CC sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei pelo simples facto de estarem inseridos na sociedade e de ser do conhecimento geral a proibição de falsificar documentos, e através de esquemas ardilosos, mediante engano, obterem vantagens económicas”.
E nenhuma censura nos merecem estas afirmações e o raciocínio a elas subjacente.
Na verdade, a atuação livre, voluntária e consciente, com essa intencionalidade e a consciência da ilicitude das suas condutas por parte da arguida/recorrente retira-se da análise dos factos objetivos descritos à luz das regras da experiência comum.
Com efeito, tratando-se de factos atinentes ao processo psíquico, nas suas vertentes cognitiva e volitiva, quando não surgem admitidos pelo agente não são suscetíveis de serem apreendidos pelas testemunhas ou por outros elementos de prova. Porém, a análise dos factos objetivos apurados (e acima referidos) leva-nos a concluir - em face dos padrões de normalidade e das regras da experiência comum – pelo processo de vontade que lhes subjaz.
Por outro lado, trata-se de uma pessoa adulta e sem qualquer afetação das suas capacidades intelectuais e emocionais, o que nos reconduz a uma atuação livre, voluntária e consciente nos moldes descritos pelo tribunal
a quo.
Deste modo, lida a sentença sob recurso não se verificam generalizações ou a violação das regras da experiência comum e muito menos – como afirma o recorrente –
“ que o Tribunal já detinha a condenação da arguida determina independentemente do que viesse a apurar em sede de julgamento”
, tendo o Tribunal justificado as razões da divergência relativamente às declarações da arguida o que foi feito de forma clara e proficiente.
Da motivação de recurso fica-nos apenas um discurso de assumida discordância do recorrente quanto à análise crítica da prova efetuada pelo tribunal recorrido, mas alicerçada em concetualizações pessoais sobre a credibilidade que deveria, a seu ver, ser atribuída à negação dos factos pelo arguido e aos depoimentos prestados por algumas testemunhas de defesa e a descredibilização das declarações da assistente e depoimentos das testemunhas de acusação/pronúncia, o que torna inviável a pretensão de sindicar a livre apreciação da prova, tal como vem consagrada no artigo 127º, do Código de Processo Penal.
II.4 – Invoca ainda a recorrente a violação do principio in dubio pro reo.
Este princípio, que deriva do princípio da presunção de inocência do arguido, (artigo 32º, n.º 2 da CRP), estabelece um limite ao princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.
Em sede de recurso, a demonstração da violação deste princípio passa pela sua notoriedade, aferida pelo texto da decisão isto é, deve resultar dos termos da sentença, de forma clara e inequívoca, que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.
No acórdão do TRL de 10.01.2018 [processo nº 63/07.8TELSB-3, disponível in www.dgsi.pt] escreveu-se:
“A certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica.
O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto, estando umbilicalmente ligado, limitando-o, ao princípio da livre apreciação – a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio «in dubio pro reo» impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável. De onde que o tribunal de recurso “só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida e que, face a esse estado escolheu a tese desfavorável ao arguido – cfr. acórdão do STJ de 2/5/1996, CJ/STJ, tomo II/96, pp. 177. Ou quando, após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, é de concluir que subsistem duas ou mais perspetivas probatórias igualmente verosímeis e razoáveis, havendo então que decidir por aquela que favorece o réu.”
Para que se imponha ao Tribunal a aplicação deste princípio é necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador – e não na do recorrente alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que há-de ser razoável e insanável.
A dúvida relevante para este efeito, não é, portanto, a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas apenas a dúvida que o julgador não logrou ultrapassar e fez constar da sentença ou que por esta é evidenciada.
Ora, da análise do texto da motivação de facto, não resulta que o Tribunal
a quo
tenha ficado com qualquer dúvida insuperável, razoável ou sequer leve, sobre os factos e a responsabilidade criminal da recorrente, que levou posteriormente ao respetivo enquadramento jurídico nos respetivos crimes.
A discordância do recorrente prende-se tão só com a interpretação que o próprio fez da prova que foi produzida e que indicou no respetivo recurso e que vimos já não obtém sustentação.
As razões da prevalência dada às declarações dos ofendidos e à prova testemunhal produzida conjugada com os elementos documentais e prova por reconhecimento (seja pessoal seja dos objetos apreendidos) estão expressas, de forma clara, na sentença recorrida sendo que, entre o mais, naquela se exarou: “
Dúvidas não ficaram, pois, no tribunal, sobre os factos que se vieram a provar.
Os diversos indícios e circunstancialismos apurados em sede de audiência de julgamento, constituíram fonte de convencimento e de convicção, pois todos em conjunto constituíram uma prova, conseguida com a lógica conjunção de uns nos outros, logrando-se assim chegar à descoberta dos factos e à autoria dos mesmos.
A prova indirecta que resultou da prova produzida em julgamento foi bastante para convencer o tribunal sobre os factos que se vieram a provara relativamente ao arguido BB e à arguida CC.”
No caso foi, pois, efetuado um exame crítico às provas produzidas, tendo o tribunal a quo formado a sua livre convicção, quanto à autoria e circunstâncias como os factos ocorreram, sendo que a decisão recorrida só seria de alterar se se revelasse evidente que as provas não conduziriam àquela decisão, o que, in casu, não ocorre.
Assim sendo, entendemos que não houve qualquer valoração arbitrária da prova, nem violação do princípio
in dubio pro reo
, previsto no art. 32º , nº 2 da Constituição da República Portuguesa, pelo que tem de aceitar-se a autoria dos factos pela recorrente nos precisos termos que lhe vêm imputados.
Por outro lado, como se refere no acórdão do STJ de 27-05-2010 [Processo n.º 11/04.7GCABT.C1.S1, in www.dgsi.pt],
“sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova”
.
In casu
, o caminho trilhado pelo tribunal
a quo
apresenta-se lógico e inteligível, de acordo com os critérios legais de admissibilidade e de apreciação da prova, devendo manter-se.
*
III – Da determinação das penas concretas
Alega a recorrente
“já na fixação da pena, considerando que o grau de ilicitude é elevado, o tribunal apenas firma que, na maior parte dos casos o grau de ilicitude é mais baixo ou médio. Não esclarece se, nesta situação concreta, o grau de ilicitude é concretamente reduzido, moderado ou intenso e o porquê de assim, o entender”.
Refere ainda que a pena aplicada é
“demasiado onerosa”.
Analisando a sentença recorrida torna-se difícil entender o alcance da afirmação da recorrente quanto à ilicitude, na medida em que ali expressamente se exarou quanto a este aspeto o seguinte:
“- Relativamente a ambos os arguidos temos que é elevada ilicitude das suas condutas, que fere de forma intensa os valores ético-sociais e do direito vigentes na nossa sociedade, atento o modo de execução dos factos, revelador de total desrespeito e desprezo pelas normas do direito e sociais vigentes, sobrepondo os arguidos interesses económicos próprios a interesses de transparência, lisura, correcção, e boa-fé, no comércio jurídico, e à vivência em conformidade com os ditames do direito.
O Juízo efetuado pelo Tribunal
a quo
a propósito do grau de ilicitude verificado mostra-se não só correto como corretamente fundamentado, sendo que o número de condutas, os valores em causa e o modo como a arguida atuou, não apontam para uma ilicitude reduzida - que a recorrente afirma, mas não explica.
Refere ainda que a pena encontrada é demasiado onerosa, invocando para o efeito o contexto social familiar e económico da arguida.
Vejamos:
No que respeita à apreciação das penas fixadas pela 1.ª instância, cumpre, antes do mais, atentar, no referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05.04.2017 [processo nº 47/15.2IDLRA.C1, disponível in www.dgsi.pt], onde se escreve:
“Fixada a pena é suscetível de revista a correção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação. Relativamente à determinação do quantum exacto de pena será objecto de alteração se tiver ocorrido violação das regras da experiência ou se se verificar desproporção da quantificação efectuada”.
A censura que o tribunal de recurso pode fazer sobre a decisão respeitante à determinação da sanção, incide sobre todos os elementos fornecidos pelo tribunal que, não tendo sido considerados para a questão da culpabilidade, são relevantes para a determinação da sanção, bem como sobre todos os elementos que considerou “adquiridos” (e porque considerou adquiridos uns e outros não) e ainda sobre a forma, fundamentada, porque valorou esses fatores na decisão final.
É função do recurso - antes de tudo, analisar criticamente, os “parâmetros” da determinação de sanções.
Os poderes deste Tribunal abrangem nesta matéria, entre outras, a avaliação dos fatores que devam considerar-se relevantes para a determinação da pena: a questão do limite ou de moldura da culpa, a atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e também o quantum da pena, quando se encontrarem violadas regras de experiência ou quando a quantificação operada se revelar de todo desproporcionada.
Assim, é forçoso concluir que o Tribunal de 2ª Instância apenas deverá intervir alterando o quantum da pena concreta quanto ocorrer manifesta desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.
Quanto à medida da pena:
Em primeiro lugar, porque se refere às finalidades das penas e medidas de segurança, importa ter em conta o disposto no artigo 40.º, nº 1 do Código Penal do qual decorre que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, decorrendo, por sua vez, do seu n.º 2 que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Por sua vez, decorre do artigo 70.º do Código Penal, sob a epígrafe “critério de escolha da pena”, que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Por fim, do invocado artigo 71.º, n.º 1, do citado diploma legal decorre que a determinação da pena concreta, dentro da moldura penal cominada nos respetivos preceitos legais, far-se-á “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” geral e especial, determinando o n.º2 do mesmo preceito legal que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do agente, desde que não façam parte do tipo legal de crime (para que não se viole o princípio “ne bis in idem”, uma vez que tais circunstâncias já foram tomadas em consideração pela própria lei para a determinação da moldura penal abstrata), “considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”.
Decorre, por fim, do n.º3 do citado preceito legal, que “na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”.
Anabela Miranda Rodrigues [A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, pág. 570 e 571] escreve:
“Entendida a prevenção geral com o sentido que lhe vimos dando – isto é, a protecção de bens jurídicos alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada, postula ela, já o dissemos, a proporcionalidade entre a medida da pena e a gravidade do facto praticado.”
Acrescentando
“É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica” .
Adindo relativamente à prevenção especial que:
“o desvalor do facto é agora valorado à luz das necessidades individuais e concretas de socialização”
E prosseguindo refere
“resta acrescentar que, também aqui, é chamada a intervir a culpa a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas...”
[Ob cit., pág. 574 e 575].
Assim sendo, atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos - dentro do que é considerado pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente [Cf. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime” pág. 227 e ss.].
Conclui-se, portanto, que estaremos perante uma pena justa e proporcional quando esta satisfizer as exigências de prevenção geral e especial que o caso concreto impõe e não exceder a medida da culpa do agente.
Aqui chegados:
Na sentença recorrida escreveu-se o seguinte:
“Cumpre, agora, proceder à determinação da medida concreta da pena dentro das molduras legais respectivas.
Dispõe o art. 40.º, do CP, que “a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1) e que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (n.º 2).
O art. 71.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, dispõe, por seu turno, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.
Dos citados preceitos legais, extrai-se que a medida concreta da pena tem como parâmetros: a) a culpa, cuja função é a de estabelecer o limite máximo e inultrapassável da pena; b) a prevenção geral (de integração), à qual cabe a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; c) a prevenção especial, à qual caberá a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização do delinquente.
Temos, pois, que a culpa e a prevenção constituem os dois termos do binómio que importa ter em conta para encontrar a medida correcta da pena.
É, pois, à luz de tais princípios, que terão de ser encontradas as penas adequadas ao caso concreto.
Assim, temos que:
- Relativamente a ambos os arguidos temos que é elevada ilicitude das suas condutas, que fere de forma intensa os valores ético-sociais e do direito vigentes na nossa sociedade, atento o modo de execução dos factos, revelador de total desrespeito e desprezo pelas normas do direito e sociais vigentes, sobrepondo os arguidos interesses económicos próprios a interesses de transparência, lisura, correcção, e boa-fé, no comércio jurídico, e à vivência em conformidade com os ditames do direito.
- A culpa de ambos os arguidos mostra-se em grau elevado, sendo exigível ao cidadão medianamente cumpridor das normas jurídicas, colocado na posição dos arguidos, comportamento bem diverso, no sentido de se absterem de comportamentos lesivos da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental; e de comportamentos que provoquem o empobrecimento (dano) da vítima, através de meios ardilosos, que induzam a outra pessoa em erro, de molde a levá-la a praticar actos que lhe causem prejuízo ou a terceiro, tendo os arguidos agido com dolo directo intenso.
- As necessidades de prevenção geral, que são muito acentuadas pela forma altamente negativa como a sociedade vê os crimes de falsificação de documentos, porque violadores das normas atributivas da fé pública conferida aos documentos, que se destinam a entrar no comércio jurídico e a influenciar o seu decurso, confiando a comunidade que tais documentos beneficiam o próprio e exclusivo titular da assinatura em causa, e que os terceiros que venham a ser confrontados com tais documentos confiam precisamente que a assinatura neles certificada como pertencendo a determinada pessoa lhes pertence de facto, sendo tais comportamentos vistos e associados à falta de transparência, de decoro, e de aproveitamento de posições de vantagem; e quanto ao crime de burla, pela generalizada reprovação e repúdio da comunidade sentidos quanto aos crimes contra o património, mormente de burla pela gravidade dos seus efeitos no comércio jurídico, e dos seus perniciosos efeitos pessoais e sociais, importando referir a necessidade de reafirmação do direito no âmbito dos crimes cometidos pelos arguidos, considerando que a sociedade repudia veementemente tais condutas, reclamando a sociedade, sanções severas.
- No que respeita à prevenção especial positiva ou de ressocialização (vale por dizer, de reintegração do agente na sociedade):
(…)
Relativamente à arguida CC, não obstante a mesma não tenha averbada no seu CRC qualquer condenação, as necessidades de prevenção especial denotam-se com alguma acuidade ante a postura assumida pela arguida em julgamento, de total desresponsabilização, o que é demonstrativo de que não interiorizou a elevada censurabilidade das suas condutas, reveladora de total desrespeito pelas sãs regras de vivência social e do direito.
Ao facto de não obstante o lapso de tempo decorrido desde a data da prática dos factos, os arguidos não terem ressarcido os lesados dos prejuízos patrimoniais que lhes causaram com as suas condutas.
Quanto à arguida CC atende-se à circunstância de o prejuízo decorrente dos crimes cometidos ser já de montante algo significativo.
(…)
A favor da arguida CC leva-se em consideração:
- Que a mesma não tem averbado no seu CRC qualquer condenação;
- Ao lapso de tempo decorrido desde a prática dos ilícitos criminais ora em apreciação;
- À circunstância de gozar de inserção familiar, profissional, e social.
Sopesando tais factores, afiguram-se como adequadas as seguintes penas para a arguida CC: a pena de 280 dias de multa pela prática de um crime de falsificação de documento (factos provados 12. a 59); a pena de 170 dias de multa pela prática de um crime de falsificação de documento (factos provados 60 a 77; a pena de 280 dias de multa pela prática de um crime de burla qualificada (factos provados 12. a 59), a pena de 130 dias de multa pela prática de um crime de burla simples (factos provados 60. a 77.).
(…)
Nos termos do disposto no art. 77º do Cód. Penal, sempre que haja concurso de crimes, o agente é condenado numa única pena. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Na medida da pena serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
(…)
No caso vertente, na avaliação da personalidade – unitária – da arguida CC, temos que o conjunto dos factos não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso da arguida se pode dizer já reconduzível a uma apetência criminosa, e não a uma mera pluriocasinalidade que não radica na personalidade do agente, tendo os crimes sido praticados de uma forma homogénea, com um desígnio comum, num curto espaço de tempo, integrando uma unidade entre si e serem interdependentes; a personalidade da arguida manifestada nos factos é denotadora de ausência de espírito crítico, de falta de interiorização da ilicitude e culpa das suas condutas; a ilicitude é elevada; a culpa é elevada.
Considera-se ainda o facto de a arguida não ter averbada qualquer condenação no seu CRC; ao lapso de tempo decorrido desde a prática dos ilícitos criminais; de a arguida gozar de inserção profissional, familiar e social.
Sopeando tais factores, entende-se como adequada a pena única 520 (quinhentos e vinte) dias de multa.
Na determinação da taxa diária da pena de multa, ante a factualidade provada quanto às condições sócio-económicas, profissionais e familiares da arguida, aos proventos e gastos mensais, levando ainda em consideração, que o montante diário da pena de multa não dever ser doseado para que tal pena não represente qualquer sacrifício para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os Tribunais e a própria Justiça, gerando um sentimento de injustiça, de insegurança, de inutilidade e de impunidade, entendendo-se adequado a sua fixação em € 6,00/dia.
Em suma, o Tribunal
a quo
ponderou, pois, os fatores atendíveis, e fê-lo de forma séria e fundamentada.
Não pode esquecer-se que ao aplicar-se uma pena de multa para que se mantenha a validade e vigência da norma violada, é necessário que do cumprimento desta pena resulte um efetivo sacrifício para o condenado. A pena de multa não pode passar a configurar uma forma disfarçada de absolvição [Cf. Figueiredo Dias – “Das Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 156].
No nosso ordenamento jurídico a pena de multa está legalmente conformada de forma a que permita a plena realização, em cada caso concreto, das finalidades das penas, em particular da de prevenção geral positiva limitada pela culpa [Figueiredo Dias, Ob. Cit., pág. 119].
Assim, a pena de multa deve representar simultaneamente, uma censura do facto e uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma penal violada.
Ora, como referimos, as exigências de prevenção geral não sendo elevadas não são despiciendas, o que faz com que o mínimo da moldura penal se distancie do mínimo legal da moldura penal em apreço. De facto, o mínimo legal não satisfaria tais exigências pois que as situações como as que se apreciam, não recaindo sobre casa de habitação é certo, geram ainda assim alarme e intranquilidade na sociedade, tornando-se premente a reafirmação da vigência da norma violada.
Por outro lado, apesar da ausência de antecedentes criminais, a arguida não reconheceu os factos imputados o que nos leva a crer, tal como referido pelo tribunal
a quo
, que não interiorizou verdadeiramente o desvalor da sua conduta o que terá de se refletir também na pena a aplicar.
A arguida agiu com dolo direto, havendo ainda a considerar os valores em causa como o fez o Tribunal a quo.
A inserção social da arguida e a ausência de antecedentes criminais são fatores atenuantes e foram considerados.
Em suma, atentando nas circunstâncias supra enunciadas, nas molduras penais abstrata previstas para os tipos de crime em apreço e nos referidos critérios de determinação da pena concreta, entendemos ajustadas e proporcionais à culpa da recorrente e às necessidades de prevenção geral e especial as penas parcelares e única encontradas.
No que concerne ao quantitativo diário de 6,00€, muito próximo ao limite mínimo legal e perfeitamente ajustados às condições de vida da arguida, como salientado na decisão recorrida, pelo que nada há a alterar ou a censurar.
Improcede, pois, igualmente neste segmento o recurso interposto.
*
Entende ainda a recorrente que o montante a entregar ao Estado “supostamente alcançado” pela arguida a titulo de enriquecimento ilegítimo deve ser substancialmente reduzido.
Não tendo havido qualquer alteração à matéria da facto e resultando desta que a vantagem obtida pela arguida CC com a prática dos ilícitos criminais em causa foi a de 7.337,01€, nada há a apontar à condenação da arguida no pagamento de tal quantia ao Estado, pois que tal condenação se mostra igualmente sustentada de Direito no disposto no art. 110º, nº 1 a 4 do Código Penal, conforme expresso na decisão recorrida.
Improcede, pois, igualmente este segmento do recurso.
***
IV- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam as Juízas da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
1 - Em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido BB, e consequentemente manter o despacho recorrido nos seus precisos termos.
2 – Em negar provimento ao recurso interposto pela arguida CC e, consequentemente, manter a sentença recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelos recorrentes fixando-se a taxa de justiça individual em 3 UC [artigos 513º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].
Notifique.
À consideração da 1ª Instância o teor da conclusão 8º do parecer emitido pelo Exmº Procurador Geral Adjunto relativo ao recurso da arguida CC e da conclusão 5º do parecer relativo ao recurso do arguido BB.
*
Coimbra, 26 de março de 2025
[Texto elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]
Sandra Ferreira
(Juíza Desembargadora Relatora)
Sara dos Reis Marques
(Juíza Desembargadora Adjunta)
Maria Alexandra Guiné
(Juíza Desembargadora Adjunta)
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TRC
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https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/360721f2b4e2c4e880258c65004a9f78?OpenDocument
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1,759,536,000,000
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PARCIALMENTE PROCEDENTE
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7126/20.2T8ALM.L1-6
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7126/20.2T8ALM.L1-6
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EDUARDO PETERSEN SILVA
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Sendo invocado erro na identificação de contas bancárias mencionadas em transação homologada no incidente de reclamação da relação de bens, o poder jurisdicional do tribunal não pode afirmar-se esgotado, competindo apreciar antes de mais a existência de um erro rectificável.
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[
"INVENTÁRIO",
"RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS",
"LAPSO DE ESCRITA",
"EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL"
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Acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
Nos autos de inventário para partilha de acervo hereditário de AA e de BB, em que são interessadas as filhas do casal CC, cabeça de casal, e DD, foi proferido o seguinte despacho:
“Compulsados os autos, constata-se que:
- Os presentes autos de inventário foram apresentados tendo em vista a partilha do acervo hereditário por óbito de AA (falecida em .../.../2012) e BB (falecido em .../.../2013), pelas suas duas filhas: a cabeça-de-casal EE e a interessada DD.
- Por requerimento de 05/12/2017, a Cabeça-de-Casal apresentou uma relação de bens por óbito dos inventariados, composta, resumidamente, por saldos bancários, bens móveis (mobiliário, electrodomésticos e dois veículos automóveis) e bens imóveis;
- Por requerimento de 16/01/2018, a interessada DD veio reclamar da relação de bens apresentada;
- Após outras vicissitudes processuais, por despacho de 13/06/2021, foi determinado:
“[…] Quanto aos certificados de aforro, os mesmos, ainda que tenham sido doados em vida do inventariado, como refere a cabeça de casal, têm de ser relacionados […].
Assim, consigna-se, desde já, que os certificados de aforro deverão ser relacionados.
O mesmo se diga quanto à garagem sita no Feijó. Tal bem, se doado em vida, deverá ser relacionado.
No entanto, quanto à omissão de dívidas (ponto 3), importa consignar, desde já, que não devem ser indicadas como dívidas da herança as dívidas dos Interessados. Com efeito, as dívidas da herança são isso mesmo: dívidas que a herança tem perante alguém, sejam herdeiros, sejam outros sujeitos. Portanto dívidas de herdeiros não são dívidas da herança.
Quanto aos acórdãos citados pela Interessada DD, a sua citação é impertinente, porquanto os mesmos nada têm que ver com o inventário para fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens (artigo 1082.º-a) do Código de Processo Civil). Uns nada têm que ver com o processo de inventário; outros referem-se a dívidas entre ex-cônjuges em processo de inventário para partilha de bens comuns do casal (artigo 1082.º-d) do Código de Processo Civil).
[…]
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Para a realização de julgamento no incidente de reclamação da relação de bens, determino o dia 29-11-2021, pelas 14:00 e não antes por indisponibilidade de agenda do Tribunal.” [negritos e sublinhados nossos]
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- Após alteração da data inicialmente fixada, a diligência agendada viria a realizar-se no dia 24/01/2022.
- Nessa data, a Cabeça-de-Casal e a interessada DD declararam “que pretendem pôr termo ao presente litígio mediante a seguinte:
TRANSAÇÃO
I.I) Como compensação das verbas da herança levantadas pela cabeça de casal, são adjudicados à interessada DD os valores em depósito na Caixa Geral de Depósitos constituídos, um pela conta corrente a prazo número ...000 com o valor de €56.000,00 (cinquenta e seis mil euros).
I.II) Mais terá direito a ser compensada a identificada interessada pelo mesmo saldo da conta à ordem cujo montante nesta data ronda mais de €10.000,00 (dez mil euros).
I.III) Pela mesma razão é ainda adjudicada à mesma interessada os certificados de aforro com os números ..., que em 26-05-2021 ostentava o valor de €12.307,66 (doze mil, trezentos e sete euros e sessenta e seis cêntimos) e número ..., que na mesma data ostentava o valor de €10.476,71 (dez mil, quatrocentos e setenta e seis euros e setenta e um cêntimo).
I.IV) A interessada DD vincula-se a pedir no prazo de 8 dias a contar desta data o pedido de desistência da instância da ação da prestação de contas, que recentemente instaurou contra a cabeça de casal CC, assim prescindindo das rendas recebidas até janeiro de 2022 inclusivé.
I.V) Ambas as partes prescindem desde já do prazo de interposição de recurso referente à matéria supra.
II.I) O projecto para evitar dúvidas que surgem entre as partes, será sorteado um dos projectos de partilhas que após isso e também por sorteio, ditará a partilha que foi aprovada.
II.II) Acerca dos bens móveis e imóveis constantes da relação de bens, as interessadas, conjuntamente com os respectivos mandatários, elaborarão cada uma delas um projecto de partilhas, que posteriormente remeterão à outra por e-mail.
II.III) O sorteio que se seguirá vinculará ambas as partes e disso darão conhecimento ao tribunal no prazo de 90 dias a contar de hoje” [negritos e sublinhados nossos]
- Foi proferida sentença homologatória da transacção obtida.
Desde esse momento processual, deram entrada neste Tribunal um total de 10 requerimentos, nenhum deles com o projecto de partilhas que as partes se comprometeram a elaborar e sortear.
O processo de inventário é um processo de natureza especial que comporta várias fases distintas.
A primeira dessas fases é uma fase de articulados (cfr. artigos 1097.º a 1104.º do Código de Processo Civil), seguida de uma fase instrutória (cfr. artigo 1105.º, n.º 1 a 3, do Código de Processo Civil), que culmina com um despacho de saneamento do processo em que o Juiz resolve todas as questões susceptíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar (cfr. artigo 1110.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil).
Após, seguem-se as fases relativas à forma da partilha (cfr. artigo 1110.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil) e à distribuição dos bens a partilhar pelos interessados, que culmina com o mapa de partilha e respectiva sentença homologatória (cfr. artigos 1111.º a 1117.º e 1120.º a 1122.º, todos do Código de Processo Civil).
Reportando-nos ao caso dos autos, a “transacção” obtida pelas partes foi alcançada na fase de instrução no âmbito do incidente de reclamação sobre a relação de bens, mas vai além desse incidente, abrangendo também a distribuição dos bens a partilhar pelas interessadas.
Assim, a transacção obtida pelas interessadas, enquanto contrato vinculativo para ambas (cfr. artigo 1248.º do Código Civil), visou pôr fim aos autos na sua totalidade e não apenas ao incidente de reclamação sobre a relação de bens, conforme resulta da redacção da acta da diligência realizada.
Nos termos do disposto no artigo 619.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, com a prolação de sentença esgota-se o poder jurisdicional sobre a relação controvertida, até porque as partes passam a estar munidas de um título executivo (cfr. artigo 703.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil).
Se alguma das partes não cumpre o acordado, então caberá à outra instaurar a respectiva execução (seja para pagamento de quantia certa, para prestação de facto e/ou para entrega de coisa certa).
Se alguma das partes considera verificar-se alguma dúvida interpretativa e/ou invalidade do contrato celebrado entre ambas, então caber-lhe-á instaurar a respectiva acção declarativa visando essa declaração por parte do Tribunal competente.
Em qualquer dos casos, relativamente aos presentes autos, esgotado que está o poder jurisdicional sobre o mérito da causa, nada mais há a ordenar, ficando na disponibilidade das partes interessadas pôr efectivo fim ao litígio entre ambas ou continuar a prolongá-lo no tempo.
Pelo exposto, por se encontrar esgotado o poder jurisdicional, indefere-se tudo o requerido desde a prolação da sentença homologatória.
Remetam-se os autos à conta, se a ela houver lugar, e, oportunamente, proceda-se ao arquivamento dos mesmos”.
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Inconformada a interessada DD interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
“6.1. Aceita-se que a 1.ª parte da transação, respeitante à partilha dos valores monetários – partes I.I a I.V - desse acordo, tenha transitado em julgado.
6.2. O mesmo não se diga no que tange à partilha dos bens móveis e imóveis – II.I a II.III do acordo – porquanto, sobre o mesmo recaiu uma homologação condicional, ou seja,
6.3. O trânsito em julgado desse acordo, só podia ocorrer, 30 dias após a junção aos autos, pelas partes, do acordo a que chegassem, particularmente.
6.4. Acordo esse que não foi alcançado e por isso não consta dos autos.
6.5. Encontrando-se por isso o processo pronto para prosseguir nos seus ulteriores termos, de harmonia com o estatuído no art.º 628.º do NCPC (a contrario).
6.6. Posição esta que retomaremos mais à frente.
6.7. Retomando a parte do Douto Despacho/Sentença, que transitou em julgado, respeitante à partilha dos valores monetários,
6.8. A interessada DD está impedida de proceder à movimentação dos valores em depósito na Caixa Geral de depósitos de cerca de 56.000,00 € e cerca de 10.00,00 €,
6.9. porquanto a cabeça de casal, ao relacionar as respetivas verbas – 5 e 6 - cometeu um erro de escrita.
6.10. O que levou esta instituição de crédito a não a deixar movimentar tais montantes à ora Apelante.
6.11. O que só seria alcançável se a cabeça de casal, escrevesse ou se deslocasse a qualquer dependência de tal instituição de crédito, conjuntamente com sua irmã, sendo-lhe de imediato entregue aqueles montantes.
6.12. O que a cabeça de casal se recusa, obstinadamente, como sempre, a fazer, sem qualquer justificação para assim proceder.
6.13. Colocando sua irmã numa impossibilidade de agir e sem saber a quem recorrer, exceto ao Tribunal.
6.14. Tendo-o feito através do identificado requerimento junto aos autos.
6.15. Requerimento esse que ali jazeu durante seis meses, sem qualquer apreciação ou decisão.
6.16. Vindo a Interessada, DD, confrontar-se com o Despacho/Sentença, sob recurso, que indeferiu, sem fundamento válido, todos os requerimentos feitos pelas partes.
6.17. O art.º 614.º do NCPC em articulação do art.º 249.º do C. Civil, permitem que ao Tribunal seja pedida correção de erro de escrita, mesmo após esgotado o poder jurisdicional nos termos do art.º 613.º daquele diploma legal.
6.18. Ao invés, as partes foram enviadas para outros tribunais, para, através de ações executivas ou declarativas – que nem sequer são identificadas – resolverem o desiderato, que apenas ao Tribunal “a quo”, cumpre apreciar e decidir.
6.19. Corrigindo oficiosamente o erro de escrita cometido pela cabeça de casal e comunicando tal correção à Caixa geral de Depósitos.
6.20. Ou convidando a cabeça de casal a apresentar nova relação de bens corrigida e de seguida, proceder, como recomendado no número antecedente.
6.21. Nos termos do art.º 1100, n.º 1; 1110.º n.º 1; 1122.º n.º 1; 6.º, n.º 1 e 7.º todos do NCPC, o juiz deve, antes de decidir, pugnar pela correção de erros de escrita, ou de outros, acaso constem dos autos.
6.22. Acresce que quem deu causa a este recurso, por se recusar a corrigir junto da C. G. de Depósitos o erro de escrita por si cometido, foi a ora Apelada.
6.23. Ao recusar-se a consumar a partilha dos bens móveis e imóveis com o argumento de que a garagem sita no Feijó é um bem pessoal (dela) e não um bem comum,
6.24. Porquanto por documento por si subscrito enviado a sua irmã, a interessada DD e por documento enviado ao signatário destas alegações e conclusões,
6.25. Confessa, entre muitas outras coisas que… «os meus pais colocaram-me como única proprietária de um bem por eles adquirido quando eu não tinha mais de vinte anos». (negrito nosso).
6.26. No mesmo sentido desta confissão e com base, certamente, em tais documentos escreveu-se, entre outras coisas no Douto Despacho de 13. 06. 2021
«Assim consigna-se desde já que os certificados de aforro deverão ser relacionados. O mesmo se diga quanto à garagem do Feijó. Tal bem, se doado em vida, deverá ser relacionado».
6.28. Perante o exposto, quando o Tribunal “a quo” pretende enviar as partes para outros tribunais, para, através de ações declarativas ou executivas, solver a demanda, além de ilegal, tal decisão premeia, mais uma vez, a infratora.
Cumpre perguntar(?)
6.29. Quem, melhor do que a Meritíssima Juiz da Causa, está em condições de corrigir, ou mandar corrigir com celeridade um erro de escrita cometido pela cabeça de casal?
6.30. Ninguém.
6.31. Atento que a segunda parte do Despacho/Sentença, não transitou em julgado, nos termos do art.º 628.º do NCPC (a contrario), quem, melhor do que a Meritíssima Juiz da causa, está em melhores condições de pôr termo à demanda com celeridade e economia de meios?
6.32. Ninguém.
Nestes Termos
Deve O Douto Despacho/Sentença da primeira instância ser revogado, obrigando-se tal Tribunal a solver as questões que lhe respeitam e a pôr termo ao litígio, (…)”.
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Contra-alegou a recorrida, formulando a final as seguintes conclusões:
I. A Interessada/Recorrente interpôs recurso do despacho de fls…, de 21.03.2023, que se, sob a égide de considerar esgotado o seu poder jurisdicional, absteve-se de apreciar os requerimentos apresentados pelas partes após a celebração de transação e prolação da respectiva sentença homologatória.
II. Salvo melhor opinião, trata-se de um despacho de mero expediente, logo irrecorrível, nos termos do disposto no art. 152º, nº 4 e art. 630º, ambos do CPC.
III. Pelo que, em consequência, deve o recurso interposto pela Interessada ser indeferido, por legalmente inadmissível, cfr. art. 641º, nº 2, al. a) do CPC.
IV. Caso assim não se entenda, o recurso interposto pela Interessada deve ainda ser rejeitado, por manifesta ininteligibilidade.
V. Isto porque a Interessada/Recorrente reclama pela revogação do despacho recorrido, obrigando-se o Tribunal (a quo) a solver as questões que lhe respeitem e a pôr termo ao litígio, sic.
VI. Mas, das suas alegações de recurso, e das respectivas conclusões, o que a Interessada/Recorrente invoca e sintetiza é a repetição dos argumentos patentes nos requerimentos apresentados por esta.
VII. Não aponta a Interessada/Recorrente qualquer vício ao despacho recorrido, nem invoca quaisquer fundamentos e/ou argumentos que permitam alterar a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
VIII. A Interessada/Recorrente insurge-se contra o despacho recorrido, mas das suas alegações, e respectivas conclusões, não se alcança a razão de ser de discordância com o despacho recorrido, que, repita-se, não apreciou os pedidos apresentados por qualquer uma das partes.
IX. Por outro lado, a Interessada/Recorrente centra-se no trânsito em julgado da sentença homologatória proferida pelo Tribunal a quo no dia 24.01.2022.
X. Mas, o Tribunal a quo, no despacho sub judice, limitou-se a abstenção de pronúncia, por se encontrar esgotado o seu poder jurisdicional, com a prolação da sentença, ao abrigo do nº 1 do art. 613º do CPC, o qual pressupõe tal esgotamento com a prolação da sentença, e não com o trânsito em julgado da sentença.
XI. Sendo certo que é indubitável que a sentença proferida pelo Tribunal a quo em 24.01.2022 transitou em julgado, e no seu todo e não apenas parcialmente, muito menos apenas quanto ao que a Recorrente lhe interessa que tenha transitado.
XII. A Interessada/Recorrente confunde trânsito em julgado com (in)cumprimento.
XIII. Não é pelo facto de uma decisão não ser cumprida que não transita em julgado, cfr. art. 628º do CPC.
XIV. Não obstante, uma vez mais, repudia-se veementemente as (constantes e repetidas) afirmações e considerações, além de falsas, manifestamente injuriosas dirigidas à Recorrida.
XV. A Recorrida não se recusa a rigorosamente nada e muito menos à concretização da partilha, nos termos constantes da transacção do dia 24.01.2022, pelo contrário.
XVI. Atribuir à Recorrida a responsabilidade de um recurso, contra um despacho do Tribunal a quo é, no mínimo, inédito.
XVII. Assim, porque a Interessada/Recorrente não cumpre com o disposto no art. 639º do CPC, porque a Recorrente não indica, concretamente e especificamente, quaisquer fundamentos da censura que o despacho recorrido merece, por considerar esgotado o seu poder jurisdicional, e por isso, não apreciar os requerimentos apresentados pelas partes, porque a Recorrente não especifica que preceito(s) violou o Tribunal a quo, por erro de interpretação, ter-se-ão que considerar as alegações, e as respectivas conclusões, que, delimitam o objecto do recurso, ininteligíveis, e, como tal, não podem ser consideradas.
XVIII. O que equivale a inexistência de alegações e conclusões, e, consequente, falta de motivação, pelo que há que rejeitar o recurso interposto, nos termos e para os efeitos legais, o que se requer.
XIX. Caso assim não se entenda, o que por mera hipótese académica se admite, face ao pedido formulado pela Interessada/Recorrente, “Deve o douto Despacho/Sentença da primeira instância ser revogado, obrigando-se tal Tribunal a solver as questões que lhe respeitam e a pôr termo ao litígio, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.”, é absolutamente irrelevante, nesta sede, esgrimir os argumentos quanto às posições manifestadas pelas partes,
XX. Pois o que a Interessada/Recorrente peticiona não é a apreciação, por este Colendo Tribunal das questões pelas partes suscitadas, mas que seja ordenado ao Tribunal a quo apreciá-las.
XXI. Pelo que, também por esta via, as alegações de recurso, e consequentes conclusões, são manifestamente irrelevantes, e manifestamente improcedentes, face ao pedido, o que, impõe, também por esta via, a rejeição e não conhecimento do recurso interposto.
XXII. Não obstante, novamente, caso assim não se entenda, e na eventualidade de V. Exas., Venerandos Desembargadores, considerarem que, além de ser de admitir e conhecer do recurso interposto, poderão chamar a si mesmos o conhecimento das questões suscitadas, a verdade é que não assiste razão à Interessada/Recorrente.
XXIII. No dia 24.01.2022 as partes manifestaram a vontade e propósito de colocar termo ao litígio, nos termos da transacção que ficou a constar da correspondente acta.
XXIV. Não obstante, verificando-se a intransigente e injustificada vontade da Interessada/Recorrente em incluir no acervo hereditário a partilhar, a garagem sita no Feijó-Almada, solicitou a Recorrida, ao abrigo do princípio da cooperação, a intervenção do Tribunal a quo, no sentido de clarificar a questão, de forma a ultrapassar-se o desacordo das partes.
XXV. Embora o Tribunal a quo nada tenha esclarecido expressamente, escudando-se no esgotamento do seu poder jurisdicional, na verdade crê-se que, na explanação aduzida contribui para a dissipação de quaisquer dúvidas.
XXVI. É indubitável que precisamente por força da transacção celebrada entre as partes, no dia 24.01.2022, ficaram definitivamente arredadas as questões que constituíam os
themas decidendum
do incidente de reclamação à relação de bens, tendo assim as partes, voluntariamente, afastado a apreciação e decisão pelo Tribunal a quo nesse domínio, concretamente quanto à inclusão ou não da garagem como bem a partilhar,
XXVII. Pois que as partes, nos termos da transacção, restringiram assim a partilha aos bens patentes na relação de bens apresentada, e ainda ao que expressamente ficou a constar da referida transacção,
XXVIII. Tendo assim assumido que a dita garagem sito no Feijó-Almada, não faz parte do acervo hereditário (como nem poderia, uma vez que se trata de um bem próprio da Cabeça-de-Casal, conforme escritura de compra e venda, certidão predial e caderneta predial junta aos autos.
XXIX. A assim não se entender, o que por mera hipótese académica se equaciona, na realidade as partes não teriam efectivamente colocado termo ao litígio mediante transacção.
XXX. E pretender incluir tal bem na partilha constituiria uma subversão das suas vontades, e da sua liberdade, expressa na transacção e respectivos termos,
XXXI. Pois que, em parte alguma da transacção consta a inclusão da garagem sito no Feijó-Almada, como bem a partilhar,
XXXII. Inversamente ao que as partes vieram expressamente a determinar quanto a saldos bancários e certificados de aforro.
XXXIII. Sem conceder, em momento algum a Cabeça-de-Casal confessou ou assumiu que a garagem em causa era bem comum, fez antes uma proposta, uma vez mais, no sentido de resolver as partilhas, (à qual não obteve qualquer resposta) em momento anterior (ao seu conhecimento) da instauração do presente processo, ainda no Cartório Notarial,
XXXIV. Pois que, contrariamente ao que a Interessada/Recorrente indica, mas como expressamente resulta – o dito e-mail data de 3.09.2017 e o presente processo, instaurado pela Interessada, deu entrada ainda no Cartório Notarial, no dia 09.08.2017, do qual a Recorrida apenas foi citada por comunicação datada de 29.09.2017.
XXXV. Pelo que é evidente que tal comunicação foi enviada antes da Recorrida ter sequer conhecimento do processo de inventário entretanto instaurado pela Interessada, e muito antes de ter apresentado qualquer relação de bens.
XXXVI. Sem prejuízo, de forma alguma se está perante qualquer confissão.
XXXVII. O despacho de fls…, de 13.06.2021, é bastante explícito, haveria que relacionar a garagem, caso se tratasse de um bem comum.
XXXVIII. Mas, além de tal bem ser próprio da Recorrida e não integrante do acervo hereditário em causa, novamente como já alegado, as partes afastaram qualquer apreciação por parte do Tribunal a quo quanto à reclamação à relação de bens e respectiva resposta, nomeadamente quanto à inclusão da garagem como bem comum, como pretendido pela interessada/Recorrente e patente na sua reclamação à relação de bens,
XXXIX. E mantiveram as partes esse bem afastado, voluntaria e expressamente, do acervo hereditário e da partilha a realizar, nos termos da transacção que celebraram no dia 24.01.2022.
XL. No que diz respeito ao levantamento dos valores, importa atentar que os obstáculos, injustificados e infundados, diga-se, estão a ser levantados pela instituição bancária em causa, CGD, SA, ao que a Recorrida é absolutamente alheia e para o que nada contribuiu.
XLI. Pelo que, a haver apreciação das pretensões das partes, apresentadas após a transacção alcançada em 24.01.2022, ter-se-á que concluir que a partilha a realizar contempla exclusivamente os bens constantes da relação de bens apresentada.
XLII. Assim, em função do exposto, a ser admitido e conhecido o recurso interposto, deve o mesmo ser julgado improcedente, o que se requer, tudo com as legais consequências”.
*
Corridos os vistos legais, cumpre decidir:
II. Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil - a questão a decidir é a de saber se se mostra esgotado o poder jurisdicional do tribunal quanto às questões qua recorrente lhe colocou.
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III. Matéria de facto
A constante do relatório que antecede.
Mais se consigna que na relação de bens apresentada pela cabeça de casal não foi relacionada a garagem sita no Feijó.
Na reclamação à relação de bens, a interessada DD invocou, sob o ponto “
2.8 Deverá também ser relacionada uma garagem sita em local que se desconhece, na freguesia do Feijó, que foi comprada por seu pai que, por razões de poupança de impostos, titulou este imóvel apenas em nome da cabeça de casal
”; “
2.9 Mas sempre alertando, enquanto vivo, que tal bem era de ambas e não apenas da cabeça de casal, o que esta sempre reconheceu, exceto desde o óbito dos pais, embora com intermitências, como se alcança dos documentos juntos sob os nº 4 e 5
”; “
2.10. O doc. nº 4 consubstancia uma relação de bens a partilhar, da autoria da cabeça de casal, que posteriormente enviou à Reclamante, onde ela própria considerar tal garagem um bem da herança
”;
“2.11 O doc. nº 5 corporiza uma carta enviada pela cabeça de casal ao signatário desta reclamação, após ter rompido o contrato de prestação de serviços com a sua ilustre mandatária, onde, entre outras coisas, declara que a garagem é um bem da herança”
; “
2.12 Ou seja, é a própria cabeça de casal que reconhece por escrito tratar-se de um bem da herança, desconhecendo ela, como escreve, porque é que seu pai titulou tal imóvel em seu nome
”.
Respondeu a cabeça de casal:
“(…) No que respeita à Garagem, desconhece-se e reporta-se como falso o disposto em 2.8. e 2.9. da petição de Reclamação. (…) Como sempre o disse, abertamente em qualquer comunicação à Reclamante, a Reclamada reporta tal bem imóvel como bem próprio. (…) Sem prejuízo, a verdade é que também reconhece, e reconhecerá, para evitar atritos e facilitar a partilha, que a Reclamante tem o direito a ser compensada pela meação do valor da avaliação que for atribuída ao referido bem imóvel. Sem conceder, (…)Por mera hipótese académica, poderia, uma vez mais, recair a presente situação sobre o regime das liberalidades em vida, sendo que, (…) Para efeitos do disposto nos arts. 2168º e ss. do Código Civil, a mesma só se teria por inoficiosa, caso e se ofendesse a legítima da Reclamante. (…) Uma vez mais, repita-se, verifica-se que o acervo hereditário é extenso e tem valor suficiente para fazer face à eventual compensação que se tivesse que operar. Mas a verdade é que, (…) A ora Reclamante nunca alegou tal inoficiosidade, e, mais gravemente, (…) Não junta qualquer prova do por si alegado, seja em sede dos já acima referidos certificados de aforro, seja em sede da garagem.
(…) Termos em que deve a presente reclamação parcialmente deferida, no que respeita à descrição das verbas nºs 1 a 4, indeferindo-se o restante, por não provada.
Sem conceder, os bens objecto da reclamação não deverão ser relacionados, nos termos legais”.
O tribunal proferiu em 13.6.2021, despacho do seguinte teor:
“Foram os presentes autos de processo de inventário notarial remetidos do Cartório Notarial da Senhora Notária, (…), na sequência de despacho da mesma que ordenou a sua remessa para o presente Tribunal, nos termos do artigo 12.º-b) da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, proferido no dia 20-01-2020, na sequência de requerimento nesse sentido apresentado pela interessada DD. Ao presente processo aplicar-se-á o regime estabelecido para o inventário judicial no Código de Processo Civil. Consigna-se que o presente processo se encontra em fase de incidente de reclamação da relação de bens. Resumamos brevemente o tramitado no âmbito de tal incidente junto do cartório notarial, a fim de se decidir a tramitação subsequente do processo que se mostre idónea para conciliar o respeito pelos efeitos dos atos processuais já regularmente praticados no inventário notarial com o ulterior processamento do inventário judicial. A cabeça de casal apresentou requerimento com relação de bens, onde apresentou 105 verbas; sistematizando e resumindo: (…) 2. Bens imóveis 2.1. (…) 2.2. Sitos no município de Almada (verbas 104 e 105) (…) Sobre este requerimento, recaiu o despacho da Senhora Notária, de 22-12-2017, pelo qual se determinou a notificação da interessada, além do mais, para, querendo, reclamar da relação de bens. Nesta sequência, veio a interessada e requerente DD apresentar reclamação de bens. Sistematizando e resumindo, invoca: 1. Inexatidão de valores das contas bancárias (verbas 1 a 4). 2. Omissão de bens (…) 2.3. Garagem sita no Feijó (…). Após, veio a cabeça de casal responder a esta reclamação da relação de bens. Em resposta à questão da inexatidão de valores das contas bancárias (ponto 1 supra), (…) Quanto à garagem (ponto 2.3. supra), a reclamada entende ser tal bem um bem próprio. Após a resposta à reclamação de bens, vem a interessada e requerente DD apresentar resposta a esta resposta.
Feito este resumo, importa consignar e determinar o seguinte.
(…) Face ao exposto, o Tribunal apenas considerará para efeitos do incidente de reclamação da relação de bens o articulado da interessada DD e a resposta da cabeça de casal CC, bem como os documentos juntos com tais articulados e outros protestados juntar nesses e só nesses articulados. O demais não será admitido.
Quanto ao conteúdo dos articulados das partes. Quanto aos certificados de aforro, os mesmos, ainda que tenham sido doados em vida do inventariado, como refere a cabeça de casal, têm de ser relacionados, pela razão explicada no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14-06-2018, relatado por EUGÉNIA CUNHA, proc. n.º 156/07.1TBMDR.G1 e que se passa a citar: «não obstante as coisas doadas não integrarem o acervo hereditário devem, no processo de inventário, havendo herdeiros legitimários, ser objeto de relacionação, com o objetivo de lhes ser fixada a natureza, qualidades e valor, para efeitos de cálculo das legítimas e com vista à sua integralidade, com eventual redução, por inoficiosidade, ou à mera igualação da partilha». Assim, consigna-se, desde já, que os certificados de aforro deverão ser relacionados. O mesmo se diga quanto à garagem sita no Feijó. Tal bem, se doado em vida, deverá ser relacionado. (…)
Para a realização de julgamento no incidente de reclamação da relação de bens, determino o dia 29-11-2021, pelas 14:00 e não antes por indisponibilidade de agenda do Tribunal.
Em 24.1.2022, conforme consta da “ATA DE INQUIRIÇÃO DE TESTEMUNHAS”, estando presentes as partes e seus il. mandatários e as testemunhas da requerente DD:
“No início da audiência dada a palavra aos ilustres mandatários da requerente e da cabeça de casal, no uso da mesma declararam que pretendem por termo ao presente litígio mediante a seguinte:
TRANSAÇÃO
(…)
Remetemos para o teor que já consta supra do relatório, tendo seguidamente o Mmº Juiz proferido sentença do seguinte teor:
“Atendendo à legitimidade das partes e à disponibilidade do objeto do litígio, julgo válida a presente transação que, consequentemente homologo, condenando e absolvendo as partes nos seus precisos termos, ao abrigo dos artigos 283.º n.º 2, 284.º, 287.º, 289.º n.º 1 a
contrario sensu
e 290.º, todos do CPC.
Custas em partes iguais - artigo 537.º n.º 2 do CPC”.
Mais consta da referida acta que “Quando eram 12:19 horas foi pelo Mmº Juiz declarada encerrada a presente audiência”.
Consigna-se ainda em termos de factos que interessam à decisão do presente recurso, o teor dos requerimentos referidos no despacho recorrido e que o tribunal entendeu não apreciar por esgotamento do seu poder jurisdicional:
“DD, interessada no processo de inventário com o número de processo à margem indicado, em que é cabeça de casal, sua irmã, CC, ambas com os sinais dos autos, vem expor, para requerer a V Exa, o seguinte:
1. No dia 24.01.2022, data marcada para audiência de julgamento, para apurar quais os bens que deveriam constar da relação de bens, as partes conseguiram um acordo parcial.
2. Acordo total no que tange aos valores monetários.
3. O mesmo não tendo sido possível, no que tange aos restantes bens móveis e imóveis, que compõem a respetiva relação de bens dos autos.
4. Relativamente a estes ficou consignado na respetiva ata, o seguinte:
«II.I). Acerca dos bens móveis e imóveis constantes da relação de bens, as interessadas, conjuntamente com os respetivos mandatários, elaborarão, cada uma delas, um projeto de partilhas, que posteriormente remeterão à outra parte por e-mail.
II.I). O projeto, para evitar dúvidas que surjam entre as partes, será sorteado um dos projetos de partilhas, que após isso e também por sorteio, ditará a partilha que foi aprovada.
II.II). O sorteio que se seguirá, vinculará ambas as partes e disso darão conhecimento ao Tribunal no prazo de 90 dias a contar de hoje».
5. A CC, CC, mudou, daí para cá, duas vezes de advogado.
6. O que tem tornado difícil o diálogo entre mandatários, diálogo esse que entre as partes, pura e simplesmente, inexiste.
7. Todavia, ambas as partes apresentaram o seu projeto.
8. O da autoria da interessada DD, não foi objeto de qualquer crítica por parte da CC, ou de quem a representasse, ou ora represente.
9. O que não sucedeu com a sua proposta, por ser vaga e imprecisa e por não indicar todos os bens que se encontram relacionados, ou reconhecidos como comuns.
10. Daí que, em 22.04.2022, o mandatário da interessada DD, tenha enviado e-mail ao Sr. Dr. FF, que à data representava a CC, mas que também já deixou de a representar, de harmonia com o documento que se junta sob o nº 1 e se dá por inteiramente reproduzido.
11. Nesse documento se apontando, em síntese, as seguintes deficiências de que tal proposta enfermava:
-- Para além da mera indicação dos artigos das respetivas matrizes, deveria indicar o prédio a esse artigo correspondente;
--Omitiu a garagem que é um bem comum, já por várias vezes por si reconhecido, apesar de o pai de ambas, quando comprou tal imóvel, por razões que na altura eram relevantes, o ter colocado apenas em nome da CC;
--Omitiu os recheios existentes nas várias casas da herança;
-- Um prédio urbano foi construído num prédio rústico, sem direito de passagem, convindo que ficassem ambos a pertencer a uma das herdeiras.
12. A tal crítica da parte da interessada DD, nunca obteve qualquer resposta por parte da CC.
13. O que admitimos que se fique a dever às suas constantes mudanças de mandatário.
14. É firme propósito da interessada DD, esclarecer, a muito curto prazo, a falta de cooperação e diálogo, da CC, que se arrasta há vários anos a esta parte.
15. Pensando-se que em benefício próprio, pois vai administrando a herança, não prestando contas de tal administração, usufruindo de duas rendas dos imóveis urbanos e da venda da madeira dos prédios rústicos.
16. Não obstante o que fica exposto, a interessada DD, entende ser útil mais uma iniciativa junto da nova mandatária da CC, cuja identificação, foi transmitida, muito recentemente, ao seu mandatário.
Termos em que,
Requer a V Eva se digne conceder-lhe novo prazo, nunca superior a 45 dias, para tentar, num derradeiro esforço, consumar o prometido acordo com a cabeça de casal, CC”.
A este requerimento a Cabeça de Casal respondeu:
1. Tal como já transmitido directamente ao Il. Mandatário da Interessada, não se pode deixar de lamentar o teor do requerimento apresentado a que ora se responde, uma vez que o mesmo foi remetido sem sequer qualquer tentativa prévia de contacto com a signatária.
2. E mais, inversamente ao ali invocado, a signatária, desde que foi constituída mandatária da Cabeça-de-Casal, no mesmo dia, 18.05.2022, e novamente no dia 25.05.2022, procurou estabelecer contacto com o Distinto Mandatário da Interessada, via correio electrónico, aos quais não obteve qualquer resposta, conforme comprovativos que se anexam.
3. Apesar da Cabeça-de-Casal, tal como qualquer parte, ter a liberdade de livremente mudar de mandatário quando bem lhe aprouver, as circunstâncias que assim ditaram foram absolutamente alheias à Cabeça-de-Casal.
4. Com efeito, o Dr. GG, Il. Advogado, no dia 5 de Março de 2022, sofreu um AVC, que o deixou manifesta, total e lamentavelmente incapacitado, conforme comprovativo que se anexa, forçando assim a Cabeça-de-Casal a procurar novo mandatário, que, in casu, foi o Dr. FF, Il. Advogado.
5. A signatária desconhecia qualquer proposta/projecto de partilha que tivesse sido apresentado pela Interessada,
6. E obviamente não pode, nem irá, pronunciar-se, sobre quaisquer comunicações trocadas entre outros Il. Mandatários, ou a sua ausência, nas quais a signatária não esteve envolvida, nem directa nem indirectamente, uma vez que era, até ao dia 18 de Maio, absolutamente alheia aos presentes autos e à representação da Cabeça-de-Casal.
7. É evidente que inexiste qualquer falta de colaboração e diálogo por banda da Cabeça-de-Casal, repudiando-se veementemente tal imputação, bem como as demais que não têm qualquer substracto fáctico e não correspondem de todo à verdade.
8. Sem prejuízo, já foi estabelecido contacto entre a signatária e o Il. Mandatário da Interessada.
9. E mantém ambas as partes o propósito de darem cumprimento ao acordo alcançado no dia 24.01.2022, sendo que o está em causa, e em falta, é apenas quanto à composição dos quinhões, por referência aos bens móveis e imóveis constantes da relação de bens apresentada, considerando expressamente o teor da transacção obtida.
10. Contudo, face à data recente em que a signatária assumiu o patrocínio da Cabeça-de-Casal e a imperativa indispensabilidade de se inteirar cabalmente do teor dos autos, e assim exercer condignamente o mandato, impõe-se efectivamente a necessidade de prorrogar o prazo patente no acordo de 24.01.2022.
11. Assim, requer-se a V. Exa. se digne admitir a prorrogação do prazo para as partes darem conhecimento aos autos do sorteio realizado para efeitos de partilha, por prazo não inferior a 90 (noventa) dias, sem prejuízo da suspensão decorrente do período de férias judiciais, pedido de suspensão e correspondente prazo ao qual o Il. Mandatário da Interessada já manifestou a sua expressa concordância”.
A prorrogação de prazo foi concedida.
Em 6.10.2022 novo requerimento da cabeça de casal, do seguinte teor:
“1. No dia 24.01.2022 estava designada a audiência de julgamento, por força do incidente de reclamação à relação de bens, do processo de inventário que já tinha sido alvo de sentença pelo tribunal a 26-02-2019, quando ainda se encontrava no cartório notarial da notária HH.
2. A diligência de 24.01.2022 destinava-se à produção de prova, com vista a habilitar V. Exa., a decidir o referido incidente, cfr. despacho de fls…, de 13.06.2021., na sequência da transição do processo de inventário da notária para a alçada do tribunal.
3. O que a Interessada havia invocado em sede de reclamação à relação de bens era a inexatidão dos valores das contas bancárias, e ainda a omissão de bens, concretamente, PPR e aplicações financeiras em seguros, certificados de aforro e uma garagem sita no Feijó.
4. Em resposta, a Cabeça-de-Casal corrigiu os valores referentes às contas bancárias, invocou que os PPR e aplicações financeiras já figuravam na conta bancária da herança, que os certificados de aforro haviam sido distribuídos ainda em vida do inventariado BB e que a garagem sita no Feijó, se tratava de um bem próprio da Cabeça-de-Casal.
5. Conforme consta do despacho de fls…, de 13.06.2021, porque, na realidade, tal bem é efectivamente um bem próprio da Cabeça-de-Casal, e não doado em vida pelos inventariados, não haveria que ser relacionado, como aliás seria documentalmente demonstrado no dia 24.01.2022.
6. Sucede que, chegados à data designada para a realização de julgamento, 24.01.2022, as partes manifestaram a vontade e propósito de colocar termo ao litígio, nos termos da transacção que ficou a constar da correspondente acta.
7. No entanto, a verdade é que, até à presente data, permanece por cumprir o sorteio para efeitos de partilha, uma vez que as partes estão em absoluto desacordo, especificamente no que diz respeito à inclusão ou não, no acervo hereditário, e consequentemente, nos bens que devem constar nos projectos de partilha a apresentar, da garagem sita no Feijó-Almada.
8. Tal desacordo está a revelar-se inultrapassável, não obstante os esforços envidados e argumentos aduzidos, e, nessa medida, a condicionar o cumprimento da transacção e o encerramento definitivo do presente processo.
9. Não se vislumbra outra forma de ultrapassar senão mediante a intervenção de V. Exa.
10. Assim, ao abrigo do princípio da cooperação, requer-se a V. Exa. se digne esclarecer e determinar que os projectos de partilha a apresentar por cada uma das partes, e a submeter posteriormente a sorteio, devem incluir apenas os bens imóveis e móveis constantes da relação de bens apresentada pela Cabeça-de-Casal em sede de resposta à reclamação à relação de bens.
11. Uma vez que é indubitável que precisamente por força da transacção celebrada entre as partes, no dia 24.01.2022, ficaram definitivamente arredadas as questões que constituíam os
themas decidendum
do incidente de reclamação à relação de bens, tendo assim as partes, voluntariamente, afastado a apreciação e decisão de V. Exa. nesse domínio, concretamente quanto à inclusão ou não da garagem como bem a partilhar,
12. Pois que as partes, nos termos da transacção, restringiram assim a partilha aos bens patentes na relação de bens apresentada, e ainda ao que expressamente ficou a constar da referida transacção,
13. Tendo assim assumido que a dita garagem sito no Feijó-Almada, não faz parte do acervo hereditário (como nem poderia, uma vez que se trata de um bem próprio da Cabeça-de-Casal, conforme escritura de compra e venda, certidão predial e caderneta predial, que, por mera cautela e dever de patrocínio, se juntam como doc. nº 1 a 3, respectivamente, e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
14. A assim não se entender, o que por mera hipótese académica se admite, na realidade as partes não teriam efectivamente colocado termo ao litígio mediante transacção.
15. E pretender incluir tal bem na partilha constituiria uma subversão das suas vontades, e da sua liberdade, expressa na transacção e respectivos termos,
16. Pois que, em parte alguma da transacção consta a inclusão da garagem sito no Feijó-Almada, como bem a partilhar,
17. Inversamente ao que as partes vieram expressamente a determinar quanto a saldos bancários e certificados de aforro”.
A interessada DD requereu:
“1. Nos autos à margem indicados, foi marcado julgamento para o dia 24 de janeiro, de 2022, às 11H00M, para apreciar a prova produzida e decidir acerca da reclamação da ora requerente, relativamente à relação de bens apresentada nos autos pela CC, CC
2. Previamente verificou-se uma tentativa de acordo entre as partes, dela tendo resultado um acordo quanto aos valores monetários dessa relação, que constituem as verbas n.ºs 1 a 10.
3. Quanto aos demais bens móveis e imóveis seriam objeto de sorteio futuro a empreender entre as duas herdeiras.
4. No que tange aos valores monetários, ficou estatuído o seguinte:
5. - Como compensação das verbas da herança levantadas pela cabeça de casal, são adjudicadas à interessada DD os valores em depósito na Caixa geral de Depósitos, constituídos, um pela conta corrente a prazo número 038 ...000 o valor de € 56.000,00 (cinquenta e seis mil EUROS).
- Mais terá direito a ser compensada a identificada interessada pelo mesmo saldo da conta à ordem cujo montante nesta data ronda mais de € 10.000,00 (dez mil euros).
- Pela mesma razão é ainda adjudicada à mesma interessada os certificados de aforro com os números 700 383 17, que em 26.05.21, ostentava o valor de € 12.307,66 (doze mil trezentos e sete euros e sessenta e seis cêntimos), e número 800 307 18, que na mesma data ostentava o valor de € 10.476,71 (dez mil quatrocentos e setenta e seis euros e setenta e um cêntimos).
6. Se, relativamente os certificados de aforro, não foi levantada qualquer objeção à ora requerente, movimentando facilmente os valores ali depositados.
7. No que tange à movimentação das contas em depósito na Caixa Geral de Depósitos, tem sido um verdadeiro calvário, ainda não o tendo conseguido fazer.
8. Tudo isto porque a CC, na relação de bens que entregou no Cartório Notarial já identificado, se enganou na identificação do número de tais depósitos.
9. Numa primeira deslocação a tal banco, foi informada por escrito do seguinte, como se alcança do documento que se junta sob o n.º 1:
9.1. «Com referência ao assunto acima mencionado, informamos V. Exa. o seguinte: Analisado o teor da transação homologada por sentença transitada em julgado em 28 de março de 2022, no âmbito do processo de inventário n.º7126/20.2T8ALM, não é possível determinar inequivocamente, a que contas bancárias se reporta o acordo então alcançado. No sentido de poder ser determinado com rigor a que contas se reportam os termos do acordo, poderá V. Exa. exibir certidão emitida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa da qual conste em anexo, cópia da relação de bens da herança de BB que terá sido apresentada no âmbito de referido processo de inventário, sem prejuízo da entrega de valores poder ser efetuada desde já mediante instrução conjunta de V. Exa. e da outra herdeira».
10. A Requerente, requereu certidão da relação de bens em 7.06.22 a qual lhe foi deferida em 29.06.2022, e entregue na mesma data
11. A qual, imediatamente, remeteu aquela instituição bancária.
12. Apesar da exibição e entrega da certidão da relação de bens, a C. G. de Depósitos, por mail datado de 12.07.22, respondeu por escrito, conforme documento nº 2 que se junta, o seguinte:
12.1. «Agradecemos o seu contacto e a sua questão, a qual mereceu a nossa melhor atenção. Informamos que a análise do processo se encontra concluída e que estão reunidas as condições para procedermos à entrega dos valores. A entrega só poderá ser efetuada após rececionarmos instruções válidas de todos os herdeiros. Alertamos, no entanto, que também poderá por optar por, em conjunto com os restantes herdeiros, deslocar-se a uma agência, a fim de serem efetuados os pagamentos de imediato. Alertamos, no entanto, que caso existam produtos não mobilizáveis antecipadamente, ou cujas caraterísticas não permitam a sua mobilização imediata, a entrega terá de respeitar as respetivas condições de movimentação».
13. Por fim, em 17.08.2022, a Requerente obteve na mesma instituição de crédito, um extrato bancário das contas da herança ali existentes, tituladas em nome do “de cujus” BB e das herdeiras DD e CC.
13.1. Tais contas têm a seguinte descrição
- Conta n.º ...161 conta poupança – saldo á data do óbito € 0.00 - saldo atual € 56.201,25.
- Conta n.º ...000 – depósito à ordem – saldo à data do óbito € 10.236,78 – saldo atual € 10.895,30.
- Conta n.º ...220 – conta a prazo – saldo à data do óbito €56.000,00, saldo atual € 0.00.
14. Na sequência do recomendado pala C. G. de Depósitos, a Requerente, por intermédio dos respetivos mandatários, solicitou à CC, que acedesse a tal sugestão, e, nessa senda, que a acompanhasse a qualquer agência de tal banco, para movimentar os valores que lhe foram adjudicados no acordo, devidamente homologado, em 24.01.2022, e transitado em julgado em 22.03.2022.
15. A resposta demorou, como sempre, mas, mais uma vez, correspondeu ao que já se esperava, ou seja, à habitual e reprovável conduta patenteada ao longo de todo o processo.
16. Ou seja, só a tal acederia, se a garagem fosse considerada um bem pessoal seu, e, só iria ao banco para o fim indicado, após partilhados todos os bens, com exclusão da dita garagem.
17. Que é o mesmo que dizer, que quando levasse avante mais esta sua iníqua iniciativa, jamais se deslocaria ao banco para o que quer que fosse, e, muito menos, para ajudar a irmã.
18. Aqui chegados, Meritíssimo Juiz, sabendo de antemão que a CC, não colaborará em nada para sanar o conflito – o que lhe convém, pois recebe rendas de dois imóveis, sem até hoje prestar contas de tais réditos e de nunca ter pagado um tostão, sequer, a sua irmã, situação esta que lhe convém manter
ad aeternum
.
19. Só vislumbramos uma hipótese, qual seja a de V Exa mandar oficiar à Caixa Geral de Depósitos, que se digne entregar à Requerente, DD, as contas ali depositadas, identificadas no n.º 13.1 deste requerimento, porque lhe foram adjudicadas, por acordo, em sessão judicial de 24 de janeiro de 2022.
20. Ou qualquer outra solução que a V Exa se afigure mais ajustada.
II
A partir daqui, responderemos ao requerimento recente do CC, mais concretamente ao que considera como obstáculo á obtenção de um acordo final.
21. Veio a CC, insistir em tal requerimento, que ainda não foi possível chegar a um acordo, porque a garagem é um bem pessoal seu, que, por isso mesmo, não deve entrar na partilha. Vejamos,
22. Logo após a sessão judicial de 24.01.22, remetemos um plano de acordo para sorteio á CC., com os bens móveis e imóveis devidamente identificados, e com os quinhões elaborados para sorteio.
23. A CC, como sempre, demorou imenso a responder.
24. Até que o fez, mas indicando os bens pelos artigos da matriz, e não também pela respetiva denominação, como lhe competia.
25. Após andarmos de artigo em artigo, respondemos à CC, que na sua proposta omitia a garagem, bem como pretendia num quinhão a partilhar, separar um imóvel urbano e um prédio rústico, onde aquele está situado.
26. Respondemos que os dois imóveis tinham de ser inseridos no mesmo quinhão a partilhar, sob pena de se criar um futuro litígio, pois assim o prédio urbano ficaria encravado, pois só teria entrada e saída pelo prédio rústico.
27. Na sua resposta apenas concordou em juntar na mesma sorte os dois identificados prédios, continuando a discordar, no que tange à garagem.
28. Vejamos, então, o histórico da dita a garagem.
29. É verdade que após ter afirmado inúmeras vezes, que a garagem, embora registada em seu nome, é um bem comum, o certo é que à medida que foi agravando a má relação, que criou contra a irmã, por conveniência pessoal já atrás descrita. (cfr. n.º 18 deste requerimento),
30. Acabou por não relacionar a garagem.
31. Todavia, de dois documentos por ela subscritos, juntos aos autos, com a nossa reclamação à relação de bens, a qual deu entrada no tribunal pelo sistema citius em16.01.2018, com a referência 40116957, consta o seguinte:
32. No primeiro documento, elaborado algum tempo após o óbito do pai de ambas, a CC elabora um inventário de todos os bens a partilhar, que remete à irmã, ora requerente, onde na seção dedicada aos bens imóveis escreve o seguinte:
- imóveis 2 urbanos – sitos em Moreira do Castelo;
3 urbanos - sitos no Feijó, Almada (2 andares + 1 garagem)
4 rústicos sitos em Moreira do castelo».
- Num outro documento, que se consubstancia num extenso mail que enviou ao signatário deste requerimento, em 3 de setembro de 2017- já muito depois de entregar a relação de bens - após se incompatibilizar com mais um dos inúmeros ilustres mandatários, que a representaram ao longo deste processo, escreveu, entre muitas outras coisas, na parte que interessa, o seguinte:
- GARAGEM
«A garagem não consta do rol de bens e a caderneta predial está em meu nome. Para se fazer uma partilha mais equilibrada e evitar complicações desnecessárias, proponho pagar em dinheiro (tornas) 50% do valor da avaliação dessa garagem, mantendo-se depois os registos como já estão.
Obviamente terá que ser lavrado documento, onde constará que dei esse dinheiro como tornas em sede de partilhas da herança do património dos meus pais, pelo facto de terem sido eles a colocarem-me como única proprietária de um bem por eles adquirido quando eu tinha pouco mais de vinte anos.
Não me pergunte a mim porque o meu pai o fez, porque nem eu sei responder.
Mas é a forma mais prática e justa de contornar a situação. Porque sabe muito bem que se eu fosse vingativa faria a minha irmã ir a tribunal reclamar a garagem…e mesmo assim seria difícil ganhar. Portanto nunca quis problemas e quis que se tivessem feito as partilhas há muito tempo, de forma equilibrada e de acordo com a vontade dos meus pais e as necessidades. E se eles, por qualquer motivo, decidiram aparentemente beneficiar-me, foi porque confiaram que eu faria partilhas justas e sem mesquinhez. Pois caso fosse a minha irmã a divorciada, sem casa apenas sua e ainda ordenado decente certo, jamais eu teria a postura lamentável que a minha irmã teve em relação a mim e à sobrinha e afilhada. Podemos-lhe agradecer também a ela e ao pai da minha filha, as dificuldades que a minha a minha filha II passou, nos últimos 4 anos, sem nenhum apoio familiar a não ser a mãe, amigos e família»
33. Tais documentos nunca foram impugnados pela CC, quer no que tange à letra e assinatura, quer no que respeita ao seu teor, pelo que, perante o estatuído nos artigos 374.º e 376.º do C. Civil, fazem prova plena nos autos.
34. A propósito do naco de prosa da autoria da CC, apenas cumpre anotar o seguinte:
34.1 Trata-se duma confissão irretratável de que a garagem é um bem comum e não pessoal (dela).
34.2. Sua irmã, a ora requerente, à data deste escrito – 3.09.17 – estava desapossada de várias contas bancárias e certificados de aforro pertencentes à herança, porquanto a CC, apoderou-se abusiva e ilegitimamente, com ardis vários, de tais valores;
34.3. Razão pela qual a conduta de sua irmã, a ora requerente, não merece qualquer censura, pois nunca se apoderou, licita, ou ilicitamente, de qualquer bem pertencente à herança, ao contrário do que a CC, fez.
35. Daí que no Douto Despacho de 13.06.2021, se tenha escrito que:
35.1. «Assim consigna-se desde já, que os certificados de aforro deverão ser relacionados.
35.2. O mesmo se diga quanto à garagem sita no Feijó. Tal bem, se doado em vida, deve ser relacionado. (negrito e sublinhado nosso)
36. Face ao exposto parece não restar qualquer dúvida de que a garagem é um bem comum, que por isso mesmo deve ser relacionado.
37. Se dúvidas subsistirem, então poderá recorrer-se à produção de prova testemunhal, porquanto já se mencionou a prova documental que se consubstancia numa confissão da CC, de que, tal bem, é comum.
38. A tal não obsta a circunstância de tal bem se encontrar registado em seu nome, porquanto apenas se trata duma presunção “júris tantum”, suscetível de prova em contrário.
Nestes termos
Requer-se a V Exa, o seguinte:
A. Que se digne mandar oficiar à Caixa Geral de Depósitos (Área de Habilitação de Herdeiros relativo ao processo Nº...818) que permita à interessada DD, o levantamento dos depósitos nas contas com os números ...161, cujo montante, em 17 de agosto de 2022 era de € 56.201,25, e da conta com o número ...000, cujo montante em 17 de agosto de 2022, era de € 10.895,30.
B. Que se digne determinar que a garagem dos autos seja definitivamente considerada um bem comum, a qual deve ser aditada à reação de bens para efeitos de partilha, como, aliás, já havia sido determinado no Douto Despacho de 13 de junho de 2021”.
Respondeu a cabeça de casal:
“1. Antes de mais, repudia-se veementemente, novamente, as imputações, no mínimo, insinuosas e inverídicas feitas pela Interessada à Cabeça-de-Casal.
2. Impugna-se ainda, assim, para todos os efeitos legais, o patente nos arts. 8º, 15º, 17º, 18º, 23º, 29º, 32º, 33º e 34º do requerimento apresentado pela Interessada, em 10.10.2022.
3. No que tange à primeira questão suscitada pela Interessada, importa atentar que os obstáculos, injustificados e infundados, diga-se, estão a ser levantados pela instituição bancária em causa, CGD, SA, ao que a Cabeça-de-Casal é alheia e para o que nada contribuiu.
4. Em momento algum a Cabeça-de-Casal demorou a responder (excepto por força da impossibilidade súbita que vitimou o seu anterior mandatário, Dr. GG, Il. Advogado), e as suas respostas, contemplando a totalidade dos bens que constituem o acervo hereditário e não apenas os bens imóveis, foram, sempre, tentativas de resolver, de uma vez por todas, o presente pleito, cumprindo a transacção alcançada em 24.01.2022.
5. De forma alguma a Cabeça-de-Casal tem qualquer interesse em manter esta situação, sendo o seu comportamento evidência disso mesmo, ao contrário do que a Interessada pretende fazer crer.
6. A Interessada, convenientemente, indica apenas o que sucedeu, em termos de apresentação de projectos de partilha, até ao momento em que a signatária assumiu o patrocínio da Cabeça-de-Casal.
7. Sem prejuízo, parece-nos inequívoco que é absolutamente indiferente e dispensável tais informações, e até questionável a sua revelação, em termos deontológicos.
8. Razão pela qual nos absteremos que trazer a verdade nesse domínio para os autos (estando, no entanto, ao dispor para o efeito, caso V. Exa. julgue pertinente).
9. No entanto, é mais do que evidente e manifesto que a Cabeça-de-Casal não pauta a sua conduta nos termos adjectivados pela Interessada.
10. Concretamente no que concerne à resposta ao requerimento apresentado pela Cabeça-de-Casal, no dia 03.10.2022, além da Interessada corroborar o impasse verificado e naquele requerimento indicado, nada mais acrescenta de relevante.
11. Sendo certo que, em momento algum a Cabeça-de-Casal confessou ou assumiu que a garagem em causa era bem comum, fez antes uma proposta, uma vez mais, no sentido de resolver as partilhas, (à qual não obteve qualquer resposta) em momento anterior (ao seu conhecimento) da instauração do presente processo, ainda no Cartório Notarial,
12. Contrariamente ao que a Interessada indica, mas como expressamente resulta – o dito e-mail data de 3.09.2017 e o presente processo, instaurado pela Interessada, deu entrada ainda no Cartório Notarial, no dia 09.08.2017, do qual a Cabeça-de-Casal apenas foi citada por comunicação datada de 29.09.2017.
13. Pelo que é evidente que tal comunicação foi enviada antes da Cabeça- de-Casal ter sequer conhecimento do processo de inventário entretanto instaurado pela Interessada, e muito antes de ter apresentado qualquer relação de bens.
14. Sem prejuízo, de forma alguma se está perante qualquer confissão.
15. O despacho de fls…, de 13.06.2021, é bastante explícito, haveria que relacionar a garagem, caso se tratasse de um bem comum.
16. Mas mais, novamente como já alegado, as partes afastaram qualquer apreciação por parte do Tribunal quanto à reclamação à relação de bens e respectiva resposta, nomeadamente quanto à inclusão da garagem como bem comum, como pretendido pela Interessada e patente na sua reclamação à relação de bens,
17. E mantiveram as partes esse bem afastado, voluntaria e expressamente, do acervo hereditário e da partilha a realizar, nos termos da transacção que celebraram no dia 24.01.2022.
18. E seguramente não pretenderá a Interessada o melhor dos dois mundos, ou seja, manter a transacção no que tange à entrega dos valores monetários, e ainda pretender que conste do acervo hereditário um bem que não é comum e que não foi relacionado, nem sequer contemplado na aludida transacção de 24.01.2022.
19. Ou bem que a transacção é plenamente válida, ou bem que não é, no seu todo, e não apenas no que à Interessada convém e lhe interessa.
20. Assim, em função do supra exposto, pugna-se como no nosso requerimento de 03.10.2022”.
Num novo requerimento da Cabeça-de-Casal, lemos:
“(…) vem reiterar o teor do seu requerimento apresentado em 06.10.2022 (bem como de 19.10.2022), apelando e requerendo a V. Exa. a sua apreciação, com a máxima brevidade possível”.
A interessada DD veio requerer:
“1.Por requerimento datado de 10.10.2022, com a referência n.º 43506963, demos conta da dificuldade que a C. G, de Depósito levantou quando a interessada, acima identificada, pretendeu levantar as verbas ali em depósito, lhe foram adjudicadas por acordo obtido em 24 de Janeiro de 2022, devidamente homologado por V Exa.
2. Tendo a C. G. de Depósitos sugerido, como resulta de documento que se juntou, que facilmente as verbas seriam, por si, levantadas, desde que estivessem presentes todos os herdeiros.
3. Só existe mais uma herdeira que é a cabeça de casal acima identificada, a qual, solicitada para o efeito, disse logo que não, a não ser que fosse de novo beneficiada na partilha dos bens que falta adjudicar.
4.Chantagem essa recusada, liminarmente, pela Requerente, pois está farta de ser prejudicada por tal personagem.
5. Os verdadeiros números dos depósitos ali existentes - ao contrário dos que constam da relação de bens apresentada pela cabeça de casal e que foram transcritas para o termo de transação datado de 24 de Janeiro de 2022 – são os seguintes:
-- Conta n.º ...000 – depósito à ordem – Que em 24.01.2022 ostentava o valor de € 10.895,30.
-- Conta n.º ...220 – conta aprazo – que em 24.01.2022, ostentava o valor de € 56.000,00.
6. Perante a recusa da cabeça de casal em colaborar na resolução da questão levantada, a interessada não tem a quem recorrer, que não seja ao tribunal para ver reconhecido e materializado um direito que, inquestionavelmente, lhe assiste.
7. Direito esse, que até consta de despacho judicial, há muito transitado em julgado.
8. Pese embora o excesso de carga de trabalho que impende sobre os magistrados judiciais, solicita-se que o pedido da requerente seja por V Exa apreciado e decidido,
9. Pois o dinheiro a todos faz falta, sendo certo que a cabeça de casal há muito tempo que está inteirada com quantias equivalentes, ou superiores, que se permitiu desviar, ilegitimamente da “vis hereditária”.
Termos em que se requer a V. Exa se digne mandar oficiar à Caixa Geral de Depósitos no sentido de permitir o levantamento das verbas atrás identificadas, pela interessada, DD”.
*
IV. Apreciação
O presente recurso foi mandado subir por decisão do ora relator, deferindo a reclamação apresentada nos termos do artigo 643º do Código de Processo Civil, do despacho que o não havia admitido, por considerar que o despacho recorrido era um despacho de mero expediente.
Sustenta ainda a recorrida que o recurso deve ser rejeitado por, em suma das razões que apresenta, não apresentar argumentos contra o despacho recorrido, que nada decidiu.
Não concordamos: - percebe-se claramente das conclusões do recurso que não se concorda com a tese do tribunal recorrido de que o seu poder jurisdicional se extinguiu, porquanto a transação a que as partes chegaram foi total. A recorrente entende que a transação foi parcial e que consequentemente havia questões que ainda importava resolver no inventário, que não foram resolvidas, sendo os requerimentos que as partes apresentaram depois da transação ligados a essas questões. Pelo menos, ligados à questão de saber se relativamente a bens imóveis e concretamente à garagem, a transação os abrangia. É certo que relativamente à questão das dificuldades de levantamento de depósitos, essa questão se refere precisamente a bens que foram abrangidos pela transação. Ainda assim, a questão é saber se ocorreu erro na identificação dos depósitos bancários, que deva o tribunal considerar e determinar seja rectificado. Mais precisamente, a questão é saber se estas duas questões estão ou não resolvidas pela transação, de tal modo que o tribunal possa dizer que nada decide, porque já decidiu. A isto, salvo melhor opinião, se resume o recurso.
Resolvendo já a questão da identificação do depósito, manifesto é que nos termos do artigo 613º nº 2 e 614º, ambos do Código de Processo Civil, é lícito ao juiz retificar erros materiais. Se tais erros efectivamente estão nas condições em que é lícita a retificação, é juízo que se faz depois do primeiro juízo a fazer quando uma retificação é pedida, ou seja, o esgotamento do poder jurisdicional só podia funcionar como impedimento à apreciação dos requerimentos relativos à incorrecta identificação dos depósitos pela cabeça de casal na relação de bens, depois do tribunal ter entrado na apreciação dos requerimentos para, num primeiro momento, verificar se se tratava de um erro de escrita ou de uma inexatidão devida a omissão (por exemplo de um algarismo, letra ou sinal) ou lapso manifesto.
Em suma, quanto a esta questão procede necessariamente o recurso: - tendo sido invocado um lapso ou erro na identificação dos depósitos bancários na relação de bens, sobre os quais incidiu a transação homologada, o tribunal não podia invocar o esgotamento do poder jurisdicional para não apreciar os requerimentos oferecidos pelas partes a esse propósito, tendo antes de os apreciar para, antes de mais, avaliar se estava perante um lapso ou erro retificável.
Repare-se aliás que a interessada DD identifica as contas assim:
Conta n.º ...161 conta poupança – saldo á data do óbito € 0.00 - saldo atual € 56.201,25.
- Conta n.º ...000 – depósito à ordem – saldo à data do óbito € 10.236,78 – saldo atual € 10.895,30.
- Conta n.º ...220 - €56.000,00.
Na transacção o que ficou a constar foi: “(…) ...000 com o valor de €56.000,00 (cinquenta e seis mil euros).
I.II) Mais terá direito a ser compensada a identificada interessada pelo mesmo saldo da conta à ordem cujo montante nesta data ronda mais de €10.000,00 (dez mil euros)”.
Na relação de bens foram identificadas duas contas, sendo a ...000 com saldo de €56.000,00 e a ...000 (o número que foi indicado é mesmo o mesmo) com saldo de €9.931,78, donde com probabilidade haverá alguma omissão de indicação do número certo (pois que os saldos diferentes na mesma conta aparentemente não estarão correctos).
Sobra a apreciação do que se refere à garagem. A transação resolveu definitivamente as questões que as partes colocavam relativamente à garagem?
A transação corresponde necessariamente ao encontro de duas vontades declaradas, a propósito de um determinado objecto jurídico. No caso concreto, a vontade da interessada e da cabeça de casal incidiram mediamente sobre a partilha e adjudicação de bens e imediatamente sobre o incidente de reclamação da relação de bens. As declarações de vontade são interpretadas de acordo com a teoria da impressão do destinatário e evidentemente podendo atender-se ao contexto em que as declarações são produzidas.
Se ambas as partes e seus ilustres mandatários estão em juízo, acompanhados das testemunhas que a interessa DD, reclamante da relação de bens, ofereceu para a prova de quanto alegou na sua reclamação, o que inclui a questão da garagem não ser um bem próprio da cabeça de casal, e se as partes, devidamente assistidas pelos seus ilustres mandatários, declararam querer por fim ao litígio mediante transação, e ditam os termos da transação, e se não ditam que estão a fazer uma transação parcial, e se, findo o ditado da transacção e a sentença homologatória que o tribunal proferiu, então, pergunta-se, se a transação afinal não incluía a garagem, porque é que a audiência terminou? Porque é que as partes não interpelaram o tribunal para prosseguir os termos da audiência com a produção de prova testemunhal relativamente à garagem?
Diz-nos a recorrente que a transação transitou em julgado quanto à primeira parte, mas não quanto à segunda, basicamente, quanto aos bens móveis e imóveis outros que os expressamente mencionados, porque nesta parte ficou condicionada à apresentação dos projectos que iriam ser sorteados, o que não chegou a acontecer.
Mas não. Não foi deixada qualquer margem de jurisdição ao tribunal: - os projectos relativos à partilha dos bens constantes da relação de bens, que cada parte ia apresentar seriam sorteados (sem que haja qualquer previsão de intervenção do tribunal nesse sorteio) e o projecto que fosse sorteado seria aquele que vincularia as partes aos respectivos termos de partilha e adjudicação de bens, limitando-se a transacção a prever uma comunicação do projecto sorteado ao tribunal. O carácter vinculativo do sorteio exclui qualquer intervenção do tribunal, regulando definitivamente, nos termos que sorteados fossem, a questão da partilha das heranças entre as herdeiras. Do mesmo modo, o carácter vinculativo do projecto sorteado resolve, entre as partes, elas mesmas resolvem, as dúvidas que surgem entre elas -
II.I) O projecto para evitar dúvidas que surgem entre as partes, será sorteado um dos projectos de partilhas que após isso e também por sorteio, ditará a partilha que foi aprovada
. Atente-se no tempo verbal “surgem”, e não “surjam”, o que indica que tudo o que, há data da transação, era dúvida entre as partes, terá ficado resolvido através da escolha deste mecanismo.
Por outro lado, é absolutamente indiferente qualquer controvérsia que surgisse após o envio dos projectos, relativamente aos projectos: -
II.II) Acerca dos bens móveis e imóveis constantes da relação de bens, as interessadas, conjuntamente com os respectivos mandatários, elaborarão cada uma delas um projecto de partilhas, que posteriormente remeterão à outra por e-mail.
Não foi previsto nada mais do que, vamos simplificar, cada parte faz o seu projecto e dele dá conhecimento à outra. Assim, ambas sabem quais são os projectos que irão ser submetidos a sorteio, e ambas se conformam com o resultado do sorteio – “
II.III) O sorteio que se seguirá vinculará ambas as partes
e disso darão conhecimento ao tribunal no prazo de 90 dias a contar de hoje
”.
Não havia de resto qualquer necessidade de intervenção posterior do tribunal para decidir nada do que pertencesse à partilha dos bens constantes da relação de bens sorteada, porque o que viesse a ser sorteado estava já abrangido pela sentença homologatória já proferida.
Em suma, a transação foi total, e transitou em julgado, numa parte, logo, e na segunda parte, após o decurso do respectivo prazo de impugnação da sentença homologatória.
E a garagem? Ela não constava da relação de bens, logo não estará abrangida pelo mecanismo do sorteio, logo haverá necessidade do tribunal continuar a apreciar os requerimentos produzidos pelas partes a esse respeito?
É certo que a garagem não consta da relação de bens. É porém certo que antes da data em que as partes celebraram a transação, já existia a controvérsia entre elas sobre a garagem dever ser partilhada ou não. E era precisamente para obter a prova dos factos alegados por cada parte a esse respeito que, além do mais, se destinava também a audiência em que a transação foi obtida. Como dissemos, dá-se até a estranheza que nos ajuda a interpretar os termos da transacção, que é a de, após a transação e a sentença homologatória, a audiência não ter continuado para a produção de prova.
Depois, repare-se, num despacho anterior, o tribunal já tinha dito que a garagem devia ser relacionada, se tivesse sido doada. Quer dizer, o tribunal não decidiu nada, em tal despacho, relativamente à inclusão ou não da garagem na relação de bens. Quando as partes vão para a audiência no incidente de reclamação à relação de bens, sabem que a questão da garagem não está decidida. Quer isto dizer, ao transacionarem nos termos em que o fizeram e ao não promoverem – nem acusarem o tribunal de não promover – a produção de prova sobre a inclusão da garagem, as partes deixaram cair, por assim dizer, a reclamação, conformando-se com o facto da garagem não constar da relação de bens.
Precisava a questão de ter sido expressamente mencionada na transação? Não, porque a transação é apreciada, em termos interpretativos das declarações de vontade nela contidas, na sua globalidade e na sua instrumentalidade relativamente às questões que estavam em discussão entre as partes.
Podemos assim secundar a decisão do tribunal de primeira instância, quando considera que o seu poder jurisdicional se havia esgotado.
Em suma, procede parcialmente o recurso, revogando-se a sentença recorrida na parte em que considerou esgotado o seu poder jurisdicional quanto à apreciação dos dois requerimentos da interessada DD na parte, e apenas na parte, em que invocou que:
“
Os verdadeiros números dos depósitos ali existentes - ao contrário dos que constam da relação de bens apresentada pela cabeça de casal e que foram transcritas para o termo de transação datado de 24 de Janeiro de 2022 – são os seguintes:
-- Conta n.º ...000 – depósito à ordem – Que em 24.01.2022 ostentava o valor de € 10.895,30.
-- Conta n.º ...220 – conta a prazo – que em 24.01.2022, ostentava o valor de € 56.000,00
”.
Tendo ambas as partes decaído, são responsáveis pelas custas, a proporção de 50% para cada uma – artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil.
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V. Decisão
Nos termos supra expostos, acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento parcial ao recurso e em consequência revogam a decisão recorrida na parte em que considerou esgotado o seu poder jurisdicional relativamente à apreciação dos dois requerimentos da interessada DD em que invocou o erro na identificação das contas bancárias acima referido, mantendo a sentença em tudo o mais.
Custas por ambas as partes, na proporção de 50% para cada.
Registe e notifique.
Lisboa, 10 de Abril de 2025
Eduardo Petersen Silva
António Santos
Jorge Almeida Esteves
Processado por meios informáticos e revisto pelo relator
_______________________________________________________
1. Para efeitos do presente relato, é indiferente manter os sublinhados e negritos.
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/def70bc515eb0d5480258c6e003571ff?OpenDocument
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1,750,896,000,000
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REVOGAÇÃO
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3955/22.0T8PRT.P1
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3955/22.0T8PRT.P1
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ANA OLÍVIA LOUREIRO
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I - Ao cônjuge a quem fique atribuído por acordo homologado por sentença (ou por decisão do Conservador do registo civil com valor equiparado) o uso da casa de morada de família sem fixação de uma contrapartida - seja por via do pagamento de passivo comum ou de um montante a título de renda ou outro -, não é posteriormente exigível que suporte qualquer custo por esse uso, salvo se esse acordo vier a ser alterado por acordo das partes ou por decisão judicial, tendo tal alteração efeitos apenas para o futuro.
II - A manutenção dessa situação durante um longo período de tempo não confere ao cônjuge não utilizador da casa de morada de família qualquer direito de indemnização, nomeadamente à luz do enriquecimento sem causa, já que a causa de qualquer vantagem patrimonial que o cônjuge utilizador tenha decorre de acordo entre ambos firmado, homologado com valor de sentença, e o seu prolongamento no tempo decorre da inércia de ambas as partes em proceder à partilha do património comum ou à venda desse bem ou à alteração do referido acordo.
(Sumário da responsabilidade da Relatora)
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[
"USO DE CASA DE MORADA DE FAMÍLIA",
"ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA"
] |
Processo número 3955/22.0T8PRT.P1 Juízo Central Cível do Porto, ...
Recorrente: AA
Recorrido: BB
Relatora: Ana Olívia Loureiro
Primeiro adjunto: Miguel Fernando Baldaia Correia de Morais
Segundo adjunto: Carlos Gil
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório:
1. Em 28-02-2022, AA propôs ação a seguir a forma de processo comum contra BB, com quem fora casada de ../../1994 até ../../2014, pedindo a sua condenação no pagamento de 95 398, 85 € (82 934, 26 € de capital e 12 464, 50 € de juros vencidos) bem como a anulação da declaração pela qual se obrigou a pagar uma comissão devida à sociedade que intermediou a venda de imóvel comum do ex-casal.
Para tanto alegou que foi casada com o réu, tendo, na vigência do casamento, sido adquirido por ambos um imóvel que constituiu a casa de morada de família, com recurso a mútuo bancário. Contraíram ambos ainda um outro empréstimo bancário com vista a custear obras nesse imóvel. Em setembro de 2011 o réu terá saído de casa e deixado de contribuir para o pagamento das prestações devidas ao banco mutuante pelos dois empréstimos e em ../../2014 foi decretado o seu divórcio pelo Tribunal de Família e Menores do Porto, por mútuo consentimento. Alegou ainda a autora que desde a saída de casa do réu pagou sozinha, muitas vezes com recurso ao auxílio de amigos e familiares, as prestações dos referidos mútuos bancários, dos seguros de vida e multirriscos associados aos mesmos, o IMI e as taxas municipais devidas pelo imóvel e ainda 10 000 € que ambos deviam ao seu irmão e cunhado por força de empréstimo que lhe pediram durante a vigência do casamento. Pelo que pede que o réu seja condenado no pagamento de metade dos montantes que despendeu para pagamento dessas dívidas comuns.
Segundo a autora, tendo sido entretanto vendido o imóvel comum, pagou 25 000 € a uma empresa de mediação imobiliária, a título de comissão pela venda tendo assinado declaração em que se comprometeu a pagar sozinha tal quantia, declaração essa que diz ser anulável pois foi coagida a emiti-la pelo réu, já que estava a liquidar sozinha os mútuos bancários com grande dificuldade e tinha pressa em vender o imóvel, o que o réu várias vezes tinha recusado, alegando que o preço de venda não era o que pretendia. Perante a afirmação deste, já durante as negociações que conduziram à venda, de que só aceitaria a concluir a mesma caso a autora assumisse a liquidação da comissão, acedeu a tal exigência por ter urgência em receber a sua parte do preço para assim liquidar as dívidas contraídas junto dos seus familiares.
2. O réu foi citado em 08 de março de 2022 e contestou excecionando erro na forma de processo por entender que o alegado crédito da autora apenas podia ser exigido em sede de partilha. Excecionou ainda o abuso do direito da autora na modalidade de “
venire contra factum proprium
”, alegando que após a separação, em outubro e novembro de 2011, a autora lhe exigiu metade do valor das prestações pagas ao banco mutuante, nunca mais tendo solicitado tal pagamento desde então, tendo, em dado momento, deixado de proceder ao pagamento das mesmas através de conta bancária que se mantinha titulada por ambos e passado o pagamento dos consumos de água, gás e eletricidade do imóvel para seu nome.
Segundo o réu, acordou com a autora a regulação das responsabilidades parentais relativas aos filhos comuns tendo ficado ele responsável pelo pagamento das propinas escolares do colégio frequentado por ambos até ao final do 12º ano, o que já fazia desde a separação, o que o nunca teria aceitado caso tivesse, também, que pagar metade das prestações devidas ao banco mutuante.
Afirmou que no acordo homologado em ../../2014 a autora exigiu manter o uso da casa de morada de família sem que tivesse feito qualquer pedido no que tange aos pagamentos das prestações devidas pelos mútuos, pelos prémios de seguros a ele associados ou impostos o que reforçou a convicção do réu de que nunca lhe exigiria tais quantias. Por isso, alegou, o réu nunca forçou a venda do imóvel e passou ainda a pagar várias despesas extracurriculares dos seus filhos com que despendeu mais 135 573, 98 €, desde dezembro de 2011 a janeiro de 2021. Mesmo durante as negociações com vista à venda do imóvel, iniciadas em 2018, nunca a autora exigiu o pagamento das quantias que ora peticiona e se assim tivesse acontecido o réu não teria aceitado vender o imóvel pelo preço pelo qual o alienaram. Segundo o réu, só depois dessa venda, do pagamento da comissão à mediadora imobiliária e dos montantes então ainda em dívida pelos mútuos hipotecários e depois de dividido o remanescente entre ambos a autora exigiu o pagamento que agora peticiona.
Alegou, ainda, que a autora se manteve a habitar um imóvel de luxo adquirido com o contributo das suas economias, enquanto ele foi viver para casa dos seus pais e suportou grande parte das despesas com a educação dos filhos por estar convencido que a autora jamais lhe exigiria o pagamento dessas dívidas.
Defendeu que os efeitos do divórcio apenas se produzem a partir da sua declaração, pelo que a autora não poderia nunca exigir o pagamento de metade das dívidas comuns pagas desde a separação e até à decretação do divórcio.
Excecionou, ainda, a prescrição do direito a autora, por entender ser-lhe aplicável o prazo a que alude o artigo 310.º d), e) e g) do Código Civil.
Impugnou parte dos factos alegados na petição inicial e deduziu reconvenção, a título subsidiário, para o caso de procedência da ação, peticionando o pagamento de 203 132, 24 €, quantia essa resultante do que entende ser o valor locativo do imóvel comum de que a autora beneficiou sozinha desde a separação e até à sua venda, valor a que diz ter direito por via de compensação ou, assim não sendo, a título de enriquecimento sem causa.
3. A autora replicou pugnando pela improcedência das exceções e impugnando parte dos factos alegados como causa de pedir do pedido reconvencional, nomeadamente alegando que as despesas com a educação dos menores que o réu diz ter suportado foram, de facto, pagas pelos avós paternos, que o réu sempre manteve a chave da casa comum, ali indo muitas vezes e lá permanecendo a conviver com os seus filhos, que nunca foi por vontade da autora que a mesma ficou a habitar com os filhos a casa comum, mas sim por acordo entre ambos que o mesmo podia, querendo, ter alterado quando assim o entendesse, tal como podia ter feito cessar a comunhão pela venda do imóvel em momento anterior, como a autora sempre quis e o réu impediu por nunca concordar com os preços de venda propostos pelos interessados.
Alegou que sempre exigiu do réu o pagamento das quantias que foi liquidando para cumprimento de obrigações comuns o que levou mesmo aquele a tentar que a mesma assinasse, em 1 de março de 2017, uma declaração pela qual a mesma reconhecia que vinha assegurando tal pagamento desde 2012 e continuaria a fazê-lo em contrapartida da assunção das despesas com a formação “
académica, musical e desportiva do seus dois filhos, asseguradas pelo ex-marido”,
o que a autora recusou.
4. Em 20-09-2022 foi proferido despacho saneador em que se admitiu a reconvenção, se julgaram improcedentes as exceções de erro na forma de processo e de prescrição, foi identificado o objeto do litígio e foram enumerados os factos já assentes e enunciados os temas da prova.
5. Em 04-10-2022 foi apresentada pelo réu reclamação à seleção dos factos assentes e dos temas da prova, que foi decidida por despacho de 25-10-2022, em que se reformularam parcialmente uns e outros.
6. Admitidos os meios de prova requeridos, foi ordenada e realizada perícia com vista à avaliação da casa de morada de família para determinação do seu valor locativo entre 2011 a 2020, tendo o respetivo relatório sido junto em 23-10-2023. Foram pedidos esclarecimentos ao perito, que os prestou em 18-03-2024.
7. Em 26-01-2023 a autora requereu a ampliação do pedido, em função da prova documental já produzida, passando a peticionar a condenação do réu no pagamento de 83 142, 50 € de capital e 12 514, 30 € de juros.
8. O réu impugnou os factos alegados pela autora para fundamentar tal ampliação e esta veio a ser indeferida por despacho de 07-03-2023.
9. A audiência de julgamento realizou-se em 13-11-2024 e 13-12-2024.
10. Em 20-12-2024 foi proferida sentença que julgou improcedente a ação e prejudicado o conhecimento do pedido reconvencional.
*
II - O recurso:
É desta sentença que recorre a autora, pretendendo a alteração parcial do julgamento da matéria de facto e a sua revogação com a consequente declaração de procedência parcial da ação, condenando-se o réu ao pagamento de 76 824, 38 €.
Para tanto, alega o que sumaria da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:
(…)
*
O recurso foi admitido em 07-05-2025 e mandado subir nos próprios autos com efeito devolutivo.
*
III – Questões a resolver:
Em face das conclusões dos recorrentes nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:
1 - Inadmissibilidade da impugnação da matéria de facto pela recorrente/autora:
a) por falta de indicação de meios de prova que imponham decisão diferente;
b) tendo em conta a utilidade da sua pretensão para a decisão de mérito.
2 – Em caso de ser admitida, conhecimento da mesma de modo a aferir se deve passar a provada a matéria constante da alínea e) dos factos não provados bem como se deve aditar-se matéria de facto alegada pela autora na petição inicial e na réplica que não consta dos factos provados ou não provados;
3 – Procedendo ou não a impugnação da matéria de facto, aferir da existência de fundamento para a condenação do réu no pagamento de metade das dívidas comuns que se provou que a autora pagou desde a separação de facto do casal e de juros sobre tais montantes;
4 - No caso de procedência da apelação da autora, alteração para não provados dos factos dados por provados nas alíneas 26 e 27;
5 – Ainda no caso de procedência da apelação, existência de fundamento para condenação da autora no pedido reconvencional deduzido a título subsidiário, com fundamento no alegado enriquecimento sem causa da autora.
IV – Fundamentação:
Foi a seguinte a decisão de facto objeto de impugnação:
A) Factos Provados:
“1. A. e R. foram casados no regime da comunhão de adquiridos;
2. A dissolução do seu casamento foi decretada no âmbito do processo nº...., que correu termos na ... do 1º Juízo do Tribunal de Família e Menores do Porto, por sentença proferida a ../../2014, transitada em julgado;
3. Tendo sido homologado, além do mais, o acordo dos aqui autora e ré, no sentido do direito à utilização da casa de morada de família ficar atribuído ao “cônjuge mulher, até à venda ou partilha”;
4. Já por acordo homologado por sentença de 28/09/2012, em sede de processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais com o n.º ..., do extinto Tribunal de Família e Menores do Porto, ..., ficou a residência dos filhos (então menores) do casal, fixada junto da mãe, ficando o pai obrigado ao pagamento da prestação de alimentos mensal de 155,00 €, por cada filho, quantia a atualizar anualmente, de acordo com a taxa de inflação;
5. Ficando ainda obrigado ao pagamento das despesas escolares dos filhos, por si ou através dos seus pais;
6. A. e R., na sequência do divórcio, procederam por mútuo acordo à divisão do património móvel e venderam a terceiros o único bem imóvel de que eram proprietários, tendo liquidado o resto dos empréstimos contraídos junto do Banco 1... e dividido entre si o montante sobrante, na proporção de metade para cada um.
7. Tal bem imóvel correspondia à casa de morada de família, sita à Rua ..., descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto, sob a descrição ...13 da freguesia ... e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob artigo ...65;
8. O referido bem imóvel foi adquirido por contrato de compra e venda, outorgado 18 de Agosto de 2005;
9. Para adquirirem o aludido imóvel, o então casal contraiu, na mesma data, um empréstimo para aquisição de habitação própria e permanente junto do Banco 1..., S. A. no valor de €372.500,00, identificado com o nº. ...96;
10. Posteriormente, a 26 de Setembro de 2008, o então casal contraiu outro empréstimo, denominado multifunções, que se destinou a custear as obras de recuperação do prédio adquirido.
11. Tal empréstimo, também contraído junto do Banco 1..., ascendeu ao valor de € 110.000,00, sendo identificado com o nº. ...96.
12. Os dois empréstimos foram garantidos por hipotecas incidentes sobre o prédio adquirido, devendo ser liquidados através da conta ordem nº....01, que o casal tinha aberto no Banco 1....
13. Nos termos dos empréstimos contraídos pelo casal, era obrigatório para este a contratação de dois seguros de vida, um por cada um dos empréstimos e, ainda, de um seguro multirriscos relativo ao imóvel adquirido;
14. Os seguros de vida começaram por ser contratados por A. e R., ainda casados, junto da A..., S. A. tendo sido agente de seguros a B..., S. A.
15. Por sua vez, o seguro multirriscos foi contratado com a C... desde 2005;
16. O R., desde que abandonou a casa de morada de família (Setembro de 2011),
deixou de liquidar a sua parte no I.M.I. e na taxa devida à Câmara Municipal do Porto pela existência de rampa fixa no imóvel de que A. e R. eram proprietários.
17. No que diz respeito ao I.M.I. foi a A. quem liquidou a totalidade do imposto relativo ao ano anterior, nos anos de 2014, 2015 e 2016.
18. No primeiro daqueles anos o imposto ascendeu a €394,90 e em cada um dos outros dois um total de € 403,79;
19. Tendo pago, a este título, um total de €1.202,48,
20. Relativamente à taxa anualmente devida à Câmara Municipal do Porto pela rampa fixa existente no imóvel que foi do casal, liquidada até ao final do mês de Março de cada ano, foi sempre a A. quem a liquidou entre os anos de 2012 e 2019, num total de €421,94;
21. A intermediação efectuada pela sociedade D..., Ldª para venda da casa de família resulta do próprio contrato de compra e venda;
22. A autora assinou declaração na qual se comprometia a pagar sozinha a comissão da imobiliária para venda do imóvel do casal;
23. O que fez, estando em causa o valor de 25.000,00 €;
24. Em 22 de Janeiro de 2021 autora e réu declararam vender o imóvel que correspondia à casa de morda de família a um terceiro, pelo valor de 600.000,00 €;
25. Correspondendo ao melhor preço na altura obtido;
26. Entre Setembro de 2011 e a 22 e de Janeiro de 2021 a autora pagou a quantia global de 109,328, 21 € por conta da amortização dos empréstimos bancário descritos em 8 e 10;
27. Pelos prémios dos seguros de vida desde que o R. saiu de casa até à venda do imóvel a autora liquidou a quantia global de 19.915,18 €;
28. A Autora efectuou um pedido de empréstimo em dinheiro ao seu irmão, no valor de €10.000,00, ainda quando as partes viviam juntas;
29. Sendo que, após o divórcio, a autora acabou por pagar tal quantia ao referido irmão, sendo a última parte entregue já no decorrer deste ano;
30. Sendo que este nunca efetuou o pedido de reembolso de tal quantia ao aqui réu;
31. O progenitor ou os seus pais efetuaram os pagamentos de todas as quantias relacionadas com a frequência dos filhos do aqui casal no Colégio ..., ensino musical, prática de Andebol por um dos filhos, propinas da Universidade e seguros, mesadas e prestações de alimentos;
32. Desde a saída do réu da casa de morada de família, e até à venda do imóvel, a casa era o centro de vida da autora e dos seus filhos;
33. Sendo que o progenitor deslocava-se lá para estar com os filhos;
34. Tendo o seu centro de vida em casa dos pais;
35. Em Novembro de 2011 a autora passou para seu nome os contratos antes titulados pelo réu, relativos aos fornecimentos de água, eletricidade e gás natural, à moradia supra descrita;
36. A partir de maio de 2012, por vontade da autora, as prestações relativas aos dois empréstimos deixaram de ser debitadas na conta comum do casal, e passaram a ser debitadas na conta de DO n.º ...20, titulada pela autora e pelo seu pai;
37. O valor locativo do imóvel que constituía a casa de morada de família, desde Dezembro de 2012 até 2020, era de, mensalmente, 3.854, 16 € (2012), 3.983, 66 € (2013); 4.023, 10 € (2104 e 2015); 4.029, 54 € (2016); 4.051, 30 € (2017); 4.096, 67 € (2018); 4.143, 78 € (2019), e 4.164, 92 € (2020).
Factos não provados:
a) que o réu tenha recusado, por várias vezes, propostas para a venda do imóvel que constituíra a casa de morada de família;
b) que o réu tenha dito que se a autora não assinasse o documento, não aceitaria a venda do imóvel;
c) que o valor de venda do imóvel que constituía a casa de morada de família fosse mais baixo do que o de mercado, na altura;
d) e que o valor em causa tenha sido fixado tendo em conta o facto da autora assumir o pagamento integral da comissão descrita em 22 dos factos assentes;
e) que a autora, enquanto vivia na casa, tivesse requerido ao réu o pagamento das despesas relacionadas com o imóvel que constituía a casa de morada de família.
f) Que o réu tivesse igualmente conhecimento do pedido formulado pela autora, ao seu irmão, e referido no facto assente 27º”.
*
1 - Admissibilidade da impugnação da matéria de facto pela recorrente/autora:
a)
O recorrido começa por defender que deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto pedida pela recorrente sustentando que a mesma não indicou “
qualquer meio de prova que imponha uma decisão diferente ou qualquer erro evidente na apreciação da prova, limitando-se transcrever pequenos excertos do depoimento de duas testemunhas, dos quais nem sequer resultam os factos que pretende comprovar”.
Como é manifesto, o que recorrido defende com esta argumentação é que os meios de prova indicados pela recorrente não são fundamento bastante para a procedência da sua pretensão de alteração do elenco dos factos provados. Ora, a assim suceder, não está em causa a possibilidade de rejeição da impugnação da matéria de facto, como incorretamente refere o recorrido, mas a sua eventual improcedência.
A recorrente identificou os concretos pontos da matéria de facto que quer ver alterados e indicou o sentido da pretendida alteração bem como os meios de prova em que baseia essa pretensão, tendo, no caso dos depoimentos gravados que convocou, referido as respetivas passagens e procedido mesmo à transcrição de parte deles. Como tal, estão claramente cumpridos os ónus exigidos pelo artigo 640.º, números 1 e 2 do Código de Processo Civil ao recorrente que impugne a matéria de facto.
*
b)
Entende ainda o recorrido que os factos que a recorrente pretende ver julgados provados são inúteis à decisão do mérito do recurso, pelo que não deve ser apreciada essa sua pretensão.
É certo que, nos termos do previsto no artigo 130º do Código de Processo Civil, não é lícito realizar no processo atos inúteis.
Como vem sendo decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça
[1]
,
“(…) nada impede a Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto por se tratar de ato inútil.”.
Há, pois, que aferir se a pretensão da recorrente quanto à impugnação da matéria de facto não é útil ao conhecimento do mérito do recurso.
A mesma pretende que se passe a julgar provado o teor da alínea e) dos factos não provados: “
que a autora, enquanto vivia na casa, tivesse requerido ao réu o pagamento das despesas relacionadas com o imóvel que constituía a casa de morada de família”.
Bem como entende que se deviam ter julgados provados os seguintes factos:
- que o recorrido lhe entregou em 1 de março de 2017 uma declaração com vista a que ela a assinasse e da qual resultaria que asseguraria o pagamento integral dos empréstimos bancários como contrapartida da assunção pelo recorrido das despesas relacionadas com a formação académica, musical e desportiva dos dois filhos de ambos (o que a mesma alegou na réplica).
- que ambos venderam a terceiros o único bem imóvel de que eram proprietários, tendo liquidado o remanescente da dívida decorrente dos empréstimos bancários contraídos e dividido entre si o preço sobrante, na proporção de metade para cada um (tal facto foi alegado pela recorrente no artigo 4º da petição inicial, tendo sido aceite pelo recorrido no artigo 8º da contestação).
*
i) Quanto à alínea e) dos factos não provados, acima transcrita:
Recorde-se que o réu se defendeu na ação alegando nomeadamente que a autora age em abuso do direito, o que fez decorrer da afirmação de que aquela nunca, desde dezembro de 2011, lhe pediu o pagamento das quantias que ora reclama.
Na fundamentação da sentença recorrida lê-se o seguinte: “(…)
parece-nos ser de concluir que o equilíbrio nas obrigações entre as partes implica ou que os ex-cônjuges nada possam pedir um ao outro - uma vez que a autora usufruiu exclusivamente do uso da casa de morada, durante cerca de 9 anos, sem qualquer compensação ao réu (que a ela teria direito, mas que nunca a pediu), sendo que a autora, por seu lado, nunca pediu a este, durante esse período, o pagamento das quantias relativas a encargos com o imóvel, e aqui peticionados) - ou, determinando-se que o réu é responsável pelo pagamento de metade das despesas relacionadas com o imóvel que constitui casa de morada de família, teria de se arbitrar uma compensação mensal ao réu pelo facto da autora ter utilizado, de forma exclusiva, um bem que não era só seu.
No caso dos autos, tendo em conta, repita-se, o lapso de tempo em que perdurou a utilização, pela autora, da casa de morada de família, sem que nunca tenha sido reclamada qualquer quantia de parte a parte, entendemos ser de optar pela primeira hipótese que expusemos”.
Verifica-se, assim que o teor do que foi alegado pelo réu - mas que não é o facto julgado não provado na alínea e) -, foi tido em conta na sentença como fundamento para a improcedência a ação, muito embora o Tribunal
a quo
não tenha vertido no elenco dos factos provados o que depois valorou na fundamentação do direito.
O que o Tribunal
a quo
julgou não provado foi que a autora depois da separação, enquanto vivia na casa entretanto vendida, tenha requerido ao réu que pagasse quaisquer despesas relacionadas com tal imóvel. Daqui, contudo, e ao contrário do que consta da fundamentação da sentença na parte que se transcreveu, não resulta a autora nunca tenha reclamado essas quantias.
A não prova de um facto negativo não corresponde à afirmação do mesmo e, no caso, foi o réu quem alegou que a autora nunca tinha feito essa exigência, o que articulou como fundamento para o excecionado abuso do direito, pelo que era a ele quem cabia a prova desse facto, nos termos do artigo 342.º, número 2 do Código Civil.
De facto, nos artigos 31.º, 40.º, 41.º 50.º, 51.º e 64.º da contestação, o réu alegou que a partir de maio de 2012, a autora passou a pagar as prestações devidas pelos mútuos, os prémios de seguros a eles associados e o IMI devido pelo imóvel comum, a partir de uma conta titulada por ela e pelo seu pai, alterando o que até então acontecia, e que era o débito em conta comum do casal, nunca tendo feito qualquer exigência de que o réu lhe pagasse qualquer dessas quantias desde dezembro de 2011 e nunca tendo mencionado tal exigência ou pretensão no acordo destinado à homologação do divórcio por mútuo consentimento, sendo que, segundo ele, só por isso o mesmo se obrigou a pagar todas as prestações que enumera e se referem a despesas com os filhos comuns do casal.
A autora impugnou tal alegação em sede de réplica, apresentando outra, a ela oposta, e a versão que a autora trouxe aos autos foi a única sobre a qual incidiu decisão, sob a alínea e) dos factos não provados.
No artigo 70º da petição inicial a autora já alegara que “
tem insistido, por várias vezes, junto do R., para que lhe satisfaça a dívida, mas este, nem sequer a reconhece, o que a obriga a compeli-lo judicialmente ao pagamento”.
Não alegou nesta peça, todavia, em que momentos ou por que formas fez tais exigências.
Depois, em sede de réplica (artigos 50º) a autora alegou que sempre pediu ao réu o pagamento de metade das verbas que ora peticiona (relativas aos pagamentos dos mútuos que descreve, seguros a eles associados, taxas e IMI) e que estão relacionadas com o imóvel comum. Desta redação também não decorre quando ou desde quando tais pedidos foram feitos, deduzindo-se, contudo, que a autora pretende afirmar que fez tais pedidos desde que passou a suportar sozinha os pagamentos em causa.
Tal alegação, contudo, apenas foi motivada pela contestação do réu em que este excecionou o abuso do direito da autora consistente no facto de a mesma, com o seu comportamento omissivo, o ter levado a crer que tais montantes nunca lhe seriam cobrados. Para sustentar tal exceção o réu alegou nomeadamente (no artigo 64.º da sua contestação) que “
entre dezembro de 2011 e janeiro de 2021, ou seja, enquanto o imóvel foi do casal, mas apenas usufruído por si, a autora nunca exerceu o direito de exigir o valor correspondente a metade das prestações pagas ao banco, seguros, rampas ou IMI e nunca, sequer, verbalizou a hipótese de tal vir a acontecer”.
Em suma, e no que aqui releva convocar, o réu sustenta que do facto de tal não constar no acordo homologado em sede de divórcio e de a autora nunca lhe ter pedido que comparticipasse nessas despesas ou pedido o pagamento de metade delas, resulta ser abusivo que o faça agora (alegando que tal comportamento consubstancia um “
venire contra factum proprium
”, embora como adiante melhor se verá, a modalidade do abuso e direito em que tal comportamento poderia enquadrar-se, seria a da
supressio
que tem requisitos bem mais exigentes do que a mera omissão assim descrita pelo réu).
Tendo o réu alegado tal facto para sustentar a sua defesa por exceção, era ao mesmo que cabia a sua prova, nos termos do previsto no artigo 342.º, número 2 do Código Civil.
Pelo que tem razão o recorrido
[2]
, quanto à inutilidade da prova do facto julgado não provado sob a alínea e), pois o mesmo não tem que ser julgado provado para que possa proceder a pretensão da autora.
Quando muito, a alegada interpelação ao pagamento por banda desta teria relevância para aferir a data da constituição do réu em mora, se se vier a concluir que a mesma depende de interpelação. Todavia, a autora não alegou qualquer data concreta de comunicação/interpelação ao réu, pelo que também para tal fim é irrelevante o apuramento dessas interpelações, não havendo motivo para aditar aos factos provados o teor da alínea e) em apreço, que nem tinha que constar dos não provados.
Como se viu, contudo, de acordo com a solução do direito preconizada pelo réu em sede de defesa, poderia ser relevante a prova de que a autora nunca lhe pediu tal pagamento. Tal facto foi alegado e a sentença recorrida não o julgou provado ou não provado.
Nos termos do disposto no artigo 662.º, número 1 e número 2 c) do Código de Processo Civil, este Tribunal deve alterar a decisão sobre a matéria de facto se a prova produzida impuser decisão diversa, podendo nomeadamente ampliá-la, desde que os autos forneçam os elementos necessários
[3]
.
Ora, no caso, foi produzida prova sobre o facto alegado pelo réu e impugnado de forma motivada pela autora que foi omitido na decisão de facto da sentença recorrida. O que sucedeu, apenas, foi que o Tribunal
a quo
não atentou devidamente nas regras de distribuição do ónus da prova quando deu por não provado o teor da alínea e), desconsiderando que cabia ao réu a prova de que a autora nunca antes lhe pedira o pagamento de metade das quantias que descreve na petição inicial e de que, por causa disso, criou a convicção de que a mesma nunca o faria.
Assim, em cumprimento do disposto no artigo 662.º, número 2 c) do Código de Processo Civil, foram ouvidos na íntegra os depoimentos gravados de CC e de DD, indicados pela autora para sustentar a alteração da alínea e) dos factos não provados que é relativa à mesma factualidade. Foram tidos em consideração, ainda, os meios de prova convocados pelo réu em sede de contra-alegações para sustentar a manutenção de tal facto como não provado, a saber: o depoimento de EE; a cláusula 5ª número 2 do contrato de mediação imobiliária pela qual a autora se obrigou a pagar a comissão devida pela venda do imóvel comum; e a certidão do acordo homologado por sentença, relativa ao uso da casa de morada de família.
Para cabal esclarecimento da questão de facto em análise, entendeu-se ainda ser necessária a audição de toda a prova gravada, no uso dos poderes/deveres de investigação oficiosa a que alude o artigo 640.º, número 2 b) do Código de Processo Civil. Após a análise de todos os referidos meios de prova concluiu-se que a necessária ampliação da matéria de facto pode ser feita por este Tribunal sem necessidade de anulação da decisão proferida em primeira instância, em cumprimento do disposto no artigo 662.º, número 2 c) do Código de Processo Civil.
Ora, como afirmado na motivação da decisão de facto pelo Tribunal
a quo
verificou-se que a generalidade das testemunhas apenas sabia o que lhe fora sendo transmitido por autora ou réu, revelando-se assim de muito reduzida utilidade a prova testemunhal.
Assim aconteceu nomeadamente com a testemunha DD, indicada pela autora, que apenas sabia o que ela lhe transmitiu, afirmando que a mesma se foi queixando da falta de comparticipação do réu no pagamento dos encargos com a casa ao longo dos anos que se seguiram à separação do casal.
Também a testemunha FF, arrolada pelo réu, disse desconhecer qual o acordo dos ex-cônjuges sobre o pagamento das prestações do mútuo, mas afirmou que o réu lhe disse que devia ser a autora a pagá-las, sem, contudo, confirmar que tal tinha sido objeto de discussão entre os ex-cônjuges nem indicar em que momento o réu lhe transmitiu o que descreveu.
A testemunha GG, indicada pelo réu, apenas afirmou quanto a esta concreta questão de facto que “
a perceção que o BB tinha”
era a de que seria a autora a pagar os mútuos e demais dívidas relacionadas com o imóvel, pois “
ela vivia na casa sem pagar renda.”
. Afirmou, em sustentação desta opinião do réu, de que a testemunha revelou comungar, que era ele quem pagava a educação dos filhos comuns e que o réu entendia que a autora “
tinha que pagar uma renda que nunca pagou
”. Esta versão diverge da apresentada pelo réu na contestação, na medida em que o réu não alega, em sede de defesa, que acordou com a autora o pagamento de qualquer renda ou outra contrapartida pelo uso do imóvel, mas apenas que seria injusto e até abusivo que aquela o usasse em exclusivo se não pagasse as dívidas comuns que ora reclama, dívidas essas que o réu sempre esteve convicto que não teria de pagar.
Já os depoimentos dos filhos do ex-casal comuns divergiram entre si apenas em certa medida.
CC afirmou convictamente lembrar-se de, quando tinha quinze anos, o pai ter ido a casa da mãe, tendo ambos discutido sobre a questão dos referidos pagamentos, pois a mãe compareceu perante si e o seu irmão, depois dessa conversa, a chorar e a mostrar um documento que o pai queria que ela assinasse (que lhe foi exibido e cujos dizeres correspondiam ao que recordava), queixando-se aos filhos do facto de o réu querer exigir-lhe que se responsabilizasse em exclusivo pelo pagamento dessas dívidas.
A testemunha EE, irmão mais velho da anterior, contudo, não relatou tal episódio, afirmando que apenas quando teve acesso aos documentos que instruem o processo viu o documento em causa (junto pela autora na réplica sob o número 1). Admitiu, contudo, que havia discussões entre os pais e queixas da mãe relativamente a questões financeiras, bem como disse ter assistido aos avós maternos a prestarem auxílio financeiro à sua mãe. Disse que as dificuldades da mãe decorriam de ter de suportar o “pagamento da casa” e o sustento dos filhos. Afirmou que a mãe sempre se queixou, ao longo dos anos, do facto de o pai não contribuir para o pagamento da casa (referindo-se aos empréstimos) e do IMI, assunto que a testemunha nunca abordou com o pai, mas que admitiu que a mãe pudesse ter abordado, dadas as várias queixas que fez ao longo dos anos. Admitiu que o pai ia por vezes à casa de morada de família, de que tinha a chave, quer para estar com eles quer para conversar com a mãe sobre questões financeiras.
O documento número 1 junto com a réplica não está assinado e foi elaborado em computador, pelo que não é possível aferir se foi, de facto produzido pelo réu. Da afirmação da testemunha CC, filho comum do casal de que se lembrava desse documento e da queixa da mãe sobre o que o mesmo significava após uma conversa com o pai sobre o mesmo, resultou a única prova testemunhal direta sobre a sua elaboração e entrega pelo réu à autora, o que, não sendo bastante para que se afirme a versão da autora sobre tal facto instrumental, coloca pelo menos em dúvida a afirmação do réu de que a mesma nunca lhe pediu tal quantia e de que estava convicto de que nunca o faria. Se assim fosse, não faria sentido a exigência em causa, que a testemunha afirmou que ocorreu, tendo o seu depoimento sido bastante seguro.
A testemunha HH, irmã do réu, quando perguntada sob a questão do pagamento das dívidas associadas ao imóvel, respondeu de imediato que o irmão tinha a responsabilidade do pagamento da educação dos filhos, nos colégios e demais atividades sendo “
o resto, da AA
”. Revelou, contudo, desconhecer que os seus pais, avós paternos dos menores, tivessem contribuído no pagamento das despesas educativas dos sobrinhos, como ficou assente na alínea 31 dos factos provados. Depois, de forma muito hesitante, afirmou que o irmão lhe transmitiu que foi esse o acordo que celebrou com a autora, o que o réu sequer alegou na ação. De facto, ao contrário do que tal testemunha disse que lhe tinha sido transmitido pelo réu, este nunca afirmou ter celebrado com a autora um acordo, ainda que verbal, nesse sentido, mas apenas que ficou com a convicção de que a mesma pagaria as dívidas associadas ao imóvel, porque nunca, a partir de dezembro de 2011, lhe pediu o seu pagamento e porque tal seria, na sua ótica, injusto e abusivo. A testemunha HH disse, mais adiante, que apenas soube que a autora pediu o pagamento dessas dívidas ao réu “aquando da venda”. O que contraria a alegação do réu
[4]
de que o facto de essa exigência não ter sido feita no momento da compra e venda é indício de que a autora sabia que não era credora de qualquer quantia. A referida testemunha, irmã do réu, disse ainda desconhecer a razão pela qual esse alegado acordo entre ele e a sua ex-cunhada - pelo qual esta ficaria obrigada a pagar as dívidas relativas ao IMI e mútuos bancários -, não ficou expresso no momento da homologação do divórcio.
O facto de tal divórcio ter sido homologado judicialmente, estando ambas as partes representadas por advogado, sem que tenha sido fixada qualquer contrapartida a pagar pelo uso do imóvel - diretamente ao réu ou por via do pagamento pela autora das prestações devidas para pagamento de dívidas comuns -, também indicia que não terá, de facto, havido qualquer acordo da partes nesse sentido, acordo esse que, repete-se, o réu sequer alegou.
Quanto à argumentação desenvolvida pelo réu a partir da prova de que a autora se comprometeu sozinha a pagar a comissão imobiliária, cumpre afirmar que desse compromisso (que a autora alegou ter sido obtido sob coação, mas não provou), não resulta necessariamente que a mesma tivesse, com ele, a pretensão de renunciar a qualquer crédito que tivesse sobre o autor ou que nunca antes lhe tivesse exigido o seu pagamento, pois o pagamento da comissão é uma obrigação dos vendedores para com o mediador imobiliário e o próprio réu alegou que foi a autora quem insistiu na venda, com cujo valor o réu não concordava, tornando plausível que a aceitação dessa obrigação pela autora tivesse como causa a vontade de vender o imóvel. Recorde-se que o próprio réu alegou na contestação que essa era a vontade do casal desde a separação, em finais de 2011, e que não concordava com o preço de venda que acabou por aceitar, o que a prova testemunhal por ele arrolada confirmou, asseverando que o réu preferiria não ter vendido o imóvel pelo preço pelo qual acabou por ser alienado.
Do conjunto da prova testemunhal não resultou afirmado por qualquer testemunha que a autora nunca antes exigira ao réu tal pagamento. Do depoimento da irmã do réu, HH, resultou mesmo que a sua ex-cunhada fez essa exigência “
aquando da venda
” e do depoimento do filho comum das partes, CC, que o seu pai tentou, em 2017, obter da sua mãe uma declaração de que se obrigava a pagar as quantias que ora peticiona. Decorre, ainda, de toda a prova produzida que a questão da venda da casa e do preço de venda nunca foi consensual entre as partes, ambas reclamando que pretendiam tê-la vendido antes tendo sido a outra parte que a tanto se opôs. Pelo que a não exigência pela autora do pagamento de qualquer quantia no momento da venda, se é que assim aconteceu, poderia ter resultado apenas da necessidade que ambos sentiam, segundo as testemunhas, de vender a casa o quanto antes, sem levantar mais obstáculos a tal venda. A irmã do réu admitiu, aliás, com segurança, que o mesmo estava muito descontente com o preço da venda, assim reforçando a ideia de que a venda acabou por se concretizar por pressão da autora, o que explicaria o facto de a mesma não ter, no ato de venda, exigido de imediato o pagamento de metade das dívidas comuns que foi suportando. O próprio réu, como já se disse, alegou no artigo 58.º da contestação que a venda aconteceu por insistência da autora.
Note-se que da escritura de compra e venda junta como documento número 3 da petição inicial resulta que quer no momento do recebimento do sinal quer da celebração da compra e venda os valores daquele e do remanescente do preço foram pagos pelos compradores a ambos os vendedores por via da emissão de quatro cheques a favor deles (dois de 25 000 € cada no momento da celebração do contrato promessa e dois de 98 4733, 33 € cada no momento da escritura) e ainda de dois outros destinados a saldar os débitos bancários e emitidos a favor dos respetivos credores. Não ocorreu, pois, como alegou o réu no artigo 59º da contestação, uma divisão do remanescente do preço entre ambos (depois de pago o passivo comum), mas sim o pagamento, em simultâneo, de metade do preço pelo comprador a ambos os vendedores.
Em face destes meios de prova não temos, assim, fundamento bastante para que se julgue provado o facto alegado pelo réu em sede de contestação: que a autora nunca, desde dezembro de 2011, lhe pediu o pagamento de qualquer das quantias que peticiona nesta ação.
Assim, e uma vez que, como acima se concluiu, o facto dado por não provado sob a alínea e) não tem qualquer utilidade para a decisão da causa será o mesmo eliminado.
Será, contudo, aditado aos factos não provados, sob a mesma alínea, nos termos do artigo 662.º, número 2 c) do Código de Processo Civil, o facto alegado pelo réu no artigo 64.º da contestação, que lhe cabia provar, mas não logrou:
e) Entre dezembro de 2011 e janeiro de 2021, a autora nunca exigiu o valor correspondente a metade das prestações pagas ao banco, seguros, rampas ou IMI e nunca, sequer, verbalizou a hipótese de tal vir a acontecer.
*
b) Quanto à alegação, resultante da petição inicial e da réplica, de que foi já vendido o imóvel comum, de que foram amortizados os débitos bancários remanescentes e dividido entre ambos preço da venda, resulta do teor da alínea 6 dos factos provados, sendo manifesto que houve lapso da recorrente ao manifestar a pretensão do seu aditamento.
Pelo que também nessa parte não se conhecerá da pretendida impugnação da matéria de facto.
*
c) Pretende finalmente a recorrente que se adite aos factos provados um outro, que alegou na réplica: que o réu quis, em 1 de março de 2017, que a autora assinasse declaração assumindo se encontrava a pagar e continuaria a suportar o pagamento dos mútuos bancários contraídos para compra e obras na casa comum, como “contrapartida” das despesas que o réu suportava com os filhos comuns (cfr. artigo 24.º da réplica).
Tal facto, contudo, e uma vez mais, decorre da impugnação motivada da exceção de abuso do direito. A autora alegou-o com vista a impugnar a afirmação, pelo réu, de que nunca, antes da venda do imóvel, lhe pedira o pagamento das quantias que ora peticiona, sendo a alegada exigência do réu de que a autora assinasse tal declaração meramente instrumental à não prova do que o réu alegou.
Veja-se o teor do artigo 25.º da contestação, em que a própria autora explica a razão de ser da alegação do facto que agora quer ver provado: “
A pretensão de que a aludida declaração fosse assinada pela A., cerca de 3 anos depois de decretado o divórcio e mais de 4 depois de reguladas as responsabilidades parentais, é o desmentido mais completo de que o R. tenha confiado que a exigência do pagamento das verbas, aqui em discussão, nunca seria efectuada”.
Ora, como já se disse e repete, da impugnação desse facto, alegado pelo réu, não resulta para a autora o ónus de provar o contrário do que aquele alegou, sendo, como já acima se afirmou, desnecessária à procedência da sua pretensão a alegação e prova de que foi pedindo ao réu o pagamento das quantias em causa.
Cabe, assim ao réu provar os factos que alegou em sustentação da exceção de abuso do direito que invocou (artigo 342.º, número 2 do Código Civil).
Acresce que também a natureza instrumental do facto que a autora quer ver aditado leva a que não tenha que constar dos factos provados ou não provados.
A matéria de facto que deve constar da sentença é aquela que, tendo sido alegada pelas partes, nos termos do previsto nos artigos 5.º, número 1 e 552.º, número 1 d) do Código de Processo Civil, seja relevante para a solução jurídica das pretensões das partes.
Quer o artigo 5.º, número 1, quer a alínea d) do número 1 do artigo 552.º referem a obrigação das partes de alegarem os factos essenciais que constituem a causa de pedir ou o suporte para as exceções que invocam.
O número 2 do referido artigo 5.º, todavia, obriga a que se considerem ainda outros factos, não articulados pelas partes sendo eles:
“a)
Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
”
Afirma Teixeira de Sousa
[5]
que “
os factos essenciais são aqueles que permitem individualizar a situação jurídica alegada na ação ou na exceção; - os factos complementares são aqueles que são indispensáveis à procedência dessa ação ou exceção, mas não integram o núcleo essencial da situação jurídica alegada pela parte
”. Quanto aos primeiros afirma o referido Autor que “(…)
são necessários à identificação da situação jurídica invocada pela parte e, por isso, relevam, desde logo, na viabilidade da ação ou da exceção: se os factos alegados pela parte não forem suficientes para perceber qual a situação que ela faz valer em juízo (…), existe um vício que afeta a viabilidade da ação ou da exceção. É por isso que, quando respeitante ao autor, a falta de alegação dos factos essenciais se traduz na ineptidão da petição inicial por inexistência de causa de pedir (…) e que a ausência de um facto complementar não implica qualquer inviabilidade ou ineptidão, mas importa a improcedência da ação”.
Já “
Os factos complementares (ou concretizadores) são os factos que, não integrando a causa de pedir (porque não são necessários para individualizar o direito ou o interesse alegado pela parte), pertencem ao Tatbestand da regra que atribui esse direito ou interesse ou são circunstanciais em relação ao facto constitutivo desse direito ou interesse.”
Finalmente, quanto aos factos instrumentais o mesmo Autor entende que se destinam
“(…) a ser utilizados numa função probatória dos factos essenciais ou complementares(…)”
e
“(…) são utilizados para realizar a prova indiciária dos factos principais, isto é, esses factos são aqueles de cuja prova se pode inferir a demonstração dos correspondentes factos principais.”
No momento da sentença o legislador obriga a que se discriminem os factos que se julgam provados e não provados, como resulta do disposto nos números 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil
[6]
. E, na motivação da sua convicção, deve o julgador indicar “as
ilações tiradas dos factos instrumentais
”, como resulta do número 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil.
Assim, a seleção dos factos provados e não provados a constar da sentença deve conter os que sejam essenciais às pretensões das partes, sendo os factos instrumentais (que tenham sido alegados, resultem da instrução ou tenham sido oficiosamente averiguados) úteis para a prova dos primeiros e não em si mesmos (salvo se deles resultar a aplicabilidade de presunção legal).
O que são os factos essenciais a cada pedido/exceção é questão que sempre tem de ser resolvida no confronto das pretensões das partes e o direito substantivo que pode suportar as mesmas e já acima se fez quanto à questão da alegada não interpelação do réu paga qualquer pagamento das quantias peticionadas nos autos pela autora enquanto a mesma se encontrava a suportá-las em exclusivo.
Por tudo o exposto, também o facto alegado no artigo 24.º da réplica não tem que ter assento no elenco dos factos provados ou não provados.
*
Pelo que fica prejudicado o conhecimento da questão número 2 acima enunciada e relativa à impugnação da matéria de facto, sem prejuízo da ampliação feita e resultante no aditamento de um novo facto não provado, sob a alínea e) que fora eliminada, como acima decidido.
*
3 - A recorrente sustenta a sua pretensão de revogação parcial da sentença independentemente da procedência da impugnação da matéria de facto, defendendo a existência de fundamento para a condenação do réu no pagamento de metade das dívidas comuns que se provou que a mesma pagou desde a separação de facto do casal e de juros sobre tais montantes.
Cumpre, assim, apreciar se tem razão.
Está em causa o pagamento de várias dívidas comuns, a saber:
i. As prestações de dois mútuos bancários contraídos por ambas as partes para compra e para realização de obras no imóvel adquirido na constância do casamento;
ii. As prestações dos seguros de vida e multirriscos associados a tais mútuos;
iii. O IMI pago à Autoridade Tributária e relativo a esse mesmo imóvel; e
iv. A taxa municipal devida por rampa fixa existente no acesso do referido imóvel à via.
Como foi decidido em sede de saneamento dos autos, tratam-se de dívidas comuns do casal, tendo-se ali concluído que o seu pagamento podia ser peticionado em sede de processo comum.
A natureza comum dessas dívidas, que o réu não põe em causa, resulta do disposto nos artigos 1691.º, número 1 alínea a), 1694.º, 1724.º b) e 1730.º do Código Civil de que decorre que autora e réu são devedores, em igual medida, das dívidas contraídas por ambos na vigência do casamento (como as provadas sob as alíneas 9 e 10 e relativas aos mútuos bancários para compra da casa e realização de obras e os relativos aos seguros multirriscos e de vida associados aos referidos mútuos, seguros que ambos contrataram), bem como daquelas que oneram certos e determinados bens comuns, no caso um imóvel adquirido por ambos na constância do casamento, como são o IMI e a taxa municipal por rampa fixa.
Estando em causa o pagamento de dívidas comuns e tendo as mesmas vindo a ser pagas em exclusivo pela autora desde as datas que ficaram a constar nas alíneas 16, 20 e 26 dos factos provados, cumpre apreciar se a mesma tem direito a reclamar do seu codevedor o pagamento de metade dos valores cujo pagamento suportou.
A própria natureza comum dessas dívidas, inculca a resposta positiva que a recorrente pretende. O direito da ré a ser compensada pelo pagamento dessas dívidas comuns mesmo durante o casamento decorre do disposto no artigo 1697.º do Código Civil tornando-se tais créditos exigíveis no momento da partilha. Esta, segundo resulta dos autos, foi feita verbalmente quanto a bens móveis e resultou, quanto ao único bem imóvel, da receção por ambos de metade do preço da venda, e do pagamento pelo produto dessa venda do remanescente das dívidas comuns.
Assim, ficou partilhado o ativo e saldado o passivo comum por via da compra e venda do imóvel, tendo, nesse momento, em que o património comum ficou partilhado, passado a ser exigível o crédito de compensação da autora pelas dívidas comuns pagas durante o casamento. Pelo que não colhe a alegação do réu de que pelo menos os montantes pagos pela autora até ao divórcio não são devidos. Quanto aos pagamentos posteriores ao divórcio, mantendo-se o património por partilhar, também deviam as dívidas comuns ter sido pagas por via desse património comum. Tendo a autora suportado as mesmas em exclusivo, é manifesto que tem direito a pedir ao codevedor o pagamento de metade das mesmas. Segundo Lopes Cardoso,
[7]
“
Provado que um empréstimo bancário foi contraído tanto pelo autor como pela ré, enquanto casados, sendo portanto uma dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges (…) e, não obstante, foi apenas o Autor que, desde a data do divórcio, suportou o pagamento da totalidade das prestações do mesmo empréstimo (…) tem de concluir-se ser o Autor titular sobre a Ré dum crédito correspondente àquilo que pagou a mais do que devia, nos temos do art. 1697º, nº 1 do CC. Em conclusão, se um cônjuge pagou dívidas com bens próprios, o outro, que necessariamente participa em metade do passivo da comunhão, terá de ter a mesma participação daquele”
.
Assim também o pagamento de dívidas comuns após o divórcio confere ao credor que as satisfez o direito de exigir ao codevedor a sua quota parte de responsabilidade pelo seu pagamento.
Sucede que o réu pretende discutir essa obrigação invocando uma série de argumentos, que se podem resumir da seguinte forma:
1- Aquando da celebração do acordo quanto ao uso da casa de morada de família necessário à homologação do divórcio por mútuo consentimento, não ficou estipulado que o mesmo teria de continuar a contribuir para o pagamento dessas referidas dívidas comuns;
2- Nesse mesmo momento o réu obrigou-se a suportar em exclusivo algumas das despesas com a educação com os filhos comuns do ex-casal que não teria assumido caso soubesse que lhe viria a ser exigido o pagamento de metade das referidas dívidas comuns;
3- A própria autora passou a pagar tais quantias sem que nunca as tivesse exigido ao réu pelo que este criou a expetativa de que nunca lhe viriam a ser exigidas, pelo que é abusivo da sua parte vir agora fazê-lo;
4- A autora usou em exclusivo a casa de morada de família pelo que, a proceder a sua pretensão sempre o réu teria direito a ser indemnizado por tal uso exclusivo, em montante a calcular em função do valor locativo do imóvel, podendo compensar esse seu crédito com o que vier a ser reconhecido à autora.
Analisemos cada um dos três primeiros argumentos, cabendo a apreciação do último no âmbito do conhecimento do pedido reconvencional, que foi deduzido subsidiariamente apenas para o caso de procedência da ação.
*
1. Quanto ao que ficou acordado em sede de divórcio por mútuo consentimento, ficou provado que o uso da casa de morada de família, ficou atribuído à “cônjuge mulher, até à venda ou partilha”, por acordo dos cônjuges, homologado por sentença.
Nada foi ali estipulado entre as partes sobre a forma de pagamento das dívidas comuns, nomeadamente que a autora teria de suportar em exclusivo os pagamentos delas ou parte delas, nem que tivesse que pagar qualquer contrapartida pelo uso da referida casa.
Ora, assim sendo, e estando tal acordo na livre disponibilidade das partes, que o celebraram perante a Mmª juíza que o homologou, não se vê qualquer fundamento para que dele possam agora retirar-se obrigações ali não assumidas. Pelo contrário.
Não se encontra, na sentença recorrida qualquer fundamento legal ou contratual para a conclusão que ali se alcança quando se afirma que “
o equilíbrio nas obrigações entre as partes implica ou que os ex-cônjuges nada possam pedir um ao outro - uma vez que a autora usufruiu exclusivamente do uso da casa de da morada, durante cerca de 9 anos, sem qualquer compensação ao réu (que a ela teria direito, mas que nunca a pediu), sendo que a autora, por seu lado, nunca pediu a este, durante
esse período, o pagamento das quantias relativas a encargos com o imóvel, e aqui peticionados)”.
Não foi explicada, neste raciocínio, que não se acompanha, a afirmação de que o réu tinha direito a uma compensação pelo uso da casa de morada de família, que nunca pediu à autora, nem com que fundamento legal podia o Tribunal aferir,
a posteriori,
do equilíbrio do acordo celebrado livremente entre os ex-cônjuges no momento do divórcio e homologado por sentença, alterando-o com efeitos retroativos.
O uso da casa de morada de família resultou de acordo que foi celebrado nos termos do artigo 994.º, número 1 f) do Código de Processo Civil e foi homologado por sentença.
Também o artigo 1775.º, número 1 d) do Código Civil exige que o acordo sobre o destino da casa de morada seja alcançado para que possa ser decretado o divórcio por mútuo consentimento na Conservatória de Registo Civil (tendo, neste caso, as decisões que sobre tal acordo incidam, o valor de sentença nos termos do artigo 1776.º, número 3 do Código Civil).
Tais acordos, livremente celebrados entre as partes, são objeto de uma decisão judicial (ou, no caso de divórcios celebrados pelo conservador de registo civil, com valor idêntico) e, portanto, não se tratam de meros negócios jurídicos celebrados entre as partes, mas de acordos que são submetidos a apreciação judicial ou equiparada. Essa apreciação pode passar, nomeadamente por um convite à sua alteração, como expressamente resulta dos artigos 999.º do Código de Processo Civil e 1775.º d) e 1776.º, número 1 do Código Civil. Cabe ao juiz ou ao conservador - conforme o divórcio seja judicial ou celebrado na Conservatória de Registo Civil -, aferir se tal acordo acautela os interesses de ambos os cônjuges ou dos filhos de ambos, podendo mesmo produzir prova para aferir da adequação desses acordos em função desses interesses a atender.
Uma vez homologados, esses acordos têm o valor de sentença e vigoram até que as partes procedam à partilha, à venda (no caso do imóvel em causa ser comum), ou a outro destino que venha a ser dado ao referido imóvel, podendo, ainda, as partes acordar em modificar tal acordo, ou qualquer delas pedir a sua alteração, como decorre do disposto nos artigos 1793.º, número 3 do Código Civil e 991.º, número 1 do Código de Processo Civil.
Essa alteração, contudo, apenas valerá para futuro e segue, quando não seja consensual, a forma de processo especial de jurisdição voluntária dependendo da alegação e prova de alteração das circunstâncias que justifique a alteração judicial do acordado ou decidido.
Enquanto não ocorrer qualquer dos factos extintivos do acordo homologado ou a sua alteração por acordo ou judicial o mesmo tem que vigorar nos exatos termos em que foi celebrado e homologado, não sendo, salvo o devido respeito, de aceitar que se venha a entender, como fez a sentença recorrida, que pode posteriormente fazer-se uma avaliação sobre a proporcionalidade, adequação ou justeza do que as duas partes acordaram livremente e foi judicialmente homologado. Não há, pois, qualquer fundamento legal – e nem a sentença o indica – para que que se venha a alterar, com efeitos retroativos, o que foi acordado e homologado por sentença, com argumentos assentes em juízos de proporcionalidade ou justiça em face de uma situação atual diversa da que foi sopesada pelas partes e pelo Tribunal no momento da celebração e homologação desses acordos.
Desde logo porque, como se disse e repete, o acordo quanto ao uso da casa de morada de família é objeto de uma avaliação judicial ou com valor equiparado em que se aferem os vários interesses em confronto, que não são só os dos cônjuges, mas também muitas vezes, como no caso, os dos filhos menores comuns. A decisão de um dos membros do casal permanecer a habitar a casa de morada de família anda muitas vezes, como foi o caso, associada à fixação da residência dos filhos menores nessa mesma casa (cfr. alínea 4 dos factos provados). A ponderação que é feita, à data do divórcio, pelas partes e pelo Juiz ou pelo Conservador, dos vários interesses em confronto, que não são só os dos cônjuges, não pode ser alterada/revogada por uma posterior reavaliação da situação posterior, senão no âmbito de um pedido de alteração dessa decisão, que, a proceder, apenas pode valer para o futuro
[8]
. E se antes não foi alterada a decisão quanto ao uso da casa de morada de família foi porque nenhum dos ex-cônjuges a pediu, como podia ter feito.
Assim, aliás, tem vindo a ser decidido maioritariamente pelos nossos tribunais superiores, nomeadamente pelo Tribunal da Relação de Coimbra em acórdãos como o proferido em 27-04-2017
[9]
em cujo sumário, com inteira aplicação ao caso dos autos, se pode ler:
“I – É legalmente admissível a fixação de uma compensação patrimonial do cônjuge privado do uso daquela que foi a casa de morada de família por força da sua atribuição ao outro cônjuge até à partilha do bem. Tal compensação deve ter lugar por razões de justiça e equidade, designadamente porque o cônjuge privado do uso desse bem pode estar sujeito, e, por isso, não pode deixar de ter em conta as circunstâncias concretas da vida dos cônjuges.
II - Tal compensação não poderá deixar de ser determinada pelo juiz como consequência da decisão provisória de atribuição do uso da casa de morada de família ou estipulada pelo acordo das partes quando, ao porem termo ao processo de divórcio convertendo-o em divórcio por mútuo consentimento, acordam, acordo sujeito a homologação judicial, na atribuição da casa de morada de família a um dos cônjuges até à partilha desse bem.
III - Nada sendo decidido pelo juiz ou acordado pelas partes, já não será possível, em ação judicial posterior, proceder a tal fixação, porquanto tal implicaria, na verdade, uma alteração substancial do teor da decisão judicial ou do acordo das partes que contempla uma utilização do bem incondicionada, passando-se a estipular, como acima se disse, uma utilização condicionada ao pagamento de quantia pecuniária.
IV - Não constando do acordo outorgado qualquer pagamento pela atribuição do uso da habitação da casa de morada de família ao Réu, qualquer declaratário normal – que de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 236º do C. Civil corresponde ao "bonus pater familias" equilibrado e de bom senso, pessoa de qualidades médias de instrução, inteligência e diligência normais –, entenderá que foi porque as partes o não quiseram convencionar pois se o quisessem o contrário tê-lo-iam deixado expresso, nada permitindo que se equacione coisa diversa.”.
Ainda o Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão de 28 de março de 2017
[10]
, declarou que não se provando que tenha existido qualquer acordo das partes no que toca à fixação de uma compensação e nem tendo ela também sido fixada por qualquer decisão judicial, a obrigação de a pagar apenas poderia, eventualmente, radicar em qualquer enriquecimento injustificado de uma das partes à custa do património comum, mas que, atendendo aos interesses em jogo e ao regime e finalidade da casa de morada de família, não se pode concluir que a utilização da casa por um dos cônjuges corresponda necessariamente a um enriquecimento que deva ser eliminado por não ter causa justificativa, designadamente quando - como ali acontecia e no caso em apreço por igual - a casa também é utilizada em benefício dos filhos do casal, tendo ambos os pais obrigação de providenciar e custear a sua habitação. Em tal acórdão considerou-se ainda que tal enriquecimento, a existir, não corresponde necessariamente ao valor locativo do imóvel, pois, caso tivesse sido proferida decisão judicial a fixar regime provisório quanto ao uso da casa de morada de família, tal compensação poderia ou não ter sido fixada em função das concretas circunstâncias do caso.
No mesmo sentido, decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães em acórdão de 14-06-2018
[11]
de que se destaca o seguinte trecho do sumário: “
Não tendo ficado explicitamente estabelecido e decidido, por acordo entre os ex-cônjuges, que a atribuição da casa de morada da família a um deles dependeria de uma contrapartida pecuniária a prestar ao outro, fica excluída a possibilidade deste último vir ulteriormente, em ação declarativa comum (por via principal ou reconvencional), pedir e obter essa mesma contrapartida pecuniária, unicamente fundamentada nesse direito, que eventualmente lhe assistiria, mas que do mesmo acordo não fez constar. II- No entanto, sempre assistirá ao ex-cônjuge, que se veja posteriormente desfavorecido com tal acordo celebrado sobre o destino da casa de morada da família, alterar tal resolução tomada em processo de jurisdição voluntária, lançando mão do processo (ou incidente) de “atribuição/alteração da casa de morada da família”, com base nas disposições conjugadas dos arts. 1793º, n.º 3, do C. Civil, e 988º, n.º 1 e 990º, do C. P. Civil. III- De qualquer modo, esta alteração, com recurso aos meios processuais próprios da jurisdição voluntária, designadamente em face do disposto no art. 988º, n.º 1, do C. P. Civil, pressupõe necessariamente a alegação e demonstração de uma “alteração superveniente das circunstâncias” que estiveram na base daquele acordo.”.
Também este Tribunal, em acórdão de 06-06-2024
[12]
em que estava em causa a divisão, enquanto coisa comum, de um imóvel adquirido por um ex-casal antes do casamento entendeu que
“(f)icando provado que na altura do divórcio, as partes acordaram que «a casa de morada de família, sita (…), fica atribuída ao cônjuge marido, até à venda ou partilha» não se pode daí extrapolar que tenha existido um acordo de que todas as despesas e encargos com o empréstimo obtido para a compra desse imóvel ficavam a cargo do Réu”.
O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 13-10-2016
[13]
também afirmou que quando se atribui, “
a título provisório, a um dos cônjuges a casa de morada de família decorre que só existe direito a uma compensação pelo uso exclusivo se o juiz a tiver efetivamente atribuído na decisão proferida. Em conformidade, não existe direito à compensação pelo uso exclusivo se se consolidar a decisão provisória acerca do uso da casa de morada, estando excluída a possibilidade de o outro cônjuge vir ulteriormente em nova ação, apensada ao processo de divórcio, pretender obter compensação. No caso dos autos, a utilização atual da casa de morada de família pelo ex-cônjuge marido estriba-se na inicial decisão provisória do juiz e no conteúdo de um acordo celebrado pelos ex-cônjuges, o que possibilitou o imediato decretamento do divórcio por mútuo consentimento. Nestes termos, não estando previsto o pagamento de qualquer compensação ao ex-cônjuge mulher pela utilização exclusiva da casa de morada da família, atribuída ao ex-cônjuge marido, não existe fundamento bastante para obter o reconhecimento ulterior de tal obrigação”.
Ora, a autora não se obrigou no âmbito dos acordos celebrados com vista ao divórcio, a pagar qualquer contrapartida pelo uso da casa de morada de família, fosse por via de pagamento ao réu de uma compensação por esse uso ou por via do pagamento aos credores comuns das dívidas que já vimos serem da responsabilidade de ambos. Pelo que não colhe o argumento do réu de que tinha que ter ficado expresso no acordo de atribuição do uso da casa de morada de família que o mesmo continuava obrigado a pagar as dívidas comuns. Pelo contrário, para o desonerar desse pagamento como contrapartida desse uso pela sua ex-cônjuge, tal tinha que constar expressamente do referido acordo, homologado por sentença e insuscetível de outra interpretação para além do que do seu texto resulta expressamente.
Não cabe ao tribunal avaliar posteriormente o equilíbrio ou a justeza de um acordo celebrado entre as partes sob determinados pressupostos e homologado por sentença. De todo o modo sempre se dirá que também não se acompanha o raciocínio do Tribunal
a quo
quando refere que “
o equilíbrio nas obrigações entre as partes implica ou que os ex-cônjuges nada possam pedir um ao outro
”.
Repare-se, a este propósito, no que o réu alegou nos artigos 25º e 26º da contestação: “
Autora e réu, logo em outubro de 2011, acordaram na necessidade da venda do imóvel, tendo contatado uma empresa de mediação imobiliária para o efeito
”; e “A
vontade comum de vender o imóvel integrava-se num acordo mais global do qual fazia parte a regulamentação das responsabilidades parentais, a partilha de todos os bens comuns e a utilização da casa de morada de família até à venda do imóvel”.
Neste contexto, de vontade de venda imediata do imóvel comum que, como admite o réu, foi vendido apenas em 2021 por pressão da autora e perante a fixação da residência dos menores com a mãe não se vê porque seria mais justo que fosse esta responsabilizada pelo pagamento de todo o passivo comum sendo, depois, o ativo dividido entre ambos em igual medida.
Pelo contrário, a intenção de venda imediata do imóvel por ambos os cônjuges no momento da separação inculca que nenhum deles estivesse convicto de que a autora teria de continuar a pagar o passivo comum durante quase dez anos, como veio a suceder.
*
3. Quanto ao argumento que o réu pretende retirar do facto de se ter obrigado a suportar em exclusivo algumas das despesas com a educação com os filhos comuns do ex-casal e de que não as teria assumido caso soubesse que lhe viria a ser exigido o pagamento de metade das referidas dívidas comuns, também não pode proceder.
O mesmo sabia que a autora estava a suportar o pagamento de dívidas contraídas por ambos (já acima nos referimos à sua natureza comum e respetivo fundamento legal), o que lhe diminuía a capacidade para suportar o pagamento de outras despesas. O facto de serem também comuns as obrigações de suportar os custos com a educação dos filhos de ambos e de o respetivo pagamento ter sido assegurado em maior medida pelo réu não o desonera, contudo, do pagamento de outras dívidas comuns.
O réu não tem direito de ver compensado o seu débito para com a autora pelo facto de ter assumido o pagamento de uma prestação de alimentos superior a 50% do total despendido a esse título. Desde logo e antes de mais tal obrigação, decorrente do disposto nos artigos 1874.º, 1905.º, 2003.º, números 1 e 2, é insuscetível de compensação, nos termos do artigo 2008.º, número 2, todos do Código Civil.
Não há, além disso, qualquer sinalagma ou correspetividade que se possa estabelecer entre as prestações devidas a título de alimentos aos filhos comuns e as devidas aos bancos mutuantes, à Autoridade Tributária, ou ao Município do Porto.
O argumento do réu de que se soubesse que lhe viria a ser pedido o pagamento de metade das dívidas comuns suportadas pela autora não teria assumido tal obrigação de alimentos não colhe como fundamento para a sua absolvição. O mesmo não alegou ter feito tal acordo com a autora nesse pressuposto, sequer alegando, aliás, que a mesma estivesse a par desse seu entendimento, de que nada tinha que pagar das dívidas comuns enquanto a mesma habitasse o imóvel comum. O acordo alcançado não exprime, assim, o pressuposto de que parte o réu e também não se sabe se a autora, se antevisse que o réu entendia que não tinha que participar no pagamento das dívidas comuns (apesar de ter participado em 50% no recebimento do preço da venda do imóvel), iria pretender o uso da casa de morada de família ou se, pelo contrário, nesse cenário, a autora preferiria que aquele uso fosse atribuída ao réu.
O que se sabe sobre a vontade das partes que levou ao acordo foi o que as partes declararam perante a Mmª Juíza que homologou o divórcio: que à autora ficou atribuído o uso da casa de morada de família sem que ali fosse fixada qualquer contrapartida, nomeadamente a de que o réu suportaria em maior medida as despesas com a educação dos filhos comuns. Também não é verdade, aliás, que tais foram suportadas só pelo réu, pois, como ficou provado na alínea 31 dos factos provados, também os seus pais, avós paternos dos menores suportaram parte dessas despesas.
*
3- Quanto à alegada exceção do abuso do direito, o réu sustenta que a dedução do pedido de condenação no pagamento de metade das dívidas comuns suportadas pela autora constitui “
venire contra factum proprium
”.
Como já acima adiantamos, em face dos argumentos usados pelo réu, a modalidade de abuso do direito que aqui poderia estar em causa seria, contudo, a “
supressio”.
Prevê o artigo 334º do Código Civil, que é “
ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito
.”
A identificação das modalidades em que o abuso do direito pode revelar-se tem resultado de estudos doutrinais
[14]
, acompanhados pela jurisprudência que tem vindo a seguir as denominações e critérios de distinção sugeridos pela doutrina.
Segundo Menezes Cordeiro, o abuso do direito na modalidade da
supressio
tem os seguintes pressupostos ou requisitos:
- o não exercício prolongado de um direito;
- a confiança gerada na contraparte por causa desse não exercício;
- a justificação para essa confiança;
- o investimento de confiança pela contraparte; e
- a imputação dessa confiança àquele que não exerce o direito.
Assim, a simples inação do titular de um direito é insuficiente para concluir pelo preenchimento dessa modalidade de abuso do direito.
Já a modalidade denominada de “
venire contra factum proprium”,
traduz-se da seguinte forma: a ninguém é permitido agir contra o seu próprio ato.
Por via desta modalidade “
o agente fica adstrito a não contradizer o que primeiro fez ou disse”
[15]
.
Ora o réu não alegou que a autora alguma vez tenha assumido perante si o pagamento das dívidas comuns, mas apenas que as foi pagando aos credores comuns sem nunca ter exigido ao codevedor, o pagamento de metade, o que agora, contraditoriamente à sua anterior conduta, veio fazer. Pelo que a modalidade de abuso do direito que invoca é a que a doutrina vem qualificando como
“supressio”.
Paulo Mota Pinto
[16]
alerta para o tratamento, em várias decisões jurisprudenciais, como constituindo abusivo “
venire contra factum proprium
” de factos que consubstanciam, afinal, declarações negociais tácitas, nomeadamente de renúncia.
No caso em apreço o réu parece, de certa forma, também pretender retirar de alguns comportamentos da autora a conclusão de que a mesma renunciou tacitamente ao direito que ora exerce. Fá-lo ao alegar que a mesma aceitou pagar a comissão de venda do imóvel e ao afirmar que a mesma aceitou dividir com o réu o remanescente do preço de venda do imóvel sem que, nesse momento, tenha exigido o pagamento do que ora peticiona. Todavia, desses dois factos não resulta que a autora tivesse renunciado a qualquer direito de crédito sobre o réu. Desde logo o facto de a mesma se ter responsabilizado pelo pagamento de uma comissão a um terceiro não significa que, para além desse pagamento (que não tinha que ser assumido necessariamente por ambos no âmbito do contrato de mediação), tivesse renunciado a qualquer crédito sobre o réu. Por outro lado, e como já acima salientado, o que ocorreu quanto à divisão do preço de venda não foi o que alegou o réu: que depois de pagas as dívidas comuns ambos dividiram o remanescente do preço. O que sucedeu e resulta da escritura de compra e venda, foi que o preço foi pago pelo comprador a ambos os vendedores, em igual medida, mediante a entrega de quatro cheques (dois para pagamento do sinal e os demais relativos ao remanescente do preço de venda), dois a cada um dos credores desse preço. Não houve, assim, da parte da autora, a entrega de qualquer quantia ao réu depois da venda ou a divisão entre eles do preço, o que poderia indiciar que a mesma entendia que o réu não tinha que dividir com ela também, o valor das dívidas comuns. Ambos receberam do comprador, por razões que não foram alegadas, metade do preço da venda, pelo que com esse recebimento a autora não manifestou qualquer assunção tácita de que o réu nada lhe devia.
Por outro lado, alega o réu que a autora passou a proceder ao pagamento das dívidas aos bancos mutuantes através de uma conta sua, a partir de março de 2012. Do que parece querer fazer decorrer que tal comportamento inculca que a mesma assumiu tal pagamento, comportamento que contrariaria por via desta ação. Ora o facto de a satisfação das dívidas comuns estar a ser feito através de conta da autora só revela que a mesma as suportou com dinheiro seu, e não comum, como se presume que seria o depositado em conta conjunta. Mesmo quando enquanto tal pagamento foi feito a partir de conta conjunta, ficou provado que o mesmo foi apenas suportado pela autora. Daí decorre apenas que a autora satisfez os credores comuns com dinheiro próprio, mas já não que tenha renunciado a pedir ao réu o pagamento da parte que cabia ao mesmo suportar durante o casamento (cfr. artigo 1697.º do Código Civil) ou depois dele, dada a natureza comum das dívidas em apreço.
Finalmente, o réu insiste sobretudo na confiança que lhe gerou o facto de a autora nunca antes lhe ter exigido o pagamento dessas quantias. Ora, quanto a esta alegação, falhou a prova de que tal exigência nunca tenha sido feita ao réu, pelo que nunca poderia proceder a exceção do abuso do direito na modalidade de “
supressio
”. Sempre se dirá, contudo e ainda, que o réu também não logrou provar que tenha aceitado pagar despesas com a educação dos seus filhos (que se provou mesmo que não suportou sozinho pois também os seus pais as pagaram) porque estava convicto de que a ré suportaria o pagamento de dívidas comuns (sendo esse o requisito do investimento de confiança exigido nesta modalidade de abuso do direito). O que o mesmo alegou quanto à intenção e acordo do casal, logo após a separação - que seria de imediato vendido o imóvel comum - é bastante para que se conclua que a autora não tinha razão para esperar que teria de vir a pagar as dívidas comuns durante cerca de dez anos.
O facto de se tratarem de obrigações comuns e de estarem a ser pagas por um dos devedores aos credores – e note-se que o seu não pagamento conduziria à execução hipotecária do imóvel ou a execuções fiscais por incumprimento de obrigações tributárias -, não desonera o codevedor da sua responsabilidade perante aquele que satisfez os débitos, pois nos termos do artigo 1695.º do Código Civil pelas dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges respondem os bens comuns do casal e, como dispõe o artigo 1697.º número 1 do mesmo preceito, “(
q)uando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal”.
No caso ambas as partes admitem que não havia outros bens a partilhar além do imóvel comum, tendo tal partilha, assim, sido efetuada aquando da venda do mesmo e mediante o pagamento do respetivo preço. Quanto ao passivo, contudo, apenas foi solvido por via do património comum o que ainda existia à data da venda, pretendendo a autora por via desta ação que o réu lhe a compense pelo pagamento do passivo comum que a mesma suportou além do que lhe cabia.
Note-se que o pagamento desse passivo resultou uma diminuição significativa da dívida comum aos bancos mutuantes, o que permitiu ao réu, aquando da venda, obter mais do que receberia se tivesse sido vendido o imóvel no momento da separação, como o próprio diz que ambos pretendiam, mas acabou por demorar cerca de dez anos a concretizar-se. E nenhuma das partes pode imputar à outra a demora nessa venda já que se um deles se opusesse, sempre o outro podia, a qualquer momento, fazer cessar a comunhão pedindo a partilha. Pelo que se antes não ocorreu a venda ou a partilha, tal deve-se à omissão de ambos e não apenas da autora.
O abuso do direito, enquanto exceção perentória, impeditiva do exercício de um direito, deve ser usado com a parcimónia que a redação do artigo 334º do Código Civil exige. Ali se estipula que para que se considere abusivo o exercício de um direito o mesmo deve exceder “
manifestamente”
os limites
“impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito”
. Não é, assim, qualquer comportamento do credor que se revele desproporcional ou excessivo em face dos interesses em confronto que justifica o recurso a tal norma, de caráter excecional. Têm que ser manifestos essa desproporção ou esse excesso.
No acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-06-2024 referido na nota número 9, também se salientou - a propósito da alegação pela ali autora de que era abusiva a exigência, pelo réu, de que a mesma pagasse metade das despesas que o mesmo suportou com tal imóvel comum, nomeadamente as prestações dos empréstimos bancários por via dos quais foi pago o seu preço -, que não se verifica, neste caso, qualquer abuso do direito e, ainda, que o pagamento dessas prestações apenas pelo réu e a posterior divisão do preço da venda por ambos é que viria a constituir injusto locupletamento da autora que, como comproprietária (no caso o imóvel tinha sido adquirido por ambos antes do casamento), tinha de participar no pagamento de todos os encargos do bem comum, na proporção de metade. Ali se pode ler, com inteira aplicação ao caso em análise: “
De acordo com a doutrina, o abuso de direito pode assumir as vertentes de venire contra factum proprium ─ a postura de quem adota um comportamento que entra em contradição com outra conduta anteriormente assumida ─, a de suppressio ─ o comportamento de quem não exerce o seu direito durante um tal lapso de tempo, que cria na contraparte a (legítima) expectativa de que ele não mais será exercido ─, a de tu quoque ─ considerando-se que a pessoa que violou determinada norma jurídica não possa depois exercer o direito tutelado por ela norma nem fazer-se valer da situação jurídica criada com essa violação ─, e a de desequilíbrio ─ visando-se acautelar que o benefício colhido por quem exerce o direito, não comporte um sacrifício desmesurado para o obrigado (grave desproporção), ─ todas elas manifestações do princípio da responsabilidade pela confiança.
A Recorrente invocou a vertente de venire contra factum proprium, que nos parece não poder manifestamente ser acolhida, na medida em que o uso exclusivo por parte do Réu resultou de acordo expresso por parte da Autora e nada se provou sobre ele se ter comprometido a suportar sozinho os encargos e as despesas. Donde, inexistir contradição com outra conduta anteriormente assumida.
Também manifesta a inexistência de tu quoque, pois que nenhuma norma se vê violada pelo Réu.
(…) Sucede que, como tem decidido a jurisprudência, o simples decurso do tempo não basta para que se considere verificada a suppressio, sendo também necessária «a verificação de indícios objetivos de que esse direito não irá ser exercido. Indícios objetivos esses que geram na contraparte (beneficiário do não exercício) a confiança na “inação do agente”.
Aliás, se assim não fosse, deixaria de ser necessário o instituto da prescrição, que se basta, essa sim, com o simples decurso de certos períodos de tempo.
Acresce que no caso ficou provado que o Réu vive na casa por acordo no processo de divórcio, tendo ficado acordado que isso aconteceria até à venda ou partilha da fração. Nessa medida, é fácil prefigurar a possibilidade que nessa altura fariam o “acerto de contas”.
Mas ainda que assim não fosse, também poderia imputar-se à Autora a suppressio, dado que esperou idêntico lapso de tempo para exercer o seu direito à divisão de coisa comum.
Por fim, a vertente do desequilíbrio, visando-se acautelar que o benefício colhido por quem exerce o direito, não comporte um sacrifício desmesurado para o obrigado (grave desproporção). Aqui releva também o sentimento de justiça a que alude a Recorrente.
E, neste caso, estamos em crer que só a possível ignorância da lei pode justificar que a Recorrente se sinta injustiçada com a condenação, dado que a solução contrária é que originaria grave desequilíbrio, como passaremos a tentar demonstrar.
Já o dissemos. Decorre do art.º 1405º nº 1 do CC que cada comproprietário participa nas vantagens e encargos da coisa.
Significa isso que a Autora, sendo proprietária de 50% da fração autónoma tem as vantagens decorrentes desse direito de propriedade, designadamente usar, fruir e vender. E, numa hipótese de venda, receberá 50% do respetivo preço.
(…) Donde se vê que se a Autora não tivesse de comparticipar agora no valor daquilo que foi pago pelo Réu, tudo se passaria como se ambos tivessem contribuído em igual medida no preço da aquisição.
Ou seja, seria a Autora quem ficaria enriquecida, pois iria receber um valor pelo preço atual da fração no qual não comparticipou.
Donde terá de se concluir pela inexistência de abuso de direito por parte do Réu, pois nenhum benefício indevido está a exigir da Autora. Ao contrário, ao não pagar agora a metade das prestações e demais encargos pagos pelo Réu, seria a Autora a obrigar o Réu a um sacrifício e uma grave desproporção relativamente àquilo que vai receber com a adjudicação ou venda da fração
.”
O raciocínio assim expresso tem pleno cabimento no caso dos autos, devendo concluir-se que não se divisa no comportamento da autora, qualquer excesso manifesto no exercício do direito que lhe é conferido pelo artigo 1697.º número 1 do Código Civil. Em conclusão, não resulta dos factos provados que o exercício do direito da autora ultrapasse os limites
“impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito”,
já que a mesma apenas pretende que lhe seja paga pelo réu a parte do passivo comum que a mesma satisfez com dinheiro próprio, sendo certo que as partes nunca acordaram entre si que a mesma tinha que o fazer como contrapartida do uso da casa de morada de família que lhe foi atribuído sem qualquer condição.
Tendo sido decidido no despacho saneador, com trânsito em julgado, que a mesma podia exercer tal direito por via do processo comum (e não apenas de inventário que já se viu que não irá ser proposto já que nada mais tinham as partes que partilhar para além do passivo comum já satisfeito aos credores e do imóvel cujo preço de venda já ambos receberam), nada obsta à procedência da ação.
Assim será devido à autora o pagamento de 50% de todas as dívidas comuns que se prove que pagou aos respetivos credores, assim procedendo o recurso.
*
Quanto ao montante da condenação, uma vez que o réu impugna a matéria de facto quanto aos valores pagos pela autora e dados por provados, apenas após conhecimento do objeto da ampliação do recurso poderá ser apurado.
Quanto ao momento a partir do qual serão devidos juros de mora sobre tal quantia, contudo, podemos já afirmar que não se tendo provado qualquer interpelação da autora ao réu antes da propositura da ação e estando em causa a pretensão da mesma de exercício do direito à compensação a que alude o artigo 1697.º do Código Civil, o respetivo crédito apenas era exigível após a partilha e interpelação ao pagamento, pelo que não se pode considerar que o réu, devedor, estava em mora em momento anterior ao da sua interpelação, nos termos do disposto nos artigo 805º.º, número 2
a contrario
do Código Civil.
Assim sendo, apenas com a sua citação, foi o réu interpelado ao cumprimento, nos termos do número 1 do referido artigo, sendo esse o momento em que entrou em mora.
*
4- Em face da procedência do recurso da autora, cabe conhecer da ampliação do seu objeto pelo réu/recorrido.
O mesmo pretende a alteração para não provados dos factos dados por provados nas alíneas 26 e 27.
Sustenta tal pretensão apenas na alegação de que impugnou os documentos que a autora apresentou em suporte de tais factos e que os mesmos não foram corroborados por outros meios de prova, pelo que não podia o Tribunal tê-los considerado bastantes.
É o seguinte o teor das alíneas impugnadas pelo recorrido:
“26. Entre setembro de 2011 e a 22 e de Janeiro de 2021 a autora pagou a quantia global de 109,328, 21 € por conta da amortização dos empréstimos bancário descritos em 8 e 10;
27. Pelos prémios dos seguros de vida desde que o R. saiu de casa até à venda do imóvel a autora liquidou a quantia global de 19.915,18 €.”
Quanto aos pagamentos dados por provados na alínea 26, devidamente discriminados em documento junto pela autora, da sua autoria, sob o número 7 da petição inicial, estão todos evidenciados em extratos bancários que constituem os documentos 8 a 110 juntos com a petição inicial e são relativos ao período compreendido entre 01-12-2011 e 31-08-2020. Foram ainda juntos os documentos 111 e 112 da petição inicial que constituem declarações do banco mutuante de que o pagamento das respetivas prestações foi até ao momento da liquidação dos empréstimos em 27 de janeiro de 2021, por motivo de venda do imóvel.
Os referidos documentos foram emitidos por entidade bancária e refletem os movimentos de conta em extratos que são elaborados eletronicamente, a partir dos documentos de suporte a tais movimentos, como sejam os débitos das quantias que ali se discriminam em que são identificados sempre os mesmos números de identificação ...96) da conta em que tais montantes são creditados e que é o correspondente à “conta empréstimo” ali também identificada.
Pelo que não se vê qualquer razão para os pôr em dúvida e nem se vê que os factos neles documentados pudessem ou devessem ser provados por outros meios mais fidedignos.
O recorrido alega agora que deles também resultam estornos e movimentos relativos a empréstimos pessoais, sem os concretizar e sem identificar os documentos que os revelam. Analisados os documentos juntos os mesmos revelam o débito das quantias que a autora discriminou no documento 7 junto à petição inicial, em concretização mais detalhada dos pagamentos que disse ter feito. Não se verifica que tenha ocorrido qualquer estorno de nenhuma das referidas quantias. Pelo que se mantém o teor da alínea 26 dos factos provados.
Também os pagamentos dos prémios dos seguros contratados por ambos os ex-cônjuges foram quase todos provados por documentos juntos quer na petição inicial, pela autora (documentos 116º a 118º e 120 a 122º) quer a 26-12-2022 pela C..., SA. Deles resulta que foram efetuados pela autora todos os pagamentos alegados nos artigos 26º a 28º da petição inicial, com exceção feita ao valor de 331, 07 € devido pelo seguro multirriscos que se venceu em 31 de agosto de 2019, relativamente ao qual apenas foi junto, sob o documento número 123, um aviso de pagamento e não qualquer fatura, recibo ou declaração de quitação.
Os documentos em causa são uma declaração da seguradora B..., SA, faturas e respetivos recibos emitidos pela C..., SA e por sociedade de mediação de seguros (E..., Ldª) em que são referidas as apólices respetivas e os montantes pagos.
Quanto ao valor de 225, 34 € alegadamente pago em 12-09-2019 apenas foi junto pela autora sob o documento número 119 um talão de multibanco que comprova o pagamento dessa quantia por transferência para uma entidade identificada pelo número ...83 que corresponde ao que consta das faturas emitidas pela C..., SA que estão juntas aos autos. Contudo foi junta posteriormente uma declaração dessa seguradora, de 23 de dezembro de 2022, de que recebeu esse pagamento devido pelo contrato de seguro multirriscos alegado na petição inicial.
Uma vez mais estamos perante documentos emitidos por terceiros, no caso sociedades que se dedicam à atividade seguradora ou à mediação de seguros, com menção dos dados de identificação dos contratos em apreço pelo que não se entende ser exigível outro meio de prova do que deles resulta.
Na alínea 27 dos factos provados, claramente por lapso, apenas é referido o pagamento dos prémios devidos pelos seguros de vida associados ao mútuo, quando as quantias ali referidas e alegadas na petição inicial, se referem, também ao contrato de seguro multirriscos também associado ao empréstimo hipotecário.
Nestes termos, apenas será em parte alterado o teor da alínea 27 dos factos provados, passando a mesma, em função da não prova do pagamento de 331, 07 € em 31 de agosto de 2019, a ter o seguinte teor:
27: Pelos prémios dos seguros de vida e do seguro com cobertura multirriscos referidos em 13 a autora liquidou a quantia global de 19. 584, 11 € desde que o R. saiu de casa até à venda do imóvel.”
*
Em função dos factos provados sob as alíneas 19 (pagamento pela autora do valor de 1 202, 48 € de IMI), 20 (pagamento da taxa de rampa fixa no valor de 421, 94 €), 26 (pagamento pela autora das prestações devidas pelos mútuos bancários, num total de 109 328, 21 €) e 27 (pagamento de 19. 584, 11 € de prémios de seguros contratados por ambos), verifica-se que a autora tem direito a ser compensada pelo pagamento de 50% do valor total de 130 536, 74 € de dívidas comuns, ou seja, a que o réu lhe pague 65 268, 37 €.
A tal valor, pelas razões já acima expressas serão devidos juros vencidos e vincendos à taxa legal sucessivamente em vigor, desde a citação do réu, em 08 de março de 2022.
*
Em face da procedência parcial da ação, cumpre conhecer do pedido reconvencional, que foi deduzido a título subsidiário, face ao previsto no artigo 665.º, número 2 do Código de Processo Civil.
Entende o réu/recorrido que, como a autora usou em exclusivo a casa de morada de família, a proceder a sua pretensão sempre teria direito a ser indemnizado por tal uso exclusivo, em montante a calcular em função do valor locativo do imóvel, podendo compensar esse seu crédito com o que vier a ser reconhecido à autora.
Acima já nos pronunciámos sobre o valor do acordo celebrado entre as partes e homologado por sentença. Dele não decorreu, nem pode fazer-se agora decorrer, qualquer contraprestação pelo uso da casa que ali não foi fixado.
Também já nos pronunciámos sobre o alegado desequilíbrio/injustiça que tal solução alegadamente criaria. Em primeiro lugar, concluiu-se que cabia aos cônjuges estabelecer os termos do acordo, como fizeram. Em segundo lugar, enfatizou-se que tal acordo esteve sujeito a apreciação judicial não tendo o tribunal que o homologou entendido que o mesmo devia ser alterado ou que não acautelava de forma adequada os vários interesses em confronto (que já se disse que não eram apenas os dos ex-cônjuges). Por último e como já acima sobejamente se afirmou a propósito dos argumentos esgrimidos pelo réu em sustentação da exceção de abuso do direito, não se afigura que o uso da casa de morada de família pela autora (e pelos filhos do casal que com ela ficaram a residir), no âmbito de acordo entre eles firmado, consubstancie um benefício ilegítimo ou desproporcionado.
Assim, como já acima se afirmou, não pode por decisão judicial posterior que não seja no âmbito de alteração do acordo quanto ao uso da casa de morada de família por força de alteração das circunstâncias que a ele presidiram, alterar-se o teor desse acordo com efeitos retroativos, impondo a um dos cônjuges o pagamento de qualquer contrapartida nele não prevista.
A tal não obsta o facto de o réu ter de pagar a sua quota parte no passivo comum que, tal como os bens comuns, tem que ser partilhado e ambos responsabiliza. O seu pagamento pela autora beneficiou ambos os codevedores, na medida em que diminuiu o seu passivo e não foi estabelecido nem é a qualquer título devido como contraprestação pelo uso da casa de família, como acima se concluiu.
Ao cônjuge a quem fique atribuído por acordo homologado por sentença (ou por decisão do Conservador do registo civil com valor equiparado) o uso da casa de morada de família sem fixação de uma contrapartida, seja por via do pagamento de passivo comum ou de um montante a título de renda ou outro, não é posteriormente exigível que suporte qualquer custo por esse uso, salvo se esse acordo vier a ser alterado por acordo das partes ou por decisão judicial, com efeitos apenas para o futuro.
O uso da casa de morada de família sem o pagamento de qualquer contrapartida não constitui, tampouco, como pretende o reconvinte, um enriquecimento sem causa do cônjuge a quem ficou tal uso atribuído na medida em que o referido acordo, homologado por sentença ou por decisão do conservador com igual valor é causa bastante para tal uso exclusivo.
O recurso ao disposto no artigo 473º do Código Civil apenas é possível quando alguém enriqueça à custa de outrem sem causa justificativa. Ora desde logo não pode considerar-se que a autora tenha enriquecido à causa do réu por ter usado a casa, comum, durante os anos que mediaram entre a separação do casal e a sua venda.
Tratava-se, desde logo, de imóvel comum.
A autora e os filhos comuns do casal que com ela ficaram a residir usaram-no no cumprimento de um acordo homologado por sentença em que não foram fixadas quaisquer contrapartidas financeiras, sendo essa a causa para o referido uso, pelo que ainda que se considerasse que este representou vantagem patrimonial para a autora, sempre a mesma teria uma causa que radica em acordo celebrado livremente por ambas as partes.
Acresce, ainda, que, no caso em apreço, o réu não provou que sofreu qualquer prejuízo patrimonial pelo facto de a autora ter usado em exclusivo tal casa de morada de família Pelo contrário, caso o mesmo ficasse desonerado do pagamento das dívidas comuns que a mesma suportou apesar de ter comungado em metade do valor do ativo comum, seria este a ficar enriquecido à custa do património da autora, sem que para tal haja causa.
Pelo que deve improceder o pedido reconvencional.
*
As custas do recurso e da ação devem ser suportadas por ambas as partes na proporção dos respetivos decaimentos, como resulta do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil, tendo-se também em consideração, quanto às custas da ação, o decaimento do réu no pedido reconvencional deduzido a título subsidiário.
*
V – Decisão:
Nestes termos julga-se procedente a apelação e, em consequência revoga-se a sentença recorrida nos seguintes termos:
1. Condena-se o réu a pagar a autora a quantia 65 268, 37 € a que acrescem juros, vencidos e vincendos, à taxa legal sucessivamente aplicável desde 8 de março de 2022;
2. Absolve-se a autora do pedido reconvencional;
Mantém-se o decidido quanto à absolvição do réu do demais peticionado.
Custas do recurso e da ação por ambas as partes na proporção dos respetivos decaimentos.
Porto, 26 de junho de 2025
Ana Olívia Loureiro
Miguel Baldaia de Morais
Carlos Gil
_______________________
[1]
Conforme consta do sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-02-2021, disponível em 27069/18.3T8PRT.P1.S1 disponível em
STJ 27069/18.3T8PRT.P1.S1
. No mesmo sentido se decidiu em mais recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de setembro de 2023, tirado no processo 2509/16.5T8PRT.P1.S1e disponível em
STJ 2509/16.5T8PRT.P1.S1
, onde se pode ler: “
Por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto se entender que os concretos factos objecto da impugnação, atentas as circunstâncias do caso e as várias soluções plausíveis de direito, não têm relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual puramente gratuita ou diletante.”
[2]
O mesmo afirma, com inteira razão, que ainda que se provasse que a autora já antes lhe fora fazendo pedidos de pagamento das quantias cujo pagamento suportou daí não decorria necessariamente que a elas tivesse direito. Assim é, de facto. Sucede que é igualmente verdade que do facto de não terem sido feitos tais pedidos, caso tal se venha a julgar provado, também não resulta necessariamente que o pagamento agora peticionado não seja devido.
[3]
Nas palavras de Abrantes Geraldes,:
“(…) a anulação do julgamento deve ser sempre uma medida de último recurso, apenas legítima quando de outro modo não for possível superar a situação, por forma a fixar com segurança a matéria de facto provada e não provada (…”).
Cfr. Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª edição atualizada, página 358.
[4]
O réu alegou, na contestação que apenas depois de dividido o remanescente do preço da venda entre ambos (após pagamento dos mútuos) a autora exigiu o pagamento que agora peticiona.
[5]
Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Páginas 70 a 72.
[6]
A este respeito Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa afirmam:
“(…) quando, mais adiante, o juiz vier a decidir a vertente fáctica da lide, importará que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos, em termos de assegurar a adequação da sentença à realidade extraprocessual.” –
Código de Processo Civil Anotado, Almedina, Volume I, 3ª edição, página 751.
[7]
Partilhas Litigiosas, Vol. III, página 358.
[8]
Sobre a não retroatividade de qualquer decisão que venha a debruçar-se sobre a atribuição do uso da casa de morada de família pronunciou-se já esta secção, em acórdão de 13-11-2023, com a mesma relatora – cfr.
TRP 22918/16.9T8PRT.F.P1
[9]
TC3175/16.3T8VIS.C1
[10]
TRC 255/10
[11]
TRG 423/17.6T8GMR.G1
[12]
TRP 408/23.3T8VCD.P1
[13]
STJ 135/12.7TBPBL-C.C1.S1
[14]
Seguiremos aqui de perto o tratamento da questão por Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo I, 1999, páginas 198 a 211.
[15]
Op cit. página 200.
[16]
Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, Almedina, páginas 124 e 125.
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TRP
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https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/e8f71f66db8f274280258cc4003c039d?OpenDocument
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1,750,896,000,000
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IMPROCEDENTE
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1880/21.1T8AMD.L1-2
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1880/21.1T8AMD.L1-2
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ANTÓNIO MOREIRA
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1. Nos termos do art.º 29º, nº 1, do D.L. 12/2004, de 9/1, em conjugação com a Portaria 1371/08, de 2/12, o contrato de empreitada com valor acima de € 16.600,00 deve ser obrigatoriamente reduzido a escrito.
2. A preterição dessa formalidade
ad substantiam
determina a nulidade do contrato e a insusceptibilidade da sua demonstração por outro meio que não o documento respectivo.
3. Em consequência dessa nulidade deve ser restituído tudo o que foi prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, a restituição em valor correspondente.
4. Estando demonstrados quais os trabalhos realizados pelo autor e qual o valor que foi acordado a título de preço desses trabalhos com o réu beneficiário dos mesmos, é esse valor que o réu deve restituir ao autor, na medida em que não alegou valor distinto quando invocou a nulidade.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
|
[
"CONTRATO DE EMPREITADA",
"FORMA",
"NULIDADE",
"RESTITUIÇÃO"
] |
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
L. propôs acção declarativa com processo comum contra P., pedindo a condenação do R. no pagamento da quantia de € 30.000,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos.
Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese, que:
• O A. e a sua mulher adquiriram um terreno no qual construíram uma moradia, com a intenção de ser vendida a terceiros, depois de obtida a respectiva licença de utilização para habitação;
• Concluída a construção, celebraram com o R. contrato promessa de compra e venda do imóvel, pelo preço global de € 650.000,00;
• Na mesma data da celebração do contrato promessa o A. e a sua mulher acordaram com o R. alterações à construção inicial, correspondentes à colocação de equipamentos que não faziam parte da construção e que foram escolhidos pelo R.;
• O valor global destas alterações foi fixado em € 40.000,00, ficado acordado o pagamento em prestações de € 10.000,00, até à conclusão dos trabalhos;
• O A. executou as alterações nos termos acordados com o R. mas este apenas pagou uma prestação de € 10.000,00, apesar de ter assinado uma declaração em que reconhecia ser devedor do A. pelo valor global de € 40.000,00.
Citado o R., apresentou contestação onde, em síntese, alega que:
• Não assinou o documento com o acordo relativo às alterações nem a referida declaração de dívida, sendo os mesmos nulos;
• O valor de € 30.000,00 destinava-se à aquisição de materiais e equipamentos de construção, não tendo tais obras sido realizadas e não sendo, assim, devedor desse montante.
Em audiência prévia foi proferido despacho saneador, fixado o valor da causa em € 30.000,00, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Teve lugar a realização da audiência final, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“
Em face do exposto, julga-se a presente acção procedente, por provada, e, em consequência, decide-se condenar o Réu (…) no pagamento ao Autor de € 30.000,00 (trinta mil euros), acrescidos de juros de mora, vencidos à taxa legal supletiva, desde a data da citação, e vincendos, à mesma taxa, até integral pagamento.
*
Custas a cargo do Réu (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Processo Civil)
”.
O R. recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1. A douta sentença é nula, nos termos do nº 1, al) d do artigo 615º do CPC.
2. Porquanto, com base na prova testemunhal, e documentos (2 sem assinatura do R), determinou em termos de Direito, que A. e R., celebraram oralmente, um contrato de empreitada.
3. Mais a p.i. do A., não menciona ter sido celebrado entre as partes, mesmo que oralmente, o referido contrato, ao longo da sua douta p.i., nem no seu pedido.
4. A M. Juiz a quo, verificou a existência do referido contrato de empreitada, através da prova testemunhal produzida em sede de audiência e nos documentos, (sendo 2 não assinados pelo R.)
5. Ora o contrato de empreitada, exige a forma escrita nos termos do art. 26º, nº 1 alíneas a), c) e e) da Lei 41/2015 de 3 de Junho.
6. Pelo o contrato de empreitada é nulo por omissão das formalidades ad substantiam.
7. Depois nos termos do artigo 364º do CC, quando a lei exigir forma de declaração negocial, por documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova...
8. Depois de harmonia, com o artigo 393º, nº 1 do CC, a prova testemunhal não é admitida nos casos em que a declaração negocial tiver de ser reduzida a escrito.
9. Termos em que, devem as presentes alegações ser consideradas procedentes pelos fundamentos expostos e julgar-se o presente recurso procedente e em consequência declarar a sentença nula.
Pelo A. não foi apresentada alegação de resposta.
***
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem‑se com:
• A nulidade da sentença recorrida por excesso de pronúncia;
• A nulidade do contrato de empreitada.
***
Na sentença recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto:
1. O A. e a sua mulher, M., adquiriram um terreno urbano, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), sito (…).
2. Construíram no referido terreno uma moradia unifamiliar, que foi registada na 2ª Conservatória do Registo Predial da Amadora com a inscrição n.º (…).
3. A moradia era constituída por uma cave com garagem, rés do chão com quatro divisões, sala, cozinha, casa de banho e escritório, e 1.º andar, com quatro quartos.
4. O A. e a mulher foram proprietários da moradia contruída no prédio urbano situado em (…), com a área coberta 126,5 m2, como casa para habitação, composta de cave com garagem, rés-do-chão e 1º andar, (…).
5. O A. colocou o imóvel supra descrito para promoção de venda na imobiliária (…).
6. Em 14 de Agosto de 2013, o A. e sua mulher assinaram com o R. um contrato‑promessa de compra e venda que incidia sobre o descrito imóvel, pelo preço global de € 650.000,00.
7. Foi celebrado o contrato definitivo de compra e venda e registada a propriedade a favor do R. pela AP 724 de 2015/12/22 (…).
8. Na data da celebração do contrato-promessa, o A. e sua esposa assinaram um documento denominado “
Aditamento ao Contrato de Promessa de Compra e Venda Realizado em 14 de Agosto de 2013
”, que continha a seguinte cláusula: «
PRIMEIRA : Pelo presente aditamento ao contrato os Promitentes Vendedores e o Promitente Comprador, acordam entre si que serão feitas as seguintes alterações ao imóvel identificado no 1.º considerando do contrato de promessa até ao dia 01 (um) de Outubro de 2013. 1 - Colocar equipamento de ar condicionado na sala e nos quartos da marca Daikin. 2 - Colocar camaras de vigilância nos locais onde já está colocado a pré instalação já existente. 3 - Colocar aparelhos de desumidificação e aquecimento na piscina interior e fazer acesso para embutir um jacúzi. 4 - Revestir a cozinha a azulejo e colocar uma placa a gás e eléctrica. 5 - Colocar móveis com prateleiras na zona da lavandaria. 6 - Trocar a aparelhagem eléctrica já existente por vidro.
».
9. O R. e a sua companheira (…), solicitaram diversas alterações na moradia, as quais tiveram, entre o mais, como objecto:
a. Colocação de equipamentos de ar condicionado no piso do rés-do-chão e no primeiro andar;
b. Colocação de aquecimento na piscina interior e construção de acesso e colocação de jacuzzi;
c. Revestimento da cozinha com azulejo e colocação de placa de gás e eléctrica;
d. Colocação de móveis com prateleiras na lavandaria;
e. Troca dos espelhos das caixas de electricidade (interruptores) por espelhos em vidro;
f. Instalação de um furo de água, com bomba.
10. Todos os equipamentos foram escolhidos pela companheira do R.
11. O A. é construtor civil e foi quem construiu a moradia.
12. O R. tinha conhecimento desse facto, razão pela qual lhe confiou as alterações / melhoramentos / construção adicional, aquisição e colocação dos elementos supra descritos e apresentação posterior do valor total do custo para aprovação.
13. Para a execução de várias alterações, entre as quais as descritas em 9., o A. apresentou ao R. um valor global de € 40.000,00.
14. Este valor seria liquidado para além do preço convencionado para a compra da moradia e em momento posterior à escritura de compra e venda.
15. Em Dezembro de 2015, aquando da escritura de compra e venda e consequente registo de aquisição da propriedade, o R. ainda não tinha pago ao A. a quantia de quarenta mil euros.
16. O A. assinou um documento intitulado como “
Acordo/Reconhecimento de Dívida
”, com o seguinte teor: «
P. (…), reconhece para os devidos efeitos que é devedor de L. (…), na quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros). Que a quantia supra indicada é referente a alterações solicitados por P. e efectuadas por L., após a celebração do contrato promessa de compra e venda realizado a 14 de Agosto de 2013, detendo a moradia situada na Rua (…) à data da celebração do mesmo, licença de utilização e toda a documentação necessária e que até à presente data não foi prestada a quantia referente às obras solicitadas, não obstante de se achar vencido o seu pagamento. O montante suprarreferido será pago pelo devedor ao credor em quatro (4) prestações de € 10.000,00 (Dez mil euros) com início a primeira no dia 30 de Março e as restantes no dia 30 de Junho, Setembro e Dezembro, através do NIB (…), titular (…). Na falta de cumprimento de uma prestação, a obrigação torna-se definitivamente exigível conferido ao credor o direito de se fazer pagar pelo remanescente. A falta de pagamento de qualquer das prestações no prazo estabelecido, faz incorrer o devedor no pagamento de € 5.000,00 (cinco mil euros) a título de cláusula penal. Este montante acresce ao remanescente do valor em dívida. A presente declaração vale como título executivo nos termos do disposto no artigo 703." do Código Processo Civil. Lisboa, 21 de Dezembro de 2015
».
17. Desta quantia, o R. entregou, até à presente data, o valor de € 10.000,00.
18. O A. executou e terminou todas as alterações/melhoramentos/construção adicional que lhe foram solicitados.
***
Na sentença recorrida foi considerada como não provada a seguinte matéria de facto:
1. O R. solicitou/o A. realizou as seguintes obras:
a. Colocação de câmaras de vigilância no local de onde consta, para o efeito, a pré-instalação em projecto;
b. Colocação de aparelhos desumidificadores na piscina interior;
2. O R. assinou o documento intitulado como “
Aditamento ao Contrato de Promessa de Compra e Venda Realizado em 14 de Agosto de 2013
”, provado sob o número 8.
3. O R. assinou o documento intitulado como “
reconhecimento de dívida
”, provado sob o número 16.
4. As obras não foram realizadas.
***
Da nulidade da sentença
Na sentença recorrida considerou-se que, atenta a matéria de facto provada e o disposto no art.º 1207º do Código Civil, é de qualificar como empreitada o contrato que o A. alegou ter celebrado com o R.
Contra esta qualificação o R. argumenta que “
não resulta da douta p.i. e do seu pedido, que estivesse em causa um contrato de empreitada oralmente combinado entre o A. e o R.
”, não tendo sido essa a solução jurídica que o A. apresentou ao tribunal, nos termos que ficaram alegados na P.I. E a partir de tal argumentação conclui que se verifica a nulidade a que respeita a al. d) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, porque “
a p.i. do A., não menciona ter sido celebrado entre as partes, mesmo que oralmente, o referido contrato, ao longo da sua douta p.i., nem no seu pedido
”.
Decorre do art.º 608º do Código de Processo Civil que na sentença o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenha submetido à sua apreciação, não podendo ocupar-se senão dessas questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras questões.
E do art.º 5º do Código de Processo Civil decorre que as questões suscitadas pelas partes correspondem, do ponto de vista fáctico, aos factos essenciais que constituem a causa de pedir, a par daqueles em que se baseiam as excepções invocadas, já que estes carecem de ser alegados pelas partes.
Mas do disposto no nº 3 do mesmo art.º 5º resulta que, no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, o tribunal não está sujeito às alegações das partes.
Assim, e se vem alegado na P.I. que A. e R. convencionaram que o primeiro efectuaria trabalhos de alteração no imóvel que o segundo se encontrava a adquirir, trabalhos esses correspondentes à colocação de equipamentos no imóvel, e convencionando ainda que o valor global desses trabalhos ascendia a € 40.000,00, a circunstância de, na sentença recorrida, tal acordo de vontades ser interpretado como correspondendo ao tipo contratual previsto no art.º 1207º do Código Civil não configura um excesso de pronúncia, já que apenas corresponde ao enquadramento jurídico daquela factualidade (que resultou provada). E sem que, para tanto, fosse necessário que tal interpretação decorresse igualmente da P.I. porque, como já se viu, o princípio do dispositivo que está subjacente à delimitação negativa constante do art.º 608º do Código de Processo Civil não respeita à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, mas tão só à configuração fáctica de cada uma das questões suscitadas pelas partes.
Ou seja, e sem prejuízo de o acordo de vontades das partes poder estar erradamente qualificado como correspondendo à celebração de um contrato de empreitada, tal não configura a nulidade processual suscitada mas (eventualmente) um erro de julgamento, a sustentar decisão diversa sobre o direito de crédito que o A. faz valer em juízo.
Assim, e sem necessidade de ulteriores considerações, improcedem as conclusões do recurso relativamente a esta questão da nulidade da sentença recorrida por excesso de pronúncia.
***
Da nulidade do contrato de empreitada
Depois de na sentença recorrida se ter interpretado a vontade concordante das partes (tal como emerge da factualidade provada) como correspondendo à celebração de um contrato de empreitada, mais se identificou a obrigação principal do R. emergente da celebração desse contrato (o pagamento do preço respectivo, no montante de € 40.000,00). E mais se afirmou que, estando demonstrado que o R. apenas entregou ao A. a quantia de € 10.000,00, procedia a condenação do R. no pagamento dos remanescentes € 30.000,00.
Pese embora resulte da factualidade provada que a celebração do contrato de empreitada foi meramente consensual, isto é, não reduzido a escrito, nem por isso o tribunal recorrido deixou de considerar a sua validade, pois que é a partir de tal validade que afirma o surgimento da obrigação pecuniária em questão.
Contrapõe o R. que o contrato de empreitada em questão é nulo porque não foi reduzido a escrito, como exige o art.º 26º, nº 1, da Lei 41/2015, de 3/6. E, embora não o refira expressamente, subentende-se que é em consequência dessa nulidade que não deve ser condenado a pagar ao A. a referida quantia de € 30.000,00 (o que é o mesmo que afirmar que não inexiste o correspondente direito de crédito do A.).
Tendo presente a data em que ocorreu o acordo de vontades das partes, a lei aplicável ao caso em apreço não era (ainda) a Lei 41/2015, de 3/6, mas o D.L. 12/2004, de 9/1 (que depois foi revogado e substituído pela referida Lei 41/2015).
Para o que aqui releva, decorre do nº 1 do art.º 29º do referido D.L. 12/2004 (como subsequentemente passou a decorrer do art.º 26º da Lei 41/2015, de 3/6) que os contratos de empreitada de obra particular cujo valor ultrapasse 10% do limite fixado para a classe 1 são obrigatoriamente reduzidos a escrito, devendo constar dos mesmos, para além do mais, a identificação completa das partes outorgantes, a identificação do objecto do contrato e o valor do mesmo. E mais resulta do nº 4 do mesmo art.º 29º que a inobservância do disposto no nº 1 determina a nulidade do contrato, prevendo ainda o art.º 30º do mesmo diploma que o disposto no precedente artigo “
prevalece sobre o regime jurídico das empreitadas previsto no Código Civil, na parte em que com o mesmo não se conforme
”.
Como explicam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil anotado, volume I, 4ª edição revista e actualizada, 1987, pág. 210-211), “
as exigências de forma têm (…) carácter excepcional
”, perante a “
regra da consensualidade ou da liberdade de forma
” que emerge do art.º 219º do Código Civil. E mais explicam que o “
artigo 220º consagra explicitamente, como regra, a solução que considera as formalidades legais da declaração como formalidades ad substantiam (e não como meras formalidades ad probationem)
”.
Do mesmo modo, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9/11/2010 (relatado por Maria de Jesus Pereira e disponível em www.dgsi.pt), afirma‑se que a forma escrita prescrita no art.º 29º do D.L. 12/2004, de 9/1 “
constitui um requisito ad substantiam
”, sendo “
nulo por força do artigo 220 do CC
” o contrato de empreitada cujo valor ultrapasse 10% do valor fixado para a classe 1 e que não haja sido reduzido a escrito.
E mais se explica nesse acórdão que “
nos termos do artigo 286 do CC a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal e tem efeito retroactivo devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a sua restituição em espécie não for possível, o seu valor correspondente – art. 289, nº 1, do CC
”, explicando-se ainda que “
a nulidade ad substantiam distingue-se da nulidade ad probationem pelo facto da primeira constituir a forma exigida para a validade do acto e a segunda para tornar mais fácil e segura a prova. Como ensina o Prof. Galvão Telles in Manual dos Contratos em Geral – Coimb. Ed. 4ª ed. pág. 145 “é clássica a distinção entre documentos substanciais (ad substantiam actus) e documentos probatórios (ad. Probationem actus). Os documentos substanciais constituem a forma especial exigida para a validade do acto; portanto, se não forem elaborados, ou enquanto não o forem, não há negócio jurídico válido. Diversamente, os documentos probatórios não servem para dar validade aos actos, que se possuem independentemente deles; têm apenas por fim tornar mais fácil e segura a prova da sua existência e conteúdo. Os documentos substanciais também fazem prova dessa existência e conteúdo; não é essa, porém, a sua função específica; sua função específica é, antes, a de revestir o negócio da forma especial para ele requerida. Pode acontecer que o documento seja destruído ou, por qualquer modo, se perca ou desapareça. “Se se tratar de mero documento probatório poderá ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório nos termos do artigo 364,nº2, do CC (neste sentido também se pronuncia o Prof. Lebre de Freitas in A Confissão no Direito Probatório Coimb. Ed. 1991 pág. 150 a 152).
Daqui sobressai, pois, que a falta do documento ad substantiam é irremediável e é absolutamente insubstituível por outro género de prova (…). Quanto aos segundos, como são impostos apenas para prova do negócio, a sua falta pode ser suprida por outros meios de prova.
Porque estamos na presença de um documento ad substantiam, uma coisa é a forma exigida para a validade do negócio, outra, bem diferente, é a prova efectiva e real de que o negócio existiu e esta prova pode ser feita por confissão e até por testemunhas (neste sentido Cfr. Ac. STJ de 27-06-2010 in site DGSI).
Como já dito, se esta Relação pode conhecer oficiosamente da nulidade o réu foi, no entanto, demandado no pressuposto da validade do acordo celebrado entre ele e o autor, pelo que se coloca a questão de saber se se pode converter o pedido e a causa de pedir para os efeitos do artigo 289,nº1, do CC.
Esta questão foi colocada ao Plenário do STJ que, em Assento nº 4/95, de 28/03/95, decidiu no sentido de que “quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais deve a parte ser condenada na restituição do recebido com fundamento no nº1 do artigo 289 do Código Civil” que como se diz no Ac. de 14-10-2003 in CJSTJ, III, pág. 104 esta doutrina mantém-se válida hoje com o valor de Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nos termos do artigo 17,nº 2, do D-L 329-A/95, de 12-12 o que assenta no disposto no artigo 293 do CC
”.
Do mesmo modo, ainda, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/12/2015 (relatado por Abrantes Geraldes e disponível em www.dgsi.pt), conclui-se que “
nos termos do art. 29º, nº 1, do Dec. Lei nº 12/04, de 9-1, na redacção introduzida pelo Dec. Lei nº 18/08, de 29-1, em conjugação com a Portaria nº 1371/08, de 2-12, o contrato de empreitada acima de € 16.600,00 deveria ser obrigatoriamente reduzido a escrito
”, mais se concluindo que “
na falta de redução a escrito por razões imputáveis ao empreiteiro, para além de o contrato de empreitada ser nulo, é insusceptível de demonstração através de prova testemunhal, nos termos do art. 393º, nº 1, do CC
”.
Do mesmo modo, ainda, no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/7/2016 (relatado por João Diogo Rodrigues e disponível em www.dgsi.pt), ficou afirmado que, em termos de consequência da nulidade do contrato de empreitada por inobservância da forma escrita prescrita no art.º 29º do D.L. 12/2004, de 9/1, a mesma “
não foge à regra instituída pelo artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil; isto é, deve ser restituído tudo o que houver sido prestado, com efeitos retroactivos, ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. Tudo se deve passar, pois, como se o negócio não tivesse sido realizado
”.
Do mesmo modo, ainda, no acórdão de 3/10/2017 deste Tribunal da Relação de Lisboa (relatado por Cristina Coelho e disponível em www.dgsi.pt) conclui-se igualmente que “
a preterição de forma escrita
[prescrita pelo nº 1 do art.º 29º do D.L. 12/2004, de 9/1]
tem, também, uma consequência de natureza processual: exigindo a lei que o contrato seja reduzido a escrito, e estando em causa um requisito ad substantiam, desrespeitado o referido normativo, a prova do contrato, do seu conteúdo - dos elementos que devem ser reduzidos a escrito e constantes do nº 1 do referido art. 29º-, apenas por via documental (de força probatória superior) pode ser feita, não admitindo outro meio de prova, nem testemunhal, nem por confissão (arts. 354º, al. a), 364º e 393º, nº 1 do CC)
”. Mas também aí se conclui que, na medida em que dos pontos de facto não impugnados resulte “
admitida, porém (…), as prestações a que a A. se obrigou e o preço estipulado, e a execução de parte do mesmo pela A., terá de se atender à prova produzida para aquilatar da justeza do pedido formulado pela A., atendendo à consequência resultante da invalidade formal do contrato, e norteados pelo princípio da boa fé que rege a disciplina dos contratos
” (porque, como se evidencia em nota de rodapé, “
a situação em apreço não foge à regra constante do art. 289º, nº 1 do CC, devendo ser restituído tudo o que houver sido prestado, com efeitos retroactivos, ou, se a restituição em espécie não for possível, como é o caso, o valor correspondente, tudo se passando como se o negócio não tivesse sido realizado
”).
Ou seja, e reconduzindo tais considerações ao caso concreto, tal como o mesmo emerge dos factos provados (e tendo desde logo presente que o R. não impugnou a decisão de facto, nos termos e para os efeitos do art.º 640º do Código de Processo Civil), é patente que o negócio pretendido entre as partes se reconduz a um contrato de empreitada (segundo a definição constante do art.º 1207º do Código Civil, porque está em causa a realização de uma obra de alterações num imóvel mediante um preço). Também é patente que tal contrato de empreitada estava sujeito à forma escrita, dado que o seu valor excedia € 16.600,00 (10% do limite fixado para a classe 1 nos termos da Portaria 1371/2008, de 2/12, com referência à data em que o acordo entre as partes foi efectuado).
Por outro lado, e porque a forma escrita se apresenta como requisito da validade do negócio visado pelas partes, resulta do que acima ficou exposto que o mesmo é insusceptível de ser demonstrado por outro meio que não o documento respectivo, com os requisitos indicados no nº 1 do art.º 29º do D.L. 12/2004, de 9/1.
Ou seja, na inobservância dessa forma escrita para o negócio jurídico visado pelas partes, há que declarar a nulidade do mesmo e daí retirar as consequências de tal nulidade, nos termos e para os efeitos do art.º 289º, nº 1, do Código Civil.
Como resulta da factualidade apurada (que, recorde-se, não foi objecto de qualquer impugnação em sede do presente recurso, assim se devendo considerar estabilizada a instância, nesta parte), estão demonstradas as alterações que o A. realizou, tal como se obrigou perante o R., mais estando demonstrado o valor que as partes lhe atribuíram, e estando ainda demonstrado que o R. beneficiou dessas alterações executadas pelo A., porque realizadas no imóvel adquirido pelo R., tal como era sua intenção ao acordar com o A. as mesmas.
Pela sua própria natureza os materiais utilizados pelo A. e a respectiva mão de obra não podem ser restituídos pelo R. ao A., tendo presente que as alterações daí resultantes se encontram incorporadas no imóvel do R. O que significa, tendo presente a parte final do nº 1 do art.º 289º do Código Civil, que a consequência da nulidade verificada é a restituição, pelo R. ao A., do valor desses materiais e da respectiva mão de obra.
Deve ainda ter-se em consideração que competia ao R., por ser quem invocou a nulidade do contrato de empreitada, alegar os factos correspondentes ao valor da mão de obra e dos materiais utilizados pelo A., e que fica obrigado a restituir por força dessa nulidade. Assim, e não tendo o R. cumprido com esse seu ónus de alegação do valor em questão, há-de valer o que foi estipulado pelas partes, não enquanto preço do contrato de empreitada, mas enquanto mera valorização consensual de trabalhos realizados.
O que equivale a afirmar, neste caso concreto, que se torna necessário recorrer ao montante acordado pelas partes, enquanto expressão consensual do valor da mão de obra e dos materiais utilizados pelo A.
Ou seja, por efeito da nulidade do negócio jurídico visado entre as partes o R. ficou obrigado a restituir ao A. o montante de € 40.000,00.
O que significa que, tendo o R. entregue ao A. a quantia de € 10.000,00, é devedor do remanescente (€ 30.000,00), e a que devem acrescer juros de mora à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento, tendo presente o disposto nos art.º 804º a 806º do Código Civil (tal como consta melhor explicitado na sentença recorrida).
Ou seja, ainda que emergindo de fonte distinta, importa reconhecer a obrigação pecuniária do R. acima determinada, assim havendo lugar à condenação deste a pagar ao A. a referida quantia de € 30.000,00, acrescida dos referidos juros de mora, tal como ficou a constar do dispositivo da sentença recorrida.
Pelo que, sem necessidade de ulteriores considerações, é de manter a sentença recorrida.
***
DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se a sentença recorrida.
Custas do recurso pelo R.
26 de Junho de 2025
António Moreira
João Paulo Raposo
Arlindo Crua
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TRL
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https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/94a7a0741430c35180258cc2004879dd?OpenDocument
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1,762,387,200,000
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PARCIALMENTE PROCEDENTE
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1917/23.0JABRG.G1
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1917/23.0JABRG.G1
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PAULA ALBUQUERQUE
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I - Na previsão dos tipos de crime consagrados nos arts. 132º, nº 1 e 2 e 145º, nº 1 e 2 do Código Penal, o que qualifica o crime de homicídio e o de ofensa à integridade física é o facto de o grau de culpa do agente ser maior, mais intenso, apto a gerar na sociedade uma maior rejeição ou repúdio sendo, por isso, ao nível da culpa que há de operar-se a análise da especial censurabilidade ou perversidade no cometimento do crime base.
II - Está, assim, afastado o mero preenchimento de uma ou várias das alíneas do nº 2 do art.º 132º do Código Penal para automaticamente se concluir pela qualificação do crime.
|
[
"CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO",
"CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA",
"TIPICIDADE",
"ESPECIAL CENSURABILIDADE"
] |
Acordam os juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:
Relatório
No âmbito do processo comum colectivo nº 1917/23.0JABRG.G1 que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juiz 5 da Central Criminal, em que é arguida
AA
, com os demais sinais nos autos, foi proferido acórdão a 12 de Dezembro de 2024, que a condenou nos seguintes termos:
«
Decisão
Pelo exposto, o Tribunal decide:
1.Condenar a arguida AA, pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º, 132.º, n.º 1, e n.º 2, alíneas b) e e) do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão
.
2.Julgar procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo Hospital de ..., EPE, condenando o demandado a pagar àquele a quantia de € 186,77 (cento e oitenta e seis euros e setenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
3.Arbitrar ao ofendido BB uma indemnização no montante total de € 6.000,00 (seis mil euros), condenando a arguida AA no respetivo pagamento.
4.Declarar perdidas a favor do Estado as facas apreendidas nos autos e identificadas no auto de apreensão de fls. 23, nos termos do disposto no artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal, ordenando a sua oportuna destruição.»
Inconformada, a arguida interpôs o presente recurso pugnando pela sua absolvição, tendo para o efeito formulado as seguintes conclusões (transcrição):
«DAS CONCLUSÕES:
1 - A Recorrente discorda do douto acórdão e não pode com este conformar-se pelas seguintes razões fundamentais:
I. IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO – Artigo 412.º, n.º 3 do CPP
2 - O Tribunal formou a sua convicção a partir do teor dos documentos e relatórios juntos aos presentes autos, das declarações da ora Recorrente, do Ofendido BB, bem como das testemunhas arroladas pela acusação.
3 – No entanto, a conjugação de todos os meios de prova referidos com as mais elementares regras de experiência comum impunha decisão diversa sobre esses factos.
A. DA IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO RELATIVA À MATÉRIA DE FACTO
a) Dos concretos pontos de facto incorretamente julgados:
4 - Foram incorretamente julgados os seguintes pontos da matéria de facto julgada provada: 3, 7, 8, 10, 13, 14, 15, 16, 17, 20, 21, 22 e 23.
b) Os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa
5 – Censura se a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal recorrido pois foram dados como provados factos quando a prova produzida impunha que os mesmos fossem julgados não provados.
Vejamos:
Ponto 3 do elenco de factos provados
6 – A Recorrente, em sede de declarações prestadas em audiência de julgamento, afirmou que, no dia em causa, estava alcoolizada e sob efeito de fármacos ansiolíticos, tendo ainda reconhecido que após a morte dos seus pais começou a beber excessivamente - conforme depoimento prestado aos minutos 13:20 até 14:10 da gravação.
7 - Resultou das declarações do Ofendido que, nesse dia 30 de junho de 2023, a Recorrente, durante o almoço e a tarde, ingeriu três garrafas de vinho, assim como tomou vários comprimidos.
8 - As declarações prestadas pelo Ofendido são, na verdade, essenciais na medida em que esclareceu, de forma assertiva, a quantidade de bebidas alcoólicas e a medicação que a Recorrente tinha ingerido, nesse dia - conforme depoimento prestado aos minutos 15:50 até 16:20 da gravação.
9 - Do exposto resulta que o facto provado n.º 3 se encontra incompleto, devendo referir qual a quantidade de bebidas alcoólicas e fármacos que a Recorrente ingerira simultaneamente. 10 - Do compulso dos depoimentos suprarreferidos impõe-se decisão diversa, devendo o facto provado ter a seguinte formulação: No dia 30 de junho de 2023, durante o almoço e a tarde, a arguida foi, como habitualmente, consumindo bebidas alcoólicas, tendo ingerido três garrafas de vinho, bem como um número indeterminado de comprimidos.
Ponto 7 do elenco de factos provados
11 – O Ofendido não sabe para onde foi a Recorrente após se ter ausentado da sua beira.
12- O certo é que, quando chegaram os bombeiros e a polícia, a Recorrente já se encontrava em casa.
13- Do exposto resulta que não poderia o Tribunal recorrido julgar provado que a Recorrente se tivesse ausentado da sua habitação, factualidade que não pode ser referida neste ponto 7 dos factos provados.
14 - Deveria, pois então, este facto ter sido julgado não provado.
Ponto 8 do elenco de factos provados
15 – O ofendido referiu que se manteve sentado, pegou no telemóvel, chamou uma ambulância e abriu a porta aos bombeiros, tendo ainda mencionado que apresentava pouca perda de sangue – conforme depoimento prestado entre os minutos 23:00 e 29:00 da gravação.
16 - Por seu turno, a testemunha CC, agente da PSP, afirmou que a camisola do Ofendido tinha uma mancha de sangue, mas que este não estava a esvair-se em sangue e que não havia vestígios de sangue espalhados no local do crime - conforme depoimento prestado aos minutos 10:20 até 12:59 da gravação.
17 - De igual modo, a testemunha DD, bombeiro, referiu que assistiu o Ofendido, o qual tinha um ferimento no peito, tendo ainda explicado que o mesmo apresentava um ferimento ligeiro, que lhe fez um curativo, e que no local não havia poças de sangue - conforme depoimento prestado aos minutos 5:00 até 6:30 da gravação.
18 - A testemunha EE, também bombeiro, esclareceu também que foi o Ofendido quem lhes abriu a porta, e que este foi pelo seu próprio pé para a ambulância - conforme depoimento prestado aos minutos 3:20 até 7:30 da gravação.
19 - Não se alcança, pois então, como pode constar, no ponto 8 dos factos provados, que o Ofendido “tenha sido deixado à sua sorte.
20 - Do compulso dos depoimentos suprarreferidos, impõem-se decisão diversa, ou seja, o ponto 8 deve, pois então ser julgado não provado.
Ponto 9 do elenco de factos provados
21 – Se não pode ser julgado provado que a Recorrente se ausentou do apartamento, também não pode ser julgado provado que a mesma aí regressou.
22 – Deste modo, deve o ponto 9 ser julgado não provado.
Ponto 10 do elenco de factos provados
23- Nas declarações prestadas perante o Tribunal recorrido, o Ofendido referiu que o ferimento era ligeiro e careceu apenas de sutura, tendo tido alta sem qualquer indicação para seguimento posterior - conforme depoimento prestado aos minutos 23:00 até 29.00 da gravação.
24 - Por seu turno, a testemunha CC, agente da PSP, afirmou que a camisola do ofendido tinha uma mancha de sangue, mas que este não se estava a esvair em sangue e que não havia vestígios de sangue espalhados no local - conforme depoimento prestado aos minutos 10.50 até 11:10 da gravação.
25- De igual modo, a testemunha DD, bombeiro, referiu que assistiu o ofendido, que tinha um ferimento no peito, e que no local não havia poças de sangue - conforme depoimento prestado aos minutos 5:54 até 6:59 da gravação.
26 - A testemunha EE, bombeiro, esclareceu também que foi o Ofendido quem lhes abriu a porta, e este foi pelo seu próprio pé para a ambulância - conforme depoimento prestado aos minutos 3:25 até 3:50 da gravação.
27- Acresce que resulta do relatório de avaliação de dano corporal datado de 28/12/2024 que do evento não terá resultado perigo em concreto para vida do Examinado.
28 - Do compulso dos depoimentos acima referidos, impõem-se decisão diversa, ou seja, não poderia, pois então, ser julgado provado que o Ofendido apresentasse qualquer quadro hemorrágico, ainda mais incontrolável, pelo que deve o ponto 10 ser julgado não provado.
Ponto 13 do elenco de factos provados
29 - Não resulta de nenhum elemento probatório junto aos autos e da prova produzida em audiência de julgamento, que a faca tenha ficado espetada no corpo do Ofendido, e muito menos no arco costal.
30 - Este ponto assenta exclusivamente nas declarações da testemunha FF, inspetor da PJ, em fase de inquérito, o qual referiu que se deslocou ao hospital, onde falou com o médico que viu o Ofendido.
31 - Nas palavras dessa testemunha, o referido médico terá explicado que a lesão do Ofendido se situava perto do coração, e que apenas não foi mais grave porque a lâmina bateu nas costelas, o que impediu que o golpe fosse mais fundo.
32 - O Tribunal recorrido violou o disposto no art.º 129.º, n.º 1, do CPP, o qual versa sobre o depoimento indireto.
33 – Na realidade, impõe-se concluir que o depoimento indireto apenas é admissível se a testemunha de que se ouviu dizer for chamada a depor e prestar depoimento sobre os factos em causa, o que não aconteceu no caso em apreço.
34 - O próprio Ofendido explicou que a Recorrente o picou com a faca e a voltou a tirar, num movimento rápido, no peito, na zona do seio esquerdo - conforme depoimento prestado aos minutos 27:00 até 29:59 da gravação.
35 - O relatório da perícia de avaliação do dano corporal datado de 28/12/2024 conclui designadamente que o evento não afetou a capacidade de trabalho geral e não terá resultado perigo em concreto para vida do Examinado.
36 - Do exposto resulta, pois então que o depoimento da testemunha FF não poderia ter sido valorado nessa parte.
37 - Do compulso do teor do relatório da perícia de avaliação do dano corporal datado de 28/12/2024, conjugado com o depoimento suprarreferido, impõem-se decisão diversa, ou seja, deve o ponto 13 ser julgado não provado.
Ponto 14 do elenco de factos provados
38- Tivemos já, anteriormente, a oportunidade de demonstrar que muitas dessas conclusões referidas no Ponto 14 não têm reflexo na prova produzida.
39 - Analisemos cada uma das premissas:
a) Relativamente às duas primeiras conclusões do ponto 14
40 - O Ofendido, nas declarações prestadas perante o Tribunal a quo, referiu que a Recorrente, no dia dos factos, durante a tarde, andava de um lado para o outro da casa, e já tinha bebido três garrafas de vinho nesse dia.
41 - Referiu que a Arguida agiu daquela forma pelo facto de ter bebido três garrafas de vinho seguidas, misturado com os calmantes que tomava - conforme depoimento prestado aos minutos 15:50 até 16:10 da gravação.
42 - O Ofendido explicou que aquela o picou com a faca e a voltou a tirar, num movimento rápido, no peito, na zona do seio esquerdo - conforme depoimento prestado aos minutos 23:00 até 29.00 da gravação.
43 – O Ofendido, através de requerimento por si apresentado em juízo, transmitiu ao Tribunal que quando a Recorrente pegou na faca, o mesmo pode ter feito um movimento em relação à faca.
44 - Afirmou ainda estar convicto de que nunca fora intenção da Recorrente magoá-lo, tendo ainda declarado que esta lhe pedira perdão, tendo demonstrado um profundo arrependimento pelo sucedido, bem como muita preocupação com o seu estado de saúde.
45 - Entendemos que poderá não se encontrar sequer preenchido o elemento subjetivo do crime.
46 - A única factualidade que pode ser dada como assente é a de que a Arguida empunhou uma faca.
47 - Esta factualidade é insuficiente para o preenchimento do elemento subjetivo, na medida em que, na acusação, não consta especificado factualmente qualquer das situações de representação previstas no artigo 14.º do Código Penal.
48 - Quando muito poder-se-á julgar provado que, ao empunhar a faca nos termos descritos, a Recorrente agiu sem o cuidado devido, sabendo, contudo, que poderia, inadvertidamente, atingir o seu companheiro, ainda que estivesse convicta de que tal não aconteceria.
49 - Do exposto decorrem duas conclusões inevitáveis:
- Não é possível extrair de todo o contexto factual o elemento subjetivo tipo do crime de homicídio e necessário na configuração de uma tentativa;
-Sendo o ato lesivo apenas imputável a título de negligência, não é punível a sua conduta traduzida na tentativa negligente de homicídio.
Acresce que,
50- O Ofendido explicou que aquela o “picou” com a faca e a voltou a tirar, num movimento rápido, no peito, na zona do seio esquerdo.
51- Este facto não é de somenos importância, na medida em que deste facto sempre se deveria retirar que a Recorrente cessou a prática dos factos por vontade própria, não se tendo seguido atos idóneos a produzir a morte, por circunstâncias imprevisíveis que também não aconteceram.
52- Efetivamente, querendo a Recorrente matar o Ofendido (como se deu como provado), ficamos então sem saber por que razão não o fez então, não sendo suficiente a (não) explicação constante dos factos provados e ali reduzida ao enunciado linguístico estritamente conclusivo “a morte não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade da arguida”.
53 - Assim, várias hipóteses permanecem agora em aberto: a Arguida não prosseguiu a execução do crime por se ter convencido de que o Ofendido já estaria morto ou que iria morrer seguramente? Ou não prosseguiu porque desistiu de matar? A matéria de facto do acórdão não o esclarece.
54 - Por seu turno, a testemunha CC declarou que a Recorrente se escondera num armário embutido no corredor e que estava muito alterada, verbalizando coisas sem nexo, tendo ainda relatado que a arguida exalava um forte hálito etílico e estava totalmente desorientada, tirando o vestido que vestia, e que não tinha roupa interior por baixo deste - conforme depoimento prestado aos minutos 5:30 até 7:59 e 14:00 até 15:20 gravação.
55 - Antes de ser detida, a Recorrente encontrava-se medicada com: diazepam, mirtazapina, venlafaxina, trazodona, duloxetina, alprazolam.
56 - Consta do relatório pericial psiquiátrico que a arguida padecia de anomalia psíquica, nomeadamente abuso/dependência etílica e sintomatologia depressiva.
57 - O Tribunal deu como provado que, à data dos factos, a arguida sofria dessas mesmas perturbações.
58 - Devia o Tribunal ter ponderado se, estando alcoolizada, medicada e com perturbação psicológica, a arguida se encontrava impossibilitada de reconhecer ou avaliar a ilicitude dos seus atos.
59 - O estado de alcoolização e perturbação psíquica não é compatível com plena capacidade de entendimento e vontade.
60- A imputabilidade diminuída, não determinando a exclusão da responsabilidade penal, pode fundar atenuação da pena, nos termos do artigo 20.º, n.º 2, do Código Penal.
61 - O consumo habitual e abundante de álcool induz alterações cognitivas e comportamentais que podem afetar gravemente a capacidade de julgamento, podendo levar à inimputabilidade ou imputabilidade diminuída.
62 - No caso concreto, a arguida agiu em estado de descompensação psíquica e “obnubilamento” intelectual, não tendo plena capacidade para avaliar a situação e agir conforme a lei.
63 – Do compulso do teor dos relatórios e do depoimento das testemunhas suprarreferidos, impõem-se decisão diversa, ou seja, resulta que a arguida, no momento dos factos, estava afetada na consciência e vontade por álcool, medicação ou patologia psiquiátrica, o que comprometeu o seu discernimento e autodeterminação.
64 - A sua capacidade de avaliar e compreender os factos esteve diminuída, ainda que não totalmente suprimida, integrando o conceito de inimputabilidade reduzida.
Relativamente à terceira conclusão do ponto 14
63- A conclusão de que o ofendido apenas não faleceu por assistência médica imediata carece de suporte na prova produzida.
64 - As declarações do ofendido indicam que a arguida o picou com uma faca e retirou rapidamente a lâmina (minutos 28:00 a 29:30 da gravação).
65- A prova documental e testemunhal demonstra que o ferimento foi ligeiro, tendo o ofendido apenas necessitado de sutura, sem necessidade de acompanhamento médico posterior.
66 - O depoimento de DD (minutos 5:00 a 6:54) confirma a ausência de gravidade clínica.
67 - Assim, não se compreende como o Tribunal deu como provado que a vida do ofendido foi salva apenas pela pronta assistência médica.
68 - Do compulso do teor do relatório e dos depoimentos das testemunhas suprarreferidos, impõe-se decisão diversa, ou seja, a conclusão do ponto 14 deveria ter sido julgada como não provada.
Pontos 15 e 16 do elenco de factos provados
69 - Relativamente aos pontos 15 e 16 dos factos provados, deve aplicar-se integralmente o alegado quanto ao ponto 14, devendo aqueles serem julgados como não provados.
70 - O Tribunal valorizou seletivamente as declarações do Ofendido, desconsiderando afirmações que favoreciam a Recorrente, nomeadamente:
-Que pode ter feito um movimento em direção à faca;
-Que está convicto de que a arguida não teve intenção de o magoar; o Que a arguida lhe pediu perdão, demonstrando arrependimento e preocupação com o seu estado.
71 - Assim, pede-se a reapreciação da prova gravada, com alteração da matéria de facto, devendo ser julgados não provados os factos 7, 8, 9, 10, 13, 14, 15 e 16.
72 - Devem ser considerados provados os seguintes:
73: -A arguida ingeriu 3 (três) garrafas de vinho e comprimidos no dia dos factos; Sofria de perturbação de consciência/vontade que afetava a sua capacidade de autodeterminação; O ofendido pode ter feito um movimento em direção à faca; O ferimento foi ligeiro e sem necessidade de tratamento subsequente; A arguida não teve intenção de ferir, pediu perdão e demonstrou arrependimento.
74 - Houve erro na apreciação da prova e desconsideração da prova favorável à arguida.
II – VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
74 - O Tribunal formou a sua convicção com base exclusiva na prova da acusação, desconsiderando elementos relevantes, como:
a) As declarações do ofendido e de testemunhas imparciais (CC, DD e EE);
b) O requerimento escrito do ofendido esclarecendo mal-entendidos na sua inquirição;
c) A natureza ligeira do ferimento (apenas 4 cm de profundidade e uma única perfuração).
75- O Tribunal ignorou elementos que indicavam dúvida séria e fundada quanto à intenção da arguida.
76- Deveria ter sido aplicado o princípio in dubio pro reo, concluindo-se pela não verificação dos elementos subjetivos do crime.
77 - A condenação da arguida, apesar da incerteza gerada pela prova, viola o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, impondo-se a sua absolvição.
III - INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA (VÍCIO DO ARTIGO 410.º, n.º 2, al. a))
78 - A convicção do Tribunal quanto ao elemento objetivo do crime baseou-se essencialmente no depoimento da testemunha FF.
79 - Tal convicção é questionável, uma vez que: Não foi inquirido o médico a quem foram atribuídas observações clínicas relevantes;
-Há incongruências entre as declarações dessa testemunha e o relatório do INML.
80- O douto acórdão não explica de forma lógica e fundamentada como foi alcançada a convicção quanto aos factos, violando o dever de motivação crítica da prova.
81 - O Tribunal recorreu a prova indireta (indiciária), mas sem cumprir os requisitos necessários:
Não demonstrou claramente o facto base;
-Não aplicou uma regra da experiência ou da ciência de forma explícita;
-Não estabeleceu ligação válida entre indício e facto a provar.
82 - A matéria de facto provada não sustenta a conclusão de que a arguida só não consumou o homicídio por ter a faca embatido no arco costal.
83 - A alegação de que a morte não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade da arguida é uma conclusão sem base factual concreta.
84 - A decisão não esclarece se a arguida desistiu voluntariamente de matar ou se considerou já ter causado a morte.
85 - Esta omissão factual constitui um vício de insuficiência da matéria de facto, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP.
86- Em conclusão, a condenação por homicídio qualificado na forma tentada não é sustentável, devendo a Recorrente ser, no máximo, condenada por ofensa à integridade física qualificada.
IV - DO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA (VÍCIO DO ARTIGO 410.º, n.º 2, al. c) E DO ERRO DE SUBSUNÇÃO
87 - A condenação da Recorrente não se encontra sustentada pela prova constante dos autos nem pela produzida em julgamento.
88 - Toda a prova aponta, quando muito, para a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, e não de homicídio qualificado na forma tentada.
89 - O Tribunal violou o artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP, ao dar como provados os factos 7, 8, 9, 10, 13, 14, 15 e 16, sem base probatória adequada.
90- A decisão contraria a lógica da experiência comum, desconsiderando provas e relatórios que afastam a gravidade necessária para qualificar as lesões como tentativa de homicídio.
91 - O relatório de avaliação de dano corporal conclui que não se verificam consequências permanentes de gravidade relevante, excluindo os efeitos previstos no artigo 144.º do CP.
92 - As lesões não têm gravidade compatível com tentativa de homicídio e não há fundamentação que justifique a condenação nesse sentido.
93 - O Tribunal não fundamentou adequadamente a divergência face à perícia médico-legal, violando o artigo 163.º, n.ºs 1 e 2 do CPP.
94 - O ponto 14 dos factos provados carece de suporte técnico, pois a perícia afasta a existência de lesões adequadas a causar a morte.
95 - À luz das regras da experiência comum, não é razoável concluir que a Arguida tenha querido tirar a vida ao ofendido.
96 - A matéria de facto provada é insuficiente para justificar a qualificação jurídica adotada na sentença.
97 - Mesmo admitindo uma tentativa de homicídio, a prova poderia, no máximo, sustentar a existência de uma desistência voluntária, afastando a consumação do crime tentado.
98 - Nestes termos, a única qualificação jurídica adequada seria a de crime consumado de ofensa à integridade física qualificada (artigo 145.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal).
V - DA PENA CONCRETA APLICADA
99 - A Recorrente apenas poderá ser condenada pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, nos termos do artigo 145.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, sendo a pena de prisão fixada na mediana da moldura legal.
100 - A execução da pena deverá ser suspensa por igual período, eventualmente sujeita a regime de prova.
101 - Ainda que se mantenha, por hipótese académica, o atual enquadramento jurídico, a pena aplicada excede manifestamente a medida da culpa da Recorrente.
102 - A decisão do tribunal a quo violou os artigos 71.º e 40.º do CP, ao não adequar a pena à culpa e às exigências de prevenção, nem ponderar devidamente as circunstâncias favoráveis à Recorrente.
103 - Circunstâncias relevantes que foram ignoradas:
Ausência de antecedentes criminais;
-Personalidade afável e responsável (facto provado n.º 44);
-Perdão do ofendido e arrependimento demonstrado;
-Integração social, familiar e profissional;
-Prognóstico favorável de não reincidência (facto provado n.º 25), mediante seguimento clínico e terapêutico.
104 - A pena aplicada é excessiva e não respeita os critérios de proporcionalidade legalmente exigidos.
105- Assim, mesmo mantendo-se o atual enquadramento, a pena não deverá exceder quatro anos de prisão, com suspensão da execução, sujeita a eventual regime de prova.
106- Foram violadas diversas normas legais e princípios constitucionais e internacionais, incluindo os artigos 20.º, 40.º, 70.º, 71.º, 72.º, 144.º, 145.º do CP, e os artigos 32.º, 129.º, 163.º, 410.º do CPP, assim como foram desrespeitados os princípios do in dubio pro reo, presunção de inocência, proporcionalidade, dignidade da pessoa humana e direito à liberdade, consagrados nos artigos 1.º, 18.º, 20.º, 27.º e 32.º da CRP, e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. »
O recurso foi correctamente admitido pelo Tribunal a quo, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito suspensivo.
O Ministério Público, na primeira instância, respondeu ao recurso, pugnando para que este seja julgado improcedente, sustentando, em síntese, que:
«- De toda a prova produzida em sede de audiência e julgamento, dúvidas não restam que se encontram preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual a arguida foi condenada.
- Não se suscitaram dúvidas no espírito do julgador de molde a obrigá-lo a lançar mão do princípio in dubio pro reo.
- Relativamente à pena, ao crime imputado à arguida a moldura penal é de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses; as necessidades de prevenção geral são muito elevadas, considerando o alarme social que este tipo de crime provoca, as necessidades de pacificação social e de reposição de confiança no direito.
Assim sendo, entendemos que a pena de 5 anos e 6 meses de prisão é totalmente ajustada ao caso vertente, tendo sido correcta a ponderação levada a cabo pelo Tribunal a quo, sendo que a pena concreta está bem abaixo do meio da pena.
Mas mesmo que se sufrague entendimento distinto e a pena aplicada ao arguido venha a ser igual ou inferior a 5 anos de prisão, no caso vertente estará arredada a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão.»
Neste Tribunal da Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no qual concluiu que o recurso merece provimento, pelos seguintes fundamentos, que se sintetizam:
1-Relativamente à invocação dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º 2 a) e c) do CPP, a recorrente confunde a deficiência decisória em causa, assim como o erro notório de apreciação da prova, com o erro de julgamento, que igualmente imputa à decisão.
Lendo o acórdão recorrido não se vislumbra qualquer deficiência para a decisão da matéria de facto provada, nem nenhum erro notório de apreciação da prova, pelo que os referidos vícios deverão ser julgados improcedentes.
2-Relativamente ao invocado erro de julgamento quanto aos factos provados sob os números 3, 7, 8, 10, 13, 14, 15, 16, 17, 20, 21, 22 e 23, deve julgar-se procedente o erro de julgamento quanto aos factos n.ºs 13 e 14 (por total inexistência de meios probatórios que confirmem o aí exarado), e parcialmente procedente a impugnação do facto provado n.º 16, devendo eliminar-se deste a expressão -“
futilmente motivada
“.
3-Da alteração da factualidade provada em conjugação com o princípio in dúbio pro reo decorre não poder concluir-se que a arguida agiu com intuito de matar o ofendido, mas apenas que agiu com o intuito de o ofender corporalmente.
-Deve, nestes termos, ser antes condenada pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma consumada, p. e p. no art.º 145.º n.ºs 1 e 2 com referência ao art.º 132.º 2 b) do Código Penal, uma vez que ao violar os deveres de respeito e de proteção exigíveis numa relação de conjugues como a que a unia ao ofendido, atentando contra a integridade física deste, de forma inesperada e sem que este sequer pudesse reagir ao seu ataque, mostra-se comprovada a especial censurabilidade da sua actuação e o preenchimento da alínea b) do art.º 132.º n.º 2 do Código Penal.
4- Na determinação concreta da pena deverá esta fixar-se nos 3 (três) anos de prisão considerando:
-O bem jurídico violado-integridade física e a zona do corpo do ofendido atingida;
-A intensidade do dolo da arguida- dolo direto (art. 14.º, n.º1 do Cód. Penal);
-O grau elevado das exigências de prevenção geral;
-A elevada ilicitude da actuação da arguida ao usar uma faca com as características da utilizada e de modo inesperado e repentino, sem dar qualquer possibilidade de reacção ao ofendido;
- E as relacionadas com a própria arguida reflectidas nos factos provados n.ºs 2, 26 a 44, nomeadamente, a sua adição de bebidas alcoólicas e medicamentos e a sua instabilidade emocional.
A seu favor militam as seguintes circunstâncias:
-A arguida é delinquente primária;
-É tida como uma pessoa afável e educada;
-Mostra-se arrependida;
-As consequências das lesões sofridas pelo ofendido assumiram pequena gravidade;
-Antes da reclusão, a arguida apresentava um histórico de patologia depressiva, fazendo terapêutica medicamentosa, beneficiando de acompanhamento da sua médica de família;
-O perdão do ofendido;
- No exterior, beneficia do apoio do companheiro/ofendido, o qual pretende reatar a relação que vinham mantendo, atribuindo a conduta da arguida ao seu problema de alcoolismo.
-As medianas exigências de prevenção especial.
5-Por sua vez, a pena concreta de três anos de prisão, ponderando que a arguida tem 61 anos de idade, não possui antecedentes criminais, denotou arrependimento, e tem o perdão e apoio do ofendido, seu companheiro, deverá ser suspensa por igual período, com regime de prova, com sujeição a tratamento da adição alcoólica e medicamentosa de que padece.
Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do CPP, não tendo o recorrente deduzido resposta.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTAÇÃO
Âmbito do recurso e questões a decidir
O âmbito do recurso, conforme jurisprudência assente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso do tribunal, como sejam as elencadas no art. 410º, n.º 2 e 3 do CPP (cfr. artigos 402º, 403º e 412º, nº 1, todos do CPP, e Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995 em www.dgsi.pt, remetendo-nos sempre, doravante, para esta última fonte citada na indicação de jurisprudência, salvo indicação diversa).
Assim, considerando o teor das conclusões do recurso interposto, a recorrente convoca as seguintes questões
:
1-
Aferir se o acórdão recorrido padece dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, nº 2, alíneas a) e c) do CPP;
2-
Aferir se ocorreu erro de julgamento, nos termos do art. 412º, n.ºs 3 e 4 do CPP, relativamente aos factos provados n.ºs 3, 7, 8, 10, 13, 14, 15, 16, 17, 20, 21, 22 e 23, e ainda, se foi violado o princípio in dubio pro reo;
3-
Se ocorreu erro na qualificação jurídica do crime pelo qual a recorrente foi condenada, devendo antes ser-lhe imputada a prática, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada previsto e punido pelo art. 145.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal;
4-
Se a pena aplicada é excessiva, devendo ser reduzida, e em todo o caso se deve sempre ser suspensa na sua execução.
As questões colocadas à apreciação deste tribunal serão apreciadas por ordem de precedência lógico-jurídica (artigo 608º, nº 1 do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4º do de Processo Penal), cumprindo começar por aquelas que consubstanciem vícios de procedimento geradores de nulidade [que a procederem inviabilizarão o conhecimento dos restantes fundamentos de recurso], determinantes do retrocesso dos autos à fase de julgamento.
Apreciando.
Com relevo para o conhecimento do recurso, é do seguinte teor a decisão de facto do acórdão recorrido:
«Com interesse para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
Da acusação:
1. BB e a arguida AA viveram, até à data dos factos, em condições análogas às dos cônjuges durante cerca de 13 anos, partilhando leito, mesa e habitação, esta sita na Rua ..., ... direito, em ....
2. A arguida era, à data dos factos, consumidora habitual de bebidas alcoólicas em grandes quantidades, tomando concomitantemente medicação (antidepressivos e relaxantes), o que vinha a causar discussões entre o casal.
3. No dia 30 de Junho de 2023, durante o almoço e a tarde, a arguida foi, como habitualmente, ingerindo bebidas alcoólicas.
4. Nesse dia, cerca das 18h30m, a arguida muniu-se de uma faca de ponta romba, cabo preto, com 10 cm de comprimento e lâmina em serrilha com 17cm de comprimento e dirigiu-se à sala de jantar, onde se encontrava o ofendido, e exibiu-lha.
5.De imediato o ofendido lhe disse “Pousa a faca! Pousa a faca!”.
6. O ofendido, ao verificar que a arguida não pousava a faca, logrou aproximar-se e retirar-lha da mão.
7. De imediato, a arguida lançou mão de uma outra faca que se encontrava em cima da mesa de jantar, com 22cm de comprimento, sendo 11cm de lâmina, com serrilha e pontiaguda e desferiu-lhe uma facada no lado esquerdo do peito, na parte superior do tórax, de imediato fugindo de casa através da janela da cozinha.
8. Ferido e deixado à sua sorte pela arguida, o ofendido accionou o serviço de emergência médica.
9. A arguida regressou a casa alguns minutos mais tarde, escondendo-se dentro de um armário, sem proferir palavra.
10. O ofendido foi assistido no local e transportado para o serviço de urgência do Hospital de ..., apresentando hemorragia incontrolável.
11. Como consequência directa e necessária da conduta da arguida, o ofendido sofreu dores e trauma torácico penetrante, com ferida incisa de natureza corto perfurante na região supra-mamária esquerda, tendo o orifício o comprimento aproximado de 1,5cm de comprimento e 4cm de profundidade, com cicatriz nacarada na linha mamilar acima do mamilo de 1cm de comprimento,
12. que determinou ao ofendido um período de doze dias para cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral.
13. Apenas pelo facto de a faca ter ficado espetada no arco costal, impedindo a sua progressão, é que não ocorreu laceração do pulmão e coração do ofendido, o que, a suceder, provocaria a sua morte.
14. Ao actuar da forma descrita, a arguida agiu com o deliberado propósito de tirar a vida a BB, bem ciente de que o instrumento que utilizava, quer pela sua natureza corto-perfurante, quer pela zona do corpo procurada e atingida (nomeadamente coração e pulmões), era adequado a causar a morte do mesmo, o que quis e que apenas não logrou por razões alheias à sua vontade, atenta a assistência médica que prontamente lhe foi prestada, primeiramente no local e após no atendimento médico de urgência, único motivo pelo qual não conseguiu concretizar a sua resolução de tirar a vida ao ofendido.
15. Fê-lo com total indiferença pelos deveres de respeito e consideração àquele devidos, com quem mantém relação análoga à dos cônjuges.
16. Agiu a arguida futilmente motivada, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou que:
17. A arguida fala do acontecimento de forma controlada e nada ansiosa, não demonstrando empatia, evidenciando algumas características anti-sociais da sua personalidade.
18. À data dos factos a arguida sofria de abuso/dependência etílica e sintomatologia depressiva.
19. Da avaliação instrumental da arguida não decorre sintomatologia psicopatológica com significância clínica embora na observação clínica e na narrativa se sinalizem sintomas que se inscrevem nas dimensões ansiedade e obsessão/compulsão.
20. No âmbito do perfil de personalidade, da avaliação resulta a evidência de características compatíveis com perturbação de personalidade anti-social, destacando-se: Personalidade: atitude fria, impessoal e distante no contacto interpessoal, séria e reprimida, sentindo-se pouco confortável em situações nas quais frequentemente se estabelecem relações interpessoais e nas quais se manifestam emoções e sentimentos.
21. A arguida tenderá à reactividade e será propensa à instabilidade emocional, sentido uma certa falta de controlo sobre a sua vida e podendo reagir de forma contraproducente ao invés de se adaptar activamente às alternativas que lhe sejam propostas.
22. Embora não exiba um perfil de dominância, será objectiva, não sentimental e calculista; pode centrar-se tanto na utilidade e na objectividade que chegue a ignorar os sentimentos dos outros; cederá pouco à vulnerabilidade pelo que pode encontrar problemas em circunstâncias que requeiram sensibilidade.(…). Sentir-se-á confortável em situações organizadas e previsíveis e sentirá como difíceis as que não consegue prever, chegando a ser inflexível”.
23. Na narrativa da arguida identifica-se ainda a ausência de consistente sistema de suporte e de relações interpessoais sociais e de intimidade satisfatórias. Embora verbalize um sentimento de arrependimento pelo cometimento dos alegados factos, tende a minimizar os mesmos em função das efectivas consequências para a vítima e fá-lo sem aparente ressonância emocional e afectiva.
Ao vindo de descrever acresce o perfil de personalidade supra exposto, destacando-se elementos como o comportamento instável e reactividade, histórico de ideação suicida, referido diagnóstico psiquiátrico de depressão e ansiedade generalizada, potenciais experiências traumáticas no percurso de vida e medo de abandono pela alegada vítima – sublinhando-se que este se constituirá o seu sistema de suporte e figura de referência no presente.
24. Ressalta ainda, no âmbito das suas crenças, uma minimização ou legitimação da violência pela preservação da privacidade familiar, legitimação da violência pela sua atribuição a causas externas, bem como tendente da legitimação da violência por conduta do parceiro.
25. A arguida possui um perfil pautado por um conjunto de características e factores que, de forma exponencial se associados ao consumo de substâncias, configuram risco da reincidência de perpretação de comportamentos anti-sociais. Carece de manter acompanhamento psiquiátrico e suporte terapêutico e psicoeducativo no que respeita aos consumos etílicos.
Das condições pessoais e económicas da arguida AA
26. À data dos factos, AA vivia com o seu companheiro, ofendido nos autos, na Rua ..., em ..., .... A arguida beneficiava de pensão de viuvez no montante aproximado de 1.000 € e o companheiro usufruía de pensão de invalidez no valor de 600 €.
27. No que respeita às despesas, a arguida suporta um empréstimo à habitação no montante de 300€ e consumos de energia elétrica, de água e telecomunicações no montante aproximado de 100€.
28. O processo de socialização de AA decorreu em ..., junto dos progenitores e de dois irmãos germanos, em dinâmica familiar funcional, não obstante os problemas ligados ao álcool por parte do progenitor.
29. Iniciou percurso escolar em idade regular, tendo frequentado o 10.º ano de escolaridade, tendo abandonado a escola devido a questões familiares e económicas.
30. A arguida teve a sua primeira integração laboral aos 16 anos de idade, como operária em unidade fabril têxtil, na sua área de residência. Retrata um percurso laboral regular, maioritariamente na área das limpezas e como lojista, no ... e ..., países onde esteve emigrada cerca de 40 anos.
31. No ..., aos 23 anos estabeleceu matrimónio com o ex-cônjuge, com o qual tem dois descendentes, atualmente com 38 e 37 anos de idade. Inicialmente, o casal ficou a viver no ..., emigrando posteriormente para o ...,
vindo a separar-se em 2001, quando a arguida tinha 43 anos. O relacionamento entre o ex-casal caracterizava-se como desajustado, atendendo à problemática aditiva do ex-cônjuge, com episódios de violência doméstica perpetrados por aquele.
32. Há cerca de 10 anos, conheceu o atual companheiro/ofendido, vivendo em união de facto, inicialmente no ... e desde 2019 em ..., em habitação pertencente a AA. O relacionamento com o companheiro é caracterizado como positivo, identificando pontos de conflitualidade em razão do consumo excessivo de bebidas alcoólicas por ela assumido.
33. O companheiro/ofendido nos autos carateriza aquela união como gratificante, não obstante a comunicação conflitual que, ao longo dos anos, se vinha agravando, em razão do consumo excessivo de bebidas alcoólicas realizado pela arguida.
34. No que respeita ao relacionamento da arguida com os filhos, o companheiro refere que aqueles demonstram preocupação face à situação de saúde da arguida, sensibilizando-a para tratamento à problemática alcoólica de que padece.
35. AA iniciou o consumo de bebidas alcoólicas pelos 37 anos de idade, passando a realizar aquele consumo de forma excessiva após o falecimento dos pais (o pai em 2020 e a mãe em 2023). Beneficiou de acompanhamento àquela problemática há cerca de três anos, no CRI ..., no âmbito da execução de uma suspensão provisória do processo, o qual abandonou.
36.No exterior, beneficia do apoio do companheiro/ofendido.
37. Na comunidade, não foram percecionados sentimentos de rejeição à presença da arguida, não obstante a rede vicinal conhecer as alterações de comportamento evidenciadas por AA e as situações de conflitualidade com o companheiro quando sob o efeito de bebidas alcoólicas.
38. AA regista anterior suspensão provisória do processo, imposta pelo período de dez meses, condicionada ao cumprimento de injunções, pela prática de comportamentos agressivos/violentos dirigidos à mãe e ao irmão GG.
39. AA encontra-se presa no EPFSCB desde ../../2023, à ordem do presente processo. Neste contexto, a arguida tem assumido comportamento ajustado ao normativo disciplinar vigente.
40.Beneficia de acompanhamento pelos Serviços Clínicos do EPFSCB, na especialidade de Psiquiatria.
41. Salienta o impacto que a presente reclusão acarretou, particularmente para a sua vida pessoal e familiar, nomeadamente o afastamento do companheiro/ofendido.
42.A ligação da arguida ao exterior tem sido mantida pelos contactos com o companheiro.
43. Antes da reclusão, a arguida beneficiava de acompanhamento pela sua médica de família, Dra. HH, no Centro de Saúde ..., com histórico de patologia depressiva, fazendo terapêutica medicamentosa.
44.A arguida é tida como pessoa afável e educada.
Das condenações anteriores da arguida
45. A arguida não tem quaisquer condenações averbadas ao seu certificado de registo criminal.
Do pedido de indemnização civil do Hospital de ..., EPE:
46. No dia 30/06/2023, o demandante prestou cuidados médicos a BB, no valor total de € 186,77.
2.3.- Factos Não Provados
Não resultou provado:
A. Que no dia 30/06/2023, ao fim da tarde, o ofendido BB e a arguida se envolveram em discussão, no decurso da qual esta lhe disse repetidamente “Eu mato-te!”.
B. Que, nas circunstâncias referidas em 5, a arguida retorquiu “Esta faca de cortar pão nem espetava!”.
C. Que, nas circunstâncias referidas em 7, a arguida disse ao ofendido “Esta já não é tão flácida, é pontiaguda!”.
D. Que, nas circunstâncias referidas em 9, a arguida tenha regressado 20 minutos depois e se tenha escondido no quarto.
2.4- Motivação da matéria de facto
Nos termos do disposto no art. 124.º do C.P.P. constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade da arguida e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicável.
O princípio básico que norteia a apreciação da prova é o da sua livre apreciação tal como prescrito pelo art. 127.º, n.º 1 do C.P.P.: «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção da entidade competente».
A este propósito, releva a apreciação feita pelo Cons. Armando Leandro no Ac. do STJ de 16/01/2002, Proc. nº 3649/01 - 3ª Secção, que afirma o seguinte:
“O critério da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP, não significa a possibilidade de apreciação puramente subjectiva, arbitrária, baseada em meras impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, antes pressupõe uma cuidada valoração objectiva e crítica e em boa medida objetivamente motivável, em harmonia com as regras da lógica, da razão, das regras da experiência e dos conhecimentos científicos; engloba porém não só os factos probandos apreensíveis por prova directa mas também os factos indiciários, no sentido de factos que, por deduções e induções objectiváveis a partir deles, tendo por base as referidas regras, conduzem à prova indirecta daqueles outros factos, que constituem o tema da prova; tudo a partir de um processo lógico-racional que envolve porém, naturalmente, também elementos subjectivos, inevitáveis no agir e pensar humano, que importa reconhecer com honestidade e maturidade para melhor impedir que possam ser fonte de arbitrariedade e permitir actuem, pelo contrário, como instrumento de perspicácia e prudência na busca da verdade processualmente possível”. Inspirados por este mote cumpre, então, explanar os elementos probatórios nos quais se baseou o tribunal para dar como provados e não provados os factos supra elencados.
Na formação da convicção, o Tribunal atendeu, desde logo, aos seguintes elementos de prova:
Prova documental:
-auto de fls. 5 a 10, 37 e 38
- auto de apreensão de fls. 23 - referente a uma faca de cozinha, serrinhada, com cabo de plástico em cor preto, com o comprimento total de 28 cm, sendo 17 cm de lâmina.
- relatório fotográfico de fls. 26 a 29 - ferimentos sofridos pelo ofendido BB e facas, sendo uma delas a apreendida; 103 a 105 - fotografias da arguida e das facas apreendidas; 209 a 213 - referente à faca apreendida.
-guia de entrega de fls. 76 - referente às duas facas apreendidas na casa da vítima e arguida.
- elementos clínicos de fls. 31, 32 - episódio de urgência do ofendido no dia 30/06/2023; fls. 217 a 219 - de onde decorre que o ofendido “Apresenta ferida incisa região torácica esquerda com pequena hemorragia incontrolável.”
-CRC constante dos autos.
-Relatório social de 13/05/2024.
Prova pericial:
-relatório do IML de fls. 111 a 113 e 271 a 273
-exame de fls. 229 e 230 - referente aos vestígios retirados das facas apreendidas.
-Perícia psiquiátrica datada de 17/06/2024, Ref. ...41.
-Perícia relativa à personalidade datada de 22/11/2024, Ref. ...16.
Elencada a prova tida em consideração pelo Tribunal na sua globalidade, importa agora analisar os meios de prova de forma mais detalhada.
A arguida prestou declarações, começando por referir que no dia em causa estava alcoolizada, pois “tinha bebido muito”, contrariamente ao que declarou nas suas primeiras declarações em sede de interrogatório - validamente reproduzidas em audiência, em que disse que tinha bebido mas não estava alcoolizada, e por isso não se lembra do que aconteceu. Referiu que apenas tem memória dos “guardas entrarem em casa e a levarem para a esquadra.”
Relatou que já vivia com o ofendido há cerca de 12 anos, tendo o casal vivido parte do tempo no .... A arguida assumiu que bebia diariamente, às refeições, e que depois de os pais morrerem (a mãe faleceu em Janeiro de 2023) começou a beber mais.
Explicou que à data dos factos estava medicada com “Xanax”, e que tomava “2 ou 3 por dia” (contrariamente às declarações que prestou em sede de interrogatório judicial, validamente reproduzidas, em que disse que não tomava anti depressivos nem relaxantes). Relatou que o casal tinha algumas discussões, sendo que o ofendido BB deixou de beber há 4 anos. Também referiu conhecer as facas apreendidas nos autos, sendo uma delas uma “faca de cortar pão” e a outra servia para descascar fruta.
Afirmou que, no dia em causa, depois do almoço começaram a discutir, e que depois “esteve a ver novelas no quarto até ao que aconteceu.” Lembra-se de estar a andar pela casa, e que o ofendido estava sentado na mesa da sala. Depois, a arguida mencionou que não se recorda do que aconteceu de seguida. Relatou que o ofendido vai visitá-la ao EP, mantem contacto com um irmão, e que deixou de beber álcool, estando a ser acompanhada em psiquiatria.
A arguida negou que no dia dos factos se tenha escondido no armário, já que não cabe lá uma pessoa.
Referiu ter pedido perdão ao ofendido, e que foi este quem lhe contou “que lhe tinha espetado uma faca”, no que a arguida não acreditava.
Fazendo uma análise critica das declarações da arguida, refira-se que elas convenceram o Tribunal apenas na parte em que se mostraram consonantes com a matéria de facto dada como provada, pois que, nesse âmbito, foram providas de indiscutível razão de ciência, mostraram-se firmes e seguras, além de coerentes com prova produzida que o Tribunal considerou credível.
A isto acresce que a maior parte dos factos admitidos pela arguida são factos que lhe são desfavoráveis e que, por isso, nenhum interesse aquela teria em admitir.
Já na parte em que as declarações da arguida foram em sentido diverso da matéria de facto dada como provada, elas em nada convenceram o Tribunal.
Em primeiro lugar, dado que as declarações da arguida, nessa sede, se mostraram totalmente parciais e interessadas no resultado do presente feito crime.
Em segundo lugar, porque, nessa parte, as declarações da arguida foram contrariadas pelas regras da experiência comum e por outra prova que o Tribunal considerou credível.
Quanto à matéria de facto dada como provada que não foi admitida pela arguida, o Tribunal tomou em consideração, além do mais, as declarações do ofendido BB, a demais prova testemunhal e os restantes meios de prova produzidos, como de seguida se irá analisar, tudo concatenado com as regras da experiência comum.
Começando por analisar as declarações do ofendido BB, começa por referir-se que o mesmo prestou um depoimento comprometido com a posição processual da arguida, o que não é de estranhar tendo em conta que os mesmos mantêm a intenção de reatar a relação que tinham anteriormente à reclusão da arguida tendo, por isso, sido nítida a tentativa daquele de menorizar a gravidade dos factos praticados por esta, pese embora quanto aos factos nucleares/ fulcrais se considere que o mesmo depôs com verdade. Assim, o ofendido começou por referir que ambos bebiam álcool em excesso, porém o próprio deixou de o fazer há 3/ 4 anos. Referiu que nos tempos anteriores à data dos factos a arguida estava a beber mais, e por isso andava mais agressiva. Explicou também que comprava todos os dias pelo menos uma garrafa de vinho para o almoço “só para ela, e que às vezes não chegava”. No dia em causa, o ofendido referiu que estava sentado na mesa da sala de jantar e havia uma faca na mesa, que identificou como a de fls. 29, que usava sempre para comer às refeições e para descascar fruta. Identificou ainda a faca de fls. 28 como sendo uma “faca de pão”.
Referiu que a arguida, no dia dos factos, durante a tarde, andava de um lado para o outro da casa, e já tinha bebido três garrafas de vinho nesse dia. Explicou ainda que era habitual depois do almoço haver discussão entre o casal. Contudo, no dia em causa não houve discussão (motivo pelo qual resultou não provado o facto A). Aliás, o ofendido também não confirmou que a arguida tenha proferido quaisquer expressões no decurso do confronto entre ambos, motivo pelo qual igualmente resultaram não provados os factos referidos em B e C, na ausência de qualquer outra prova nesse sentido.
Numa das vezes em que deambulava pela casa, a arguida dirigiu-se a ele, pegou na faca do pão que estava em cima da mesa e mostrou-lha. O ofendido disse-lhe para pousar a faca, após o que, para evitar que a arguida o agredisse, a retirou da mão da arguida e a pousou na mesa. Após a arguida pegou na outra faca, a da fruta e, de súbito, espetou-lha. O ofendido explicou que aquela o “picou” com a faca e a voltou a tirar, num movimento rápido, no peito, na zona do seio esquerdo.
O ofendido referiu que logo de seguida a arguida fugiu para a cozinha, tendo percebido depois que não estava em casa (pelo que pode ter saído por uma janela larga que existe na cozinha, e dá acesso ao exterior). Referiu que se manteve sentado, pegou no telemóvel e chamou a ambulância.
Afirmou que pouco tempo depois chegaram a polícia e os bombeiros, sendo o próprio ofendido quem lhes abriu a porta. O ofendido referiu ainda que “Tinha pouco sangue”.
Nessa altura a arguida já tinha voltado para casa, tendo-se escondido.
Após a sua reclusão, o ofendido tem visitado a arguida todas as semanas, e quer continuar com a relação que tinha com aquela. Referiu que a arguida agiu daquela forma pelo facto de ter bebido “três garrafas de vinho seguidas”, misturado com os calmantes que tomava.
Ora, atendendo ao teor das declarações do ofendido, que, não obstante a aparente ligeireza com que descreveu os factos, depôs de forma que se nos afigurou verosímil, o Tribunal não teve dúvidas de que os factos ocorreram como este os descreveu, assim dando como provada a matéria assente supra.
As demais testemunhas inquiridas não presenciaram os factos, apenas podendo atestar o estado em que se encontravam o ofendido e a arguida após a sua ocorrência. A testemunha CC, agente da PSP, referiu que quando chegou ao local o ofendido já estava a ser assistido pelos bombeiros, tendo este afirmado que a companheira o tentou matar com uma faca na zona do coração.
Referiu que se encontravam duas facas lado a lado em cima da mesa, estando a arguida AA escondida num armário embutido no corredor.
Explicou que a arguida estava muito alterada, verbalizando coisas sem nexo, tendo, no entanto, dito que provocou um ferimento ao ofendido, mas não explicitou como o fez. Relatou ainda que a arguida exalava um forte hálito etílico e estava totalmente desorientada, tirando o vestido que vestia, e que não tinha roupa interior por baixo deste.
Mencionou que apreendeu as duas facas que se encontravam no local. Confirmou ainda o teor do auto notícia de fls. 5, do auto de apreensão de fls. 23 e das fotografias fls. 26.
Por fim, afirmou que a camisola do ofendido tinha uma mancha de sangue, mas que este “não se estava a esvair em sangue” e que não havia vestígios de sangue espalhados no local.
Já a testemunha DD, bombeiro, referiu que assistiu o ofendido, que tinha um ferimento no peito. Explicou que o mesmo apresentava um ferimento ligeiro, que lhe fez um curativo, e que no local não havia poças de sangue.
A acompanhar esta testemunha estava também o bombeiro EE, que referiu que já conhecia aquela casa, por aí terem sido chamados anteriormente por terem existido desacatos, por duas vezes. Referiu que foi a vítima que lhes abriu a porta, e que esta tinha manchas de sangue na camisola. O ofendido foi pelo seu próprio pé para a ambulância.
Relatou ainda, com relevo, que enquanto estiveram a assistir o ofendido ouviu uma senhora aos gritos fechada num compartimento, não tendo visto de quem se tratava.
Por fim, a testemunha FF, inspector da PJ, referiu que se deslocou ao hospital, onde falou com o médico que viu a vítima. Este último explicou que a lesão do ofendido se situava perto do coração, e que apenas não foi mais grave porque a lâmina bateu nas costelas, o que impediu que o golpe fosse mais fundo.
A testemunha FF explicou ainda que a vítima estava desestabilizada e a arguida estava agressiva, embriagada e exalava hálito a álcool, confirmando que o aspeto com que encontrou esta última correspondia ao da fotografia de fls. 104.
Para prova das lesões apresentadas pelo ofendido foi valorado o teor do relatório pericial do IML de fls. 111 a 113 e 271 a 273, cujo valor probatório não foi afetado por qualquer outra prova produzida nos autos.
No que concerne à intenção com que a arguida atuou quanto ao imputado “homicídio na forma tentada”, “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, de natureza subjetiva, insuscetível de direta apreensão, só é possível captar a existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge, com maior representação, o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência” (cf. Ac. da Relação do Porto de 23-02-1983, BMJ, n.º 324, p. 620).
Os factos do tipo subjetivo que integram o dolo, os atos interiores ou internos, resultam frequentemente dos factos externos e, por respeitarem à vida psíquica, raramente se provam diretamente.
Na ausência de confissão, em que a arguida reconhece ter sabido e querido os factos do tipo objetivo, a prova do dolo far-se-á por ilações, retiradas de indícios, e também de uma leitura de um comportamento exterior e visível do agente.
Ora, face a tudo o exposto, os factos externos apurados, consubstanciados nas concretas atuações objetivas demonstradas, com base nos meios de prova referidos e com base nas regras de experiência, permitiram ao Tribunal, com consistência, presumir o facto interno e alcançar convicção positiva sobre a evidente e direta intenção da arguida de atuar daquela forma nos moldes provados (no que se reporta à sua intenção de tirar a vida ao ofendido).
Com efeito, o dolo e intenção de matar, tendo a arguida negado a sua verificação, inferem-se dos aspetos objetivos em que se materializou a sua ação e do significado que os mesmos têm e revelam de acordo com as regras da experiência comum.
Para essa conclusão, no caso dos autos, o Tribunal atendeu especialmente: à zona do corpo do ofendido atingida: do lado esquerdo do peito, onde se situa o coração, facto que é do conhecimento geral e básico de qualquer indivíduo;
Ora, estamos perante uma zona vital do corpo, o tórax. Repare-se ainda na extensão do golpe perpetrado pela arguida na zona torácica, com cerca de 4 centímetros de profundidade.
Ao instrumento utilizado, uma faca, objeto que propicia golpes profundos. Com efeito, os ferimentos causados no ofendido exigiram tratamento médico urgente, ainda que a vida do ofendido não tenha estado concretamente em risco.
De tudo isto não poderá ter deixado de se aperceber a arguida.
Acresce que apenas pelo facto de a faca ter ficado espetada no arco costal, impedindo a sua progressão mais na direção dos órgãos internos do ofendido, é que não ocorreu laceração do pulmão e coração deste, o que, a suceder, provocaria a sua morte.
-Ao estado em que a arguida deixou a vítima no local, ausentando-se de casa logo após a prática dos factos e deixando este abandonado à sua sorte;
-A arguida sabia ainda a curta distância que a separava do ofendido, assim potenciando exponencialmente a gravidade do golpe que perpetrou com a faca. Aliás, esta muniu-se, primeiro, de uma faca de ponta romba, sendo que, após o ofendido lha retirar, persistiu na sua intenção de lhe tirar a vida e aí se muniu de uma faca de serrilha e pontiaguda.
Todos estes factos, devidamente perspetivados à luz das regras da normalidade, conduzem
inelutavelmente à conclusão de que a arguida, ao atuar como atuou, quis efetivamente tirar a vida ao ofendido, o que apenas não ocorreu por circunstâncias alheias à sua vontade.
Acresce ainda que o instrumento utilizado - uma faca de cozinha, com 22cm de comprimento, sendo 11cm de lâmina, com serrilha e pontiaguda - propicia golpes profundos.
Os ferimentos causados exigiram a intervenção médica urgente para tratamento das lesões causadas ao ofendido.
Nesta parte, foi ainda valorado e relevante o teor do relatório de perícia psiquiátrica datado de 17/06/2024. De acordo com o mesmo, à data dos factos a arguida tinha capacidade de avaliar a ilicitude das suas condutas e de se determinar de acordo com essa avaliação.
Foi igualmente tida em conta a perícia à personalidade da arguida (datada de 22/11/2024, Ref. ...16), de onde se destaca que “A arguida tenderá à reactividade e será propensa à instabilidade emocional, sentido uma certa falta de controlo sobre a sua vida e podendo reagir de forma contraproducente ao invés de se adaptar activamente às alternativas que lhe sejam propostas.(…)
A arguida possui um perfil pautado por um conjunto de características e factores que, de forma exponencial se associados ao consumo de substâncias, configuram risco da reincidência de perpretação de comportamentos anti-sociais. Carece de manter acompanhamento psiquiátrico e suporte terapêutico e psicoeduativo no que respeita aos consumos etílicos.”
Ora, do teor de ambos os relatórios periciais extrai-se a conclusão de que a arguida não tinha qualquer condição psiquiátrica ou semelhante que a impedisse de compreender a gravidade dos factos que praticou.
Motivo pelo qual, conjugados todos os elementos probatórios referidos, o Tribunal não teve dúvidas em dar como assentes os factos atinentes ao elemento subjetivo.
Os factos relativos às condições económico-sociais da arguida resultam do respetivo relatório social constante dos autos, enquanto a ausência de antecedentes criminais resulta do CRC junto aos autos.
Foram ainda tidos em conta os depoimentos das testemunhas de defesa II e JJ, amigos do ofendido e que conheciam o casal, que descreveram a arguida como pessoa afável e educada, pese embora a testemunha II ter referido que por
vezes a arguida “bebia um bocadinho e ficava alterada”, já que também tomava medicamentos.
Os factos dados como não provados resultam da ausência de prova bastante a seu respeito bem como
da sua contradição relativamente aos factos dados como assentes.
Não se respondeu à restante matéria por ser irrelevante, conclusiva ou respeitar a matéria de direito.»
Mérito do recurso
1. Dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, nº 2, alíneas a) e c) do CPP
Defende a recorrente que o acórdão por si sindicado padece de
insuficiência para a decisão da matéria de facto
provada porquanto, em síntese, não se mostra comprovada a conclusão que o Tribunal a quo retirou de que a arguida só não consumou o homicídio por a faca ter embatido no arco costal do ofendido (Facto provado n.º 13); e a conclusão de que a morte não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade da arguida é uma ilação sem sustento factual concreto, que a decisão não esclareceu, constituindo esta omissão um vício de insuficiência da matéria de facto, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP.
E sobre o vício previsto na alínea c) do normativo supracitado alega que o Tribunal a quo não podia dar como provados os factos n.ºs 7, 8, 9, 10, 13, 14, 15, 16, e
ao fazê-lo incorreu em erro notório
, porquanto toda a prova aponta para a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, e não de homicídio qualificado na forma tentada, o exame pericial afasta a existência de lesões adequadas a causar a morte, à luz das regras da experiência comum não é razoável concluir que a arguida tenha querido tirar a vida ao ofendido, pelo que a matéria de facto provada é insuficiente para justificar a qualificação jurídica adotada na sentença.
Vejamos.
A invocada revista alargada convoca os vícios decisórios quanto à matéria factual constante do texto da decisão recorrida e que deste texto resulte, por si só ou conjugado com as regras de experiência comum: que a matéria de facto dada como provada seja insuficiente para a decisão final (art. 410º, n.º 2, al.a) do CPP); que ocorra contradição insanável da fundamentação da decisão factual ou entre essa fundamentação e a decisão factual (al. b) do mesmo preceito); e/ou que ocorra erro notório na apreciação da prova.( al. c)).
Conforme resulta do próprio texto legal, e é pacifico na doutrina e jurisprudência, a verificação destes vícios só pode decorrer do texto da decisão recorrida, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente a meios de prova produzidos que constem do processo. Em face do teor do texto da decisão, apenas as regras de experiência comum podem, se necessário, servir de critério de aferição da existência, ou não, de tais vícios.
Tratam-se, assim, de vícios intrínsecos da decisão, de conhecimento oficioso, (cfr. Acórdão do STJ n.º 7/95 in DR, I-A Série, de 28-12-1995).
O primeiro dos vícios, o da insuficiência da matéria de facto para a decisão, não deve ser confundido, como é comum ocorrer, sendo disso exemplo a confusão da recorrente, com a insuficiência dos meios probatórios para dar como provado ou não provado determinado facto.
Tal vício ocorre quando, na exposição da matéria de facto exarada no texto da decisão (provada e não provada), se constata a ausência ou omissão de factos essenciais para se concluir por aquela concreta condenação ou absolvição, ou por aquela pena concreta.
Será o caso, exemplificativamente, de não constar do acervo factual o elemento objectivo ou subjectivo do específico crime imputado ao agente, (que podendo e devendo ter sido obtido e julgado provado ou não provado, é necessário para sustentar a decisão), ou o circunstancialismo concreto que motivou a escolha ou o quantum da pena concreta.
Ou, nos dizeres do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-07-2013, Proc. 1/05.2JFLSB.L1-3, in
www.dgsi.pt
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«O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma. No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito, seja a proferida efetivamente, seja outra, em sentido diferente, que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa.»
(Sobre o tema, vide ainda o Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, edições Verbo, 2010, volume III, páginas 325 e 325; e entre outros, o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 05 de Setembro de 2007, processo nº 06P4798, in wwwdgsi.pt).
Já o erro notório na apreciação da prova, conforme previsto na alínea c) do nº 2 do art. 410º do CPP, ocorre quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum de um homem médio ou sopesado à luz das regras de experiência comum, resulte de forma evidente, ostensiva, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada, por a factualidade aí exarada ser arbitrária, contrária à lógica, a regras científicas ou de experiência comum ou por assentar na inobservância de regras sobre o valor da prova vinculada ou das “leges artis”, e que tal fique demonstrado pelo tribunal “ad quem”. (cfr., neste sentido, o acórdão do STJ de 02 de Fevereiro de 2011, processo nº 308/08.7ECLSB.S1, em www.dgsi.pt).
Por sua vez, regras da experiência comum “são generalizações empíricas fundadas sobre aquilo que geralmente ocorre. Tem origem na observação de factos que rotineiramente se repetem e que permite a formulação de uma outra máxima (regra) que se pretende aplicável nas situações em que as circunstâncias fáticas sejam idênticas. Esta máxima faz parte do conhecimento do homem comum, relacionado com a vida em sociedade.”. (In " Curso de Processo Penal", Prof. Germano Marques da Silva Verbo, 2011, Vol. II, pág.188.)
Estamos perante o mencionado vício, como assinalado pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-02-2023, proc. 18/19.0YUSTR-N.L1_PICRS (da mesma fonte), «quando do texto da decisão ou do encontro deste com a experiência comum resulta falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável.»
Assinala-se, por último, que os dois vícios ora em apreciação não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal da recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firmou sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no art. 127º do CPP. Pois o que releva “é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função do controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410º, nº 2 do C.P.Penal, a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos” (Cfr. Acórdão do STJ de 2008.11.19, Proc. nº 3453/08-3 referido por Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 9.ª ed., 2020, pág. 76).
Assentes no regime jurídico assim delimitado, e volvendo ao caso concreto dos autos verificamos, desde logo, que a recorrente, para fundamentar cada um dos vícios, socorreu-se de vários meios de prova produzidos em audiência de julgamento e da análise que fez dos mesmos, não constantes do texto da decisão.
Quer isto dizer que os apontados vícios não decorrem, “tout court”, do texto do acórdão recorrido, antes o extrapolando, o que afasta ou exclui a verificação dos vícios em causa, como vimos.
É o que decorre da sustentação da arguida quando defende que nem da prova testemunhal, nem da dos documentos clínicos, nem dos exames periciais, resulta em lado algum que a faca com que atingiu o peito do seu companheiro ficou espetada no arco costal, o que impediu a sua progressão, e só por isso é que não ocorreu laceração do pulmão e coração o que, a suceder, provocaria a sua morte.
É igualmente o que decorre da argumentação da recorrente quando fundamenta o erro notório da apreciação da prova, nomeadamente, no teor do exame pericial que segundo alega afasta a existência de lesões aptas a causar a morte, para concluir que foi erradamente dado como provado que a arguida tenha querido tirar a vida ao ofendido.
Por outro lado, mesmo que o Tribunal a quo desse por assente que a morte não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade da arguida sem que tivesse esclarecido que circunstâncias eram essas, o que não é o caso pois tal concretização resulta dos factos provados n.ºs 13 e 14, tão pouco estaríamos perante a insuficiência prevista na alínea a) do n.º 2 do art. 410º do CPP, como defende a recorrente. É que, como se assinalou, o que constitui a insuficiência da matéria de facto para a decisão é a omissão de factos essenciais para se concluir pela concreta condenação, no caso, pela prática de um crime de homicídio na forma tentada.
O que não se confunde, tal como manifestamente o faz a recorrente, com a insuficiência dos meios probatórios para dar como provado ou não provado determinado facto.
Considerando o exposto, e ponderando, ainda, que:
-A decisão de facto contém toda a factualidade essencial para se chegar à condenação da recorrente pela prática de um crime de homicídio na forma tentada (ainda que bem ou mal apreciada pelo Tribunal recorrido, o que é questão diversa);
- E que do texto da decisão recorrida
não resulta
uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, claramente perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados ou não provados factos inconciliáveis entre si ou que traduzam uma apreciação manifestamente ilógica e de todo em todo insustentável;
Só podemos concluir pela manifesta improcedência dos invocados vícios decisórios previstos no art.º 410.º , nº 2, alíneas a) e c) do CPP.
2- Importa, agora, aferir se ocorreu erro de julgamento, e se foi violado o princípio in dubio pro reo.
Defende a recorrente que a decisão recorrida padece de erro de julgamento quanto aos factos provados sob os n.ºs 3, 7, 8, 9, 10, 13, 14, 15, 16, 17, 20, 21, 22 e 23.
Devendo, ainda, serem aditados outros factos.
Vejamos.
A impugnação ampla do julgamento da matéria de facto conforme prevista no art. 412º, n.º 3 e 4 do CPP, funda-se na noção de erro de julgamento na apreciação da prova relativa aos factos em questão nos autos.
Ocorre quando o Tribunal considera provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova produzida, deveria ter sido considerado provado, pressupondo-se que os meios de prova produzidos não podiam conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos decididos.
Em regra, a avaliação da prova em primeira instância, feita de forma directa, oral e imediata, obedece a uma forma de procedimento que coloca o juiz do julgamento em melhores condições para a decisão da matéria de facto do que a avaliação feita em sede de recurso, com base na audição ou visualização do registo, meramente parcial (porque despido de expressões faciais e comportamentos físicos), de provas de produção pretérita.
Por assim ser, a reapreciação da prova em recurso não pode, nem deve equivaler a um segundo julgamento. O duplo grau de jurisdição não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos em tribunais diferentes, mas apenas garante que o interessado pode obter do tribunal superior a fiscalização e controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto, através do reexame parcial da prova, ou como correntemente se diz na nossa jurisprudência, um remédio jurídico que se destina a corrigir, cirurgicamente, erros in judiciando ou in procedendo.
É neste contexto que se impõe ao recorrente o tríplice ónus previsto no nº 3 e 4 do artigo 412º do CPP, sendo certo que não sendo ele cumprido em alguma das suas vertentes, estão os Tribunais da Relação impedidos de conhecer de facto – art. 428º do CPP.
Por outro lado, o julgamento da matéria de facto está sujeito ao princípio da livre apreciação estabelecido no artigo 127º do CPP, princípio válido para o julgamento em primeira instância como para a verificação de eventuais erros de julgamento na Relação, de acordo com o exame crítico da prova, que não deixa de estar vinculado a critérios objectivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum.
O referido princípio, relativo à prova, permite ao julgador apreciar os meios de prova com base na sua livre valoração e na sua convicção pessoal, por contraste ao sistema de prova legal, onde a apreciação da prova tem lugar com base em regras legais predeterminadas.
Por assim ser, a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando seja obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova ou, então, quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum. Sendo, por isso, também irrelevante para a pretendida modificabilidade da factualidade provada que o recorrente adopte uma interpretação diferente ou contrária da do Tribunal sobre os meios de prova produzidos.
Em face do exposto, e em suma, só haverá erro de julgamento da matéria de facto, suscetível de ser modificado em sede de recurso, naquelas situações em que o recorrente consiga demonstrar que a convicção do Tribunal de primeira instância sobre a veracidade de certo facto é inadmissível (não é sustentada em dados objectivos), ou que existam outras hipóteses dadas pelas provas que imponham (e não apenas apontem) solução diferente da adoptada pelo tribunal recorrido. (cfr. a propósito, entre outros, o acórdão do STJ de 19 de maio de 2010, proc. nº 696/05.7TAVCD.S1, em
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).
Analisemos, então, os concretos factos impugnados pela recorrente.
Relativamente aos factos sob os n.ºs
7, 9, 17
, e
20 a 23
, adianta-se desde já que a arguida não cumpre o ônus da especificação, não indicando a parte das declarações ou dos depoimentos que considera imporem decisão de facto diferente da tomada, por referência à gravação, nem procede à sua transcrição, para demonstrar o alegado erro de julgamento.
Tanto basta para concluirmos estar este Tribunal impossibilitado de conhecer de facto, quanto a esta concreta matéria, conforme imposto pelo art. 431º, b) do CPP. (sobre o tema, entre outros, o acórdão do STJ de 03-12-2009, Proc. n.º 760/04.0TAEVR.E1.S1, 5.ª, e de 26-02-2009, Proc. n.º 3270/08 - 5.ª, ambos disponíveis em www.dgsi.pt)
Improcede, pois, a impugnação, quanto aos factos provados
7, 9, 17, e 20 a 23.
Sobre o facto provado n.º 3 -
No dia 30 de junho de 2023, durante o almoço e a tarde, a arguida foi, como habitualmente, ingerindo bebidas alcoólicas-
a recorrente defende que deve ser aditado ao seu corpo o seguinte texto:
“
tendo ingerido três garrafas de vinho, bem como um número indeterminado de comprimidos
”.
Ouvido o depoimento do ofendido BB (meio de prova que a recorrente indicou e transcreveu para fundamentar o requerido) constatamos que, efectivamente, este declarou que a sua companheira “já tinha bebido três garrafas de vinho, misturado com os calmantes que tomava”.
Todavia, concordamos com o Tribunal a quo quando salienta na sua motivação que o ofendido “
prestou um depoimento comprometido com a posição processual da arguida, (…) sendo nítida a tentativa de menorizar a gravidade dos factos praticados por esta, sendo disso exemplo a referência à ingestão de três garrafas de vinho
.”
Na verdade, a arguida e ofendido vivem em união de facto há já 13 anos, pretendem continuar juntos quando aquela for restituída à liberdade, segundo o ofendido a sua companheira não quis tirar-lhe a vida, mostrou-se genuinamente arrependida, e pediu-lhe perdão o que ele desde logo concedeu.
Conjugando este circunstancialismo, e na ausência de outros meios de prova que confirmassem a quantidade concreta de bebidas alcoólicas ingeridas pela arguida, sendo certo que nem esta concretizou tal quantidade, estamos convictos que a afirmação do ofendido não é o bastante para se concluir, sem margem para dúvidas, que a arguida desde o almoço e até antes de desferir a facada (18.30 horas) havia ingerido três garrafas de vinho.
Todavia, quer pelo que se julgou provado nos factos 2 e 18, quer do que resulta do Relatório do exame pericial de psiquiatria forense citado pelo tribunal a quo, (entre o mais “USF ... I – KK: referência a «perturbação depressiva» (início a 24.02.2023), tendo a examinanda sido medicada com venlafaxina 75 mg/dia e lorazepam 2.5 mg/dia”), crê-se que só por manifesto lapso a decisão recorrida não fez menção à tomada de medicação pela arguida, no facto n.º 3.
Entende-se, assim, julgar parcialmente procedente a impugnação do facto n.º 3 o qual passará a ter a seguinte redacção:
3-No dia 30 de junho de 2023, durante o almoço e a tarde, a arguida foi, como habitualmente, ingerindo bebidas alcoólicas e tomou medicação, de natureza e quantidades não concretamente apuradas.
Quanto ao facto provado em 8 – “
Ferido e deixado à sua sorte pela arguida, o ofendido acionou o serviço de emergência médica” -
a recorrente defende que deve ser retirada a expressão “ ferido e deixado à sua sorte
pela arguida
”, porquanto não existem dúvidas nem o tribunal a quo pôs em causa que tenha sido o próprio ofendido a chamar a ambulância, a ir abrir a porta de casa aos bombeiros, e a deslocar-se pelo seu pé para o interior do veículo, assim como não existe prova alguma de que o ofendido tenha sofrido assinaláveis perdas de sangue, não compreendendo como se julgou provado ter o ofendido sido deixado à sua sorte .
Ora, ainda que assista razão à recorrente quanto a ter sido o ofendido a acionar os meios de socorro, a abrir a porta e a deslocar-se pelo seu pé para o interior da ambulância (o que decorre, efectivamente, da audição das declarações do ofendido e testemunhas), tal circunstancialismo não exclui o facto de a recorrente, após a agressão, não ter socorrido o ofendido, nem ter accionado qualquer tipo de socorro.
Pelo que, não se verifica quanto a este facto qualquer erro de julgamento, como invocado, devendo manter-se o mesmo inalterado.
Relativamente ao facto provado n.º 10 –
O ofendido foi assistido no local e transportado para o serviço de urgência do Hospital de ..., apresentando hemorragia incontrolável -,
a recorrente pretende que se retire a expressão final de
«
apresentando
hemorragia incontrolável».
Ora, escrutinados os meios probatórios por si indicados, transcritos e individualizados, em contraposição com os indicados pelo Tribunal a quo, temos que concluir que, efectivamente, neste ponto ocorre um manifesto erro de julgamento por parte do tribunal recorrido.
Quer o ofendido, quer as testemunhas (CC, DD e EE) que o assistiram no local e o conduziram ao Hospital, em ambulância, negaram a existência de qualquer derrame de sangue significativo, menos ainda incontrolável.
Por sua vez, da prova documental indicada na decisão recorrida, e quanto a este facto, designadamente, do Relatório pericial de avaliação de dano corporal datado de 28/12/2024, não é feita menção a nenhum quadro hemorrágico, assim como não consta de nenhum elemento clínico a existência de qualquer hemorragia.
Exceção feita ao boletim de urgência do Hospital de ... datado de 30-06-2023, de onde decorre que na triagem, normalmente feita por auxiliar de enfermagem ou enfermeiro, o ofendido “
Apresenta (…) pequena hemorragia incontrolável
”, sendo certo que no exame médico que se seguiu não foi feita qualquer alusão à existência de uma hemorragia.
Considerando os meios de prova assim produzidos, e afigurando-se-nos manifestamente contraditória, e carecida de suporte médico, a declaração de uma “hemorragia incontrolável e pequena”, entendemos não existir suporte factual que sustente que o ofendido apresentava hemorragia incontrolável.
De onde, procede neste ponto o recurso, passando o facto provado em 10 a ter a seguinte redacção:
10-“O ofendido foi assistido no local e transportado para o serviço de urgência do Hospital de ....”
No tocante ao facto provado n.º 13-
Apenas pelo facto de a faca ter ficado espetada no arco costal, impedindo a sua progressão, é que não ocorreu laceração do pulmão e coração do ofendido, o que, a suceder, provocaria a sua morte –
é para nós também evidente o erro de julgamento em que incorreu o tribunal a quo.
Na verdade, quer como assinalado pela recorrente, quer como salientado pela Ex.ª. Procuradora geral adjunta neste Tribunal, a afirmação de que a faca ficou espetada no arco costal, o que impediu a sua progressão, evitando a laceração do pulmão e coração, não tem respaldo num único meio probatório produzido nos autos, nem na prova testemunhal validamente produzida, nem na documental.
A decisão recorrida ter-se-á fundado na afirmação da testemunha FF, inspetor da PJ, que declarou ter falado com o médico que viu o ofendido e que este lhe disse que a lâmina da faca bateu nas costelas, o que impediu ter atingido mortalmente o pulmão ou coração.
Na verdade, além desta alusão, por depoimento testemunhal indirecto, de que a faca terá ficado espetada no arco costal do ofendido, não existe nos autos um único meio de prova, seja testemunhal, documental ou pericial que confirme esse “facto”, sendo ainda mais grave constatar-se que de todos os documentos clínicos, exames médicos, relatórios médicos, e Relatório Pericial, todos eles apontam para o contrário do que foi julgado provado, ou seja, a faca que atingiu o ofendido não terá ficado «espetada» nem embatido no arco costal do ofendido, desde logo porque se tal tivesse ocorrido, o exame de TAC ao tórax do ofendido teria seguramente detectado tal circunstancialismo, e nada detectou, como decorre do seu resultado:
«Sem relevantes alterações mediastínicas. Nomeadamente sem coleções nem derrame pericárdico. | Ausência de derrame pleural. | Não se registam áreas de contusão ou laceração pulmonar nem se visualiza pneumotórax. | Não se detetam fraturas. | Não se registam coleções na parede torácica. (...)".
Acresce que não foi dado cumprimento ao disposto no art. º 129.º, n.º 1, do CPP, relativamente ao depoimento da testemunha FF, pelo que a sua declaração não pode ser valorada pelo Tribunal recorrido.
Concluindo, não se mostrando o facto n.º 13 sustentado nos elementos probatórios periciais, como afirmado no douto acórdão, nem em qualquer outro meio de prova, e não podendo ser valorada a afirmação produzida pela testemunha FF nos sobreditos termos, deve o facto em causa ser considerado não provado, como defendido pela recorrente.
Facto n.º 14-
Ao actuar da forma descrita, a arguida agiu com o deliberado propósito de tirar a vida a BB, bem ciente de que o instrumento que utilizava, quer pela sua natureza corto-perfurante, quer pela zona do corpo procurada e atingida (nomeadamente coração e pulmões), era adequado a causar a morte do mesmo, o que quis e que apenas não logrou por razões alheias à sua vontade, atenta a assistência médica que prontamente lhe foi prestada, primeiramente no local e após no atendimento médico de urgência, único motivo pelo qual não conseguiu concretizar a sua resolução de tirar a vida ao ofendido.
A recorrente defende que este facto deve ser dado como não provado, fundamentando que o ofendido referiu expressamente que o que a motivou a espetar-lhe a faca foi o facto de ter consumido 3 garrafas de vinho e medicação, que só o “picou”, que a sua capacidade de avaliar e compreender os factos estava reduzida (pelo consumo de álcool, medicação e perturbações psiquiátricas) integrando o conceito de inimputabilidade diminuída, e que a prova documental e testemunhal (que concretizou) demonstra que o ferimento foi ligeiro, tendo o ofendido apenas necessitado de sutura, sem necessidade de acompanhamento médico posterior.
Vejamos.
Do Relatório Pericial de 28 de dezembro de 2023, sobre as concretas lesões do ofendido, destacamos a referência à data da consolidação médico-legal fixável em 12/07/2023, ou seja, 12 dias, sem afetação da capacidade de trabalho geral.
Do evento resultou uma cicatriz de 1 cm, não desfigurante, com tendência a atenuar-se, e sem consequências permanentes.
Mais se destacando que “do evento não terá resultado perigo em concreto para a vida do Examinado.”
Dos demais documentos clínicos, em particular do Boletim de urgência e exame médico que se seguiu, destacamos que o ofendido deu entrada no hospital apresentando uma ferida corto contusa de 1,5cm, e de 4cm de profundidade, cujo tratamento se traduziu, apenas, em suturar a ferida, com indicação de alta hospitalar e de mudar o penso no Centro de Saúde.
Por sua vez, do depoimento de DD, bombeiro que assistiu o ofendido no local, decorre que foi este quem lhes foi abrir a porta da residência, seguindo pelo seu próprio pé para a ambulância, a vítima não tinha hemorragia activa, não havia bolsas de sangue e segundo o que lhe pareceu tratava-se de um ferimento ligeiro, tanto assim que se limitou a desinfetar a ferida e a colocar um penso.
Tal depoimento foi corroborado pelas testemunhas CC e EE.
Assim, em face dos apontados meios de prova, não vislumbramos como possa a assistência médica prestada no local ao ofendido, e depois a que lhe foi prestada no atendimento médico de urgência, ter impedido a morte do ofendido, sendo certo que segundo o exame pericial, como vimos, do evento nem sequer resultou perigo em concreto para a sua vida.
Procede, assim, nesta parte, a impugnação do facto provado em 14 no tocante ao apontado motivo que impediu a morte do ofendido.
Relativamente aos factos provados em 15.
Fê-lo com total indiferença pelos deveres de respeito e consideração àquele devidos, com quem mantém relação análoga à dos cônjuges
-, e
16.
Agiu a arguida futilmente motivada, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei –
defende a recorrente deverem dar-se como não provados, desde logo porque actuou com imputabilidade diminuída, por força do consumo de álcool e medicação antes do evento, e atenta a sua perturbação psiquiátrica.
Todavia, afasta liminarmente tal entendimento o resultado do exame pericial psiquiátrico realizado às faculdades mentais da arguida, a seu pedido, que concluiu que apesar das sobreditas dependências, esta não tinha, à data dos factos, qualquer limitação psiquiátrica, ou semelhante, que a impedisse de compreender a gravidade dos factos que praticou e de se determinar de acordo com essa avaliação.
Nestes termos, improcede a impugnação, nesta parte, devendo manter-se inalterados os indicados factos 15 e 16, mas neste último com exceção da expressão “
futilmente motivada
”, que deverá ser suprimida por notoriamente conclusiva.
Do invocado erro de julgamento, importa ainda analisar a impugnada “intenção de matar da arguida” (facto 14).
O Tribunal recorrido fundamentou-a atenta a zona do corpo atingida
(lado esquerdo do peito, onde se situa o coração, facto que é do conhecimento geral e básico de qualquer indivíduo
);
-A lesão ter cerca de 4 centímetros de profundidade e a
faca ter ficado espetada no arco costal, o que impediu a sua progressão na direcção do pulmão ou coração;
-O instrumento utilizado, uma faca, que propicia golpes profundos;
-E a arguida não padecer de nenhuma limitação que a impedisse de compreender a gravidade dos factos que praticou, conforme relatório de perícia psiquiátrica.
Contudo, a par destes elementos, retirado o facto da faca ter ficado espetada no arco costal por não provado, impõe-se igualmente ponderar que, como vimos e resulta cristalinamente dos exames médicos e periciais realizados ao ofendido, a lesão efectivamente sofrida por este “
afasta qualquer cenário de especial gravidade no corte infligido porquanto, para além daquele não ter ocorrido qualquer perigo de vida, o ferimento apenas foi suturado, demandando para curar um período de 12 dias de doença, sem incapacidade para o trabalho, e apenas necessitando de tratamentos de enfermagem (mudança do penso) no Centro de Saúde, onde aquele se deslocou. Isto é, as lesões sofridas não eram adequadas a causar a morte do ofendido.”
(v.g. parecer da Ex.ª Procuradora adjunta).
Por outro lado, não olvidando que até “pode não ter havido lesão corporal, não podendo haver presunção médico-legal, e ser dada como provada a intenção de matar” (v.g. o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-01-2003, proc. 0240999, em
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), considerando:
i. A superficialidade da lesão;
ii. A forma como foi concretizada (a recorrente, com a faca na mão, apenas picou o lado esquerdo do peito do seu companheiro);
iii. O contexto em que a lesão foi produzida (a arguida e ofendido vivem em união de facto há 13 anos, e a primeira, à data dos factos, sofria de abuso/dependência alcoólica e sintomatologia depressiva, tendo já ingerido bebidas alcoólicas e tomado medicação);
iv. e o facto de o ofendido constituir para a arguida o seu único sistema de suporte e figura de referência no presente, tendo a recorrente medo de ser abandonada pelo seu companheiro (facto provado n.º 23);
Somos de concluir não estar demonstrado que “
A arguida agiu com o deliberado propósito de tirar a vida a BB, bem ciente de que o instrumento que utilizava, quer pela sua natureza corto-perfurante, quer pela zona do corpo procurada e atingida (nomeadamente coração e pulmões), era adequado a causar a morte do mesmo, o que quis (…)”-
Facto n.º 14.
Ademais se, como acima expusemos, não resultou provado que tenha sido a pronta assistência médica prestada no local, nem a prestada no atendimento médico de urgência, o motivo pelo qual a arguida não conseguiu concretizar a sua resolução de tirar a vida ao ofendido (facto 14), e se este é o seu único sistema de suporte e figura de referência, tendo aquela medo de ser abandonada por este, torna-se então incompreensível, e inexplicável, que a arguida tenha actuado com o único propósito, deliberado, de tirar a vida ao seu companheiro.
No limite, o princípio in dubio pro reo sempre afastaria a conclusão de que a arguida agiu com o intuito de matar o ofendido, podendo apenas dar-se por assente, porque desprovido de quaisquer dúvidas, que aquela agiu com o intuito de o ofender corporalmente, o que aliás é defendido pela própria em sede de recurso.
Pelo exposto, deve dar-se como não provado o facto n.º 14, e considerar-se provado, a título do elemento subjectivo do crime, que a arguida agiu com o propósito, alcançado, de ofender o corpo e saúde do seu companheiro, com quem vive em condições análogas às dos cônjuges há mais de 13 anos, agindo com total indiferença pelos deveres de respeito e consideração àquele devidos em função desse relacionamento. (cfr. factos provados n.º 1 e 15).
Ao actuar dessa forma, violando os deveres de respeito e de proteção exigíveis numa relação como a que a unia ao ofendido, atentando contra a integridade física deste, mostra-se comprovada a especial censurabilidade da sua actuação e o preenchimento da alínea b) do art.º 132.º n.º 2 do Código Penal, enquadrando o seu comportamento a prática, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos arts.º 143º, n.º 1, e 145.º n.ºs 1 e 2 com referência ao art.º 132.º 2 b) do Código Penal.
De salientar, por fim, que na intenção de matar constante do despacho de acusação está contida a intenção de ofender corporalmente, pelo que não estamos
perante uma alteração não substancial dos factos, menos ainda substancial, que importe uma prévia comunicação ou notificação nos termos previstos no n.º 1 do art. 358º do CPP. (cfr. Acórdão do STJ de 10-05-2006, proc. 06P1290, e jurisprudência aí citada em II do Sumário, em
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)
Nestes termos, e atenta a decisão de facto acabada de proferir, reformula-se a factualidade provada e não provada do acórdão recorrido, nos seguintes termos (abstendo-nos de repetir o texto dos factos provados e não provados que não foram impugnados, e cujo texto se mantem inalterado):
Factos provados da acusação:
1. (…)
2. (…)
3. No dia 30 de junho de 2023, durante o almoço e a tarde, a arguida foi, como habitualmente, ingerindo bebidas alcoólicas e tomou medicação, de natureza e quantidades não concretamente apuradas.
4.(…)
5.(…)
6.(…)
7.(…)
8.(…)
9.(…)
10-“O ofendido foi assistido no local e transportado para o serviço de urgência do Hospital de ....”
11.(…)
12.(…)
13.A arguida agiu com o propósito, alcançado, de ofender o corpo e saúde do seu companheiro, com quem vive em condições análogas às dos cônjuges há mais de 13 anos, agindo com total indiferença pelos deveres de respeito e consideração àquele devidos em função desse relacionamento. (cfr. factos provados n.º 1 e 15).
15. (…)
16. Agiu a arguida de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Os factos provados sob os números 17 a 46 mantém-se inalterados, tal como fixados na decisão recorrida.
2.3- Factos Não Provados
Não resultou provado:
Os factos descritos nas alíneas A a D da decisão recorrida mantém-se inalterados, mais resultando:
E
-Não Provado que «Apenas pelo facto de a faca ter ficado espetada no arco costal, impedindo a sua progressão, é que não ocorreu laceração do pulmão e coração do ofendido, o que, a suceder, provocaria a sua morte» (facto 13 da decisão recorrida);
F-
Não provado que «Ao actuar da forma descrita, a arguida agiu com o deliberado propósito de tirar a vida a BB, bem ciente de que o instrumento que utilizava, quer pela sua natureza corto-perfurante, quer pela zona do corpo procurada e atingida (nomeadamente coração e pulmões), era adequado a causar a morte do mesmo, o que quis e que apenas não logrou por razões alheias à sua vontade, atenta a assistência médica que prontamente lhe foi prestada, primeiramente no local e após no atendimento médico de urgência, único motivo pelo qual não conseguiu concretizar a sua resolução de tirar a vida ao ofendido (facto 14 da decisão recorrida).
Cumpre agora, em face da apontada factualidade apurada, apreciar do enquadramento jurídico da actuação da arguida.
Da qualificação Jurídica do crime de homicídio, na forma tentada, imputado à recorrente
A arguida foi condenada, além do mais, pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º, 132.º, n.º 1, e n.º 2, alíneas b) e e) do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Ora, considerando as alterações à matéria de facto, e em particular, não se mostrando provada a intenção de matar da recorrente (facto 14), não estando, por isso, preenchido o elemento subjectivo do crime que lhe foi imputado, impõe-se concluir que deverá ser absolvida do indicado crime de homicídio.
Todavia, resultou assente, além do mais, que:
i.A arguida e o ofendido AA viviam em condições análogas às dos cônjuges desde há cerca de 13 anos, partilhando leito, mesa e habitação;
ii.No dia 30 de Junho de 2023, durante o almoço e a tarde, a arguida foi, como habitualmente, ingerindo bebidas alcoólicas e medicação, de natureza e quantidades não apuradas.
iii.Nesse dia, cerca das 18h30m a arguida lançou mão de uma faca que se encontrava em cima da mesa de jantar, com 22cm de comprimento, sendo 11cm de lâmina, com serrilha e pontiaguda e desferiu-lhe uma facada no lado esquerdo do peito, na parte superior do tórax, de imediato fugindo de casa através da janela da cozinha.
iv.A arguida regressou a casa alguns minutos mais tarde, escondendo-se dentro de um armário, sem proferir palavra.
v.O ofendido foi assistido no local e transportado para o serviço de urgência do Hospital de ....
vi.Como consequência directa e necessária da conduta da arguida, o ofendido sofreu dores e trauma torácico penetrante, com ferida incisa de natureza corto perfurante na região supra-mamária esquerda, tendo o orifício o comprimento aproximado de 1,5cm de comprimento e 4cm de profundidade, com cicatriz nacarada na linha mamilar acima do mamilo de 1cm de comprimento.
vii. Que determinou ao ofendido um período de doze dias para cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral.
viii. A arguida agiu com o propósito, alcançado, de ofender o corpo e saúde do seu companheiro, com quem vive em condições análogas às dos cônjuges há mais de 13 anos, agindo com total indiferença pelos deveres de respeito e consideração àquele devidos em função da relação análoga à dos cônjuges que os une.
ix. Agiu a arguida de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Ponderada, assim, a descrita actuação da arguida, entendemos que se mostram preenchidos todos os pressupostos objectivos e subjectivos de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. no art.º 145.º n.ºs 1 e 2 com referência ao art.º 132.º 2 b) do CP.
Se não, vejamos.
Estatui o art.º 143.º, n.º 1 do CP que «quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.»
E o art.º 145.º n.º 1 do mesmo diploma (Ofensa à integridade física qualificada) que - «Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:
a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º;
n.º 2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º», prevendo-se na al. b) deste último preceito que são reveladores de especial censurabilidade ou perversidade praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga a dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1º grau.
Todavia, importa assinalar que não basta o facto de a vítima ser cônjuge ou de ter vivido com o agente em condições análogas às do cônjuge para que o crime de ofensa à integridade física seja qualificado, sendo necessário conjugar todo o circunstancialismo inerente à produção da ofensa corporal e verificar se, dessa conjugação, resulta uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. (cfr, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8-11-2022, proc. 987/17.4SDLSB.L1-5; in www.dgsi.pt).
Conforme assinalado no acórdão do Tribunal desta Relação de 30-09-2020, proc. 645/15.4GACSC.L1-3, d, (da mesma fonte), que aqui acompanhamos, «O que interessa provar no caso do crime de ofensa à integridade física qualificada (tal como ocorre no crime de homicídio qualificado) é a existência da “especial censurabilidade ou perversidade”.
O que agrava o crime, no caso em apreço, de ofensa à integridade física, tal como no crime de homicídio, é o facto do grau de culpa do agente ser maior, mais intenso, apto a gerar na sociedade uma maior rejeição ou repúdio.
É ao nível da culpa do agente que há de operar-se a análise da qualificação, ou não, do crime base.
Não basta dizer que existe uma ou mesmo várias alíneas do nº 2 do art.º 132º do Código Penal preenchidas para automaticamente se concluir pela qualificação do crime – quer de homicídio, quer de ofensa à integridade física – sendo mister aliar ao preenchimento dessas circunstâncias a verificação de uma maior censurabilidade no comportamento do arguido.
O que interessa apurar é se os factos dados por provados são suficientes para se poder fazer um juízo de censura tal que se constate que o arguido agiu com especial censurabilidade ou perversidade quando atingiu o agente da GNR, não bastando o simples facto o arguido ter atingido um agente policial, no exercício das suas funções, nem que o tenha feito por meio particularmente perigoso.»
No caso concreto, verificamos que:
A arguida e o ofendido viviam, à data dos factos, em condições análogas às dos cônjuges desde há cerca de 13 anos;
No dia 30-06-2023, cerca das 18h30m, após ingerir bebidas alcoólicas e tomar medicação, a arguida muniu-se de uma faca de ponta romba, cabo preto, com 10 cm de comprimento e lâmina em serrilha com 17cm de comprimento e dirigiu-se à sala de jantar, onde se encontrava o ofendido, exibindo-lha;
Ao que o seu companheiro lhe disse para pousar a faca, e como não o fez, aproximou-se da arguida e retirou-lha da mão;
De imediato, a arguida lançou mão de uma outra faca que se encontrava em cima da mesa de jantar, com 22cm de comprimento, sendo 11cm de lâmina, com serrilha e pontiaguda e desferiu-lhe uma facada no lado esquerdo do peito, na parte superior do tórax, de imediato fugindo de casa através da janela da cozinha;
A arguida regressou a casa alguns minutos mais tarde, mas não prestou qualquer auxílio ao seu companheiro, nem quando lhe desferiu a facada, nem depois, quando regressou a casa;
O ofendido foi assistido no local e transportado para o serviço de urgência do Hospital de ..., apresentando como consequência directa e necessária da conduta da arguida, dores e trauma torácico, com ferida incisa de natureza corto perfurante na região supra-mamária esquerda com o orifício de 1,5cm de comprimento e 4cm de profundidade, que lhe determinou um período de doze dias para cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral.
Para a cura da lesão, o ofendido foi assistido no Centro de Saúde da sua área de residência para mudança do penso, vindo a apresentar uma cicatriz de cerca de 1 cm na linha mamilar acima do mamilo, com tendência a desaparecer.
Deste acervo factual, destacando-se que a lesão perpetrada pela arguida no seu companheiro foi produzida com uma faca, que empunhou primeiramente outra faca, e mesmo após o ofendido lhe ter dito para a pousar, e lha ter retirado da sua mão, persistiu nesse intento voltando a pegar em outra faca, com a qual lhe desferiu um golpe em zona corporal perto do coração, e que não lhe prestou auxilio, é evidente que agiu com total indiferença pelos deveres de respeito e consideração àquele devidos em função da relação análoga à dos cônjuges que os une, mostrando-se assim demonstrado, sem margem para dúvidas, a especial censurabilidade da sua actuação e o preenchimento da alínea b) do art.º 132.º n.º 2 do Código Penal.
Conclui-se, do exposto, ter a recorrente praticado um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. no art.º 145.º n.ºs 1 e 2 com referência ao art.º 132.º 2 b) do Código Penal, ao qual corresponde, em abstracto, a pena de prisão até quatro anos.
Da medida da pena
As penas como instrumentos de prevenção geral são instrumentos político-criminais destinados a actuar (psiquicamente) sobre a globalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes, através das ameaças penais estatuídas pela lei, da realidade da aplicação judicial das penas e da efectividade da sua execução, desempenhando uma função (de prevenção) geral negativa.
Também tendo uma função (de prevenção) geral positiva ou de integração como forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal.
E como instrumento por excelência destinado a revelar, perante a comunidade, a inquebrantabilidade da ordem jurídica, pese embora todas as suas violações que tenham tido lugar. Sendo este o ponto de partida da finalidade primária das penas: o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo comportamento criminal de um arguido.
O ponto de chegada da pena está nas exigências de prevenção especial, mais concretamente, da prevenção especial positiva (ressocialização do arguido) e da prevenção especial negativa (neutralização daquele tipo de conduta criminosa).
Tudo isto, sempre, sem olvidar o princípio da culpa inerente ao nosso Estado de Direito Democrático: em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa, ou seja, a pena não pode ultrapassar a medida da culpa.
Deste modo, e
perante cada caso concreto, a pena deve ser encontrada pelo Juiz dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e negativa que são, respectivamente, o limite máximo e o limite mínimo desta “moldura” de pena – pois a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores) e ponderando o nível e premência das necessidades especiais que se lhe apresentem de prevenção especial positiva e negativa que são, respectivamente, a ressocialização do arguido e a prevenção da sua reincidência, tais como as circunstâncias pessoais do agente, (a idade, a confissão, o arrependimento, os seus antecedentes criminais), ao mesmo tempo que também estas lhe transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente (sem ultrapassar a medida da culpa concreta). (cfr. Figueiredo Dias em “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 78-85 e em “Direito Penal – Questões fundamentais – A doutrina geral do crime”, Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, págs. 84-121 e, entre outros, o acórdão do STJ de 16-01-2008, no processo n.º 4565/07 e o acórdão do STJ de 25/5/2016, no processo nº 101/14.8GBALD.C1.S1, ambos em www.dgsi.pt):
Delimitado por estes espartilhos, o Julgador fixará, então, o “quantum” da pena.
No caso dos autos, a pena a aplicar há-de partir da moldura abstracta de 1 mês a 4 anos de prisão ( cfr. art.ºs 41.º 1 e 145.º do CP).
Na determinação concreta da pena, deverão atender-se aos seguintes factores agravativos da responsabilidade da arguida:
-O bem jurídico violado-integridade física, e a zona do corpo atingida;
-A intensidade do dolo da arguida- dolo direto;
-O grau elevado das exigências de prevenção geral;
-A elevada ilicitude da actuação da arguida ao usar uma faca com as características da utilizada;
- A problemática de abuso/dependência alcoólica e sintomatologia depressiva de que padecia a arguida à data dos factos, e que ainda padece;
E ainda a sintomatologia psiquiátrica da arguida decorrente dos factos provados n.ºs 2, e 20 a 25, da qual resulta instabilidade emocional.
A favor da recorrente militam as seguintes circunstâncias:
-A arguida não possui antecedentes criminais, contando com 61 anos de idade;
-É tida, no seu meio, como pessoa afável e educada;
-As consequências das lesões sofridas pelo ofendido assumiram pequena gravidade;
-Antes da reclusão, a arguida apresentava um histórico de dependência alcoólica e patologia depressiva, fazendo terapêutica medicamentosa, beneficiando de acompanhamento da sua médica de família;
- Colocada em liberdade, beneficia do apoio do companheiro e ofendido, pretendendo ambos reatar a relação que vinham mantendo;
-As medianas exigências de prevenção especial.
Ponderando, assim, o indicado circunstancialismo, o desvalor da acção, e as exigências de prevenção geral e especial a salvaguardar, consideramos adequada e proporcional a aplicação à arguida de uma pena de dois anos e seis meses de prisão.
Da Suspensão da execução da pena
Nos termos do art. 50º, n.º 1 do CP, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
A suspensão da execução da pena como expressão do princípio de subsidiariedade da pena privativa da liberdade, corolário do art. 70º do C.P., é uma medida que reveste um «carácter pedagógico e reeducativo» (cfr Maia Gonçalves, Código Penal Português, 18.ª Edição, pág. 215) alicerçada, por um lado, numa previsão fundamentada de que o agente não praticará novos crimes e, por outro, constituindo uma oportunidade concedida àquele por forma a poder reintegrar-se na comunidade, pautando a sua vida em conformidade com os padrões ético-sociais dominantes.
As exigências de prevenção geral impor-se-ão aqui como limite, isto é, como circunstância obstativa, quando a defesa do ordenamento jurídico reclame, em última instância, a efectivação da pena de prisão.
Assim, a suspensão da execução da pena que, assim, não chega a ser cumprida, justifica-se por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para realizar as finalidades da punição, tendo por base um juízo de prognose favorável ao arguido, pressupondo que o mesmo sinta a sua condenação como uma advertência, e que não cometerá, no futuro, novos crimes.
Ou seja, a suspensão da execução da pena deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao arguido, a esperança de que aquele sentirá a sua condenação como uma advertência e não cometerá no futuro nenhum crime.
E tal conclusão terá de se fundamentar em factos concretos que apontem, de forma clara, para uma forte probabilidade de o arguido optar por uma inflexão em termos de vida, reformulando os critérios de vontade de teor negativo e renegando a prática de actos ilícitos.
Os elementos a atender nesse juízo de prognose são, conforme resulta do preceito legal citado, a personalidade do arguido, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao crime, e as circunstâncias do facto punível.
Tal como escreve Figueiredo Dias (Direito Penal Português, parte geral, Vol. II, Lisboa, 1993, p. 342) “pressuposto material da aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente (…)”, sendo que, “(…) na formulação do aludido prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto (…)”.
No caso concreto dos autos, face à pena aplicada à recorrente, encontra-se verificado o requisito formal – pena não superior a 5 anos de prisão.
Por outro lado, considerando que a arguida conta com 61 anos de idade e não possui antecedentes criminais, sofre de dependência alcoólica e foi num contexto de ingestão de bebidas alcoólicas que praticou os factos, o ofendido e seu companheiro já perdoou a sua actuação pretendendo ambos retomar a vivencia em comum, o ofendido é a figura de suporte e de referência da arguida, o qual lhe prestará o apoio que for necessário, e em reclusão desde 1-07-2023 a arguida apresenta comportamento ajustado, entendemos que o crime cometido se tratou de um acto isolado, permitindo-nos formular um juízo de prognose favorável sobre a sua conduta futura, desde que seja devidamente acompanhada por um regime de prova, este com especial incidência no tratamento da adição alcoólica de que padece, e sintomatologia depressiva inerente. (art.º art.º 53.º do Código Penal).
Concluímos, assim, verificados que estão os pressupostos legais, formais e materiais, em suspender a execução da pena de dois anos e seis meses de prisão por igual período, com sujeição a regime de prova nos termos ora indicados.
Nestes termos, em síntese, julgamos o presente recurso globalmente procedente, absolvendo-se a arguida recorrente da prática de um crime de homicídio na forma tentada pelo qual vinha condenada, e condenando-se a mesma como autora material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. no art.º 145.º n.ºs 1 e 2 com referência ao art.º 132.º 2 b) do CP, na pena de dois anos e seis meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova com especial incidência no tratamento da adição alcoólica de que padece, e sintomatologia depressiva inerente.
Procede, assim, na sua globalidade o presente recurso.
DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os Juízes Desembargadores desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães, em:
i. Conceder parcial provimento ao recurso quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, que passará a ter as alterações supra indicadas;
ii. E em Julgar o presente recurso parcialmente procedente, e nessa conformidade, absolver a arguida recorrente da prática de um crime de homicídio na forma tentada pelo qual vinha condenada, indo a mesma condenada como autora material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. no art.º 145.º n.ºs 1 e 2 com referência ao art.º 132.º 2 b) do CP, na pena de dois anos e seis meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova com especial incidência no tratamento da adição alcoólica de que padece, e sintomatologia depressiva inerente.
Não são devidas custas pela recorrente.
Notifique.
Passe de imediato mandados de libertação, e comunique à primeira instância.
Guimarães, 11 de junho de 2025
(O presente acórdão foi processado em computador pela relatora, sua primeira signatária, e integralmente revisto por si e pelos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos – art. 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - encontrando-se escrito de acordo com a antiga ortografia)
Paula Albuquerque
Luísa Alvoeiro
Júlio Pinto
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TRG
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https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/27563026c49cc1b680258cc2002e761d?OpenDocument
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